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Media & Jornalismo

Print version ISSN 1645-5681On-line version ISSN 2183-5462

Media & Jornalismo vol.20 no.37 Lisboa Dec. 2020

https://doi.org/10.14195/2183-5462_37_10 

ARTIGO

A cobertura televisiva da pandemia de Covid-19 em Portugal: um estudo exploratório

Television coverage of the Covid-19 pandemic in Portugal: an exploratory study

Ana Cabrera*
https://orcid.org/0000-0002-2372-5165

Carla Martins**
https://orcid.org/0000-0002-4625-1521

Isabel Ferin Cunha***
https://orcid.org/0000-0001-8701-527X

* Universidade NOVA de Lisboa, Instituto de História Contemporânea - IHC anacabrera@fcsh.unl.pt

** Universidade Lusófona de Humanidade e Tecnologias. Instituto de Comunicação da NOVA - ICNOVA carla.martins@erc.pt

*** Universidade de Coimbra, Faculdade de Letras. Instituto de Comunicação da NOVA - ICNOVA barone.ferin@gmail.com


 

RESUMO

O ano de 2020 ficará marcado na memória mundial como o ano da pandemia de Covid-19. Embora a doença tenha eclodido na China no final de 2019, a sua propagação foi posterior e veio colocar em causa a sociedade globalizada, com efeitos sociais, políticos e económicos graves, mas ainda a serem determinados em toda a sua extensão. Na cobertura do surto o jornalismo, em crise há algumas décadas (Zelizer, 2004; 2009; 2015; 2017), reassumiu um papel central e adquiriu um novo vigor, viajando por múltiplos dispositivos e écrans (Deuze, 2019). Em Portugal, num cenário de isolamento, predominantemente familiar, a televisão emergiu como elo social (Wolton, 1994), confirmando que continua ser o médium dominante (ERC, 2016, 2019; OBERCOM, 2018; Statista, 2019). Neste contexto, a nossa homenagem a Nelson Traquina tem como objetivo apresentar, comentar e discutir a sua contribuição para o estudo do jornalismo em Portugal a partir da análise da cobertura jornalística televisiva da crise pandémica. Com este fim, recuperámos estudos teóricos sobre as Teorias da Notícia e os estudos empíricos sobre o HIV/SIDA realizados pelo autor (por exemplo, Traquina, 1993; 2002; 2004; 2010; Traquina e al., 2001). Elegemos um corpus de análise empírico, compreendido por blocos de jornais televisivos dos canais generalistas RTP1, SIC e TVI. Utilizamos uma metodologia fundada na construção de uma base de dados em File Maker Pro inspirada nos trabalhos de Traquina sobre o HIV/SIDA. Os resultados obtidos, ainda que com caráter exploratório, permitem a discussão das teorias da notícia enquanto construção (Traquina, 1993) e o papel das rotinas na produção da informação televisiva.

Palavras chave: televisão; jornalismo televisivo; cobertura jornalística covid-19; homenagem a Nelson Traquina


 

ABSTRACT

2020 will be remembered globally as the year of the Covid-19 pandemic. Although this disease had emerged in China in the end of 2019, its global spread a few months later threatened the globalized society, causing serious social, political, and economic effects, not all yet understood. Journalism has been in crisis over the past few decades (Zelizer, 2004; 2009; 2017), but the coverage of this pandemic through diverse devices and screens (Deuze, 2019) brought a new vigor to the role of journalism. In Portugal, during a period of homely isolation, television played a role of social link (Wolton, 1994), demonstrating that it is still the dominant medium (ERC, 2016, 2019; OBERCOM, 2018; Statista, 2018). In this context, our tribute to Nelson Traquina has the aim of presenting, commenting, and discussing his contribution to the study of television journalism in Portugal by assessing the television coverage of this pandemic crisis. For this purpose, we have retrieved theoretical studies about the theories of news and empirical studies about HIV/AIDS done by Traquina (1993, 2002, 2004, 2010 and Traquina et al. , 2001). We have empirically assessed both the lunchtime and evening television news services of the channels RTP1, SIC and TVI. We have built a database using a definition of assessment categories, which although was inspired by the work of Traquina about HIV/AIDS, was adapted to the specificities of this new disease. The results enable a discussion about the theories of news as “construction” (Traquina, 1993) and the role of routines in the production of news.

Keywords: television; television journalism; covid-19 news coverage; tribute to Nelson Traquina


 

Introdução

O HIV/SIDA constituiu um tema que Nelson Traquina acompanhou ao longo da vida e foi central nas suas investigações. Na homenagem que se presta ao mestre, investigador e colega, recuperar estes trabalhos é uma oportunidade para discutir não só as Teorias do Jornalismo mas, também, a cobertura jornalística de uma epidemia/pandemia. Esta problemática, pela sua mão objeto de pesquisas empíricas pioneiras em Portugal, adquiriu atualidade e pertinência, nestes tempos de Covid-19. Embora seja desafiante comparar a cobertura jornalística do HIV/SIDA com a da Covid-19, é determinante ter em conta as duas fases completamente diferentes dos sistemas mediáticos, nacional e internacionais, e os produtos gerados nestes contextos díspares. Entre as décadas de oitenta do século passado e a segunda década do século XXI registaram-se inúmeras mudanças no campo dos media e do jornalismo, pautadas por inovações tecnológicas, a expansão do neoliberalismo económico e o aprofundamento da globalização.

O sistema mediático dos anos de 1980/90, momento em que eclodiu o HIV/SIDA, é caracterizado pela configuração e apogeu dos grandes conglomerados mediáticos.

Esta transformação no campo dos media refletiu-se nos modelos de negócios, nas estratégias de marketing e na criação de formatos e linguagens, com vista à angariação de novos públicos. Estes grupos de recorte multimédia reúnem diferentes órgãos de comunicação e interesses afins, sustentados por publicidade e ancorados em grandes audiências. O jornalismo é um dos muitos produtos oferecidos, por emissores todo-poderosos, mas mantém o seu ethos, rotinas e cultura profissional (Traquina, 2004). Em contrapartida, a propagação da Covid-19 é contemporânea de um sistema mediático determinado pela omnipresença dos media sociais, dos múltiplos ecrãs e da informação circular - horizontal, ascendente e descendente - entre utilizadores e dispositivos digitais.

