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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.26 no.3 Braga  2012

 

Um herói romântico, apesar de tudo e apesar de si, e um cadete de cavalaria. Sobre A Filha do Doutor Negro

A romantic hero, after all and despite himself, a calvary cadet. About A Filha do Doutor Negro

Sérgio Guimarães de Sousa*

*Universidade do Minho, Departamento de Estudos Portugueses e Lusófonos, Braga, Portugal

spgsousa@ilch.uminho.pt

 

RESUMO

Em A Filha do Doutor Negro (1864), de Camilo Castelo Branco, surgem dois protagonistas de notório cariz romântico. Ambos nutrem desejo pela mesma moça (Albertina), sem que isso desencadeie uma rivalidade mortífera (ou sequer rivalidade) entre ambos. Um deles, António da Silveira, abdicará do seu desejo e desempenhará o fundamental papel de coadjuvante da relação entre o outro (João Crisóstomo) e a filha do chamado doutor Negro, relação, como seria de esperar, pautada pela (inclemente) interdição paterna. O nosso propósito consistirá em analisar estas personagens, que parecem funcionar como o reverso de uma mesma moeda: a de heróis românticos, com boa porção do que isso supõe e exige, marcados, porém, por inequívocos sinais (mais ou então menos residuais) da mentalidade do Antigo-Regime, o que não é, muito pelo contrário, sem condicionar o trajeto de cada uma. Trata-se, assim, de protagonistas situados num entre-dois assaz desconfortável em determinados contextos.

Palavras-chave: desejo; matrimónio; patriarcado; Romantismo; Antigo Regime.

 

ABSTRACT

In A Filha do Doutor Negro (1864), by Camilo Castelo Branco, there are two characters of notorious Romantic imprint. Without the any lethal rivalry (or even any rivalry at all), both men are passionately drawn towards the same lass (Albertina). António da Silveira, one of the contenders, will abdicate from his aspiration and will play a fundamental supporting role for the other contender in helping to conquer the heart of the lady. As it should be expected the father of the young lady plays his part in preventing any approaches. Our aim will be that of putting forward an analysis of these characters who seem to be playing a dual role of romantic heroes, with all that this conception demands and means, and also of heroes marked by unequivocal signs (more or less residual) of an Ancient Regime mentality. This duality is never mutually excluded in these characters considered in a quite dis-comfortable position, that of an in-between existence.

Keywords: desire; marriage; patriarchy; Romanticism; Ancient Regime.

 

Em A Filha do Doutor Negro (1864), António da Silveira, João Crisóstomo e Albertina, personagens inscritas sob o signo da modernidade romântica, padecem do coração: António da Silveira apaixonou-se por Albertina, que, por seu turno, ama apaixonadamente João Crisóstomo e este aquela. Esta circularidade do desejo não é sem provocar, como diria N. Luhmann, irritabilidade no sistema social (patriarcal).

Embora corporifiquem traços muito tipicamente românticos, o certo é que António da Silveira e João Crisóstomo também evidenciam ressonâncias tradicionais. Para usar palavras de Habermas, referentes às premissas que substanciam a entrada na modernidade, ambos, digamos, carecem de «uma estrutura em que o espírito subjetivo pode emancipar-se da espontaneidade natural das formas tradicionais de vida» (Habermas, 1990: 89). Noutros termos, manifestam-se enquanto protagonistas divididos (embora se possa argumentar a desigualdade da divisão num e no outro, mais favorável à ordem antiga em António da Silveira e mais romântica no caso do amanuense) entre dois mundos, o do Antigo Regime e o da modernidade romântica. Isto é, são personagens, pode dizer-se, de transição (como de resto o doutor Negro). Em sentidos diferentes, como é óbvio, acham-se, para referir o psicanalista francês Daniel Sibony (cf. Sibony, 1998), numa desconfortável situação de entre-dois (entre-dois-mundos; na desgastante condição de um coupe-lien, que impele a franquear o entre-dois; e este entre-dois significa duas realidades sociológicas em disputa, nenhuma podendo reivindicar supremacia sobre a outra)[1].

1.

O sentimento amoroso do João Crisóstomo não é desprovido de falhas, na medida em que se apresenta entrecortado pelas preocupações que o abalam e que vão ganhando uma relevância de primeiro plano. Sendo assim, e por mais argumentos aduzidos por Albertina, a verdade é que o amanuense não se conseguirá abstrair da infâmia de que é vítima: «João Crisóstomo recolhia triste, quebrantado e doente; é que o olhar petulante dos caluniadores o vexara, e pode mesmo ser que os mais inocentes reparos o aviltassem» (Castelo Branco, 1971: 239). Sem eira nem beira, «encarna o herói sem mancha, vítima da pobreza e da fatalidade» (César, 1971: VIII) e que, em nome do desejo, desafia a ordem tradicional vigente, como é característico do heroísmo romântico. Porque o desejo nutrido por Albertina põe em xeque a situação social em que todos os societários se encontram virtualmente ligados e desligados, e isso de um modo fortemente normativo e imperativo, por relações de casta ou, se quisermos, de estatuto social. Quer dizer, não está socialmente previsto, no mundo ordenado e equilibrado da tradição, avesso a emancipações pessoais, que um amanuense estabeleça parentesco com a filha do seu patrão.

1.1.

Não é difícil ver na personagem um problema de classe. De facto, João Crisóstomo não se dá bem com a localização social que o nascimento lhe reservou. Filho de lavrador, numa sociedade hierarquizada por nascimento e não por funções (o sistema da diferenciação funcional é próprio das sociedades modernas), não apresenta saúde condizente com a dureza do trabalho agrícola, quer dizer, não dispõe da compleição física requerida pelos da sua condição social, sendo «débil e enfermiço» (Castelo Branco, 1971: 38). Mas não é só a robustez física que o distingue do perfil do lavrador. Quando António da Silveira vê João Crisóstomo pela primeira vez, eis a impressão com que fica:

Era macilento, magro, e menos vulgar de aspeito do que devia esperar-se do filho de um lavrador do Minho, onde, pelo ordinário, as caras dos agricultores nos querem parecer pouco mais de rudimentares, como se a natureza as deixasse configuradas na primeira sessão para voltar depois e conformar-lhes os relevos. (Id.: 48-49.)

João Crisóstomo, digamos, condiz com o aspeto do herói romântico, não encarnando os traços do rude ou do pacóvio camponês, apesar de carecer daqueles bens culturais (leituras romanescas, sobretudo) que costumam configurar a alma de um protagonista romântico. Avizinha-se, dir-se-ia, apesar evidentemente da especificidade do contexto camiliano, de um Julien Sorel, filho e irmão de lenhadores, mas com os quais se não identificava. Tal como o futuro apaixonado de Mme de Rênal, cuja fragilidade contrastava com a brutalidade imperante no seu meio familiar, João Crisóstomo apresenta sinais de debilidade física. E veja-se que a personagem de Camilo, antes de partir para o Porto, solicita ao pai permissão para ingressar no Seminário, o que tanto pode ser estratégia para escapar à violência física dos campos como pode ser uma forma, a segunda possível (a primeira, a ida para o Brasil, fracassou, justamente por causa da debilidade física da personagem), para resolver o seu mal-estar social na tentativa de escapar a um destino para o qual não revela a menor vocação (nem, em boa verdade, a mínima capacidade). Em síntese, avesso à localização social prescrita pelo nascimento, num contexto ainda desencorajador da mobilidade a bem da estrita reprodução social, o amanuense ambiciona outra identidade social, a que lhe possa consentir o eventual mérito do seu trajeto.

1.2.

Outro aspeto reporta-se ao comportamento ativo e temerário. A personagem não parece pertencer à estirpe daqueles heróis românticos passivos, indolentes, melancólicos, propensos ao confessionalismo, dominados pela resignação, enfim, razoavelmente marcados por tendências passivas (e que proliferam no chamado segundo Romantismo, o do contexto burguês e liberal). Mais próximo deste género de protagonistas estaria António da Silveira. João Crisóstomo, esse, ajusta contas com Caetano Alves, matando-o. E antes disso, a comprovar a sua índole ativa, num momento da novela particularmente dotado de peripécias rocambolescas dignas de folhetim, deslocou-se a Barbeita disfarçado de mendigo. E lá, dirigindo-se a Albertina, proclama, com não pouco sentido trágico: «– Se o céu mos não der, irei buscá-los ao inferno. Dentro de trinta dias, estarei morto ou contigo» (id.: 115). A declaração é assaz emblemática do herói romântico, daquele impulso irrefreável que faz com que o protagonista esteja disposto a tudo para levar em frente o seu irreprimível desejo, que é da ordem do absoluto. E um herói assim disponível para tudo, arriscando perder a própria vida, não tem pejo em convocar o inferno (leia-se: a obtenção de dinheiro por meios ilícitos), se a Providência lhe não proporcionar os meios de que carece para resgatar a moça de Barbeita. A declaração é interessante por evidenciar no amanuense, trabalhador honrado e imbuído de uma honestidade irredutível (devolve, por exemplo, o dinheiro emprestado a Caetano Alves, mesmo sabendo do imbróglio em que este o enredou), a possibilidade, em caso de absoluta necessidade – ou seja: estando em jogo a libertação de Albertina –, de enveredar por vias menos retas. É a paixão exacerbada a cegá-lo nas convicções morais, como se percebe. Uma paixão, à boa maneira romântica, dominadora e não isenta de certa loucura. Eis o que sucede, mal sai do cárcere:

João Crisóstomo, ao escurecer deste primeiro dia de liberdade, entrou na estrada de Braga, sem saber dar-se conta do intento que o levava, impelido pelo coração. Era febre precursora de loucura; frenesim como ele, raras horas, o experimentara no afogado recinto do cárcere (id.: 106.)[2]

O dinamismo viril e o orgulho, refira-se ainda, não invalidam a presença na personagem de uma forte sensibilidade, consentânea, de resto, com a debilidade física de que padece desde a juventude.[3]

1.3.

