DIREITO PÚBLICO
Responsabilidade Civil do Estado por erro judiciário: A imprudente consagração do artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP
Civil Liability of the State for Judicial Error: The unwise consecration of article 13.º, n.º 2, of RCEEP
Hugo AparícioI 1.
I Universidade Católica Portuguesa - Palma de Cima, Lisboa, 1649-023, Portugal. E-mail:hugoaparicio@gmail.com
RESUMO
O presente artigo dedica-se à análise da responsabilidade civil do Estado por erro judiciário e os seus respetivos condicionalismos/pressupostos previstos no artigo 13.º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas. Alvo de um exame pormenorizado será o pressuposto processual específico para a efetivação da responsabilidade por erro judiciário previsto no n.º 2 do artigo 13.º, com o intuito de se inteligir o seu mérito e a sua validade face ao ordenamento jurídico português.
]]> Palavras-Chave: Responsabilidade civil extracontratual do Estado; Erro judiciário; Artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP; Direito da União Europeia; Ordenamento jurídico português.
ABSTRACT
This article is dedicated to the analysis of the civil liability of the State for judicial error and its respective constraints/requirements envisaged in article 13 of State’s Civil Liability Regime. Target of a detailed examination will be the specific procedural requirement for the fulfillment of the responsibility for judicial error foreseen in article 13, n.º 2, in order to understand its merit and its validity in the Portuguese legal system.
Keywords:Non-contractual liability of the State; Judicial Error; Article 13.º, n.º 2, of RCEEP; European Union law; Portuguese legal system.
Sumário: 1. Regime da responsabilidade por erro judiciário (artigo 13.º); 2. A prévia revogação da sentença como pressuposto da efetivação da responsabilidade (artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP); 2.1. Enquadramento geral da norma; 2.2. Da imprudente consagração do artigo 13.º, n.º 2; 2.2. a) A (in)compatibilidade da norma com o Direito da União Europeia; 2.2. b) A (des)conformidade da norma com o ordenamento jurídico português, em especial, com a lei fundamental; 3. Conclusão.
1. Regime da responsabilidade por erro judiciário (artigo 13.º)
O regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e das demais entidades públicas (doravante “RCEEP”) consta, atualmente, da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, com a alteração produzida pela Lei n.º 31/2008, de 17 de julho. A referida lei vem dar resposta ao imperativo constitucional presente no artigo 22.º da Constituição da República Portuguesa (doravante “CRP”) – princípio geral de responsabilidade patrimonial do Estado e entidades públicas –, e rompe com o paradigma do Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de novembro de 1967, que assentava unicamente na responsabilidade civil da Administração. Com a nova lei, procedeu-se, inovatoriamente, à divisão da responsabilidade pelas várias funções do Estado: i) função administrativa (artigos 7.º a 11º); ii) função jurisdicional (artigos 12.º a 14.º); iii) função político-legislativa (artigo 15.º)2/3, criando-se um regime unitário, com um caráter e âmbito global4.
Dentro do capítulo III do RCEEP, correspondente à responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional, encontra-se o regime da responsabilidade por erro judiciário (artigo 13.º)5. Trata-se de uma novidade consagrada na Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, na medida em que se estende o regime da responsabilidade civil do Estado por erro judiciário a todos os ramos processuais, para além do evidente regime disposto no Código de Processo Penal (doravante “CPP”)6. Assim, atendendo ao n.º 1 do artigo 13.º, verifica-se que o erro judiciário, em sentido amplo, se decompõe em i) erro judiciário relativo a situações de privação da liberdade (primeira parte do n.º 1)7 e ii) erro judiciário em geral (segunda parte do n.º 1).
]]> Concentraremos o nosso estudo no erro judiciário em geral consagrado no artigo 13.º do RCEEP, tratando, inicialmente, de forma ligeira, o pressuposto para a efetivação dessa responsabilidade previsto na 2ª parte do n.º 1 do artigo 13.º. Seguidamente, examinaremos, pormenorizadamente, o pressuposto processual vertido no n.º 2 do artigo 13.º.O primeiro pressuposto para a efetivação da responsabilidade civil do Estado é a existência de um erro judiciário que consubstancie um facto ilícito8. Nos termos do n.º 1 do artigo 13.º “(…) o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto.”
