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GE-Portuguese Journal of Gastroenterology

versão impressa ISSN 2341-4545

GE Port J Gastroenterol vol.21 no.5 Lisboa out. 2014

https://doi.org/10.1016/j.jpg.2014.06.004 

CASO CLÍNICO

 

Abcesso hepático amebiano em idade pediátrica - um caminho do intestino ao fígado

Amebic liver abscess in pediatrics - a path from the intestine to the liver

 

Filipa Carlota Marques, Bruno Sanches, Andreia Guerreiro, Filipa Nunes e Paula Azeredo

Serviço de Pediatria, Hospital Garcia de Orta, Almada, Portugal

*Autor para correspondência

 

RESUMO

O abcesso hepático amebiano é uma entidade rara nos países desenvolvidos, no entanto, é uma patologia a considerar numa criança com uma lesão hepática, febre e dor abdominal, mesmo sem história de viagens a países endémicos. É importante identificar a fonte de contaminação.

Apresentamos o caso de uma criança com febre, dor abdominal e hepatomegalia condicionando aumento do volume abdominal. Imagiologicamente apresentava um abcesso único no lobo hepático esquerdo e serologia positiva para Entamoeba histolytica. Cumpriu terapêutica com metronidazol, paromomicina e realizou drenagem percutânea.

Palavras-Chave: Entamoeba histolytica; Amebíase extraintestinal; Abcesso hepático

 

ABSTRACT

Hepatic amebic abscess is a rare disease in developed countries, but is important to consider such diagnosis in children with an hepatic lesion, fever and abdominal pain, although he/she has never been in an endemic country. It’s important to identify the source of contamination.

We describe a case of a child with fever, abdominal pain, hepatomegaly with increased abdominal volume. The imagiology showed a solitary abscess in the left hepatic lobe and serology was positive to Entamoeba histolytica. Treatment consisted in metronidazole, paromomycin and percutaneous drainage.

Keywords: Entamoeba histolytica; Extra-intestinal amebiasis; Hepatic abscess

 

Introdução

A amebíase é uma parasitose de distribuição mundial causada pelo protozoário Entamoeba histolytica. Estimam-se cerca de 50 milhões de casos por ano, sendo considerada a /terceira causa de morte (100.000 por ano) por doença parasitária no mundo1,2. A sua prevalência varia com o nível de saneamento e é geralmente mais elevada nas regiões tropicais e subtropicais3. Em Portugal deixou de ser uma doença de declaração obrigatória a partir de 1999 e os últimos dados publicados, referentes ao período 1992-1996, reportavam uma taxa de incidência mediana de 0,04 casos/milhão de habitantes4.

Os humanos parecem ser o único reservatório do parasita e, sendo a transmissão feita apenas por via fecal-oral, a doença poderia ser potencialmente erradicada através de medidas de controlo sanitário2.

A infeção ocorre por ingestão do parasita na sua forma quística. No lúmen intestinal os quistos libertam os trofozoítos que podem causar apenas colonização intestinal.

Clinicamente, a amebíase pode manifestar-se sob a forma de colite, doença extraintestinal ou ser assintomática em 90% dos casos2. A doença extraintestinal é rara (< 1%) e a sua forma de apresentação mais comum é o abcesso hepático5,6. O abcesso hepático amebiano (AHA) é mais frequente em adultos do sexo masculino. Apesar de raro na idade pediátrica, está descrito em recém-nascidos e tem uma distribuição de género equitativa1,3,5. O AHA resulta da disseminação hematogénica dos trofozoítos através da veia porta. Localiza-se preferencialmente no lobo direito do fígado, uma vez que este recebe a maioria da drenagem sanguínea do cego e do cólon ascendente2. No seu conteúdo encontram-se fragmentos proteicos acelulares, tipo «pasta de anchovas», que correspondem a hepatócitos destruídos pelos trofozoítos7,8.

As manifestações clínicas do AHA (febre, dor abdominal, anorexia e mal-estar geral) são inespecíficas e podem apresentar-se de forma aguda ou insidiosa3.