Deve notar-se, enfim, outro traço de carácter correlacionado com a índole sensível do amanuense e já aludido: a flagrante dificuldade de este se ver remetido para a condição de marginal social. João Crisóstomo sofre, pois, enormemente com o facto de a sociedade o repudiar, dando inequívocos sinais de não suportar as acusações insidiosas de que é alvo. Posto em liberdade, não aguenta o estigma da marginalidade e, com isso, (d)enuncia uma flagrante dependência da aprovação social: «Caminhou de rua em rua. Encontrou pessoas, que o haviam estimado. Ninguém lhe disse: «Deus te salve!»; ninguém lhe apertou a mão, dando-lhe os emboras de sair vivo dos ferros» (id.: 105). E uma das razões para tanto é «porque o ficaram odiando pelo crime de rapto» (id.: 106.). O desamparo, note-se, não se restringe aos conhecidos, alarga-se à esfera familiar. O próprio narrador, cheio de comiseração, afirma: «E tão desgraçado na sua primeira noite de liberdade!… Não ter pai que lhe desse agasalho naquela noite, nem irmão que lhe liberalizasse uma tigela de caldo em sua mesa, na mesa onde ambos haviam comido, com a mãe comum entre eles, a mãe que os amava por igual!» (id.: 106-107). Apossa-se então do amanuense uma profunda dor. «Chorava o desamparado lágrimas de travor acerbo, olhando por além fora no caminho de sua casa, alvejado pela claridade da lua» (id.: 107). Assim destroçado, João Crisóstomo renega a sua desinserção familiar e o «atroz destino» (ibid.)[4]. Como se vê, João Crisóstomo não é Simão Botelho. Não imaginamos o caudal de energia romântica de Simão afetado, ou, pelo menos, afetado assim devido à reprovação social. Para não falar na relação do amanuense com o pai. Um pai pouco razoável: é-nos apresentado como sendo autoritário e de má índole. Movido pela ambição, envia o filho ainda novo para o Brasil, para que este faça fortuna (este corte com o pai é também um corte com a mãe e com a mãe-pátria). O filho vê-se obrigado a partir, qual enjeitado necessitado da riqueza dos trópicos, para adquirir, supõe-se, uma legitimação paterna proporcionável pelo capital. E, como sabemos, das duas vezes que partirá para o Brasil, não alcançará fortuna. Quando regressa, por razões de saúde, o «pai, que não era dos mais razoáveis, e tinha outro filho a quem deveras queria, recebeu-o de má sombra. João pedia-lhe que o deixasse ordenar; o pai deu-lhe uma enxada, e mandou-o roçar tojo» (id.: 38). Apesar disto, João Crisóstomo parece respeitar bastante o progenitor. A Januário chegará a confessar que dias havia em que chorava por não ter obedecido ao pai (cf. id.: 79). E se da primeira vez que passa perto da terra natal tende a culpar esse pai pelo destino que a sorte lhe reservou e apela à mãe, cuja morte lamenta, a verdade é que na segunda vez que por lá transita, a caminho de Barbeita, sofre por saber que não voltará a vê-lo. Em suma, ao inverso de Simão, o amanuense parece incapaz de se definir somente com base numa relação de auto-referencialidade (o «Eu» voltado para si mesmo na assunção do seu ser e sem concessões para o mundo exterior), antes se define a partir de uma relação de alteridade: a opinião/validação social. O caso agrava-se com a condenação judicial. Porque João Crisóstomo não suportará a propagação social de uma acusação injusta que o desonra, equiparando-o à condição de delinquente.

1.4.

E se a acusação é perfeitamente injusta, deve-se a injustiça flagrante ao sistema judicial, aqui e noutras novelas, incapaz de se enclausurar sobre si mesmo por carecer de isenção. Isto é, a instância judicial não dispõe de firmeza suficiente para enfrentar a ingerência de outros sistemas sociais (sistema político, económico, etc.). Efetivamente, os tribunais são o palco de uma justiça pervertida, como muito bem nota António da Silveira, ao contra-argumentar, com Voltaire, a razão pela qual João Crisóstomo fazia muitíssimo bem em permanecer exilado no Brasil: «O seu dileto filósofo [Voltaire] […] escreveu que, se a justiça o arguisse de ter furtado o sino grande de Nossa Senhora de Paris, ainda que toda a gente estivesse vendo o sino na torre, ele sairia de França, e lá de fora provaria que não roubou o sino. Da cadeia é que não» (id.: 218). O comentário diz bem da injustiça da justiça (Caetano Alves e Benito Rojas serão libertados, João Crisóstomo, não obstante a flagrante inocência, é condenado). A prestação de Caetano Alves em tribunal, a acentuar os desvarios da justiça, é péssima: «O magistrado enleara-o tão engenhosamente que o réu, a cada investida que dava à trama, ficava mais enredado. Afinal, estupidificado pelo susto, disse que entregava os bens ao autor, e que o deixassem» (id.: 217). Reação da assistência: «Os circunstantes riram às gargalhadas da beatífica desistência do homem, e espantaram-se de um cair de chofre tão redondo à lama dos criminosos vulgares!» (ibid.). O infeliz desempenho do réu é compensado pelo dinheiro. Seguindo «alguns experientes deste mundo» que o admoestaram «a que tivesse mais confiança no seu dinheiro e na valiosa atividade dos seus amigos» (id.: 221), a personagem não sofre o repúdio da sociedade, antes se vê maciçamente apoiada por esta:

O rico proprietário, quando a indignação pública fazia estampido, era já visitado por pessoas de uma tal qual categoria e preponderância. Destas, alguma, grandemente considerada entre a classe genealógica, saiu de carruagem à porta dos juízes, a oferecer a sua idoneidade em fiança do preso. À imitação deste fidalgo agradecido ao seu credor, outros se ofereceram e empenharam já com o magistrado criminal, já com o cível. (Id.: 221.)

O facto de pessoas de «categoria e preponderância» visitarem o réu, entre as quais uma «grandemente considerada entre a classe genealógica», oferecendo aos juízes «a sua idoneidade em fiança do preso», e dando o exemplo a outros fidalgos, é denotativo de um sistema judicial onde «la preuve [est] liée à des rôles» (Luhman, 2001: 52), o que condiz com uma sociedade tradicional, na qual a moralidade é apurada segundo a notoriedade da escala social a que se pertence[5]. No Antigo Regime, muito confiado à família e, mormente, às famílias de renome genealógico, «les membres des couches supérieures de la société jouissent d’une plus grande crédibilité au tribunal» (id.: 54; cf. também Luhman, 1998: 380 e 415). Tanto assim é que «em caso de processo, o juramento coletivo dos parentes era suficiente para ilibar o acusado ou, pelo contrário, para provar a sua culpabilidade» (Michel, 1983: 46), o que contrasta com o direito moderno, onde cabe ao juiz abstrair-se dos papéis sociais dos que intercedem, por exemplo, a favor da pessoa julgada. Para recorrer uma vez mais a Luhmann:

[...] il [le juge] ne le fait [tirer son jugement] plus directement à partir de représentations du vrai et du juste qui se seraient imposées dans un ordre de la vie sociale qu’il pourrait contempler. Il peut ainsi opérer à partir d’une distance plus grande et il n’est pas tenu, dans tous les domaines à ramifications multiples où il doit rendre une décision, de flairer les príncipes moraux de jugement qui seraient suscéptibles de créer un consensus. Il peut et doit décider en tant qu’étranger (als Fremder). (Luhman, 2001: 56.)

Se Caetano Alves, por escrito, incrimina João Crisóstomo, acusando-o de lhe ter fornecido a nota para falsificação e de ter, inclusive, colaborado com o contrafator a troco de generoso estipêndio, e se esta denúncia, desconsiderada inicialmente pelo corregedor, é incriminatória do próprio Caetano Alves, o certo é que este, em boa verdade, não acaba condenado. Como fica a saber António da Silveira, «conspiravam a favor de Caetano Alves pessoas de grande vulto e influência, notadamente o regedor das justiças» (Castelo Branco, 1971: 232). Mais: «a proteção ao réu era tão evidente e escandalosa quanto ele estava no gozo de seus bens» (ibid.). Aliás, o livre uso de bens é a condição justamente imprescindível para o criminoso comprar influências e, assim, manobrar a justiça a seu favor. Ao todo, Caetano Alves investirá a não despicienda quantia de cinquenta contos, o «preço da liberdade» (id.: 252). Desta maneira, o corregedor, convencido da inocência do amanuense, incrimina-o para estupefação de António da Silveira; e, no final do processo, declara-o culpado (cf. id.: 251). Quanto a Benito Rojas, cujos dias na prisão foram regalados (cf. id.: 249), salva-se de ser extraditado para Espanha graças a Caetano Alves, que corrompe um cônsul espanhol, do qual dependia a liberdade do falsário, e isto porque «[o dito cônsul] não tinha motivo algum para ser mais incorruptível que os outros» (id.: 252). Portanto, através da corrupção, opera-se uma legitimação social que é o inverso da diferenciação recomendada por Luhmann para o sistema judicial:

L’essentiel est plutôt de construire une sphère propre de sens de manière à ce que les processus sélectifs de traitement des informations provenant de l’environnement puissent être régulés par des décisions et des règles propres au système, afin que les structures et les événements de l’environnement ne deviennent pas automatiquement valides dans le système, mais ne soient reconnus qu’à la suite d’un filtrage des informations. La différenciation ne peut donc se réaliser que par l’autonomisation des procédures et sa portée correspond à celle des possibilités décisionnelles du système. (Luhman, 2001: 51.)