No século XXI, a convergência e a mobilidade do digital instauraram uma permanente “crise” no jornalismo, caracterizada pela falência de muitos projetos, causada pela concorrência direta das redes sociais e de conteúdos gratuitos online (Zelizer, 2004; 2009; 2017), a que se seguiu a venda, e endividamento, dessas empresas a sectores empresariais que lhes são estranhos (Deuze, 2019). A informação tornou-se ubíqua, mas apenas uma pequena parte continua a ser trabalhada por jornalistas (Fidalgo, 2015).

A diversificação de produtos, e de formas de acesso a notícias, constantemente atualizadas, implicou uma circularidade na web entre os diferentes media, sítios de notícias online e redes sociais, que colocou em causa não só a viabilidade do jornalismo e dos seus modelos de negócios tradicionais, como o ethos profissional dos jornalistas e as suas rotinas produtivas.

A alteração dos hábitos de consumo de informação dos públicos tornou-se, simultaneamente, uma ameaça aos media mainstream e um empoderamento dos cidadãos produsers, como é sublinhado por Casero-Ripollés (2020, p.3): O surgimento de novos hábitos de consumo está a transformar a maneira como os cidadãos atribuem relevância aos assuntos da atualidade. A diversificação e pluralidade de fontes de informação impeliu os cidadãos a formar a sua opinião recorrendo não só aos media mainstream e aos seus sítios, mas também aos media sociais, tais como o Facebook e os serviços móveis de mensagens instantâneas WhatsApp ou Twitter (Digital News Report, 2019). Estas mudanças são observadas como ameaças ao sistema mediático tradicional, à dispendiosa infraestrutura das grandes empresas de media mainstream, bem como à atividade jornalística, na medida em que qualquer cidadão pode veicular informação em tempo imediato.

Em síntese, em tempos de Covid-19, e distintamente do período em que a cobertura jornalística do HIV/SIDA atingiu o seu zénite, o jornalismo apresenta-se como um produto híbrido com características difusas, por vezes próximo do infotainment, que conflitua com a informação de produsers das redes sociais, em que a informação de proveniência não identificada, e veracidade não contestada, promove a visibilidade de notícias falsas.

I. A pandemia de COVID-19 e o ressurgir da televisão

A pandemia de Covid-19 criou uma disrupção no sistema mediático mundial, anteriormente descrito, promovendo em muitos países, nomeadamente da Europa e em Portugal, condições para um jornalismo de responsabilidade cívica e cidadã. A televisão, dada como morta por muitos autores (Katz & Scannell, 2009; Carlón & Fechine, s.d./2014), recuperou muito da sua centralidade social e doméstica, abrindo-se à informação em tempo real e preenchendo slots de prime-time com a temática da pandemia. A capacidade de a televisão mostrar, incluir e partilhar notícias das redes sociais, ao mesmo tempo de viajar entre ecrãs e dispositivos digitais - do computador portátil ao tablet -, deu-lhe espaço no quotidiano, num tempo em que milhões de pessoas, à volta do mundo, se mantiveram confinadas nos seus domicílios. Em simultâneo, este surto proporcionou disrupções, de que é exemplo a advertência da empresa tecnológica Twitter aos tweets sobre a Covid-19 do presidente Trump, ao conclamar os seguidores para que avaliem a veracidade da informação veiculada.

Em Portugal, os dados sobre o regresso à televisão são evidentes, não obstante estudos recentes continuassem a apontá-la como medium dominante (ERC, 2016, 2019; OBERCOM, 2018; Statista, 2019). No entanto, o isolamento social e a obrigatoriedade de estar em casa, com a subsequente mudança de rotinas domésticas e de trabalho, fizeram aumentar enormemente as audiências das televisões generalistas[1] a partir do mês de março. Segundo os dados da Marktest[2], nesse mês, a RTP1, a SIC e TVI emitiram cerca de 264 horas de informação regular, mais 21,5% do que no mês anterior, num total de 6582 notícias, com relevância para o surto do coronavírus, que na semana de 2 a 8 de março registou um total de 535 notícias e 22 horas de emissão. De salientar a cobertura da TVI com quase 8 horas de emissão e 194 notícias emitidas, situação que se repetiu na semana de 9 a 15 de março.

Como sublinha o jornal Público, estas audiências batem recordes[3]. Para este fenómeno contribuíram, inegavelmente, as conferências diárias de governantes - Presidente da Repúbica (PR), Primeiro-Ministro (PM) e Ministro das Finanças (MF) - e das autoridades sanitárias, Direção-Geral da Saúde (DGS) e Ministra da Saúde (MS). Estes pronunciamentos oficiais, em ambiente solene e rodeados de símbolos nacionais, em horários de jornais televisivos, apresentando dados sobre a pandemia e medidas sanitárias, sociais e económicas, constituíram, para os cidadãos isolados nos seus domicílios, como que um ritual cerimonioso, uma telecerimónia, à maneira dos acontecimentos mediáticos estudados por Dayan e Katz (1999).

Sobretudo na sequência da declaração do estado de emergência, a 18 de março de 2020, os portugueses aumentaram o consumo de informação[4], em busca de dados sobre a temática Covid-19, e recorreram com maior regularidade às televisões, à imprensa, sítios noticiosos e a plataformas oficiais governamentais. Num estudo elaborado pela Marktest, que apurou estes comportamentos, observou-se, também, que os portugueses atribuíram maior credibilidade àqueles meios como fontes fidedignas do que às redes sociais. Neste sentido, os noticiários transmitidos pela televisão foram visualizados por 64% dos espectadores e atingiram um grau de confiança de 86%, seguindo-se os sítios oficiais do Governo, que obtiveram uma procura de 46% -televisao-portuguesa-sao-historicas-1908209 e alcançaram uma confiança de 57%. Já os programas de debate na TV foram vistos por 23% dos espectadores, que manifestaram uma confiança de 44%. Só posteriormente se assinala o consumo de sítios de notícias online, da rádio e dos jornais.[5] Por conseguinte, as televisões adquiriram de novo um papel central como elo social (Wolton, 1994), janela para o mundo, através dos programas noticiosos. A recuperação desta missão própria daquilo que foi designado como paleotelevisão por Eco e Veron, nos anos 70/80 do século passado, assenta na ideia de televisão de utilidade pública, como ferramenta pedagógica baseada no tríptico informar, educar e distrair (Jesper, 1998), capaz de promover unidade e consensos nacionais (Mesquita, 2003). No centro de uma crise sanitária de dimensões imprevisíveis, onde o contacto social físico se tornou um perigo, a televisão instaurou um foro social, um espaço público de partilha de informação e conhecimento, onde atores da sociedade civil, como médicos, epidemiologistas e doentes, foram convocados a partilhar conhecimentos e experiências. Esta deriva vai no sentido da televisão como fonte e veículo de conhecimento comum (Gripsrud, 1999) promotor de uma cidadania informada e de uma democracia participativa.

