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Media & Jornalismo

versão impressa ISSN 1645-5681versão On-line ISSN 2183-5462

Media & Jornalismo vol.20 no.37 Lisboa dez. 2020

https://doi.org/10.14195/2183-5462_37_8 

ARTIGO

As entrevistas televisivas

Television Interviews

Adriano Duarte Rodrigues*

* Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas adrodrigues42@gmail.com


 

RESUMO

As entrevistas televisivas são atividades interacionais que merecem especial atenção, porque mostram a maneira como cada um dos participantes entende o lugar que nelas ocupa de acordo com a maneira como categoriza a sua identidade, observando o modo como escolhe adotar em cada momento os comportamentos apropriados e o modo como se apropria dos recursos de que dispõe para desempenhar as tarefas que entende realizar. Mas as entrevistas televisivas mostram, antes de mais, que nas atividades interacionais que nelas realizam, as pessoas aplicam regras e obedecem a normas específicas do ambiente constituído pelo funcionamento do próprio dispositivo televisivo. É por isso uma atividade que nos revela, não só como se dá a constituição do ambiente televisivo, mas também a maneira como as pessoas nele envolvidas se apropriam das regras e das normas que regulam as interações que nele têm lugar.

Palavras chave: ambiente mediático; categorização; entrevista televisiva; etnometodologia; norma; pressuposto


 

ABSTRACT

Television interviews are interactional activities that deserve special attention, because they portray the way in which each participant understands the place that they fill in it according to the way their identity is categorized, noticing the way in which they choose to adopt adequate behaviours at any given time and how they appropriate the resources they have to perform the tasks they intend to perform. But, first and foremost, television interviews show that, in the interactional activities that take place in them, people apply certain rules and obey specific norms of the environment which is constituted by the functioning of the television device itself. Hence, it is an activity that portrays, not only how the television environment is constituted, but also the way in which the people involved in it appropriate the rules and norms that regulate the interactions that take place in it.

Keywords: media environment; categorization; television interview; intervention; norm; assumption; rule.


 

Introdução

As entrevistas televisivas são um género discursivo que se foi de tal modo impondo, ao longo do tempo, que acabou por se tornar uma das atividades regulares das empresas de televisão, utilizando recursos interacionais que podemos igualmente encontrar noutros géneros como, por exemplo, os telejornais, os debates e as reportagens.

O interesse do estudo das entrevistas televisivas decorre sobretudo do facto de revelarem fenómenos comunicacionais específicos dos ambientes constituídos pelo próprio dispositivo televisivo, fenómenos que teremos a oportunidade de ir descobrindo ao longo deste estudo.

Apesar de ser um género discursivo específico, a entrevista televisiva pode apresentar diversas modalidades, quer autónomas quer integradas noutros programas televisivos. Do ponto de vista do número de participantes, podemos distinguir as entrevistas em que um único entrevistador interage com um único entrevistado, das entrevistas em que vários entrevistadores interagem com um único entrevistado, das entrevistas em que um único entrevistador interage com vários entrevistados e das entrevistas em que vários entrevistadores interagem com vários entrevistados, como nos debates. Se tivermos como critério as temáticas abordadas, podemos distinguir entrevistas sobre questões partidárias, sobre responsabilidades políticas ou sociais, sobre descobertas científicas, sobre atividades artísticas ou obras literárias, ou sobre atividades filantrópicas, sobre questões da vida cotidiana colocadas a pessoas anónimas encontradas inesperadamente, por exemplo, numa praia ou numa feira, para falarem dos ambientes vividos nesses ambientes.

As entrevistas televisivas partilham com as entrevistas da imprensa escrita e radiofónicas características comuns que têm merecido a atenção dos estudiosos (Almeida 2012), mas não é objetivo deste estudo tratar dessas relações. O meu objetivo neste estudo consiste apenas em apresentar esquematicamente a atitude que considero mais apropriada para dar conta dos fenómenos específicos que se manifestam nas entrevistas televisivas, a partir da observação de alguns exemplos de entrevistas de um único entrevistador a um único entrevistado emitidas pela RTP e pela SIC. Começarei por isso por apresentar de maneira sumária a natureza desta atitude.

A atitude etnometodológica

Têm sido sobretudo os investigadores das ciências da linguagem que adotam a perspetiva interdisciplinar a que se convencionou dar o nome de pós-estruturalista (Capucho 2004; Gonçalves-Segundo 2016) que nos últimos anos têm dedicado à entrevista jornalística particular atenção. A atenção que a entrevista televisiva tem vindo a merecer por parte destes estudiosos tem a ver com a relativamente recente redescoberta da importância a linguagem oral e do seu papel fundamental enquanto dispositivo interacional de construção da sociabilidade, como resultado da viragem fenomenológica que se tem verificado nas ciências sociais em geral e das ciências da linguagem em particular. É provável que a relativa pouca importância que a entrevista televisiva tem merecido da parte dos estudiosos da comunicação tenha a ver com o predomínio das perspetivas sistémicas nesta área de conhecimento e com a consequente pouca importância que nela é dada às abordagens interacionais derivadas da perspetiva fenomenológica.

A maior parte dos estudos da comunicação adota perspetivas que pretendem averiguar o sentido das posições defendidas pelos participantes, esquecendo que o sentido dos enunciados que eles produzem depende da ordem interacional que regula localmente a sua ocorrência. É por isso que, a meu ver, estes estudos não adotam a atitude fenomenológica adequada para a adoção de uma disponibilidade para identificar os pontos de vista dos próprios participantes nas entrevistas, a atitude que permite dar conta, de maneira tão precisa quanto possível, das regras que eles aplicam e das normas a que obedecem, em cada momento, tanto para escolherem os comportamentos apropriados como para entenderem os comportamentos dos outros participantes.

