Shahd Wad. Acontecer na fronteira: ser uma mulher da Palestina em Lisboa
Alexandra Alves Luís*, Ana Paula Saraiva**
*Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, Faces de Eva – Estudos sobre a Mulher, alexandraalvesluis@gmail.com
**Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas,Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, Faces de Eva – Estudos sobre a Mulher, anasaraiva2@gmail.com
Em 2014, Shahd Wadi defendeu a sua tese de doutoramento na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, tornando-se a primeira doutorada em Estudos Feministas, em Portugal. Na primeira semana de fevereiro de 2018 apresentou, em Lisboa, o livro[1]que resultou desse trabalho. Foi a ocasião para agendarmos uma conversa que decorreu algumas semanas depois. O local escolhido para partilhar connosco alguns detalhes da sua história de vida foi o Largo do Intendente, um lugar de fronteira entre a tradição dos bairros lisboetas e as novas rotas turísticas da capital, cenário onde prédios em ruínas resistem entre novíssimos imóveis de luxo, onde a população residente representa a freguesia mais multicultural de Portugal, reunindo mais de setenta nacionalidades... porque nada é por acaso, porque, como afirma a nossa entrevistada, tudo é político. Neste texto apresentamos uma síntese destes encontros com a autora e com o seu livro, desvelando um percurso invulgar.
]]> Shahd Wadi nasceu no Egito há 35 anos, viveu a infância e juventude na Jordânia e em maio de 2018 completou 12 anos de residência em Portugal. É palestiniana, também porque o escolhe ser. Concluída a licenciatura na Jordânia, em Línguas, trabalhou como consultora na United Nations University – International Leadership Institute, parte da Organização das Nações Unidas (ONU). O projeto que integrou relacionava-se com a liderança das mulheres em zonas de conflito. Depois, desenvolveu uma ação de voluntariado num centro de estudos para mulheres nas Honduras. Aí trabalhou com mulheres a quem dava ferramentas que lhes permitissem, por exemplo, formalizar uma queixa de violência doméstica. Estas experiências foram importantes para o seu rumo, mas considera que é o facto de ser uma mulher palestiniana que determinou o seu projeto pessoal de vida, centrado na luta feminista palestiniana, que tem vindo a materializar de várias formas, inclusivamente através do mestrado e doutoramento realizados e do livro em análise, entendido também como uma forma de resistência.O livro que resulta da sua tese de doutoramento foi apresentado na Livraria Almedina pela Professora Catedrática Isabel Allegro de Magalhães, que referiu o caráter fraturante deste trabalho e sublinhou o facto de se tratar de uma tese apresentada num ambiente tão normativo como é Coimbra. Contudo, as provas de doutoramento foram avaliadas com a nota máxima, acrescentou.
O corte com a convenção académica é, quase sempre, assumido pela autora, como acontece no caso em que justifica porque opta “pela fusão entre o conceito de ‘capítulo' e de anexos” (Wadi, 2017, p. 24). A leitura do livro permite cartografar vários percursos disruptivos. Tal é o caso da temática e perspetiva abordadas: Corpos na Trouxa. Histórias-artísticas-de-vida de mulheres palestinianas no exílio, como se intitula a tese/livro, é também uma autobiografia. Neste trabalho, Shahd Wadi relata a sua história, a história da sua família obrigada ao exílio, em 1948, quando expulsa da sua terra, a Palestina.
Por outro lado, tem por “objetos de estudo” artefactos artísticos, criados por mulheres palestinianas nascidas no exílio, já que defende que a academia não deve limitar-se à escrita convencional. Pelo contrário, rejeita o primado do texto sobre os filmes, narrativas de ficção, música, poesia e arte visual que analisa, reconhece-lhes uma validade interpares e integra-os no corpo do texto. Justifica esta perspetiva: “Não são apenas ‘notas' ou ‘anexos', mas sim parte integrante do trabalho. São discursos legítimos e de tanta importância como a teoria e outros discursos escritos” (Wadi, 2017, p. 19). Sobre o modo como pretendeu analisá-los esclarece: “Não vou falar sobre ‘os objetos de estudo' mas perto deles, seguindo o método usado pela etnógrafa e teórica feminista, Trinh T. Minh-ha (...) (que) cria um diálogo com os assuntos que estuda, sem tentar impor um significado único” (Wadi, 2017, pp. 25-26).