Assistiu-se, assim, a um fenómeno com contornos coletivos que tendeu a contrariar o sistema mediático híbrido instalado. Num momento de grande incerteza, a proliferação de informação em sítios e nos media sociais, num clima de constante competição, provocou no cidadão comum uma enorme dificuldade em distinguir o essencial do assessório e o verdadeiro do falso. O temor e a desconfiança dos cidadãos face à possibilidade de proliferação das notícias falsas - fabricadas intencionalmente, com recurso ao modus operandi das notícias tradicionais, e colocadas estrategicamente nas redes de forma a desacreditar as instituições e as políticas públicas - geraram necessidade de orientação e a busca por informação credível. Estas circunstâncias empurraram os cidadãos para o jornalismo mainstream. Tal como escreve Casero-Ripollé (2020, p.9):

O surto de coronavírus envolveu o reconhecimento do jornalismo como uma instância essencial nas sociedades do século XXI. Neste caso, os dados, tanto sobre o consumo quanto sobre a avaliação da credibilidade da cobertura jornalística, reafirmam a alta relevância social do sistema mediático no nosso mundo em momentos críticos.

A importância da informação credível, sobre um tema desconhecido de cariz sanitário, foi reconhecida, consensualmente, tanto do lado dos emissores - meios de comunicação, Governo, DGS, e outros - como do lado dos cidadãos/audiências. Esta realidade é comprovada pelo estudo da Obercom sobre O impacto do coronavírus e da crise pandémica no sistema mediático português e global que salienta o facto de as audiências históricas de televisão se concentrarem na informação, enquanto o entretenimento, género-âncora fundamental para as marcas portuguesas, ficou pura e simplesmente parado, em termos de produção (Obercom 2020, p.5). O mesmo estudo observa que foi a televisão e a Internet que concentraram a atenção dos portugueses. Esta última, além de fornecer informação, tornou-se a ferramenta de trabalho, o instrumento capaz de conectar negócios, escritórios, escolas, amigos e familiares à distância. A este respeito o estudo da Obercom salienta (Ibid.):

A maior parte dos consumos de comunicações saiu dos escritórios e passou para as zonas residenciais. Na semana de 16 a 22 de março, em que as escolas foram formalmente encerradas e grande parte dos portugueses passou a estar em teletrabalho, os operadores de telecomunicações registaram naturalmente maiores tráfegos de Internet fixa, mas também de voz fixa e móvel, e maior consumo de serviços de streaming, como a Netflix.

O estudo termina com a referência de que a adaptação dos portugueses aos tempos de pandemia pode ser sintetizada pelo superlativo relativo de superioridade mais associado às seguintes palavras-chave: mais Internet fixa, mais chamadas de voz e maior recurso aos serviços de TV (Obercom 2020, p.15).

II. HIV/SIDA versus COVID-19: coberturas e contextos

Este momento determina, igualmente, uma reflexão à luz da obra de Traquina e das Teorias das Notícias que explora (1993) para explicar e compreender a dinâmica das televisões generalistas na cobertura da pandemia. Está em avaliação não só a linha editorial das televisões mas, também, o alinhamento, a duração das notícias, o comportamento dos pivôs/jornalistas, dos repórteres, as escolhas dos convidados, bem como os cenários utilizados e as suas componentes gráficas.

Ao analisar a cobertura televisiva da pandemia de Covid-19, e tendo em conta os estudos de Traquina e colaboradores, pretende-se observar qual foi a sua orientação teórica. Para tal, consideram-se elementos que apontem para a ideia de notícia como espelho da realidade (Teoria do Espelho); produto de uma seleção num universo finito (Teoria do Gatekeeper); resultado de interações sociais numa organização (Teoria Organizacional) ou construção social de estórias (Teoria Construtivista). Nos trabalhos daquele autor sobre o HIV/SIDA prevalece a orientação teórica da notícia como uma estória (Traquina e al., 2001), advinda da ideia do mundo como uma construção social (Berger e Luckman, 1967), narrada por jornalistas. A ideia de estória não descarta a informação, mas atribui à atividade jornalística a capacidade de reportar acontecimentos que, naturalmente, estão fundamentados em quadros de referência inteligíveis para os seus leitores/receptores. Para que estas estórias sejam narradas convenientemente, as rotinas adquirem saliência, nomeadamente, as que permitem controlar o tempo - o imediatismo, a originalidade, a cacha, horários de produção e divulgação da informação - e o espaço, determinado quer pelo tipo de produto informativo, quer pela linguagem do medium, quer ainda pela visibilidade, proeminência do acontecimento/informação.

Nestes estudos, Traquina e colaboradores concluem que as estórias contadas pelos jornalistas - uma comunidade interpretativa (Zelizer, 1993) ou uma tribo (Maffesoli, 1988; Traquina, 2004) - apresentam algumas características comuns, tais como serem estórias sobre homossexuais; estarem identificadas com o medo, e por isso não terem protagonistas explícitos, apenas fantasmas; apresentarem-se como estórias médicas, com desdobramentos epidémicos e biomédicos.

Outros estudos relativos à década de 80, nos Estados Unidos, citados por Traquina e que lhe serviram de inspiração, identificam quatro fases, ou eras, na cobertura jornalística do HIV/SIDA: a era inicial, a era científica, a era pessoal e a era política (Rogers, Dearing e Chang, 1991). Fases que se apresentam como marcos cronológicos interessantes para analisar a cobertura jornalística da Covid-19, a despeito da percepção inicial apontar para uma maior continuidade e fluidez no processo de cobertura desta pandemia.