Manifestamente isto não sucede aqui. O tribunal é largamente permeável a dois meios de comunicação simbolicamente generalizada: o dinheiro (capital patrimonial) e o sangue (capital simbólico). E se, no final, os criminosos acabam de facto castigados, a punição parece obra de uma Providência[6].Não há como negar queo crime perpetrado pelo amanuense, e com o qual diz recuperar a honra que a sociedade civil injustamente lhe negou, se substitui à justiça dos homens e, nessa medida, ocorre uma reparação da injustiça praticada nos tribunais; e isso nada parece ter a ver com os desígnios da Providência. No entanto, o narrador compraz-se em explicá-lo, e em explicar os castigos destinados às personagens aviltantes, a bem de uma efetiva justiça, invocando a infalível Providência[7]. Em todo caso, isto é, seja Providência ou mera contigência, a verdade é que a ficção camiliana não carece de justiceiros que fazem as vezes da Justiça inoperante(em O Senhor do Paço de Ninães, o negro Vasco mata João Esteves Cogominho; em O Carrasco de Victor Hugo José Alves, o negro Damião Ravasco – anagrama quase perfeito de carrasco, repare-se – acaba com a vida de Victor Hugo, degolando-o; etc.).

1.5.

A necessidade inquebrantável de João Crisóstomo ostentar uma honra imaculada não se compadece com o amor. Por «honra» não se entenda, convém esclarecer, aquele pundonor aristocrático que R. A. Lawton imputou a Simão Botelho, avizinhando-o dos pundonores de Domingos Botelho e Tadeu de Albuquerque (vide Lawton, 1964)[8]. Ao arrepio do que defende Lawton, cuja leitura foi refutada, entre outros, por Jacinto do Prado Coelho (cf. Coelho, 2001: 253-257), Aníbal Pinto de Castro (Castro, 1983: LVI) e, com uma argumentação a todos os níveis brilhante, por Abel Barros Baptista (Baptista, 2009: 81-112), a honra de Simão Botelho, que o leva a desprezar concessões que visassem aligeirar-lhe a pena (e, em sentido mais lato, a própria justiça humana), essa honra decorre de uma superioridade moral (que começa com o «eu» romântico a lutar contra as crenças, os valores e as expectativas das instituições da ordem antiga), vale dizer, procede de um estado de nobreza de alma em confronto aberto com os preconceitos sociais e não resulta do refluxo da linhagem e do parentesco.

Antes do crime, refira-se, o forte sentido de honra de João Crisóstomo está à vista, em particular, em dois momentos. O primeiro diz respeito à maneira hábil como a personagem repudia a oferta de Januário Costa e Silva, que a troco de seis mil cruzados em moedas de ouro, além da oferta da liberdade, contava corromper o amanuense, ou seja, fazer com que este prometesse esquecer Albertina e partisse para longe. Mas prestemos atenção ao segundo momento a que nos referimos e que se reporta àquela parte da narrativa em que as liteiras de Francisco Alpedrinha se cruzam, noite alta, com João Crisóstomo numa serra sugestivamente chamada «Terra-Negra», «por aqueles tempos, suja de salteadores» (Castelo Branco, 1864: 107). Os liteireiros do bacharel, avistando o vulto do amanuense, julgam-se cercados por ladrões, o que muito aflige Francisco Alpedrinha: «– Gritem, gritem à-d’el-rei! – clamou o doutor, figurando um ladrão em cada tronco de árvore» (id.: 108). No tocante ao amanuense, que reconhece de imediato a voz do pai de Albertina, é dito que «permanecia sentado e imóvel sobre o combro» (ibid.). Daí o contraste flagrante: os moços do doutor Negro que «bradavam, em grita desentoada, por socorro» (ibid.); e a serenidade total do amanuense. E mesmo quando os liteireiros do magistrado lhe dizem que, afinal, ao que parece, tudo não passa de um único homem, sugerindo a hipótese de o confrontar, o receio do doutor Alpedrinha não diminui de intensidade: «Vejam lá no que se metem, que isto é sério e perigoso! – observou Francisco Simões. – Eu tenho aqui meia dúzia de moedas; se esses senhores se acomodarem com isto, dou-lhas, e que me deixem passar a salvo» (ibid.). Resposta do amanuense, que continua na mesma, «sem mudar de postura» (ibid.): «– Passem, que não há ladrões aqui» (ibid.). Reação do pai de Albertina: «O doutor Negro cuidou ouvir a voz de João Crisóstomo, e tremeu pela vida» (ibid.). Por essa razão, recomenda aos seus homens que estejam atentos e que se coloquem do lado das portinholas da liteira, isso a fim de o protegerem em caso de ataque. João Crisóstomo trata, logo, de afirmar inequivocamente que o viajante não corre perigo: «– A sua vida está segura, sr. doutor Alpedrinha […]. – A sua vida é tão sagrada para mim como a de meu pai» (id.: 109). Por conseguinte, temos João Crisóstomo numa situação de superioridade relativamente ao doutor Negro, superioridade que se deve entender não somente no sentido físico (o doutor e os seus moços temem, dada a má fama do lugar, estarem em presença de bandidos, o amanuense, ainda que só, é senhor da situação), porém igualmente em termos de superioridade moral. A impassibilidade do amanuense, o mesmo é dizer, a sua serenidade, em flagrante contraste com o pavor dos homens de Francisco Alpedrinha, sinaliza um estado de consciência tranquilo. Recorde-se, a propósito, a impressão que João Crisóstomo causara em António da Silveira na cadeia da Relação do Porto: «António da Silveira […] [ficou] cativo daquele homem, cujo sossego justificava a pureza da consciência» (id.: 51). E recorde-se também a inusitada reação da personagem à carta do cadete, onde se dava conta da acusação vil que pendia sobre ela: «João Crisóstomo acabara de ler a carta serenamente», observa o narrador, para acrescentar: «Horribilíssima serenidade!» (id.: 200) («Horribilíssima», porque bem depressa a serenidade cederá lugar às lágrimas). Regressando à cena do encontro noturno, cabe enfatizar que o amanuense teria motivos de sobra para se vingar do doutor Negro (mandou-o prender, tentou corrompê-lo, prolongou-lhe o mais que pôde a pena de prisão), todavia, como quem concede uma graça, João Crisóstomo deixa o pai de Albertina passar livremente. E com esse gesto – que pode lembrar ironicamente a clemência de um patriarca detentor do poder de vida ou morte (patria potestas), mas que decide poupá-la –, a personagem tende a manifestar um sentido de honra que o patriarca já não pode reivindicar. Mais ainda se pode dizer (se é que não se deve dizer): que, em termos de sugestão, o terror do magistrado e, num claro contraste, a serenidade do amanuense são como que a face visível da falta de honra do patriarca e da sua presença no moço. Mas pode perguntar-se: e o facto de fugir, por três vezes, com a filha do magistrado, ousadia que lhe vale a reprovação social, não é significativo de desonra? Aqui, a resposta pode vir sob a forma de excerto de um diálogo retirado de Estrelas Propícias, entre António de Azevedo Barbosa e João Bernardo Taveira. Diz o primeiro isto: «– Bem: e não entendes tu que seria uma indignidade ir eu perturbar o sossego do pai de Corina, casando-lhe com a filha, por meio de um rapto ou da intervenção da justiça?» (Castelo Branco, 1971a: 61). Responde João Bernardo: «– Não entendo assim a dignidade. Se Corina consentir em ser raptada para o mais santo dos intentos a que o coração a pode impelir; e, se ela razoavelmente se não quiser sacrificar à ambição do pai, nem a tua honra, nem a sua, nem a da família ilustre ou não ilustre, sofrem desaire» (ibid.).

Pela precedência geracional e pelo poder (simbólico e real) que concentram em si numa sociedade como a do Antigo Regime, não custa entender que os patriarcas sejam, enfim, por excelência, depositários da honra. Na verdade, porém, evidenciam, como é o caso do Doutor Alpedrinha ou de Januário Costa e Silva, comportamentos pouco veneráveis.

A honra acha-se antes em heróis tipicamente românticos como João Crisóstomo, como referimos. Em O Bem e o Mal, a certa altura, cruzando-se com Rui de Nelas, Casimiro de Bettancourt, inadvertidamente, diz: «– Sr. Rui de Nelas, quem me feriu na batalha foi a espada da honra» (Castelo Branco, 2003: 83)[9]. Assinalemos, no entanto, uma peculiaridade de João Crisóstomo. Sobretudo tendo presente, novamente, um herói como Simão. No filho do corregedor Domingos Botelho, o sentido da honra parece estar para lá das contingências sociais. Simão mantém, pois, uma relação com o Direito que é a de quem não reconhece aos tribunais legitimidade mínima para avaliarem o seu comportamento associal. O herói posiciona-se acima dos juízes, reconhecendo como único juiz nada menos do que Deus. Daí não precisar de validação social. Não sucede o mesmo com João Crisóstomo. Note-se como este reage à oferta de Caetano Alves de fugir com Albertina para o Brasil: «O seu pensamento do Brasil, encanta-me, sr. Chaves! Trabalhar ao lado da mulher que amo, toda a vida! Morrer abençoado dela e da sociedade!…» (Castelo Branco, 1971: 125). Como se vê, o sonho de uma vida em conjunto com Albertina não se afigura suficiente, sendo necessário acrescentar outra componente inultrapassável: a bênção da sociedade. Esta exigência de validade social é típica do Antigo Regime, onde as pessoas existem não fora mas dentro da ordem social estrita. O desencontro do indivíduo com a sociedade é, em larga porção, um dos vetores estruturantes do imaginário mítico-simbólico romântico, como é sabido, e corresponde a uma necessidade imperativa: afirmar a emancipação, em pleno gozo de liberdade, até aos confins do absoluto. Não admira que a índole do herói romântico despreze a sociedade e não raramente a enfrente abertamente sem escrúpulos de ordem moral. A ordem antiga, essa, inscreve o indivíduo dentro do sistema social e define-o através dele, sob pena de o punir com uma insuportável marginalidade. Como nota Luhmann: «La naturaleza del hombre era su moral, su capacidad de ganar o perder el respecto en la vida social» (Luhman, 1998: 200). João Crisóstomo é manifestamente dependente do julgamento social, o que não é evidente numa personagem como Simão Botelho. Porquê? Provavelmente porque o filho do Brocas descende da aristocracia de corte por parte da mãe e é filho do corregedor de Viseu. Quer isto significar uma linhagem com certa relevância e, como tal, capaz de conferir automaticamente reconhecimento social. Simão pode, por esse motivo, dar-se ao luxo – socialmente falando – de esbanjar prestígio cultivando alguma marginalidade, que não lhe afeta a relevância social assegurada pela genealogia um tanto distinta. Por exemplo, «partiu muitas cabeças» (Castelo Branco, 2004: 27) dos donos de umas vasilhas, vingando assim o espancamento de um criado de seu pai. A pancadaria (que serve o propósito de indicar a índole violenta e irrefletida mas também valente e justa de Simão) não resultou em nenhuma ordem de prisão. Leia-se: «armado de um fueiro que descravou de um carro, partiu muitas cabeças, e rematou o trágico espetáculo pela farsa de quebrar todos os cântaros. O povoléu intacto fugira espavorido, que ninguém se atrevia ao filho do corregedor» (id.: 27). E as queixas dos feridos de nada valerão. E mesmo depois de Simão cometer um crime punível com a forca, não falta um juíz de fora a compadecer-se dele. Mas Simão despreza ajudas e conselhos. Porque despreza a justiça dos homens. João Crisóstomo é assaz diferente, desde logo por ser permeável ao crivo social. Como não procede de uma família com bens e não beneficia da proteção de um nome sonante, a honra, tudo bem considerado, consiste no único bem que socialmente possui suscetível de o tornar superior aos detentores de património e/ou linhagem. A honra é assim um capital precioso, capaz de pôr em causa o amor, como sucede com outros protagonistas camilianos desfavorecidos socialmente, porém apetrechados de um fortíssimo sentido de honra, não raro manifesto em posições exageradamente intransigentes. Em Agulha em Palheiro, Fernando Gomes, a certo passo do enredo, diz a Paulina: «– Vai, minha amiga, e esquece-me, se quiseres e puderes. O que nunca poderás esquecer é que o homem, que te não servia para o coração, tinha alguma boa qualidade que há de eternamente viver em tua memória. Antes esquecido por ti, que desonrado por amor de ti, Paulina» (Castelo Branco, 1904: 175-176)[10].