Argumenta ainda que “a criação artística das mulheres palestinianas no exílio é um manifesto político feminista de resistência às diferentes opressões” (Wadi, 2017, p. 20). Refere-se à ocupação e ao sexismo, temática já abordada na dissertação de mestrado que intitulou Feminismos dos Corpos ocupados: As mulheres palestinianas entre duas resistências, defendida, também em Coimbra, em 2010, e classificada com 18 valores.
Um breviário destas duas faces da opressão sobre as mulheres palestinianas é apresentado pela autora quando explicita: “Debrucei-me, por um lado, sobre o discurso da ocupação israelita, que é colonial, nacionalista, chauvinista e ‘masculino'; e, por outro lado, sobre o discurso palestiniano hegemónico que, apesar de ser resistente à ocupação, é igualmente nacionalista chauvinista e ‘masculino'” (Wadi, 2017, p. 21).
Inova ainda no modo como recupera a tradição ancestral de perpetuação da memória através da oralidade, que no contexto da história da Palestina assume contornos particulares, como esclarece: “O povo palestiniano sempre resistiu para manter a memória coletiva que confirma uma identidade e uma existência” (Wadi, 2017, p. 21). Em concreto, atribui às mulheres este papel de “manter a ideia da Palestina viva” (ibidem) porquanto “foram contando a história do povo e da terra através da narração das suas histórias de vida” (ibidem). Esclarece-nos que essas mulheres de gerações anteriores o fazem de uma forma peculiar: narram acontecimentos sem mencionar datas, contam as suas histórias como se fossem fábulas sem tempo. Acrescenta que se deve às gerações nascidas no exílio a construção de um novo legado “utilizando a produção artística como extensão da memória palestiniana” (Wadi, 2017, p. 21). São estas novas narrativas que dão continuidade à tradição oral, embora, como clarifica, “reconfiguradas em novas molduras e traduzidas noutras linguagens artísticas” (ibidem).
O lugar onde a criação artística acontece é o exílio, entendido como a fronteira, “um lugar imaginário que fica entre a pátria de origem (Palestina) e (...) a casa ‘forçada'” (Wadi, 2017, p. 32); e é aqui que acontece também a criação dos próprios corpos. A autora explica este processo apelando ao conceito de narrativa corporizada, “embodied narrative”, proposto por Elizabeth Grosz, segundo a qual “os corpos e o lugar constroem-se mutuamente” (ibidem).
Referidos vários dos traços inovadores em termos temáticos e metodológicos da tese/livro, sublinhando-se o facto de ter sido apresentada em Coimbra, confrontámos Shahd com o epíteto de pioneira. Rejeita a nossa argumentação:
Eu não conheci esse lado conservador de Coimbra, pelo contrário. Há muito ativismo feminista na academia de Coimbra. Tive muita sorte com as minhas duas orientadoras, Adriana Bebiano e Maria Irene Ramalho, o que não quer dizer que não tenha lutado pelas minhas ideias. Discutimos tudo, em detalhe, chegámos a ter reuniões que duraram nove horas, por vezes para definir uma coisa tão simples para mim, como ter um título designado 1948. Defendi também a utilização do Facebook como referência ou a menção a vídeos na epígrafe. Porque não, se fazem parte da vida? A academia deve refletir a vida. Mas não usaria a palavra pioneira... o que é ser pioneira? Não sei. Sei o que é fazer a diferença, é um processo. Eu quero fazer a diferença, especialmente aqui em Portugal. Quero lutar pela Palestina em Portugal, quero lutar por causas feministas em Portugal.
]]> A apresentação do livro surge, com efeito, como uma oportunidade para fazer diferente e para falar sobre a causa palestiniana. Shahd encena, num palco improvisado na livraria, perante uma plateia de muitas dezenas de pessoas, o êxodo palestiniano. Faz e desfaz uma trouxa que transporta em “viagens” sucessivas, uma écharpe colocada sobre a cabeça onde vai colocando conteúdos diversos e que, algumas vezes, permanece esvaziada. A trouxa representa uma metáfora daquilo que se leva quando se vivencia a fuga, quando ser nómada se torna a situação de vida; por vezes, o que se transporta é apenas o corpo. Remete, igualmente, para a tradição palestiniana das noivas que levavam os seus pertences para a casa do marido numa trouxa ou bo'aje, que ganhou nova significação após o exílio, já que “cada família palestiniana nos campos de refugiados recebia uma trouxa, um saco com roupa em segunda mão (...)” (Wadi, 2017, p. 23).Esta performance, assim como a opção de analisar obras de artistas, sugere-nos uma pergunta sobre a existência de uma formação artística, dedução que clarifica:
Não tenho nenhum background formal nas artes, mas sou filha de artistas e na minha vida sempre tive a arte presente. A razão de usar a arte para falar sobre a Palestina e sobre as mulheres palestinianas é por se tratar de uma linguagem que toda a gente percebe. Ligo-me à Palestina através da arte, através das músicas que estou a ouvir, dos livros que leio, das obras de arte que posso ver na internet, aliás, sem a internet este trabalho seria outro. Esta minha maneira de me ligar com a Palestina foi uma coisa natural. No livro abordo as obras e as vidas de duas poetas, duas romancistas, duas realizadoras, duas artistas visuais e duas bandas.