Portanto, as categorias de análise e os resultados apresentados por Traquina e colaboradores sobre a problemática do HIV/SIDA são uma referência profícua para o estudo empírico sobre a cobertura jornalística televisiva da Covid-19. Convém, porém, frisar que estas pesquisas tiveram como objeto de análise a imprensa, em suporte papel, diários e semanários. Cada meio tem a sua linguagem, e o jornalismo, como atividade, adquire diferentes características em função do medium, o que implica a adaptação daquelas metodologias às particularidades da televisão.

Num balanço sobre o jornalismo televisivo em Portugal, Cádima (2010, p. 95) conclui que há na construção social da realidade operada pela cobertura jornalística algumas regularidades, nomeadamente um modelo performativo da negatividade, em que a pluralidade é caracterizada pela mobilização de vozes dentro do mesmo espectro, bem como estratégias editoriais que não são inócuas. Acrescenta, ainda, que é uma constante a emoção, dramatização, actualidade trágica e fait-divers que dominam a hierarquização da agenda e, em consequência, formatam a celebração do consenso e do conflito como realidades fechadas sobre si próprias. Outros estudos sobre os telejornais, citados pelo mesmo autor, apontam para jornais televisivos de cerca de 60 minutos, com um padrão composto por três blocos: política nacional; faits-divers e futebol. Salienta-se ainda o ethos dos jornalistas, nomeadamente dos designados pivôs, nas televisões. Pertencentes a uma comunidade interpretativa que tem poder e o utiliza a diferentes níveis, os pivôs são simultaneamente jornalistas e celebridades. Da sua performance depende, em grande parte, o sucesso de uma televisão e do respetivo bloco noticioso, principalmente do prime-time. Como jornalista o pivô determina a vida e a morte de um acontecimento, de um protagonista, ou comentador - exercendo o poder de seleção. Ele utiliza o poder de construção na forma como faz o enquadramento, narra, adjetiva o acontecimento ou ainda promove/desqualifica um entrevistado ou um protagonista. Quando o pivô condiciona o alinhamento, o tempo e a proeminência do acontecimento, recorre ao poder de atribuir saliência, ou seja, visibilidade. Já como celebridade, o pivô é compelido a criar estratégias de identidade e distinção, face aos concorrentes, com base na assunção de características que vão da dicção e do vocabulário utilizado à sofisticação de fazer transparecer proximidade e emoção. Num momento de grande audiência dos telejornais, a concorrência por shares criou condições para que as duas facetas dos pivôs, jornalista e celebridade, concorressem pela visibilidade e pela captura emocional das audiências. Se, por um lado, alguns pivôs reforçaram a sua agressividade, a rivalidade e assertividade política[6], por outro lado, assistiu-se a algo inédito como a campanha Somos todos uma só voz, lançada pela DGS em parceria com os principais canais de televisão de Portugal, subordinada à ideia de que as rivalidades terminam porque há lutas sem concorrência.[7] Torna-se ainda interessante, em paralelo à atuação dos pivôs, mapear a alteração dos estúdios. Com a emergência de um tema novo, associado a um fenómeno inédito, capaz de provocar o lockdown nacional, e mundial, as televisões recorreram ao design gráfico e a softwares especializados no sentido de informar, persuadir, convocar e publicitar a temática.

III. Metodologia e Estudo Empírico

III. 1. Metodologia

Neste artigo, a análise da cobertura jornalística televisiva da pandemia de Covid-19 debruça-se sobre um corpora constituído por 306 peças noticiosas dos canais generalistas e free to air RTP1, SIC e TVI, emitidas nos blocos informativos da hora do almoço (153 peças) e do prime-time (153 peças), entre 2 de março, data da confirmação dos primeiros infetados em Portugal, e 18 de março de 2020, com a declaração do estado de emergência[8].

A recolha das peças refere-se às primeiras três notícias sobre o tema, independentemente da sua posição no alinhamento, do género jornalístico e da classificação como headline. Por exemplo, na edição de 3 de março do Jornal das 8 da TVI, a primeira notícia sobre a Covid-19 surge na 7.ª posição no alinhamento e foi contada como a primeira peça selecionada sobre o tema, e assim sucessivamente.

A metodologia utilizada é quantitativa e fundamenta-se no levantamento de dados, privilegiando o tratamento numérico das informações e dos fenómenos. A finalidade destes procedimentos é extrair elementos que permitam fazer inferências válidas, replicáveis e objetivas da substância da(s) mensagem(s), com vista à compreensão dos fenómenos analisados. Com este objetivo procede-se à análise de conteúdo, técnica de investigação aplicável a todos os meios de comunicação. Esta análise procura a objetividade e a sistematização no processo de levantamento de conteúdos manifestos e tem como finalidade apontar indicadores para a generalização dos dados recolhidos em contextos semelhantes (Bauer & Gaskell, 2002). A utilização da análise de conteúdo, neste corpora específico, poderá contribuir para se responder às seguintes questões de investigação: i) quais os padrões de cobertura da pandemia de cada canal de televisão incluído na amostra ; ii) quais os temas com maior relevância no conjunto dos canais e em cada um deles; iii) quais os protagonistas com maior relevância no conjunto dos canais e em cada um deles; iv) que cenários, em direto e em arquivo, são mais utilizados nas peças, no conjunto dos canais e em cada um; v) que vozes (especialistas, cidadãos, políticos, infetados, profissionais e outros) estão presentes nos blocos noticiosos de todos os canais e de cada um em particular; vi) que alterações são identificáveis nas rotinas e nos procedimentos dos jornalistas, nomeadamente nos pivôs e repórteres; vii) que mudanças são identificáveis nos estúdios.