E é o caso, apenas para mencionar mais um exemplo, de António de Azevedo Barbosa (Estrelas Propícias), protagonista sem vínculo genealógico, no entanto, extremamente honrado e digno, o que lhe vale uma censura do ancião Valentim da Costa, que lhe repara, com justeza, o excesso de dignidade:

Eu sei bem o que é a dignidade; achei que a sua se manteve sempre na altura dos mais dignos homens de outros tempos; admirei-o e louvei-o pelo que outros chamariam demasias de orgulho sob a capa de independência; agora, porém, é chegada a hora de eu lhe dizer que, assim como a suave religião se descaminha até ao fanatismo execrável, assim a briosa dignidade, se perde o rumo do bom juízo, vai dar consigo nuns excessos rudes, insociáveis e repelentes. A sociedade aplaude os virtuosos, mas desadora os que fazem de sua virtude uma tribuna para lhe censurar as fraquezas. O excesso do bem é um mal que não me aproveita a mim, nem a outrem. Eu quero que António de Azevedo se mostre alegre para que o mundo não diga que a honra tem uns pavores interiores refratários ao contentamento. (Castelo Branco, 1971a: 197-198.)

Retornando a João Crisóstomo, cabe sublinhar o facto de a personagem, manchada na honra, a não ser pela lógica do crime, não ter como recuperar o crédito social. Fundamentalmente por não dispor de capital. Numa carta endereçada a Albertina, o amanuense revolta-se contra a organização social rígida e aspira a uma des-hierarquização: «Eram mal dissimulados prantos, ódios e vociferações contra a férrea organização da sociedade» (Castelo Branco, 1971: 119). João Crisóstomo, é caso para dizer, envereda por um individualismo revolucionário, expressão cunhada por Luc Ferry para designar o individualismo emergente no contexto da Revolução (e antes) e que «se traduit par une révolte des individus contre la hiérarchie au nom de l’égalité» (Ferry & Renaut, 1987: 31). Desprovido de recursos, não obstante ter estado no abundante Brasil (em pequeno e depois de casado), onde outros enriquecem fartamente (é o caso de Caetano Alves), dir-se-ia marcado por uma inexorável estrela funesta. Ao assediá-lo, o astuto e aviltante Agostinho José Chaves (sob o nome falso de Caetano Alves) colocará, com argúcia, a ênfase da argumentação na falta de dinheiro: «eu sei que vossemecê é um rapaz de boas qualidades, trabalhador e honrado. Pena é que seja pobre» (Castelo Branco, 1971: 121). Na palavra «pena» está contida a fatalidade que, por mero acaso de nascimento, dissociou o dinheiro da pessoa honrada e trabalhadora que é o amanuense. Ora, como muito bem diz D. Rozenda, em O Carrasco de Victor Hugo José Alves, «Hoje em dia, não se respeita senão o dinheiro…» (Castelo Branco, 1902:63).Resta-lhe, ele que se «contorcia[...] na angustiosa impossibilidade de provar sua inocência» (Castelo Branco, 1971: 256), a possibilidade do crime ‘justiceiro’, com o qual, pelo menos, recupera no íntimo de si mesmo a honra conspurcada, embora à custa do amor. Veja-se a carta, na cadeia, dirigida a António da Silveira: «Saldei as contas. Agora posso morrer. Caetano Alves deve ter empastada no sangue da cara a denúncia que deu ao corregedor. Como a sociedade, em vez de me vingar, me escreveu na testa o ferrete de ladrão, vinguei-me eu» (id.: 291). E veja-se o bilhete que, pouco antes de falecer, escreve a Albertina: «Apalpo a fronte e já não acho o ferrete. Lavou-mo o sangue do assassino da minha honra. O teu marido não podia morrer infamado» (id.: 282). E ainda, instantes antes de a morte o levar: «– Minha mulher, já vês que te deixo a única herança que podia deixar: um nome sem o ferrete de ladrão. A sociedade perdoará ao homicida…» (id.: 288). E de nada adiantaram as súplicas de Albertina para que deixasse Caetano Alves à mercê «da mão divina da Providência» (id.: 274). Há em João Crisóstomo, digamos com Slavoj ŽiŽek, um excesso de vida que dá pelo nome de «honra», excesso pelo qual a personagem é, muito heroicamente, capaz de sacrificar tudo o resto, inclusive a sua tão aspirada felicidade com Albertina:

O que torna a vida digna de ser vivida é o próprio excesso de vida: a consciência de que existe qualquer coisa em nome da qual estamos dispostos a arriscar a vida (podemos chamar a esse excesso «liberdade», «honra», «dignidade», «autonomia», etc.). Só estamos verdadeiramente vivos quando estivermos prontos a assumir esse risco (ŽiŽek, 2006: 119-120.)[11]

Assim, João Crisóstomo não resiste a querer fazer justiça com as suas próprias mãos, com tudo o que isso inevitavelmente acarreta de nefastas consequências. «O primeiro e mais frequente conflito é» – Hegel dixit – «o que se trava entre o amor e a honra. Com efeito, a honra possui o mesmo carácter de infinitude do amor e pode, portanto, opor ao amor um obstáculo absoluto. O dever da honra pode muitas vezes exigir o sacrifício do amor» (Hegel, 1958: 251).

2.

António da Silveira não apresenta ambiguidades morais, sendo o único protagonista de quem se pode dizer, em bom rigor, que possui uma conduta inexcedível. Dir-se-ia o representante da bondade. Sem mácula, e a troco de nada, empenha-se em socorrer tanto o pai desgostoso como os amantes em fuga, ele que começou por nutrir amor pela filha do bacharel, recorde-se. Como confessa a Albertina:

Foi V. Ex.ª a primeira mulher que os olhos de minha alma viram. Levei-a em espírito às suaves solidões da aldeia onde nasci, e imaginei quadros de uma felicidade tão ingénua, e abençoável em Deus, que cheguei a crer na impossibilidade de renascer para mim um amor semelhante [que, de facto, não renascerá por mulher alguma; o militar permanecerá, como sabemos, solteiro]. (Castelo Branco, 1971: 61-62.)

Sabendo não ser correspondido, o cadete, sem demora, substituiu o desejo amoroso por uma fraterna amizade, estendida de muito bom grado a João Crisóstomo. O facto de ter sido preterido não desencadeou, muito ao inverso do que sucede noutras novelas (pense-se, para referir talvez o caso mais radical, em O Santo da Montanha), um nocivo sentimento de rivalidade mimética que, por seu turno, descambaria para uma indesejável situação de antagonismo binário, típica da psicologia sentimental dos triângulos amorosos.

De resto, a bondade de António da Silveira é reconhecida pelo doutor Alpedrinha. O bacharel considera-o nada menos do que o «primeiro homem honrado do globo!» (id.: 159). E dele dirá o corregedor: «É um mancebo na infância do coração, nas primeiras quimeras da vida, não apalpada ainda pela suja mão da experiência» (id.: 216). E, por sua vez, o narrador, a certo passo, comentará: «Singular homem este! Aqui fazemos alto para pedirmos à natureza excecional deste alferes de cavalaria a definição de semelhante índole, que é uma das raras joias que eu conheço da natureza» (id.: 51). E numa carta assinada por João Crisóstomo, encontra António da Silveira estas palavras elogiosas: «Não me ofereço como exemplo à sua vida, que é a de um justo» (id.: 292). Observe-se ainda, com mais um exemplo, o que nos é dito, quase a findar a narrativa, e para documentar o espírito de sacrifício da personagem: «No espaço de cinco anos de expatriação, comportou pacientemente muitos dias de fome, para não pedir a seu irmão excedentes às suas legítimas, que montavam a pouco» (id.: 293).

2.1.