Interpretando o referido preceito verifica-se que o erro judiciário9 pode consistir em erro de direito (“decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais”) ou erro de facto (decisões jurisdicionais “injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto”). Diga-se, em primeira linha, que o erro judiciário atendível é apenas aquele especialmente qualificado10. Estando em causa um erro de direito11, apenas é relevante para efeitos de responsabilidade civil aquele que seja manifestamente ilegal ou inconstitucional, isto é, deve “tratar-se de um erro evidente, crasso e indesculpável de qualificação, subsunção ou aplicação de norma jurídica”12. Por outro lado, existe um erro de facto especialmente qualificado quando este é “clamoroso e grosseiro, no que toca à admissão e valoração dos meios de prova e à fixação dos factos materiais da causa”13.
O princípio fundamental que subjaz ao pressuposto analisado é o princípio da independência dos juízes. De acordo com o artigo 203.º da CRP, “os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei”. Este princípio constitui uma das garantias fundamentais de um Estado de direito democrático (artigo 2.º CRP) e concretiza-se, nomeadamente, no princípio da separação de poderes, na medida em que os tribunais, órgãos de soberania14, são independentes face ao poder executivo e poder legislativo e devem garantir, como fim em si mesmo, a defesa dos direitos e interesses legítimos dos cidadãos perante o Estado15. Releva destacar que independência dos tribunais significa que estes órgãos são independentes entre si, uma vez que não vigora entre nós um sistema de precedente16. Os tribunais são independentes no exercício das suas funções, cabendo-lhes autonomia na interpretação do direito17, pelo que não existe vinculação aos entendimentos de tribunais superiores na tomada das suas decisões. Todavia, sempre estarão sujeitos à lei, conforme determina o artigo 203.º da CRP.
Com efeito, a independência e autonomia decisória dos juízes constituem critério para aferir se, numa situação em concreto, se verifica um erro judiciário. Haverá um erro judiciário relevante para efeitos de responsabilidade quando, avaliando a interpretação do órgão jurisdicional, for possível dizer que esta não cabe na independência e autonomia decisória que a lei fundamental lhe confere, tendo alcançado a dimensão de erro de direito ou de facto especialmente qualificados.
Tendo como assentes e não merecendo referência os restantes requisitos (culpa, dano, nexo de causalidade) comuns ao regime geral da responsabilidade civil do Estado, passaremos, no próximo capítulo, à análise do pressuposto presente no n.º 2 do artigo 13.º do RCEEP.
2. A prévia revogação da sentença como pressuposto da efetivação da responsabilidade (artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP)
2.1. Enquadramento geral da norma
À luz do n.º 2 do artigo 13.º do RCEEP, constitui requisito processual fundamental18 para a efetivação da responsabilidade por erro judiciário “o pedido de indemnização (…) ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente”, ou seja, exige-se um reexercício da função jurisdicional, prévio a uma eventual ação de indemnização, concluindo-se que se verifica um erro judiciário imputável ao órgão jurisdicional que proferiu a decisão.
Com efeito, tendo presente o exposto no anterior capítulo, a existência de um erro judiciário – de facto ou de direito –, terá de ser invocada e demonstrada, não na própria ação de indemnização que visa ressarcir o cidadão lesado por essa decisão danosa, mas sim, em nosso entendimento, e ainda que o mencionando preceito não o esclareça, em sede de recurso da decisão em que aquele erro foi cometido19. Entendemos que assim seja à luz do nosso sistema jurídico em que o recurso surge como um meio de tutela primária no sentido em que o seu objetivo é a eliminação do ato lesivo – no caso concreto, o erro judiciário –, e a consequente reposição da legalidade. Ressalve-se, contudo, a hipótese de a revogação da decisão danosa ser efetuada pelo próprio juiz que a proferiu, a pedido do lesado, mediante reclamação ou através de pedido de reforma da sentença20 .