Descrevemos um caso clínico de AHA em idade pediátrica. Este caso tem interesse pela raridade com que ocorre nas crianças do nosso país e alerta para a necessidade de incluir a etiologia amebiana no diagnóstico diferencial de quadros clínicos caracterizados por febre prolongada, dor abdominal e lesão hepática focal.

Caso clínico

Criança de 24 meses, sexo masculino, raça negra, saudável, natural de Almada, onde sempre residiu. Vive em habitação com saneamento básico e um poço (água usada para regar horta). Os pais são de origem africana e residem em Portugal há 10 anos.

Inicia 10 dias antes do internamento, de forma súbita febre alta com calafrio acompanhada de dor no hipocôndrio direito e aumento progressivo do volume abdominal. Encontrava-se prostrado, com sensação de doença, temperatura axilar 39 ◦C, pálido, bem perfundido. Tensão arterial 85/40 mmHg. Frequência cardíaca de 120 bpm. Frequência respiratória de 40 cpm, com respiração superficial e gemido expiratório. Saturação transcutânea de O2 de 98% em ar ambiente. Murmúrio vesicular mantido bilateralmente, sem ruídos adventícios. Abdómen (fig. 1) muito distendido, sob tensão, por hepatomegalia dolorosa (bordo hepático palpável 8 cm abaixo do rebordo costal direito). A avaliação laboratorial revelou hemoglobina 6,2 g/dL, leucócitos 27.600/uL (57% neutrófilos, 0% eosinófilos), proteína C reativa 32 mg/dL, AST 71 UI/L (VR: < 38 UI/L), albumina 2,2 g/dL (VR: 3,5-5 g/dL), coagulação, ALT, fosfatase alcalina e bilirrubina total normais. A ecografia abdominal evidenciou «lesão hepática única, localizada no lobo esquerdo, com área central hipoecogénica, pouco vascularizada». A tomografia computorizada (figs. 2 e 3) mostrou «lesão de densidade heterogénea com cerca de 9,5x8x6,2cm, bemdelimitada e capsulada (abcesso/quisto complexo infetado)». Foi colocada a hipótese diagnóstica de abcesso hepático, pelo que iniciou terapêutica empírica com ceftriaxona (100 mg/kg/dia) e metronidazol (42 mg/kg/dia).

 

 

 

 

A serologia para E. histolytica (pesquisa de anticorpos do tipo IgG por método de ELISA) foi fortemente positiva.

Perante um AHA do lobo esquerdo, de dimensões superiores a 5 cm foi decidida a realização de drenagem percutânea, com saída de cerca de 400 ml de líquido tipo «pasta de anchovas» (fig. 4). Manteve terapêutica com metronidazol durante 10 dias, inicialmente endovenoso e após apirexia (D8 de internamento) passou a oral, seguido de paromomicina oral, 35 mg/kg/dia, 7 dias.

 

 

A pesquisa por «Polymerase Chain Reaction» (PCR) de E. histolytica nas fezes dos contactos foi negativa.

Discussão

O caso clínico apresentado pretende salientar a importância de se considerar a etiologia amebiana no diagnóstico diferencial de abcesso hepático em crianças, mesmo sem história de viagens a países endémicos. O facto de os contactos não serem portadores sugere uma infeção autóctone. De referir que a deteção de E. histolytica por PCR é o método laboratorial de diagnóstico mais sensível, permitindo também diferenciar entre doença recente ou passada2.

O AHA ocorre, em média, 12 semanas após a infeção inicial, mas pode manifestar-se após meses ou anos2.

Como relatado no caso, na criança, as manifestações clínicas mais frequentes do AHA são febre alta com calafrio, dor no hipocôndrio direito, tosse e hepatomegalia, habitualmente com menos de 10 dias de evoluc¸ão3,5,9. A diarreia é concomitante em menos de 1/3 dos casos, apesar de poder ocorrer nos meses anteriores ao diagnóstico9. A icterícia é rara na criança e, quando ocorre, é maioritariamente de causa obstrutiva3,9. Ocasionalmente, a apresentação da doença é mais insidiosa e o diagnóstico tardio.