Sobre este aspeto, esclarece ainda no livro: “São criações que apareceram no meu caminho e onde encontrei a história do exílio das mulheres palestinianas que quero contar, mas também onde vi refletida a minha história palestiniana” (Wadi, 2017, pp. 18-19).
A história palestiniana da autora conhece géneses múltiplas. Identifica um destes momentos na introdução do livro: “Sou palestiniana, foi-me dito. (...) era ainda criança (...) quando me disseram que era palestiniana. Sussurraram aos meus ouvidos a minha história palestiniana” (Wadi, 2017,p. 15). Outro momento primordial ocorre em 1948, quando a família é forçada ao exílio, após a ocupação das forças militares israelitas. Conta-nos a história ouvida: “Durante nove meses, os corpos da minha família foram arrastados numa caminhada para o exílio até chegarem a Ramallah. Foram os mesmos nove meses que o corpo da minha avó (...) levou para dar à luz o seu nono filho, o primeiro e último do exílio: o meu pai” (Wadi, 2017,p. 15). Outro momento de (re)nascimento ocorre já adolescente quando visita, pela primeira vez, a Palestina: “Durante o meu primeiro regresso a uma terra que nunca conheci (...). Percebi, senti e decidi: sou palestiniana” (Wadi, 2017, p. 17).
Shahd Wadi tem, também, nacionalidade portuguesa. Chegou a Portugal, em 2006.
Não tratei logo da minha nacionalidade porque detesto burocracias, mas quis ter a nacionalidade portuguesa para poder votar. Nunca votei sem ser em Portugal porque quando tive idade para votar estava fora. É importante para mim ter uma cidadania ativa. Esta é uma das maneiras de me sentir em casa.
Neste projeto de cidadania assinalámos a sua candidatura à eleição para o Parlamento Europeu, em maio de 2014, como candidata independente pelo Bloco de Esquerda. Quisemos saber o significado desta experiência:
Aceitei o convite por entender tratar-se de uma oportunidade para falar das minhas lutas, discutir as minhas lutas e, sobretudo, falar sobre a questão da solidariedade com a Palestina. Neste âmbito, faço parte do Comité de Solidariedade com a Palestina e também de um movimento que existe em toda a Europa que se chama Boicote Desinvestimento Sanções (BDS) que é semelhante ao movimento que aconteceu na África do Sul contra o apartheid e tem por objetivo pressionar Israel a cumprir a Lei Internacional. Também em Portugal começa a ser conhecido e existem muitas formas de apoio, até em situações do dia a dia, não comprando produtos israelitas, não colaborando com universidades de Israel... É importante notar que não se trata de um movimento contra identidades. É, sim, contra a ocupação. Por exemplo, convidámos o historiador Ilan Pappe, que apoia o movimento e é israelita, para falar, em Lisboa, sobre a limpeza étnica na Palestina.
A finalizar, queremos saber sobre os projetos sonhados, neste lugar de fronteira: Enquanto a academia não abre portas, profissionalmente estou a trabalhar na embaixada da Palestina como assessora de imprensa e dos assuntos culturais, mas omeu sonho é continuar a fazer estudos palestinianos e feministas. Torna-se difícil encontrar o tema adequado para rematar uma conversa marcada pelo signo da transitoriedade, do desenraizamento, do não lugar. A materialidade do livro oferece-nos uma solução: Perguntam-me se estou feliz agora que publiquei. Eu digo que sim, mas senti-me muito estranha. Ter ali um objeto que se toca e que também sou eu...
]]> [1] Wadi, S. (2017). Corpos na Trouxa. Histórias-artísticas-de-vida de mulheres palestinianas no exílio. Coimbra: Almedina. ]]>