]]> Com a opção tomada pelo legislador, de acordo com a qual constitui conditio sine qua non a prévia revogação da decisão danosa, nega-se autonomia à ação de indemnização, contrariando-se a lógica aplicável ao regime de responsabilidade civil extracontratual da Administração – neste caso, nada impede o particular lesado de intentar diretamente uma ação de indemnização, não estando dependente da prévia utilização dos meios de impugnação contenciosa21.Com a opção tomada pelo legislador, de acordo com a qual constitui conditio sine qua non a prévia revogação da decisão danosa, nega-se autonomia à ação de indemnização, contrariando-se a lógica aplicável ao regime de responsabilidade civil extracontratual da Administração – neste caso, nada impede o particular lesado de intentar diretamente uma ação de indemnização, não estando dependente da prévia utilização dos meios de impugnação contenciosa.
Assim, de forma a operar o direito a uma indemnização, terá, em primeiro lugar, de se demonstrar que um qualquer tribunal, independentemente da jurisdição a que pertence22, cometeu um erro judiciário em decisão fixada em última instância, isto é, em decisão da qual não cabe recurso ou reclamação23. Quer isto dizer que, desde que, previamente, em sede de recurso da decisão proferida por tribunal de primeira instância, segunda instância, ou mesmo por um tribunal supremo, respeitados os requisitos de admissibilidade desses recursos, se revogue a decisão danosa, poderá haver lugar à propositura de uma ação tendo em vista à obtenção de uma indemnização por erro judiciário24. Daqui decorre, conforme bem refere CARLOS CADILHA25, uma natural interdependência entre o regime constitucional e legal do direito ao recurso e a hipótese de efetivação da responsabilidade do Estado por erro judiciário.
Proferida a revogação da decisão danosa pela jurisdição competente, o lesado poderá propor uma ação de indemnização destinada à consumação da responsabilidade do Estado pela prática de erro judiciário.
Importa notar que, em conformidade com o artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (doravante “ETAF”), se o erro judiciário tiver sido cometido por tribunais pertencentes à jurisdição administrativa e fiscal, serão competentes para a apreciação da ação de indemnização os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal (alínea f) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF); por outro lado, se o erro judiciário tiver sido cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, a ação deverá ser intentado nessas jurisdições (alínea a) do n.º 4 do artigo 4.º do ETAF26). No caso de os tribunais administrativos serem competentes para apreciar a ação de indemnização, o lesado poderá exercer o seu direito através de ação administrativa comum, nos termos da alínea k) do n.º 1 do artigo 37.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante “CPTA”)27.
2.2. Da imprudente consagração do artigo 13.o, n.o 2, do RCEEP
a) A (in)compatibilidade da norma com o Direito da União Europeia
O sistema normativo da União Europeia conforma regras que vinculam e subordinam não só as suas instituições, órgãos e organismos, mas também os Estados e os particulares que fazem parte dessa comunidade28. Com base em algumas destas normas, nascem direitos subjetivos para os particulares, sindicáveis diretamente perante os tribunais dos seus Estados membros29.
Partindo da premissa que o direito da União Europeia pode ser violado pelos diversos sujeitos a ele subordinados, existem mecanismos destinados a neutralizar os danos causados por essas violações e a repor a legalidade30. Em matéria de responsabilidade civil extracontratual, prevê o 2ª parágrafo do artigo 340.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (doravante “TFUE”) que “a União deve indemnizar, de acordo com os princípios gerais comuns aos direitos dos Estados-Membros, os danos causados pelas suas instituições ou pelos seus agentes no exercício das suas funções.” O preceito consagra expressamente a responsabilidade da União Europeia – entenda-se, instituições, órgãos e organismos da União Europeia31 –, nos casos de violação de normas comunitárias. No entanto, como se verá de seguida, a norma em apreço não cobre apenas os casos em que o sujeito responsável é a União Europeia.