A «natureza excecional» de António da Silveira, diga-se, não é alheia ao facto de o militar provir de Trás-os-Montes, ou seja, de um espaço rural supostamente (ainda) impermeável à corrupção citadina. A ideia de pureza do campo, bastante presente, como sabemos, na ficção camiliana, tende a configurar António da Silveira na proporção de um bom selvagem e, com isso, na medida de um herói inscrito sob o signo da moral de Rousseau (o privilégio da virtude confinado à natureza). Esta presunção aparece na parte em que o doutor Negro exclama ao cadete: «É um bom moço, sr. Silveira!… é o senhor um coração admirável! – disse afetuosamente o doutor, apertando-lhe a mão. – Meu amigo, está inocente de mais para lidar com este mundo. Fuja destas úlceras. Vá para a sua aldeia, e esqueça-se de que saiu de lá» (id.: 69). Mas também se acha presente na tese segundo a qual a ignorância e a virtude andam emparelhadas, ao passo que o saber (adstrito à cidade) acarreta a perversidade (Emílio, recorde-se, dispunha até idade avançada unicamente de um livro). Continua Francisco Alpedrinha, falando contra o saber como se a educação fosse responsável por si só pelo comportamento da filha, que, saliente-se, recebeu uma formação esmerada (entre outros saberes, lições de piano e francês):

Guarde esse ótimo tesouro [a virtude] para uma mulher que lhe há de lá ir ter guiada pela mão do seu anjo bom. Se tiver filhas, não passe com elas os limites da sua pequena área. Não lhes diga mesmo que conheceu uma desgraçada desobediente a seu pai. Não as eduque. Ignorância, que é a virtude: estupidez, que é a felicidade. Trevas, trevas, meu amigo; que toda a luz de entendimento é uma faísca do inferno. (Ibid.)

O próprio António da Silveira acaba por adquirir a nítida consciência da oposição entre o campo (locus adstrito à virtude) e a cidade (locus afeto à corrupção): «– Vou sair do Porto, sr. doutor: agora sim; é tempo de ir esconder-me na minha aldeia, e esquecer o que vi e ouvi neste tremedal da sociedade culta…» (id.: 211).

João Crisóstomo, por quem o militar tanto intercede junto do doutor Negro, é, convirá notar, quem mais se aproxima da virtude de António da Silveira, pelo agudo sentido de honra por que se rege. Mas há outro aspeto – refira-se – que os aproxima, posto que de modo distinto. É o facto de ambos se avizinharem da figura de Cristo, o que não raro sucede com os protagonistas camilianos (sobre a figura de Jesus Cristo no Romantismo – ou seja: sobre a figura romântica de Cristo –, veja-se Jésus Romantique, notável estudo de Xavier Tilliette, 2002), por uma razão simples de perceber e que consiste no facto de a figura de Cristo, humana e divina em simultâneo, simbolizar a unidade com o absoluto, o que é deveras consentâneo com a filosofia romântica. Como afirma Javier Hernández-Pacheco: «Jesucristo es el Dios hecho hombre, y en este sentido es el mediador, el que restablece la unidad fragmentaria del mundo con el Espíritu Absoluto» (Hernández-Pacheco, 1995: 188). Não surpreende, assim, que Cristo se tenha tornado numa figura apropriada ao projeto romântico. E também numa figura implicitamente presente nalgumas personagens de Camilo, que encarnam, por assim dizer, aspetos imputáveis à figura de Jesus, porém de maneira diferente, cada qual lembrando Cristo a seu modo. Em O Bem e o Mal, como nota José Augusto Mourão, «Bastaria cotejar a parte referente ao processo judicial de Casimiro, sobretudo o interrogatório, para encontrar o fio intertextual que o liga ao processo de Jesus» (Mourão, 1994: 424). O mesmo se pode afirmar no que se reporta ao interrogatório do processo judicial de Simão Botelho, e tudo o que vem depois. António da Silveira, esse, imita Cristo noutro sentido: além de apelar à imitação do Messias, manifesta um comportamento cristão (oferece, qual bom samaritano, guarida e amparo ao doutor Negro, quando este se acha na miséria e esquecido dos amigos de outrora; e, mais tarde, acode Albertina). Quanto a João Crisóstomo, é colado à personagem de Jesus, como se o encarnasse, a começar pelo apelido Crisóstomo (derivado de Cristo) e pelas iniciais do nome completo (J. C.); e dele vem dito a certa altura que «Custava-lhe já a suportar a cruz, ainda com o ombro de Albertina lacerado sob o peso dela» (Castelo Branco, 1971: 255; o itálico é nosso); e o próprio, no momento em que a esposa o procura incentivar, dizendo-lhe «– Confiança no Altíssimo, filho!», o próprio, dizíamos, exclamará, numa clara apropriação de uma cena da crucificação de Cristo: «Está nas mãos dele [Caetano Alves] esta esponja de fel, que se me não despega da boca!» (id.: 274; o itálico é nosso). Para além disto, mencione-se também a forma como, prestes a deixar este mundo, João Crisóstomo evangeliza o materialismo do seu patrão: «e falou na imortalidade da alma com tanta elevação, subtileza e compungimento, que arrancava prantos, e calava no ânimo obdurado do argumentador filósofo» (id.: 286); e ainda esta passagem, intertextualmente correlacionada com o estado de angústia de Cristo no Monte das Oliveiras, na noite em que o prenderam: «E limpava um suor, semelhante ao soro do último sangue» (ibid.).

2.2.

Se tivéssemos de categorizar António da Silveira, diríamos que parece provir do hemisfério dos heróis românticos de tendência passiva. Elena Losada Soler (cf. Soler, 1991), questionando a existência de um Romantismo heroico-trágico em Portugal (indagação cuja resposta desemboca forçosamente na personagem Simão Botelho) e seguindo a distinção de herói romântico proposta por Jan Bialostocki, fala nesse tipo de herói romântico-trágico no qual filia o protagonista de Amor de Perdição. É aquele protagonista romântico ativo e dotado de uma coragem à prova de bala que se insurge contra o (fatal) destino. Dominado por um avassalador entusiasmo, entrega-se a uma luta titânica (na senda de Prometeu). A este tipo de herói romântico, próprio do primeiro Romantismo (o Romantismo de Hegel, de Scheling, de Hölderin e que tem a ver com a Revolução Francesa), opõe-se o protagonista do segundo Romantismo (correlato com o contexto de uma burguesia triunfante). Neste caso, o protagonista já não parece seguir Prometeu, não estando disposto a desgastar-se ao serviço de uma (inútil) luta titânica. É exemplo suficiente deste (segundo) género de indivíduo romântico o quase pacato António da Silveira. Pautado nitidamente pelo pendor confessional, é um herói algo passivo (não obstante ser militar), intimista e sentimental, numa palavra, dir-se-ia moldado pelos versos de Lamartine. Eis como vem caracterizado a certa altura da narrativa: «solitário pensador das fragosas montanhas penduradas sobre o rio Córrego» (Castelo Branco, 1971:18). O que não é sem lembrar a definição de Erich Auerbach relativa ao poeta romântico: «é um estranho entre os homens; é melancólico, extremamente sensível, ama a solidão e as efusões do sentimento, sobretudo as de um vago desespero no seio da Natureza» (Auerbach, [1987]: 228).Não custa ver em António da Silveira um poeta romântico assim proposto. Tanto mais que é um leitor indolente de clássicos greco-latinos (Cícero, Horácio, Virgílio), por isso «[que] amava a liberdade à romana, a liberdade dos Gracos e dos Catões, por amor da qual uns cidadãos se arrancavam as entranhas como Bruto, e outros ofereciam o pescoço à espada dos pretorianos como Cícero, e as próprias mulheres se cortavam o seio com o punhal como Caecina Paetus» (Castelo Branco, 1971: 18-19). Trata-se ainda de uma personagem marcada por uma forte sensibilidade evocativa das comutações de sinais de género. Repare-se na reação que apresenta, julgada inusual pelo narrador, perante o repúdio de Albertina: «O cadete estava de pé; e, quando em análogas circunstâncias, toda a pessoa discreta e briosa se levantaria da cadeira para sair, é então que ele se assentou. Justificadamente o fez; a arte pode estranhar o caso; mas a natureza admite-o: é que sentiu um tremor e desfalecimento de pernas» (id.: 32).Esta reação mais não é do que a manifestação do choque provocado por uma rejeição inesperada. Como diria Luhmann: «cualquier comunicación, por cuidadosa que sea, expresa ciertas expectativas de éxito que pueden reforzarse masivamente, sobre todo con ayuda de todos medios de comunicación simbólicamente generalizados: quien declara su amor se siente casi con derecho a ser amado» (Luhman, 1998: 187). À guisa de justificação pelo seu comportamento, define António da Silveira, ao narrador, o seu «modo de ser naquele tempo» (Castelo Branco, 1971: 30): «EU ERA UMA MENINA» (ibid.).

2.3.

Persiste, porém, na personagem um notório apego ao mundo tradicional, como se nota em excertos como este: «[É] filho dócil e incapaz de sacrificar a obediência às suas imaginações romanizadas pelos poetas e prosadores latinos» (id.: 19). Mais: sujeita-se à vida militar sem vocação para tanto e, pior, alinha num regimento oposto ao das suas convicções, isso tudo por causa de um tio general, «português à antiga» (id.: 18), responsável pelo seu ingresso no exército; e vale a pena recordar também a sua insistência no sentido de Albertina obedecer ao pai (em nome da sociedade e para pôr cobro ao sofrimento do ancião), a despeito de a saber apaixonada pelo amanuense. Digamos que António da Silveira, personagem sensível aos afetos e ao coração, detentor de uma candura que não anda longe da inocência do «bom selvagem», é igualmente alguém disposto a conservar-se dentro dos parâmetros da ordem convencionada pela tradição, apesar de a saber inadequada. No início da novela, na parte do enredo em que Francisco Alpedrinha lhe sugere que case com a filha, mesmo sem o consentimento dos pais, recorrendo à justiça em caso de necessidade, António da Silveira retorque (antes de o doutor Negro lhe cortar a palavra): «– Mas a desobediência…» (id.: 26). Nesta adversativa está contida a repugnância de o jovem cadete desobedecer aos progenitores. Inversamente, João Crisóstomo e Albertina fizeram o que jamais faria o militar.