Para responder a estas interrogações foram formuladas categorias unívocas de análise, isto é, categorias fundamentadas teoricamente e justificadas, de forma a atenuarem as ambiguidades de interpretação, utilizando-se para tal um instrumento de registo de definições. Este percurso, que envolveu uma fase de pré-análise e posterior consolidação de categorias, foi parametrizado no programa FileMakerPro. As categorias adotadas posteriormente obedeceram não só aos resultados dos testes de pré-análise, como à leitura de textos teóricos referidos no ponto I e II. São elas: Canal, Bloco Noticioso, Data, Alinhamento; Pivô; Género Jornalístico; Direto; Conferência de Imprensa; Covid-19; Protagonista; País Principal; Temas; Entoação do Pivô/repórter; Cenários; Entrevista em Estúdio.

A finalidade desta análise é responder às questões anteriormente enunciadas e, para tal, a análise de conteúdo é imprescindível. Esta abordagem é complementada com o recurso a instrumentos de análise qualitativa - papel do design gráfico - no sentido de explicitar as mudanças nos estúdios.

IV. 2. Estudo Empírico

Apresenta-se em seguida a análise das 306 peças recolhidas nos blocos noticiosos da hora do almoço e do prime-time dos canais RTP1, SIC e TVI transmitidas entre os dias 2 - anúncio da identificação do primeiro infetado - e 18 de março de 2020, aquando da declaração do estado de emergência.

Na análise da categoria Covid-19, os assuntos foram largamente abordados por todos os canais televisivos, no universo de peças considerado para este estudo, ainda que em moldes diferenciados (Figura 1).

 

 

Nas três primeiras peças dos alinhamentos sobre o surto de coronavírus, incluindo headlines e peças de abertura, RTP, SIC e TVI tenderam a privilegiar, no tratamento da Covid-19, o assunto Balanço. Os noticiários que mais atenção deram a este tópico foram os da SIC: Primeiro Jornal (45,1% das peças exibidas neste noticiário que integram a amostra) e Jornal da Noite (35,3%). Também o Jornal da Tarde da RTP1 assinalou a importância daqueles balanços com 31,4% das peças exibidas nos seus blocos informativos. Nestas peças recorre-se a uma semântica própria para descrever as diferentes situações clínicas e respetiva evolução diária, inspirada na terminologia das autoridades de saúde nos seus boletins: Infetados, Recuperados, Suspeitos ou Sob vigilância e Mortos. RTP e SIC convergiram na saliência dada a Medidas de Confinamento, RTP e TVI destacaram mais Epidemia. Quanto às Medidas de Confinamento, tiveram o seu ponto mais forte no Primeiro Jornal da SIC (25,5%), seguindo-se o Telejornal com 23,5%. Tanto no Jornal da Tarde da RTP1 como no Jornal da Noite da SIC as Medidas de confinamento tiveram um peso de 17,6%. Os noticiários da TVI deram uma particular atenção aos assuntos relacionados com a Epidemia: no Jornal da Uma, com 56,9%, e no Jornal das 8, com 51,0%. Este assunto é também reportado pelos noticiários da RTP1 com maior incidência no Jornal Tarde (21,6%) do que no Telejornal (13,7%). Todos os canais destacaram ainda transversalmente o Estado de Alerta ou o Estado de Emergência, na iminência de os poderes públicos decidirem medidas mais vigorosas para controlar a propagação do vírus; o Sistema de Saúde, perscrutando-se globalmente a capacidade de resposta hospitalar ao surto; e as Orientações da Direção-Geral de Saúde em matéria de precauções sanitárias. As Orientações da Direção Geral de Saúde mereceram uma atenção semelhante entre os canais: enquanto no Jornal da Tarde da RTP1 obteve um peso de 11,8%; no Telejornal da RTP, no Jornal da Noite da SIC e no Jornal das 8 da TVI registou-se um valor igual de 9,8%. Alguns tópicos estão mais imediatamente conectados com acontecimentos concretos, como Cerca Sanitária, relacionada com a adoção de medidas específicas para controlar o surto na região de Ovar.

Na análise da categoria Temas relacionados com a cobertura jornalística da pandemia (Figura 2), verifica-se uma forte incidência das três estações televisivas em Infetados e Medidas de Contenção.

 

 

Foram os noticiários da hora do almoço que deram maior atenção ao tema Infetados: no Primeiro Jornal da SIC regista-se 41,2% de peças sobre este tema; no Jornal da Uma da TVI o valor é de 37,3%; e no Jornal da Tarde da RTP1, 35,3%. Já nos noticiários da noite, o Jornal da Noite da SIC lidera a atenção mediática deste tema com 37,3%, enquanto o Jornal das 8 da TVI recolhe 21,6% e o Telejornal da RTP1, 15,7.

Quanto às Medidas de Contenção, foram largamente reportadas nos noticiários da tarde e da noite da RTP1, respectivamente 37,3% e 47,1 % das peças exibidas nestes noticiários que integram a amostra. Também os noticiários da TVI deram saliência às Medidas de Contenção, sendo que o Jornal das 8 e o Telejornal apresentam um valor semelhante de 47,1%, enquanto o Jornal da Uma exibiu 31,4% de peças sobre esta temática.

Nota-se ainda que o Telejornal da RTP1 assinala também a importância do tema Medidas de Saúde Pública com um valor de 21,6%.

Nesta fase, a Crise Económica ainda é pouco refletida nas primeiras peças dos alinhamentos dos jornais televisivos, assim como medidas mais genéricas de Emprego, Política Interna ou Política Europeia.

Os protagonistas das peças analisadas são diversos e com tendência a uma menor concentração comparativamente com os temas (Figura 3).

 

 

No Jornal da Tarde da RTP1 os Protagonistas foram sobretudo Doentes (23,5%), o mesmo sucedendo nos dois blocos informativos da SIC (Primeiro Jornal: 39,2%; Jornal da Noite: 27,5%). Nas peças analisadas, os doentes são entidades anónimas, sem rosto, que concentram toda a atenção porque representam simultaneamente a corporização do vírus e a sua progressão na comunidade.

A ministra da Saúde foi a protagonista que se destacou nos jornais de prime-time da RTP 1 (21,6%) e da TVI (13,7%). Os repórteres evidenciaram-se como protagonistas no Jornal da Uma da TVI (19,6%).