Analiticamente, tal como descrito na literatura2,3,9, constatou-se anemia, leucocitose revelando-se a ausência de eosinofilia, aumento da proteína C reativa e AST/ALT. Contrariamente ao descrito, não se verificou aumento da fosfatase alcalina.

A ecografia foi utilizada como exame imagiológico de 1.a linha3,6 e detetou uma lesão hepática isolada no lobo esquerdo. O estudo por doppler revelou uma lesão pouco vascularizada, favorecendo a hipótese de quisto. A cintigrafia com gálio poderia complementar a investigação diagnóstica, uma vez que os abcessos amebianos são «frios» enquanto os piogénicos são «quentes»9. Contudo, nenhum exame de imagem é definitivo em excluir um abcesso piogénico ou doença maligna9.

Perante o diagnóstico imagiológico de abcesso/quisto, foram formuladas as hipóteses diagnósticas de abcesso piogénico (80% dos abcessos hepáticos nas crianças, causados por Staphylococcus aureus, Escherichia coli, Klebsiella, Enterobacter e aneróbios7), AHA, quisto hidático infetado, hematoma infetado e hepatoma necrótico5.

O teste serológico para deteção de E. histolytica usado neste caso clínico tem sensibilidade de 100% e especificidade de 95,6%2. Os anticorpos são detetáveis na fase inicial da doença em 92-97% dos doentes9, mas podem ser negativos nos primeiros 7 dias2. Contudo, em áreas endémicas este teste é limitado, pois não permite a distinção entre infeção recente ou passada9.

A abordagem terapêutica do AHA deve incluir um agente amebicida tecidular seguido de um amebicida com ação intraluminal. O agente tecidular mais frequentemente usado é o metronidazol5, na dose 35-50 mg/kg/dia (máximo 750 mg, 3 x dia), durante 7-10 dias. Este fármaco é eficaz, não tem efeitos secundários graves e a maioria dos doentes apresenta melhoria clínica após 72 horas de terapêutica1. A formulação oral é bem absorvida, logo não permanece tempo suficiente no lúmen intestinal para erradicar a amebíase intestinal. Não há registo de resistência dos trofozoítos. A terapêutica utilizada foi o metronidazol, inicialmente endovenoso e após melhoria clínica oral, permitindo a continuidade do tratamento em ambulatório. Em alternativa, pode ser usado o tinidazol oral 50-60 mg/kg/dia (máximo 2 g), 1 x dia, 3-5 dias1,5. O tinidazol tem a mesma eficácia e posologia mais simples (1 x dia)6.

A infeção intraluminal é tratada, posteriormente, com paromomicina (fármaco não comercializado em Portugal) na dose 25-35 mg/kg/dia oral, 3 x dia, durante 7 dias6. A paromomicina é umaminoglicosídeo não absorvido no tubo digestivo e, por isso, com atividade intraluminal contra os quistos e trofozoítos1. Não deve ser administrado juntamente com metronidazol ou tinidazol porque a diarreia é um efeito secundário frequente6.

Embora o tratamento médico possa ser eficaz, a drenagem percutânea guiada por ecografia é uma parte importante do algoritmo terapêutico. Os critérios de drenagem são a ausência de resposta após 3-7 dias de terapêutica médica, risco de rotura (tamanho > 5 cm e localização superficial) ou para exclusão de outro diagnóstico1,3,5,6. No doente apresentado foi realizada drenagem pois o AHA tinha mais de 5 cm e uma localização superficial no lobo esquerdo.

O AHA pode romper para a cavidade peritoneal, pleural ou pericárdica2,7-9. Como descrito anteriormente, as lesões do lobo esquerdo são cerca de 6 vezes menos frequentes que as do lobo direito e têm maior risco de romper para o pericárdio2.