E António da Silveira não só não desobedece aos pais como, ainda por cima, vira, por assim dizer, filho (obediente) de Francisco Alpedrinha. Dir-se-ia ser o filho que Francisco Alpedrinha gostaria de ter tido (e o magistrado, repare-se, não deixa, no fundo, de ser o pai simbólico do militar). Neste sentido, o cadete cumpre as vezes de Albertina, sendo ele quem cuida do magistrado. Leia-se esta passagem, numa altura em que já não é possível ao doutor Alpedrinha escamotear a miséria – leia-se: expiação[12] – que o assola:

António da Silveira, captando a confiança do criado, soube que os recursos escasseavam em casa do doutor. Era já um viver de empenhos de objetos desvaliosos, que os importantes estavam já vendidos ou empenhados. […] Pediu [António da Silveira] a seu irmão morgado um empréstimo, e com quanta delicadeza podia conseguiu que a mãe de Albertina lhe aceitasse o necessário para as despesas de cada mês, tirando a partido que o doutor seria estranho ao favor que a senhora lhe fazia de o admitir com liberdade de filho. (Id.: 225; o itálico é nosso.)

A devoção filial de António da Silveira irá mais longe. Com autorização do irmão morgado, hospedará o casal Alpedrinha na casa familiar de Trás-os-Montes. E, qual irmão, será também o cadete (por essa altura coronel), anos mais tarde, a acudir a Albertina.

Tudo isto é significativo de Tradição e Modernidade. O que o torna num protagonista de transição: digamos que António da Silveira sente como um romântico, pelas suas manifestas aspirações românticas, mas comporta-se como um filho do Antigo Regime, por não se emancipar da tutela parental, não afrontando os pais, designadamente em decisões a seu respeito, e com as quais discorda.

2.4.

Convém também enfatizar o papel técnico-narrativo da personagem do ponto de vista da orgânica da diegese. Com efeito, António da Silveira serve, o que não é pouco, de intermediário entre as partes desavindas; cabe-lhe o papel imprescindível de estabelecer um elo entre Francisco Alpedrinha e a filha, mas também entre João Crisóstomo e a opinião pública. Assim, o militar, que não deixa de lembrar o virtuoso, e também ele mediador, Ladislau Militão (O Bem e o Mal), funciona como espécie de epicentro informativo. Quer dizer, contacta com as duas partes indispostas e troca informações. Deste modo, intervém direta e decisivamente no desenrolar da intriga. Suficientemente cordato e afetivo, relaciona-se com facilidade tanto com Francisco Alpedrinha como com João Crisóstomo e Albertina. Acode àquele e a estes com a mesma desenvoltura e, por vezes, com uma tocante candura. Quando acontece sair de cena (partindo para o campo de batalha ou refugiando-se em Trás-os-Montes), a narrativa envereda pelo sumário, o que diz bem da relevância da personagem.

Saliente-se ainda o seguinte: a pertinência de António da Silveira passa muito pela resolução do conflito que afeta a família do doutor Negro. Constata-se isso na parte da novela em que o militar planeia uma estratégia capaz de pôr fim ao conflito que mina a família Alpedrinha, estratégia essa, se a quisermos ler como tal, correlacionável com a teoria dos jogos desenvolvida pelo matemático John Nash (cf. Nash 1966). A teoria dos jogos elaborada por Nash, e para tentarmos resumir, assenta no chamado equilíbrio perfeito. Trata-se de um equilíbrio suportado por uma regra como esta: «A two-persons bargaining situation involves two individuals who have the opportunity to collaborate for mutual benefit in more than one way. In the simpler case, […], no action taken by one of the individuals without the consent of the other can affect the well-being of the other one» (Nash, 1966: 1; 1950: 155). Supondo uma situação de competição (leia-se: conflito) entre dois jogadores (J e Ja), como é usual, cada um tende a convocar estratégias para derrubar o adversário. Nash apregoa uma solução diferente: a cooperação, baseada em antecipações do que o adversário fará, com vista a criar um contexto de coexistência equilibrada entre os jogadores. Acontece isso quando um dos jogadores, vamos supor que (Ja), usa como resposta ao que prevê ser a estratégia concorrencial de (J) uma estratégia que se adapta à do adversário, resultando dessa adaptação uma situação de equilíbrio entre os dois concorrentes, que, deste modo, acabam por coexistir sem rivalidade, na condição, como é lógico, de o adversário atuar, por seu turno, igualmente dessa maneira. O objetivo da estratégia, e das subsequentes, consiste na obtenção de benefícios mútuos, instaurando-se um equilíbrio perfeito entre os agentes do jogo. Quer dizer, (Ja) joga estrategicamente a partir daquilo que supõe que (J) jogará, sendo que a jogada não trará somente proveito a (J), porém igualmente a (Ja), que, por seu turno, considerará (J) nas jogadas a empreender. É anulado o confronto em prol de uma atitude cooperativa entre os jogadores. Supondo que o adversário pretende a nossa peça, ao invés de gastarmos uma jogada a defendê-la, cedêmo-la pura e simplesmente; e, na nossa vez de jogar, apropriamo-nos então, se possível, de uma peça do adversário. Desta forma, continuamos equilibrados em termos de peças e cada um de nós satisfez a sua estratégia. É claro que à medida que a partida avança o jogo terá de pender para um dos jogadores. Ainda assim, o equilíbrio perfeito de Nash tem aplicabilidade em numerosos jogos e desportos).[13]

E como é que isto tudo se aplica ao texto de Camilo? Regressando a António da Silveira, não é preciso especial clarividência para verificar o quanto o militar se empenha na procura, precisamente, de um equilíbrio perfeito, com o qual traria paz à família Alpedrinha. Primeiro, tenta convencer o doutor Negro a ceder à pretensão de a filha se unir com o ex-empregado, «lá mais ao diante» (Castelo Branco, 1971: 44), depois, ainda lhe solicita, pelo menos, a libertação do amanuense (Francisco Alpedrinha contrapõe, como sabemos, com o receio de que, uma vez liberto João Crisóstomo, Albertina escape do convento e case), por fim, António da Silveira propõe uma terceira alternativa, a que, ao que cremos, corresponde a uma tentativa de resolver a crise com um equilíbrio perfeito: «dê o perdão condicional ao preso; ele que vá do Porto para longe, e sua filha que volte à companhia do pai» (id.: 46). Como passo seguinte, o cadete desloca-se à cadeia da Relação do Porto com o intuito de convencer o amanuense a exilar-se e, com isso, a renunciar (por ora) a ostentação da relação amorosa. Assim, o militar atua no sentido de criar um equilíbrio entre todos, do qual resultaria a reconciliação entre pai e filha, preparando uma jogada baseada numa suposição prévia em relação à atuação do doutor Negro: que este perdoará ao amanuense, desde que este se exile para longe de Albertina. E neste cenário pré-definido todos ficam a ganhar.

Para Alpedrinha, seria decerto a maneira menos custosa de recuperar a filha e de se desembaraçar do indesejado candidato a genro; e se o magistrado recuperaria a filha, o amanuense recuperaria a liberdade.

E Albertina? Em guisa de resposta, eis mais uma estratégia do cadete com a finalidade de racionalmente resolver o diferendo com o máximo de ganhos para cada uma das partes e, novamente, com base numa suposição:

[…] achava eu de suma conveniência, interesse até da vida de ambos, que pactuassem entre si um corte completo de correspondência, e esperassem. O doutor oferece pouca vida, se me não engano; e o senhor sacrificando-se, sem vexame de coração, dará ao pobre velho a filha, cuja ausência o mata, e mais tarde voltará a procurá-la, sem o remorso de ter cavado a sepultura de dois velhos. (Id.: 50.)

Como se constata, António da Silveira, baseado em suposições referentes à atuação de Francisco Simões, esforça-se por resolver o conflito que opõe o magistrado à filha; e isso pelo viés de uma situação de equilíbrio perfeito entre todos os envolvidos, quer dizer, uma situação que ponha fim ao dissídio, sem (grandes) prejuízos, antes com ganhos (o respeito pela vontade do pai, mas igualmente, no fim de contas, a concretização do desejo, ocorrendo como que uma espécie de conciliação possível entre a obediência filial imposta pela mentalidade do Antigo Regime e a demanda de emancipação exigida pela modernidade romântica). Neste equilíbrio incentivado por António da Silveira, todos, ao fim e ao resto, acabariam por conseguir o que acalentam.

O problema está em que António da Silveira não contava decerto com a oposição de Albertina, que põe de parte qualquer hipótese de solução que solicite o refúgio do amado em terra distante.

O que, é bom dizer, acarreta uma consequência decisiva no tocante à arquitetura narrativo-textual: proporciona a irresolução do conflito, sem o qual a intriga deixaria de prosseguir.

 

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Notas

[1] Diferentemente, Albertina, a mostrar uma índole romântica incondicional, enfrenta com assinalável determinação a cultura patriarcal opressora. Nela, a paixão impetuosa fala mais alto do que as convenções sociais. Em nome da salvaguarda da sua autonomia sentimental, opõe-se totalmente às ideias e aos preconceitos da ordem antiga, representando, como diria Guilhermino César, «o paradigma da amorosa integral» (César, 1971: VIII). Porque, ao arrepio das conveniências sociofamiliares, não só ama profundamente João Crisóstomo, como revela uma estupenda determinação ao serviço da emancipação amorosa. Enérgica e não pouco insubmissa, na senda de outras heroínas camilianas (Joaquina Eduarda em A Sereia ou Paulina em Agulha em Palheiro), segue, sem concessões, o ímpeto do coração, a despeito das pressões do regime patriarcal. De resto, dela se poderia perfeitamente dizer o que Túlio Ramires Ferro diz de Rosa Carneiro (Mistérios de Fafe): «bela, inteligente, femenilmente imaginativa e sensível mas ao mesmo tempo varonilmente enérgica e irreverente nas suas réplicas a todos os constrangimentos (sociais, familiares, religiosos) que ameaçam a sua instintiva apetência de liberdade e de felicidade» (Ferro, 1969: 16). Aliás, tendo em conta uma interpretação de Maria Alzira Seixo, para quem as reduzidas manifestações verbais de certas protagonistas camilianas (Teresa de Albuquerque e Marta de Prazins) têm a ver com a repressão familiar e social de que são alvo (cf. Seixo, 2004: 116), pode afirmar-se, por contraste, que Albertina, por resistir sem cedências aos obstáculos repressores do desejo, alcança um notório destaque no decorrer da narrativa.