No acórdão Francovich32, o Tribunal de Justiça da União Europeia (doravante “TJUE”) reconheceu que a inexistência de uma norma que estipulasse a responsabilidade civil dos Estados membros constituía uma lacuna no direito da União Europeia. Nesse sentido, alicerçado nos princípios fundamentais que subjazem à ordem jurídica europeia33, na necessidade de conferir efetividade ao direito europeu e primazia sobre os direitos internos dos Estados34, e no fim premente de salvaguardar e proteger as posições jurídicas estabelecidas em disposições de direito da União Europeia, o TJUE elaborou, no acórdão em apreço, uma teoria geral de responsabilidade dos Estados membros “por todas as ações e omissões contrárias ao direito da UE imputáveis aos seus órgãos, independentemente da respetiva natureza”35 . Assim, assumiu-se que o artigo 340.º do TFUE prescreve um princípio geral de responsabilidade extracontratual imputável, não só à União Europeia (em sentido amplo), mas também aos seus Estados membros.36
]]> No acórdão Köbler37, o TJUE veio não só confirmar a tese da responsabilidade dos Estados membros por violação do direito da União Europeia resultante de atos do poder judicial, mas foi ainda mais longe, estendendo essa responsabilidade aos casos em que a violação é cometida por um tribunal que decida em última instância38. A justificação para tal prende-se com facto de o Estado, na ordem jurídica internacional, ser considerado na sua unidade e responder como um todo. Mais, considerando o papel essencial dos tribunais nacionais na defesa e na proteção dos direitos conferidos aos particulares por normas comunitárias, a eficácia das mesmas ficaria posta em causa se os particulares não pudessem, em sede judicial, obter uma indemnização pela sua violação imputável a um órgão jurisdicional que decida em última instância39. Também no aresto sob análise procedeu bem o TJUE ao rebater os argumentos assentes no princípio da segurança jurídica apontados pelos Estados membros. A notar:a) Princípio da autoridade do caso julgado: o TJUE entendeu que a possibilidade de responsabilizar um órgão jurisdicional que decide em última instância não viola o princípio res judicata, na medida em que a ação de indemnização não envolve, necessariamente, as mesmas partes e não tem o mesmo objeto. Com efeito, ainda que se obtenha o direito a uma indemnização, tal não significa que se coloque em causa a autoridade do caso julgado da decisão danosa que violou o direito da União Europeia40.
b) Princípio da independência do juiz: conforme explica o TJUE, não está em causa a responsabilidade pessoal do juiz, mas sim a do Estado, portanto, estando em causa duas esferas distintas, não se coloca a questão da independência do órgão jurisdicional que decide em última instância41.
c) Princípio da autoridade do juiz: também este argumento não foi atendido pelo TJUE. A autoridade do juiz não se encontra em causa; pelo contrário, o que está em causa é a qualidade da ordem jurídica e a consagração da própria autoridade do juiz, dado que a ação de indemnização visa a reparação dos efeitos danosos produzidos por uma decisão errada42.
Cabe, por último, fazer referência ao acórdão Traghetti43. que veio reafirmar a tese consagrada no acórdão Köbler, isto é, no âmbito do direito comunitário não se exclui a responsabilidade do Estado membro por danos causados aos particulares em virtude de uma violação do direito da União Europeia imputável a um tribunal nacional que decide em última instância44.
Não obstante o que se disse no ponto anterior, deve-se frisar que a responsabilidade dos Estados por violação de direito comunitário é excecional e apenas procede quando verificados determinados pressupostos especialmente exigentes45. Tais pressupostos, cujo ónus de prova cabe ao lesado46, são i) a violação de uma norma de proteção, isto é, de uma “norma que vise proteger direitos e interesses específicos dos particulares”47; ii) a violação suficientemente caraterizada, ou seja, manifesta e grave48/49; iii) a verificação de um dano; e iv) a existência de nexo de causalidade, isto é, de uma “relação direta de causalidade entre a conduta ilícita do Estado membro e o dano causado à parte lesada” (teoria da causalidade adequada)50.