Os abcessos não complicados têm uma taxa de mortalidade inferior a 1% se diagnosticados e tratados precocemente2. São marcadores de mau prognóstico bilirrubina > 3,5 mg/dl, albumina sérica < 2 g/dL, abcessos múltiplos ou de grandes dimensões e encefalopatia hepática9. Quando ocorrem complicações a mortalidade aumenta para 20%9. A amebíase parece conferir algum grau de imunidade9.

As lesões tratadas tornam-se anecoicas, calcificadas ou podem persistir como lesões quísticas. A resolução radiológica completa ocorre em 2 anos9.

O AHA é uma entidade rara nos países desenvolvidos, contudo, é uma etiologia possível numa criança saudável com uma lesão hepática, febre e dor abdominal3. A história epidemiológica deve ser investigada detalhadamente de forma a identificar a fonte de contaminação e tratar os portadores assintomáticos de E. histolytica.

 

Referências

1. Hamano S, Petri Jr W. Amebiasis. In: Cherry J, editor. Feigin and Cherry’s Textbook of Pediatric Infectious Diseases. 6 th ed. Philadelphia, PA: Saunders/Elsevier; 2009. p. 2841-9.         [ Links ]

2. Fotedar R, Stark D, Beebe N, Marriot D, Ellis J, Harkness J. Laboratory diagnostic techniques for Entamoeba species. Clin Microbiol Rev. 2007;20:511-2.         [ Links ]

3. Khotaii Gh, Hadipoor Z, Hadipoor F. Amebic liver abscess in Iranian children. Acta Medica Iranica. 2003;41(1):33-6.         [ Links ]

4. Pina, António Paula Brito, 1998 (consultado 2011). Disponível em: http://www.saudepublica.web.pt/04-PrevencaoDoenca/DTDOmanual/ameb.html        [ Links ]

5. Haque R, Huston C, Hughes M, Houpt E, Petri W. Current concepts: Amebiasis. N Engl J Med. 2003;348:1565-73.         [ Links ]

6. Kliegman MD R, Stanton MD B, Geme J, Schor N, Behrman R. Nelson Textbook of Pediatrics. 2011, 19a Edição.         [ Links ]

7. Mishra K, Basu S, Roychoudhury S, Kumar P. Liver abscess in children: An overview. World J Pediatr. 2010;6(3):210-6.         [ Links ]

8. Perez J. Amoebic liver abscess: Revisited. Phil J Gastroenterol. 2006;2:11-3.         [ Links ]

9. Leder K, Weller P. Extraintestinal Entamoeba histolytica amebiasis. In: UpToDate 19.1. Janeiro 2011.         [ Links ]

 

*Autor para correspondência

Correio eletrónico: filipacmarques@sapo.pt (F.C. Marques).

 

Responsabilidades éticas

Proteção de pessoas e animais. Os autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.

Confidencialidade dos dados. Os autores declaram ter seguido os protocolos do seu centro de trabalho acerca da publicação dos dados de pacientes.

Direito à privacidade e consentimento escrito. Os autores declaram ter recebido consentimento escrito dos pacientes e/ ou sujeitos mencionados no artigo. O autor para correspondência deve estar na posse deste documento.

Conflito de interesses

Os autores declaram não haver conflito de interesses.

 

Recebido a 28 de outubro de 2013; aceite a 3 de junho de 2014

 

Agradecimentos

Dra. Cláudia Júlio do Laboratório Nacional de Referência de Infecções Gastrointestinais para Giardia sp., Cryptosporidium sp. e E. Histolytica, Departamento de Doenças Infecciosas Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge.

Prof. Doutor Jorge Atouguia, Unidade de Ensino e Investigação de Clínica das Doenças Tropicais, Instituto de Higiene e Medicina Tropical, Universidade Nova de Lisboa.

Dra. Margarida Cosme, Coordenadora da Unidade de Saúde Pública, ACES Seixal-Sesimbra.

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