[2] Este estado de espírito empolga-o, munido do poder conferido pelo dinheiro, a comprar o comandante da guarda, condição imprescindível para passar para território espanhol com Albertina. Conforme refere o narrador: «em vez de comprar um barqueiro que recebesse os fugitivos num ponto do rio, desguarnecido de sentinela, foi direito à fonte limpa, e comprou o comandante da guarda, e compraria o próprio governador da praça, e compraria a própria regência, dizia ele, se estivesse de tempo e pachorra» (Castelo Branco, 1864: 144). À imoralidade do ato, junta-se a vanglória, originada pelo orgulho, de que compraria, com «pachorra» e «tempo», caso preciso fosse, a própria regência. Este orgulho reaparece noutras ocasiões (para desconfiança de Simão de Valadares, dentro da tigela onde jantara, a personagem deixa a moeda que recebera do senhor de Barbeita, por exemplo).

[3] É um herói dado, por exemplo, a lágrimas (sinal de troca de géneros). Empregado ao serviço de um tabelião portuense, só para fornecer um exemplo, o «copista desmaiava naquele trabalho improdutivo além do pão quotidiano: caía-lhe a fronte escaldante sobre o papel, onde às vezes encontrava o refrigério de suas lágrimas derivadas da face» (Castelo Branco, 1864: 117). Como se sabe, tanto a debilidade física como a sensibilidade marcada constituem características emblemáticas de protagonistas tipicamente românticos.

[4] Este tipo de contrição não é singular de João Crisóstomo. Veja-se esta passagem retirada de Agulha em Palheiro, referente a uma carta que Fernando Gomes manda aos pais: «Eu nunca devia ter saído da nossa casa de campo. A má estrela não me acharia naquela obscuridade. E, finalmente, rematando a carta, dizia: Quem sabe se eu tornarei a vê-los, meu querido pai, e minha santa mãe?» (Castelo Branco, 1904: 83).

[5] «Aux riches et aux puissants appartient la “sagesse”» (Garaudy, 1975: 190).

[6] Para o Antigo Regime, apoiado numa «metafísica justificadora», numa «tradição inquestionada», Deus é a garantia da inexistência da contingência. Ou seja, qualquer acontecimento imprevisto na ordem das coisas ganha sentido e explicação em Deus. Com o advento da modernidade – contexto privilegiadamente anti-metafísico e, em consequência, laico – e a progressiva descrença em Deus (substituído por sucedâneos) esvaziou-se a crença na ideia de um Criador a distribuir recompensas e punições, ganhando força a presunção de contingência (a suposição de que tudo é possível, tudo se pode configurar de acordo com a pura possibilidade, tudo, em suma, pode estar sujeito a ser de outro modo). Em conformidade com a crença na Providência, «el fundamento del orden debía encontrar-se en lo escondido y lo irreconocible. Lo latente era un requerimiento indispensable del orden. La mano que dirigia todo debía ser invisible» (Luhman, 1998: 129). A atualidade desfez-se o mais que foi capaz da ideia de Providência, que, afirmada pelos principais arautos e instigadores da modernidade, como Lessing (em Die Erziehung des Menschengeschlechts), Herder (em Ideen zur Philosophie der Geschichte der Menschheit) ou ainda Leibniz (em Monadologie), entrou em crise com a Revolução Francesa e com a industrialização, parecendo desaparecer do horizonte contemporâneo iniciado no século XVIII com a idade da razão (o Século das Luzes). Celso Capdequí fala, por isso, na «depauperacíon mítico-simbólica que aqueja a una cultura moderna, preocupada por desprender-se de todo resquicio de irracionalidad herdado de formas de vida desaparecidas» (Capdequí in Beriain, 1996: 267). Daí as sociedades modernas, conforme sustenta Luhmann, serem sociedades de risco. Porque nelas todas as formas de seleção se defrontam com a contingência, não existindo a estabilidade e a previsibilidade características das sociedades tradicionais. «As formas explicativas, que tinham permitido ainda às teorias uma réstia de punjança unificadora dos mitos cosmogónicos, viram-se» – como escreve Habermas – «sujeitas, na Modernidade, a uma forte desvalorização: a síndrome da validade, de que dependiam os conceitos fundamentais da religião e da metafísica, dissolveu-se» (Habermas, 2004: 43-44); daí que Habermas nos fale da Modernidade em termos de pensamento pós-metafísico. O filósofo, refira-se, aponta várias razões para justificar a desagregação do pensamento tradicional, entre as quais saliente-se 1) a evolução de um pensamento totalizante, orientado para o uno e o todo, no sentido de uma racionalidade processual (o método experimental das ciências naturais, o formalismo que se apossou da teoria jurídico-moral bem como das instituições do Estado constitucional); e 2) a destranscendentalização dos conceitos fundamentais da tradição, originada pelo desenvolvimento das ciências histórico-hermenêuticas no seio de uma sociedade economicista moderna em crescente complexidade, o que gera a irrupção de uma consciência histórica (cf. id.: 58). As sociedades modernas, dominadas pelo empirismo, carecem, por conseguinte, de critérios pré-delineados com os quais o mundo estaria munido de definições conclusivas da realidade, como sublinha Luc Ferry: «[…] os Tempos Modernos fazem-nos entrar num círculo que podemos compreender, como a alguns parece, hoje mais que nunca, um círculo infernal. Porque, […], a dissolução progressiva dos pontos de referência herdados quase naturalmente do passado deixa-nos sem resposta frente às vicissitudes mais simples e mais profundas da existência quotidiana.» (Ferry, 2003: 23). Nesta perspetiva, inúmeros aspetos da vida intelectual e da realidade quotidiana entram no campo do questionamento individual (cf. id.: 24). Neste cenário moderno da emergência do individualismo e da erosão das tradições (o desencantamento do mundo sacro-político), a contingência mais não será do que a convicção da radical improbabilidade dos seres e das coisas. Para o mundo moderno pós-tradicional, materialista e seguidor do anti-espiritualismo hegeliano ou do Super-Homem nietzschiano, aberto a significados díspares e a lógicas plurais e polivalentes, uma visão cosmológica da realidade é do domínio do obsoleto, e a religião já não serve (ou já não serve em exclusivo, com a sua deslocação para o domínio da esfera privada) para conferir um sentido aos diversos acontecimentos contraditórios e paradoxais que afetam o ser humano. Enfim, deu-se um gradual processo de secularização, que, a crer em Habermas, comporta três aspetos, que mais não são do que as três fases envolvidas na transição da validade de uma tradição religiosa legitimadora da ordem existente, partilhada por todos, para uma racionalidade válida em termos universais: «As imagens do mundo e as objetivações tradicionais 1) perdem o seu poder e a sua vigência como mito, como religião pública, como rito tradicional, como metafísica justificadora, como tradição inquestionada. Em vez disso, 2) transformam-se em convicções de éticas subjetivas, que garantem o carácter vinculante, privado, das modernas orientações de valor («ética protestante»); e, 3) reestruturam-se em construções que proporcionam as duas coisas seguintes: uma crítica da tradição assim liberta, segundo princípios do tráfico juridico-formal e da troca de equivalentes (direito natural racional).» (Habermas, 1987: 66). Numa ficção como a de Camilo, com um pé no Antigo Regime e outro numa modernidade anunciada pela voz de heróis românticos que se rebelam contra as normas tradicionais, a crença na Providência persiste (crença, desde logo, à mostra em títulos correlatos como Estrela s Propícias e Estrelas Funestas).

[7] Veja-se o caso de Caetano Alves: ficará sem a fortuna (escondida num cofre da sua quinta da Póvoa de Varzim), roubado por Benito Rojas, que, cedendo ao seu donjuanismo, fugirá ainda com a moça com quem Caetano Alves contava casar. Como que para outorgar estes factos à Providência, o narrador não foge a comentar: «A Providência dá uns castigos que parecem zombarias!» (Castelo Branco, 1864: 253).

[8] Honra que, em Vulcões de Lama, José Rato, apostado em casar com Doroteia, coloca em causa na resposta dada aos irmãos que o acusavam de desonrar a família – «que contava, desde os Ratos do século XIV, doze gerações de homens de bem» (Castelo Branco, 1981: 154) – por querer casar com a sobrinha de Balbina Rodrigues: «Alegou em sua defesa que um herói romano – parecia-lhe que era Bruto – muito mais sábio de que ele, dissera que a honra não passava de uma palavra. Ajuntou eruditamente que em algumas nacionalidades citadas pelos geógrafos a honra correspondia à desonra de outros países; e que entre os homens se dava a mesma desigualdade na vaga e arbitrária qualificação de tal honra» (ibid.).

[9] E será este mesmo Casimiro que, depois de reencontrar a mãe, agora condessa, recusará perfilhar os bens que esta herdara do conde de Azinhoso, correndo o risco, como sensatamente lhe lembra a progenitora, de sua sobrinha se apoderar do vínculo, enquanto ele e a esposa se veriam constrangidos a viverem numa habitação a ameaçar ruína (cf. Castelo Branco, 2003: 231-232).