A efetivação da responsabilidade dá-se através das vias processuais de cada Estado membro, tendo estes autonomia processual para designar o órgão jurisdicional competente para julgar as ações de indemnização e configurar toda a tramitação processual. Ainda assim, os Estados encontram-se limitados nessa tarefa por dois princípios comunitários assentes na salvaguarda da efetividade e da primazia do direito da União Europeia sobre o direito interno dos Estados membros. A saber:
a)O princípio da equivalência, que determina uma proibição de discriminação51, no sentido de que “quem tiver uma pretensão de indemnização contra o Estado fundada no direito da UE não pode ser tratado de modo menos favorável do que quem tenha idêntica pretensão fundada na violação do direito nacional”. Por outro lado, possibilita-se que o regime nacional seja mais favorável do que o regime comunitário em termos de pressupostos para se verificar o direito a indemnização52.
b)O princípio da efetividade, que determina uma proibição de obstrução e uma obrigação de eficiência53, ou seja, o direito interno dos Estados “não pode inviabilizar ou tornar demasiado difícil ao particular a recuperação das perdas causadas pela violação do direito da UE”54.
Posto isto, importa verificar a compatibilidade do regime do erro judiciário consagrado no direito interno português com o regime criado e desenvolvido pela jurisprudência europeia aplicável ao direito europeu.
]]> Diga-se, primeiramente, que, de todo o diploma onde se encontra vertido o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades púbicas, não se retira qualquer referência à questão da responsabilidade do Estado-Juiz por violação do direito comunitário. Todavia, ainda que assim seja, tal omissão não determina a irresponsabilidade do Estado português55, uma vez preenchidos os pressupostos anteriormente dissecados.Em segundo lugar, tendo por base os capítulos anteriores, denotam-se algumas desconformidades entre o RCEEP e o regime comunitário aplicável56. A salientar temos o pressuposto processual estabelecido no n.º 2 do artigo 13.º do RCEEP. Conforme oportunamente se referiu, de forma a reivindicar uma indemnização para reparar o dano causado por um erro judiciário é necessário, previamente à propositura da ação de indemnização, obter, em sede de recurso, a revogação da decisão danosa. Ora, este pressuposto não se compatibiliza com a responsabilidade dos Estados no direito comunitário, nomeadamente à luz do princípio da efetividade57 que proíbe a exigência de requisitos (como o que decorre do n.º 2 do artigo 13.º) que tornem impossível ou excessivamente difícil a obtenção da reparação58, violando, deste modo a proibição de obstrução e a obrigação de eficiência, corolários do princípio da efetividade.59
Assim sendo, conclui-se que o n.º 2 do artigo 13.º do RCEEP não é aplicável quando esteja em causa a responsabilidade dos Estados membros por ações ou omissões dos órgãos jurisdicionais que violem o direito comunitário60, com fundamento último no princípio do primado da União Europeia61.
Por conseguinte, existem, atualmente, em Portugal dois regimes com pressupostos diferentes a regular a responsabilidade do Estado por erro judiciário, consoante se esteja perante uma violação de direito da União Europeia ou uma violação de direito interno, imputáveis a um órgão jurisdicional.
b) A (des)conformidade da solução com o ordenamento jurídico português, em especial, com a lei fundamental
Conforme tivemos oportunidade de estudar no ponto 2.1, o requisito processual previsto no n.º 2 do artigo 13.º que exige a prévia revogação da sentença danosa, veda à ação de indemnização autonomia, isto é, para que se prossiga, na ação de indemnização, à análise dos restantes pressupostos que consubstanciam o direito a uma indemnização (culpa, dano e nexo de causalidade), é imprescindível que, em sede de recurso da decisão que cometeu erro judiciário, esta seja revogada pela instância competente.
Que argumentos estarão por trás da consagração desta solução? Qual a ratio legis do n.º 2 do artigo 13.º do RCEEP? Desde logo, pretende-se salvaguardar o princípio da segurança jurídica e a autoridade do caso julgado62 (corolário do primeiro), ou seja, a solução visa garantir tanto a estabilidade/imutabilidade do direito e das relações jurídicas como uma boa administração da justiça63. Por outro lado, entende-se que a norma visa também defender a hierarquia dos tribunais prevista nos artigos 210.º e 212.º da CRP, evitando-se que uma decisão de um tribunal superior venha depois, na ação de indemnização, ser apreciada por um tribunal da mesma instância ou até hierarquicamente inferior (à partida, o tribunal de primeira instância da jurisdição competente). Por último, acresce a estes fundamentos uma necessidade de o Estado salvaguardar o erário público, limitando, através do pressuposto processual presente no n.º 2 do artigo 13.º o provimento do direito a indemnização.