Numa apreciação mais lata, nas peças analisadas observou-se, em primeiro lugar, o protagonismo de fontes políticas do ou ligadas ao Governo na gestão da crise, destacando-se o Primeiro-Ministro, a Ministra da Saúde, a Diretora-Geral de Saúde e o Ministro da Administração Interna. O Presidente da República foi outro protagonista político que se destacou na resposta dos órgãos de soberania ao surto, mas também na condição de auto-confinado. Tratando-se de um problema que afetou de forma distinta várias regiões do país, os autarcas também adquiriram saliência nas primeiras peças dos alinhamentos no período em análise. No conjunto de peças que compõem a amostra, o Parlamento e os partidos políticos praticamente não tiveram expressão. Outro grupo que adquiriu protagonismo é integrado pelos doentes e pela população, cidadãos comuns que combatem a infeção ou lidam com as consequências do confinamento no seu quotidiano.

O protagonismo das peças analisadas foi conferido, de forma mais dispersa, a profissionais ligados a áreas fulcrais: saúde, proteção civil e ensino.

Por fim, os próprios pivôs e repórteres assumiram protagonismo na cobertura jornalística da pandemia. É mitigado o protagonismo de líderes internacionais ou europeus identificado nas peças da amostra, o que se explica pelo enfoque esmagadoramente nacional das primeiras peças dos alinhamentos sobre a Covid-19.

Conferências de Imprensa, Hospitais, Ruas e Cidades, Estúdio e Salas de Reunião foram as imagens que com mais frequência enquadraram visualmente as peças analisadas nos três canais televisivos (os “cenários”). Na RTP1, no Jornal da Tarde, os cenários foram maioritariamente Hospitais e Conferências de Imprensa (respetivamente, 29,4% e 19,6%). No Telejornal, Conferências de Imprensa (29,4%) e Ruas e Cidades (17,6%) foram os mais comuns. Na SIC, no Primeiro Jornal predominaram imagens de Estúdio (23,5%) e Hospitais (35,3%), enquanto no Jornal da Noite se destacaram como cenários Hospitais (47,1%) e Conferência de Imprensa (19,6%). Na TVI, no Jornal da Uma, os cenários foram maioritariamente Hospitais (39,2%) e Salas de Reunião (23,5%). Já os cenários do Jornal das 8 corresponderam na maioria a Hospitais (25,5%), Ruas e Cidades (25,5%) e Estúdio (17,6%) (Figura 4).

 

 

Verificou-se igualmente, de modo transversal, o recurso sistemático e repetitivo às mesmas imagens de arquivo para ilustrar diferentes peças e contextos, sobretudo mostrando o exterior e o interior de hospitais, onde portas se fecham e abrem, se vislumbram equipamentos médicos e circulam profissionais de saúde ou pacientes.

Nas peças analisadas o país de que se fala é Portugal: na RTP1, no Jornal da Tarde em 98% das peças e no Telejornal em 92,2%; na SIC, no Primeiro Jornal em 98% e no Jornal da Noite em 88,2%; na TVI, no Jornal da Uma em 98% das peças e no Jornal das 8 em 82,4%. Ainda assim, por se tratar de uma pandemia, peças sobre a Europa, em particular de Itália, e do mundo são referenciadas, sobretudo nos noticiários da noite. No Jornal das 8 da TVI são exibidas peças relativas à pandemia no mundo (5,9% das peças), Europa (3,9%), Itália (3,9%), China e EUA (2% cada). Já o Telejornal da RTP1 mencionou o tema tendo como contexto geográfico o mundo e Itália (em 3,9% das peças cada). O Jornal da Noite da SIC referiu a Europa em 7,8% e o mundo em 3,9%.

Deve notar-se que o corpus de análise inclui apenas as três primeiras peças exibidas sobre a doença, pelo que os resultados sobre o enfoque geográfico devem ser interpretados como sinalizando a primazia editorial dada à situação em Portugal, ainda que sem se ignorar as circunstâncias de outros países, sobretudo europeus. Com efeito, a internacionalização deste assunto acompanha a progressão da pandemia na Europa e no mundo e os blocos noticiosos assinalaram este fenómeno apresentando gráficos e mapas geográficos com números. Estes dados atestam, também, a importância e o peso que as informações internacionais tiveram na cobertura jornalística da Covid-19.

Complementarmente à análise de conteúdo, está a observação do contexto físico, os estúdios, onde decorre a apresentação dos blocos televisivos. Ao longo do período em análise, os estúdios computarizados, digitalizados e desenhados de forma gráfica adquiriram grande protagonismo, principalmente nas televisões privadas, SIC e TVI.

A omnipresença do tema Covid-19 na sociedade portuguesa, e no mundo, reflete-se no alinhamento dos blocos noticiosos, fazendo desaparecer progressivamente temáticas que dominam, normalmente, grande parte dos cerca de 60m, ou mais, dos jornais televisivos. O futebol, as tricas partidárias e os fait-divers vão desaparecendo e dão lugar às diversas dimensões sanitárias, políticas e económicas da pandemia. O design gráfico dos estúdios passa, assim, a incorporar estes elementos e a atribuir visibilidade, materialidade e colorido à situação vivenciada pelos espectadores. Para isso contribuem as dimensões simbólica, epistémica e estética do design a que se juntam as competências técnicas do digital e da informática, com o recurso a programas e softwares específicos (Barnard, 2005). Em uníssono os estúdios de televisão aberta tematizaram visual e graficamente o vírus desconhecido da pandemia. Em torno deste tema, foram criadas imagens-síntese que incorporaram não são aspetos estéticos e decorativos significativos, como elementos informativos determinantes, como dados de infetados, recuperados e mortos em Portugal e no mundo.

Ilustra-se estas observações com imagens captadas na RTP1, SIC e TVI. Nestas frames, apresentadas como exemplos, observa-se a exuberância do design gráfico dos estúdios, a tematização poética do vírus e as diferentes paletas cromáticas, que apontam para a identidade, numa perspetiva de branding, de cada estação televisiva.