[10] Já antes, a propósito dos brilhantes trazidos por Paulina, na sua fuga com Fernando, dissera-lhe este, a mostrar que nele desonra e felicidade amorosa não andam a compasso: «Teu pai vai receber da minha mão os brilhantes de sua mulher e de sua filha; tu entras espontaneamente num convento; e de lá requeres dispensa do consentimento de teu pai: sairás de Madrid com honestidade, e eu com honra. É impossível ser feliz, e dar-te felicidade, se faltarem estas condições à nossa união» (Castelo Branco, 1904: 165).

[11] Já agora, seja-me permitido um parêntesis para evidenciar a psicologia indomável de Albertina, psicologia que seguramente a talha para incutir ânimo em João Crisóstomo. Em conformidade com o espírito romântico, a moça não vacila com o repúdio social e eleva o desejo a um lugar primordial e intocável. Enquanto o amanuense não aguenta a desconsideração social de que é alvo, Albertina esforça-se por ser impermeável à difamação e procura situar-se para lá das constrições sociais. Nesse sentido, como que levanta uma barreira intransponível entre a trincheira dos prec(onc)eitos do mundo social e a trincheira das recomendações ditadas pelo coração. A fim de viver ao lado de João Crisóstomo, a moça, insensível à censura social, não hesitou, recorde-se, em fugir da casa paterna e da propriedade de Barbeita; e, perante a proposta que lhe fez António da Silveira de renunciar ao desejo, reagiu desprezando, logo, a sociedade: «V. S.ª falou-me muito em mundo, e sociedade e opinião pública. Eu não devo nada ao mundo» (Castelo Branco, 1864: 64); e é ela, numa carta, quem instiga o amanuense com este lapidar e destemido lema: «Fortaleza igual à perseguição que nos faz o mundo» (id.: 110). E veja-se, ainda, já agora, esta não menos exemplar passagem: «O trabalho já o não distraía. A calúnia cravara-lhe no cérebro a garra. Depunha a pena, e comprimia as fontes arquejantes. Assim que a represa das lágrimas era tanta que se afogava nelas o alento, João Crisóstomo não podia deixar de vertê-las no seio de Albertina. Contou então em soluçantes ânsias o seu descrédito. Albertina, de princípio, sucumbiu; depois, recobrou-se, venceu a natural fraqueza da mulher, que vê chorar um homem, e disse: – Não me disseste na Corunha: «Quando o mundo me chamar ladrão diz-me tu que o não sou»?… Fizeste-me esperar tanto do meu amor, e agora não valho eu nada para ti, quando o mundo te injuria!… E deixas-te esmagar, meu amigo… Que hei de eu fazer, se tu choras! Onde hei de eu ir procurar almas vigorosas que te reanimem!… Deixa-me ser o teu mundo unicamente; despreza a injúria, e aceita o louvor desta pobre Albertina! Tu és um mártir, tu és um anjo atribulado pelo meu amor… Refugia-te em mim, e Deus nos defenderá!» (id.: 238-239). Albertina, que não se deixa amolecer pela chantagem patriarcal, dá assim uma lição de resistência ao amanuense (o que nem sempre sucede, note-se. Eis o que acontece quando o casal toma conhecimento através de uma carta, assinada como sempre por António da Silveira, de uma ordem de prisão referente ao amanuense: «João, […], mostrou a carta, e ajuntou o susto que tinha de ser preso, posto que o patrão o mandava sossegar. A esposa, quebrantada pelo pavor do cárcere, e previsão da morte do marido entre ferros, desmentiu a prometida coragem. Irrompeu em ais e gritos, que alvoroçaram a família» (id.: 246)). Para a moça, o mundo pouco ou nada conta; por isso, não compreende o abatimento do marido por causa da calúnia que sobre ele circula nesse mundo («E deixas-te esmagar, meu amigo»). A primazia reside na relação que mantém com João Crisóstomo, daí o seu apelo para que este se deixe absorver pelo desejo sentimental e esqueça a sociedade que o atormenta («Deixa-me ser o teu mundo unicamente; despreza a injúria, e aceita o louvor desta pobre Albertina»); e, ainda, convoca o argumento, muito típico do heroísmo romântico, de que Deus está do lado deles («Deus nos defenderá!»). Como filha de um descrente (a conversão do doutor Negro ocorre in extremis e à conta do sofrimento), é de crer que não tivesse recebido na infância educação religiosa. Quando o narrador, a começar a narrativa, com o intuito de desvendar o mistério da sua miserável existência como mendiga, se manifesta surpreendido por vê-la sofrer sem dissabores os males da sua condição de indigente, responde deste modo Albertina: «– Que remédio, senão sofrê-los!» (id.: 11); e perante a insistência do interlocutor de que poucos infelizes assim se saberiam consolar, contrapõe a mendiga do Mirante em jeito de expiação caracteristicamente camiliana: «– É porque são poucos os infelizes que sabem o caminho do Calvário, o porto da Cruz» (ibid.). Não andarei porventura longe da verdade se disser que, dos três heróis românticos, Albertina é a mais ágil e desembaraçada. Por não sofrer o empecilho de um sistema de crenças ainda apegado aos pressupostos e às exigências de uma tradição aristocrático-rural-patriarcal. Tanto mais cresce a sua persistência amorosa e a sua convicção de estar do lado certo quanto mais certa é a vocação patriarcal da sociedade (decalcada de uma cultura doméstica onde impera a supremacia paternal).

[12] O padecimento, como é típico em Camilo, conduz à conversão, mesmo naquelas mentes visceralmente anti-clericais, como a do doutor Negro. No capítulo décimo terceiro, onde a descrença do magistrado é evidente, dizia-lhe o militar (a fala, repare-se, é atribuída a um consolador piedoso perante um ímpio inconsolável): «Conforme-se, que a dor é um legado comum. Aceite esse cálice em desconto dos seus pecados. Considere e veja que não há virtuoso sem penas. Como não há de senti-las quem procedeu iniquamente?» (Castelo Branco, 1864: 164). Esta afirmação é interessante pelo que supõe: 1) este mundo é para todos um vale de lágrimas; mas 2) o facto de todos sofrerem serve de garantia «lógica» à convicção de que também os maus sofrerão, e porventura mais; e 3) o que a experiência ensinou ao cadete é coadunável com isso (a vida bondosa e pia, conduzida na observância dos preceitos divinos, não garante uma vida feliz a ninguém). Note-se, agora, que o que levará Francisco Alpedrinha a crer na Providência não serão as palavras do militar sobre a existência de Deus (e de um Deus justiceiro). A conversão do advogado prende-com com o insuportável padecimento que o afeta, ou seja, com um sofrimento conducente à esperança de um Deus redentor (expiação). Leia-se o que sentidamente refere já perto da morte: «– Tenho padecido muito… É impossível que não haja Deus, e outra existência. Isto não pode acabar aqui. As dores imerecidas devem ser o testemunho de um destino, onde há o consolarem-se os atormentados neste mundo. Creio em Deus, creio no Deus que formou a sua alma de tantas virtudes, António da Silveira!» (id.: 229). Bem afastados estamos daquele Alpedrinha que, abalado com o comportamento de Albertina, não hesitava em denegrir a imagem da mulher com base numa interpretação misógina (e muito em voga no patriarcado, como é sabido) do mito bíblico de Eva, ele que, por mais de uma vez, se afirmava descrente em Deus e icondicional adepto de Voltaire (cf. id.: 69). O comportamento do magistrado, fã de Voltaire, o seu evangelista predileto, suscitara, de resto, a seguinte desaprovação do narrador: «Mau costume este dos que sofrem dores do orgulho, da soberba, e de paixões mais ruins ainda, avocarem a Providência ao seu partido, e darem-lhe a direção das suas iníquas traças» (id.: 92). E mau costume porquê? Porque a Providência não lhes responde, o que desencadeia uma reação violenta por parte dos solicitadores não atendidos: «Segue-se […] o raivarem contra a Providência, e o negarem-na como coisa inerte, inventada pela fantasia dos que sofrem» (ibid.). E prossegue o narrador nestes termos: «Neste escolho, infamado de naufrágios de muitas almas boas, soçobram a cada hora os desgraçados que sentem a precisão da divindade, quando o braço próprio lhes falece no conseguimento de seus maus desígnios» (ibid.). É precisamente o caso do doutor Negro. Mais à frente, Francisco Alpedrinha, perante a terceira fuga da filha, exclama não existir Deus, mas pouco depois amaldiçoa Albertina em nome do Deus que dizia não existir (cf. id.: 154). E, desta vez, comenta o narrador: «São assim as nossas paixões. Quando pagamos por elas, se a força nos desampara, decretamos a inutilidade de Deus, visto que ele se não honra em nos auxiliar; porém, se carecemos de cevar o nosso ódio com o infortúnio das vítimas que nos fogem, concedemos ao Criador o favor de existir, e em nome dele sentenciamos a condenação de quem se esquiva às nossas garras.» (ibid.). Isso mesmo acontece nesta exclamação do magistrado, sedento de vingança e convencido da parceria criminosa de João Crisóstomo com Caetano Alves e com Benito Rojas: «Quero cadafalsos, quero vingança, quero acreditar que há Providência!» (id.: 193). Contudo, como observa noutra parte da novela o narrador, e desta vez a propósito de João Crisóstomo, a Providência é «sempre [surda] aos clamores da injustiça» (id.: 119).

[13] Por exemplo, dois ciclistas a cortarem a meta de mãos dadas, um auxílio recíproco estrategicamente levado a efeito no sentido de ambos vencerem a prova. A teoria do equilíbrio perfeito de Nash sofreu, claro está, extrapolações para o campo económico, o que lhe valeu enorme notoriedade. O equilíbrio perfeito de John Nash, em bom rigor, mais não será do que o conceito de dupla contingência proposto por Niklas Luhmann, que podemos resumir assim: cada sujeito atua em conformidade com determinadas expectativas, as quais orientam as ações posteriores desse sujeito, o que converte a expectativa (Erwatung) em algo de fulcral em qualquer interação.