Será que a consagração deste pressuposto processual é, todavia, a solução correta para o nosso ordenamento jurídico? Será a solução compatível com a lei fundamental? Passaremos, de seguida, a expor o nosso ponto de vista.
Salta à vista, primeiramente, o facto de a solução em apreço pressupor a existência de um meio de recurso que permita proceder à revogação da decisão danosa. Vejamos se o meio processual recurso dá resposta a todas as situações em que existe uma pretensão indemnizatória que dele depende.
Tendo em conta o artigo 629.º do Código de Processo Civil (doravante “CPC”)64, subsidiariamente aplicável aos demais regimes processuais, podemos verificar que a admissibilidade de um recurso ordinário65 depende, essencialmente, do preenchimento de dois requisitos66: i) o valor da causa ser superior ao valor da alçada do tribunal67 de que se recorre; ii) a decisão judicial que se pretende impugnar ser desfavorável ao recorrente em valor superior a metade do valor da alçada desse tribunal.
]]> Ora, facilmente se compreende que não existe recurso em todas as situações, quer por razões relacionadas com o valor da causa quer por razões relacionadas com o valor da sucumbência ou ainda, nos casos de recursos de revisão, por causa da dificuldade de preenchimento dos fundamentos taxativos que o permitem (artigo 696.º do CPC)68 . A título exemplificativo, basta uma determinada ação ter como valor da causa um valor inferior a 5.000 euros para, nesse caso, não ser admissível recurso da decisão (por mais evidente erro que o órgão jurisdicional tenha cometido) e, consequentemente, não se mostrar preenchido o requisito processual da prévia revogação da decisão. Não estando verificado esse requisito, fica excluída a hipótese de ressarcimento do lesado, ficando este completamente impotente perante tal decisão danosa.Assim, não permitindo ao particular, em determinados casos, nomeadamente nos casos de decisões irrecorríveis69, levar a sua pretensão indemnizatória ao órgão jurisdicional competente, a norma do n.º 2 do artigo 13.º configura uma clara violação do direito fundamental a uma tutela jurisdicional efetiva previsto no artigo 20.º da CRP70.
Mais, como bem salienta LUÌS FÁBRICA71, aceitando-se a solução consagrada no n.º 2 do artigo 13.º pode dar-se o caso de “duas decisões materialmente idênticas” poderem “gerar ou não gerar dever de indemnizar por erro judiciário consoante o valor da causa ou o tribunal que as tenha proferido”, ou seja, verifica-se um “tratamento discriminatório imposto aos lesados que sofrem danos causados por erros judiciários correspondentes a sentenças que, por um ou outro motivo, não podem ser objeto de recurso”72, o que consubstancia uma violação do princípio da igualdade, previsto no artigo 13.º da CRP.
O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a compatibilidade do n.º 2 do artigo 13.º do RCEEP, com a CRP. No acórdão n.º 365/201573, o TC decidiu pela não inconstitucionalidade do preceito em análise.
No citado acórdão, o TC admitiu, corretamente, tendo como ponto de apoio a jurisprudência do TJUE, que os problemas não se situam no “plano técnico-processual do respeito do caso julgado (…) ou no plano institucional da independência e autoridade do juiz (…)”74. Na visão do TC o que está em causa é, sim, a “racionalidade sistémica e a coerência institucional” e, como tal, apoiando-se na orientação seguida por aquele Tribunal desde o acórdão n.º 90/8475, entendeu que é “na própria natureza da função jurisdicional e no modo como o respetivo exercício se encontra estruturado – o sistema de recursos e a hierarquia dos tribunais – que se pode encontrar justificação para a não arbitrariedade e para a justificação de uma limitação como a estatuída no n.º 2 do artigo 13.º do RCEEP”76.