 

 

 

Nota-se, ainda, ao longo do período de 2 a 18 de março, a crescente proeminência do papel do jornalista, principalmente entre os que apresentam os blocos noticiosos do prime-time. Estes pivôs tendem a iniciar os noticiários com textos emocionais e apelativos, tais como:

Estamos a enfrentar enquanto povo e enquanto civilização um teste sem precedentes. O ambiente é praticamente de guerra, mas em silêncio. O inimigo aqui é invisível e silencioso...” (José Alberto de Carvalho, TVI, Jornal das 8; 13.03; 19.58.23);

Uma pandemia é o pior dos cenários de uma doença infecciosa. O vírus vem normalmente de um animal e neste estágio o risco para o homem é baixo, mas quando dá o salto na barreira das espécies e o vírus é transmitido ao homem, então começa verdadeiramente o perigo. A transmissão entre humanos propaga-se e propaga-se e se não for parada a migração da doença faz com que a doença chegue a todos os países e a pandemia é quando a doença chega a todos os continentes (João Adelino Faria, RTP1, 11.03.2020; 20:01:22); Como estamos todos desde ontem? Espero que bem. Preocupados, como é compreensível. Mas quero acreditar que estaremos fortes para esta luta que ainda vai piorar antes de melhorar. (...) Deixe-me relatar isto. Em prédios mais antigos do país onde residem pessoas idosas, muitas vezes sozinhas, há por esta altura vizinhos mais jovens que estão a deixar recados nas portas a dizer ‘Estou disponível para ir fazer-lhe compras do que necessite para não ter de sair de casa’. Quando queremos, sabemos ser um grande povo e vamos prová-lo mais uma vez (Rodrigo Guedes de Carvalho, SIC, 13.03.2020; 19:59:48).

Estes textos antecedem os blocos informativos e têm, também, um cariz didático, no sentido de apoiar as diretivas da Direção-Geral da Saúde sobre comportamentos face à pandemia.

Acresce que as circunstâncias relativas à pandemia mudaram o modus operandi dos jornalistas. Por exemplo, no Jornal das 8 da TVI (02.03.2020; 20:00:46), o repórter Vítor Pinto reporta mudanças no Hospital de São João do Porto, assinala as medidas de segurança para o hospital e pessoal profissional. Faz aconselhamento sobre as medidas de segurança bem como os serviços médicos a contactar para quem tem suspeitas de ter estado próximo de pessoas infetadas. Neste caso, como em outros, os repórteres assumem principalmente um papel didático, explicando os detalhes da doença, os cuidados que a população deve ter para se proteger do perigo do contágio, bem como expõem o que significa o estado de Alerta, Contenção, Mitigação ou Emergência.

Advertem ainda para a credibilidade da informação que circula noutras sedes sobre a pandemia, assim reclamando um espaço de legitimidade e de centralidade ao jornalismo como fonte de informação fiável sobre o surto. O que sucede, por exemplo, na edição de 12 de março do Primeiro Jornal da SIC, na qual Bento Rodrigues assinala: até agora não há qualquer vítima mortal. Circulam informações nas redes sociais e até em alguns órgãos de comunicação social para dizer que sim. Não acredite. Até agora felizmente não há qualquer vítima mortal confirmada.

Conclusão

Um período de exceção como o que se vivenciou com o lockdown nacional e internacional determinou uma cobertura jornalística televisiva ímpar. A singularidade do momento traduz-se, no período analisado, de 2 a 18 de março, no crescente aumento do número de notícias sobre o tema, bem como na sua proeminência no alinhamento. O desafio lançado pelo vírus e pela pandemia agregou responsáveis de saúde e media mainstream em Portugal, com vista a informar, esclarecer e orientar os cidadãos. A construção da notícia recorreu a uma dupla rotina: as rotinas próprias do jornalismo televisivo, que envolvem os diretos, as reportagens, os testemunhos da população e as imagens de arquivo; as rotinas relativas à pandemia do Ministério da Saúde, da Direcção-Geral de Saúde e do Governo.

Este contexto da cobertura jornalística da Covid-19 distancia-se da cobertura jornalística do HIV/SIDA. Enquanto a identificação da Covid-19 como valor-notícia é, praticamente, imediata e antecede a sua chegada a Portugal, no HIV/SIDA há um tempo longo para que adquira valor de noticiabilidade. Independentemente de nos primórdios a pandemia ter sido, esporadicamente, conotada com o vírus chinês ou o vírus da China, não há, na cobertura jornalística, uma associação discriminatória a comportamentos, ou a um grupo específico.

Nos estudos de Traquina e colaboradores que incidiram sobre a imprensa, a orientação teórica foi entender as notícias sobre o HIV/SIDA como uma estória. Na cobertura jornalística da Covid-19 também podemos constatar esta tendência em grande parte das peças. Contudo, em função do gentleman’s agreement entre DGS e media mainstream, as autoridades de saúde adquiriram um papel proeminente como gatekeepers, determinando a informação e o ângulo das notícias, como se comprova nos temas com maior visibilidade, identificados no estudo empírico (designadamente, Infetados e Medidas de Contenção).

Neste estudo exploratório indicia-se adesão aos definidores primários da informação, à forma como definem a agenda e enquadram a problemática. As crescentes limitações à mobilidade dos jornalistas, por razões de segurança e saúde pública, reforçam a dependência de eventos organizados por aqueles protagonistas, do Governo ou da esfera do poder executivo, que controlam a resolução da crise, como sejam reuniões e conferências de imprensa. O Presidente da República, outra face política protuberante, notabiliza-se na gestão do surto, mas também, na condição de suspeito, quando cancela a agenda e aguarda, auto-confinado, pelos resultados do teste médico. O Presidente da República sobressai nessa dupla qualidade de Chefe de Estado e cidadão comum, mas pouco, porque tem rosto e se destaca do coletivo anónimo em risco.

Na cobertura desta temática, assiste-se, tal como no HIV/SIDA, mas de forma explícita e imediata, à introdução de elementos médicos e biomédicos, com vista à adopção de comportamentos preventivos e profiláticos. A estória da Covid-19 torna-se, nas televisões portuguesas, uma construção social, com diversos protagonistas - autoridades (diretora-geral da Saúde, ministra da Saúde), especialistas (epidemiologistas e médicos) e heróis, como os profissionais de saúde - e cenários, como as conferências de imprensa, as salas de reunião, os estúdios e os hospitais.