Quanto a nós, o argumento não procede. Não se discute a importância do sistema de recursos, nem da hierarquia dos tribunais, mas, como pano de fundo temos que, se aceitarmos a prevalência destes, muitas vezes acontecerá que se verifiquem decisões erradas e danosas, sendo que, no fim de contas, ou seja, no momento em que transitem em julgado, transformam-se em decisões formalmente corretas. Aceitando a orientação seguida pelo TC estaríamos claramente a fazer prevalecer o sistema de recursos e a hierarquia dos tribunais em detrimento de um direito subjetivo que assiste aos cidadãos que vivem num Estado de Direito que deverá, a todo o custo, salvaguardar as suas posições.
Poderá ainda analisar-se a solução de um outro prisma. É verdade que o artigo 22.º CRP, apesar de consagrar um princípio geral da responsabilidade direta do Estado, nomeadamente por danos causados pelo Estado-Juiz, deixa larga margem de conformação ao legislador relativamente aos pressupostos para a efetivação dessa responsabilidade77. No entanto, é consensual que o legislador não pode restringir arbitrária ou desproporcionalmente o direito a obter uma indemnização por parte do lesado.
Ora, com a solução prevista no n.º 2 do artigo 13.º, não estaremos a restringir ou até a esvaziar o conteúdo do artigo 22.º da CRP no sentido de “direito fundamental à reparação dos danos causados por ação ou omissão ilícitas dos titulares de órgãos, funcionários ou agentes do Estado e demais entidades públicas, de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias”78?
De forma a responder a esta questão, deverá atender-se ao princípio da proporcionalidade (n.º 2 do artigo 18.º da CRP), segundo o qual as restrições de direitos fundamentais devem “limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”. Conforme é unanimemente aceite, o princípio da proporcionalidade desdobra-se em três subprincípios79: a adequação (idoneidade), a necessidade (indispensabilidade) e a proporcionalidade em sentido estrito (justa medida), sendo que estes funcionam como testes individualmente considerados e, em caso de violação de algum deles, conclui-se que a norma viola o princípio da proporcionalidade. Analisemos, então, cada uma dessas dimensões:
a)Adequação: este subprincípio determina que as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias (doravante “DLG”) devem constituir um meio adequado/idóneo para a prossecução dos fins pretendidos tendo em vista salvaguardar outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos. Ora, o n.º 2 do artigo 13.º, ao sujeitar a obtenção do direito a uma indemnização à previa revogação da decisão danosa, cumpre, na perfeição, o seu intuito de salvaguardar a segurança jurídica, o caso julgado e o sistema da hierarquia dos tribunais, portanto, não apresenta problemas de desadequação.
]]> b)Necessidade: este subprincípio impõe que as medidas restritivas de DLG sejam indispensáveis/necessárias para alcançar os fins pretendidos, não podendo estes ser alcançados através de meios menos onerosos/gravosos. Procedendo ao exame da necessidade da norma em apreço, é possível vislumbrar soluções menos onerosas para aquele direito fundamental a uma indemnização por responsabilidade por erro judiciário. Somos da opinião que o legislador poderia atingir tais fins através de duas soluções de jure condendo, que assim se propõem:i.Poderia o legislador manter a solução do n.º 2 do artigo 13.º mas, à semelhança do previsto no n.º 6 do artigo 29.º da CRP, e 449.º do CPP para os casos de condenação penal injusta, proceder a uma alteração ao Código de Processo Civil, aditando uma nova alínea ao artigo 696.º que possibilitasse o recurso extraordinário de revisão para o Supremo Tribunal de Justiça (ou para o Supremo Tribunal Administrativo) nos casos de decisões transitadas em julgado feridas de erro judiciário80;
ii.Alternativamente, poderia o legislador eliminar a norma do n.º 2 do artigo 13.º, e proceder à criação de um novo tribunal, autónomo e especializado, com competência para julgar todas as ações que visem responsabilizar o Estado por erro judiciário81. Bem vistas as propostas, a elas se associa a principal vantagem de evitar situações em que, dada a irrecorribilidade da decisão, se tornaria impossível obter o direito a uma indemnização.
c)Proporcionalidade em sentido estrito: este subprincípio veda a utilização de meios excessivos/desproporcionados em relação aos fins que pretende alcançar. A norma em análise, ao prever o pressuposto processual da prévia revogação da decisão, onera excessivamente a possibilidade de obtenção do direito, com dignidade constitucional (artigo 22.º da CRP), a uma indemnização por erro judiciário imputável a um órgão jurisdicional, violando, também, assim, esta dimensão do princípio da proporcionalidade.