Os jornalistas, nomeadamente os repórteres e os pivôs, adquirem maior proeminência por serem os profissionais e o rosto visível de uma atividade essencial - informar - num momento em que os cidadãos se encontram em isolamento e com grande necessidade de orientação. O ethos jornalístico, principalmente a ideia de serviço ao público, como missão, parece aflorar nos diversos textos protagonizados pelos pivôs em determinados jornais televisivos. Esta dimensão associa-se ao que já foi referido, na construção gráfica dos estúdios Covid-19, bem como à ideia de celebridade assumida por alguns dos pivôs do prime-time, que convocam a sua exposição mediática para “orientar” os espectadores/cidadãos face à pandemia. Estas características distanciam e aproximam a cobertura jornalística do HIV/SIDA da Covid-19. A aproximação vem por meio das dimensões de informar, educar e prevenir. O distanciamento fundamenta-se, em primeiro lugar, no facto de a primeira se debruçar sobre a imprensa e a atual pandemia na televisão. O medium determina a linguagem e as características da mensagem. Em segundo lugar, as rotinas delimitadas e rígidas da imprensa contrapõem-se às rotinas mais flexíveis da cobertura televisiva desta pandemia, que alargou blocos noticiosos, encaixou declarações e conferências de imprensa, bem como reportagens e comentários extensos de pivôs. Um outro factor de diferença está relacionado com a atuação do jornalista. Assim, os estudos sobre o HIV/SIDA apontam para uma cobertura que espelha um ethos comum à tribo, já na cobertura da Covid-19, e dado o compromisso com as autoridades sanitárias (DGS), há uma recuperação do ethos fundador do jornalismo. Esta retomada da missão original do jornalismo faz-se, contudo, sem abdicar de estratégias próprias ao jornalismo televisivo, como o grafismo dos estúdios e “alguma” linguagem apelativa próxima ao infotainment (Brant, 2005; Echverría, 2017). Assistiu-se, por conseguinte, a um fenómeno singular na cobertura televisiva da pandemia que, no período analisado, tendeu a contrariar o sistema mediático híbrido instalado.

Por fim, sublinha-se que, momentaneamente e, talvez de forma “única”, o jornalismo televisivo retomou os seus valores fundadores, tanto no que diz respeito à função informativa de priorizar a notícia - tornar a mensagem perceptível para o grande público - como de ser fonte fidedigna de conhecimento público universal. A ética jornalística regressa ao quotidiano informativo das televisões ao disponibilizar informação precisa, objetiva e de utilidade pública, apesar de “embrulhada” num clima emocional constante, sobretudo presente nos cenários, nas “introduções” e “comentários” protagonizados pelos pivôs. Neste sentido, a crise do jornalismo em Portugal parece ter ficado congelada, de 2 a 18 de março de 2020, pelo aumento de audiências e relevância da informação disponibilizada aos cidadãos, embora se tenha agravado a crise económica do universo empresarial do sector da Comunicação Social.

 

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Agradecimentos

Para a realização deste artigo, impõe-se um agradecimento à Marktest/ Mediamonitor, pelo acesso concedido ao serviço e-telenews, possibilitando a recolha do corpus empírico deste estudo, e a Reinaldo Serrenho, que colaborou na criação da base de dados e na extração dos resultados.

 

Submetido | Received: 2020.06.16. Aceite | Accepted: 2020.07.06

 

Notas biográficas

Ana Cabrera é Investigadora no Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa. O seu trabalho desenvolve-se no âmbito da Comunicação Política, Media e Estudos de Género.

Instituto de História Contemporânea, Universidade Nova de Lisboa

Ciência ID: 9611-32B6-EC8F. Scopus Author ID: 57160727800 Email: anacabrera@fcsh.unl.pt

Morada institucional: Av. de Berna, 26 C, 1069-061 Lisboa, Portugal

 

Carla Martins é Professora da Universidade Lusófona de Humanidade e Tecnologias e investigadora integrada do Instituto de Comunicação da Nova (ICNova). Coordenadora da Unidade da Transparência dos Media da Entidade Reguladora para a Comunicação.

Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, ICNOVA - Instituto de Comunicação da Nova

Ciência ID: A419-9671-6152. Email: carla.martins@erc.pt

Morada institucional: Av. de Berna, 26 C, 1069-061 Lisboa, Portugal

 

Isabel Ferin Cunha é Professora Associada/Agregação (aposentada) da Universidade de Coimbra. Foi coordenadora de Projetos FCT, área da Comunicação Política. Investigadora integrada do Instituto de Comunicação da Nova (ICNOVA).

Ciência ID: B411-9FD4-B5FB. Scopus Author ID: 56398491100 Email: barone.ferin@gmail.com

Morada institucional: Av. de Berna, 26 C, 1069-061 Lisboa, Portugal

 

[1] Cfr.: https://eco.sapo.pt/2020/04/01/consumo-de-tv-dispara-40-audiencia-dos-espacos-de-informacao-cresce-com-a-pandemia/

[2] Cfr. https://www.marktest.com/wap/a/n/id~261f.aspx

[3] Cfr. https://www.publico.pt/2020/03/17/culturaipsilon/noticia/parte-pais-casa-audiencias-

[4] Cfr. Estudo encomendado pelo GrupoM, realizado pela Marktest https://observador.pt/2020/04/16/covid-19-estudo-revela-que-portugueses-confiam-nos-media-e-desconfiam-das-redes-sociais/

[5] Cfr. https://observador.pt/2020/04/16/covid-19-estudo-revela-que-portugueses-confiam-nos-media-e-desconfiam-das-redes-sociais/

[6] Cfr. “Pivots de telejornais acometidos de um estranho vírus”. Dinheiro Vivo. Duarte Mexia, 14.05.2020 / 16:33 https://www.dinheirovivo.pt/opiniao/pivots-de-telejornais-acometidos-por-um-estranho-virus/.

[7] Cfr. “Pivots da RTP, SIC, TVI e CMTV juntos a uma só voz contra o COVID-19”. Marketeer,15:12, 14 Abr, 2020. https://marketeer.sapo.pt/pivots-da-rtp-sic-tvi-e-cmtv-junto-a-uma-so-voz-contra-o-covid-19..

[8] A análise foi feita a partir do acesso concedido pela empresa Marktest/Mediamonitor, serviço e-telenews.

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