Assim, a norma emanada do n.º 2 do artigo 13.º do RCEEP viola, também, o princípio da proporcionalidade, nas dimensões da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito.
3. Conclusão
Alcançado o final do nosso estudo sobre o regime da responsabilidade civil do Estado por erro judiciário, importa tecer algumas conclusões.
A Lei n.º 67/2007 veio consagrar no seu capítulo III, de forma inovadora, a responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional. Para efeitos do nosso trabalho, debruçámo-nos apenas sobre o regime especial consagrado para as situações de responsabilidade por erro judiciário (artigo 13.º do RCEEP).
No artigo 13.º encontram-se revelados os pressupostos essenciais (para além da culpa, dano e nexo de causalidade) de que depende a efetivação da responsabilidade do Estado por erro judiciário.
No n.º 1 prevê-se que o Estado só será responsável, por um lado, pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais – erro de direito –, ou, por outro, pelos danos decorrentes de decisões injustificados por erro grosseiro na apreciação dos respetivos pressupostos de facto – erro de facto. Daqui decorre que nem todo o erro cometido por um órgão jurisdicional é relevante para efeitos de responsabilidade por erro judiciário, mas apenas aquele especialmente qualificado (manifesto ou grosseiro).
]]> No n.º 2 encontra-se consagrado um pressuposto processual específico da responsabilidade por erro judiciário – a prévia revogação da decisão do órgão jurisdicional que tenha cometido o erro judiciário especialmente qualificado. O pressuposto processual enunciado é de extrema relevância uma vez que do seu cumprimento depende a transição da pretensão do lesado à fase da ação de indemnização. Como resultado, nega-se autonomia à ação de indemnização e cria-se uma relação de interdependência entre o meio processual recurso e a ação de indemnização.As razões subjacentes à criação de tal requisito prendem-se, sobretudo, com a salvaguarda do princípio da segurança jurídica, da autoridade do caso julgado, da hierarquia dos tribunais e do sistema de recursos. Não obstante a ratio legis do preceito, acreditamos que o legislador foi imprudente e não pesou, corretamente, os argumentos a favor e os argumentos contra a consagração do n.º 2 do artigo 13.º.
Com efeito, podemos concluir pela análise empreendida do direito e jurisprudência da União Europeia que a solução do n.º 2 do artigo 13.º não é compatível com o ordenamento jurídico europeu, nomeadamente à luz do princípio da efetividade que proíbe a criação de requisitos que tornem impossível ou excessivamente difícil a obtenção de reparação pelos danos sofridos.
Também com o direito constitucional colide a solução do n.º 2 do artigo 13.º, embora não tenha sido este o entendimento do TC no acórdão n.º 365/2015. Conforme tivemos oportunidade de examinar, o pressuposto processual da prévia revogação da sentença atenta contra os princípios da proporcionalidade (n.º 2 do artigo 18.º da CRP) – nas dimensões da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito –, e da igualdade (artigo 13.º da CRP), e contra o direito fundamental a uma tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º da CRP).
Em suma, tendo presente a extrema dificuldade de preenchimento dos pressupostos previstos no artigo 13.º do RCEEP, o regime da responsabilidade por erro judiciário traduz-se, atualmente, numa verdadeira irresponsabilidade do Estado, carecendo, em nossa opinião, de uma urgente revisão por parte do legislador.
1 hugoaparicio@gmail.com, Mestrando em Direito Administrativo na Faculdade de Direito – Escola de Lisboa, Universidade Católica Portuguesa, Palma de Cima, 1649-023, Lisboa, Portugal.