É para poder dar conta da maneira como os participantes nas entrevistas aplicam as regras que regulam a atividade interacional e como obedecem às normas que se aplicam em cada momento, é para poder entender como eles vão constituindo localmente o sentido daquilo que dizem e dos comportamentos que adotam que, em vez de seguir um método de pesquisa próprio, proponho antes descobrir o método que os próprios intervenientes nas entrevistas televisivas observadas seguem. Como Harold Garfinkel (2018, p. 93 e ss.) dava o nome de etnométodos aos processos que as pessoas utilizam para adotarem os comportamentos quando interagem entre si, damos o nome de etnometodologia à perspetiva ou à atitude que pretendo adotar para a elaboração deste estudo. De entre os trabalhos portugueses e brasileiros sobre entrevistas televisivas que seguem esta perspetiva podemos ler Braga 2006; Morales 2013; Vieira 2003.

O facto de o investigador pertencer à mesma cultura das pessoas que observa e de, por conseguinte, aplicar as mesmas regras e respeitar as mesmas normas que elas aplicam e respeitam quando interagem entre elas dificulta a perceção dos fenómenos que pretende observar, uma vez que, por lhe parecerem naturais, tendem a passar despercebidos. Para ultrapassar esta dificuldade, Garfinkel costumava utilizar como recurso um procedimento a que dava o nome de breaching experiment, designação que ele dava à estratégia que consistia em provocar uma rutura das expetativas, de modo a poder observar e registar a reação que essa rutura provocava nas pessoas e, deste modo, descobrir qual a regra que não teria sido aplicada ou a norma que não teria sido respeitada.

As entrevistas televisivas oferecem ao investigador interessantes casos análogos aos que Garfinkel pretendia provocar com estes breaching experiments, com a vantagem de não serem provocados pelo investigador e de serem, por conseguinte, independentes da sua intervenção. Podemos observar estes casos quando os entrevistadores ou os entrevistados adotam comportamentos que não são aqueles que esperaríamos que eles adotassem, revelando deste modo, pela negativa, as regras que regulam a atividade comunicativa em que eles estão envolvidos.

As ruturas mais notáveis em relação às expetativas que podemos observar nas entrevistas televisivas ocorrem quando é o próprio entrevistado que formula perguntas ou toma a iniciativa de terminar a entrevista. O desconforto provocado pela ocorrência destes casos e a necessidade de justificação que os participantes sentem quando eles ocorrem são os principais fenómenos que mostram que se trata de comportamentos que violam regras específicas das entrevistas televisivas, deste modo revelando que é ao entrevistado que incumbem as funções tanto de fazer perguntas como de dar por terminada a entrevista. Podemos observar um exemplo célebre destes dois tipos de rutura no seguinte excerto de uma entrevista da SIC Notícias de 26 de Setembro de 2007, de Ana Lourenço a Pedro Santana Lopes:

Excerto 1: Entrevista de Ana Lourenço (AL) a Pedro Santana Lopes (SL) e o repórter Pedro de Freitas (PF)

(SIC 27 de Setembro de 2007

AL Doutor Santana Lopes, tenho que interromper por alguns instantes. Vamos já em direto para o aeroporto da Portela, onde está o repórter Pedro de Freitas que acompanha a chegada de José Mourinho a Portugal. Boa noite, Pedro

PF A dizer então que José Mourinho chegou num avião particular aqui ao e aeroporto da Portela. De resto, há que recordar que é um técnico que fez enorme sucesso em Inglaterra. Conquistou dois títulos no campeonato inglês, duas taças da Liga, uma taça de Inglaterra em Wimbley e nesta altura sobre esta sua saída algo polémica do Chelsea a verdade é que José Mourinho ((a reportagem continua))

AL Pedro Freitas em direto do aeroporto da Portela. Vamos então deixar José Mourinho descansar neste seu regresso a Portugal. Regresso agora à conversa com o Dr. Pedro Santana Lopes. Estava-nos a falar estava=

PSL =Sabe onde é que estava?=

AL =Sei. Estávamos a falar=

PSL =E acha que isto justifica? Desculpe lá a pergunta.

AL (.) Vamos=

PSL =Já que estamos a falar de correção, acha que isto justifica

AL =a interrupção da entrevista

PSL José Mourinho é muito mais importante que qualquer um de nós sem dúvida nenhuma. Eu aí. E a chegada dele põe o país em delírio. Este problema do sistema político e dos partidos não interessa nada. Eu só lhe pergunto se é assim que o país anda p’rá frente. (...) As senhoras convidaram-me para vir aqui, pra vir falar deste assunto importante e eu vim com sacrifício pessoal, com sacrifício pessoal. Chego aqui sou interrompido por causa da chegada de José Mourinho, um treinador de futebol. Acho que o país está doido. Desculpe dizer. Com todo o respeito. E portanto eu não vou continuar a entrevista. Acho que as pessoas têm que aprender. (.) Tá bem? Muito obrigado. Desculpe mas não vou continuar.

AL ( )

PSL Sem nenhum pretensiosismo. Agora eu tenho regras e não quebro as regras.

AL Muito bem

PSL Lamento mas muito obrigado pelo seu convite. Agradeço muito

AL Gostávamos muito de poder

PSL Eu também gostava de dar. Por isso vim aqui.

Al Fizemos uma interrupção porque de facto José Mourinho é uma figura importante

PSL =sem dúvida ( ) ºimportantíssimoº

AL do país. O senhor terá sempre mais sensibilidade para os temas do futebol do que eu.

PSL Pois tenho

AL E havia muita curiosidade de saber

PSL Se ele chegava de avião privado ou público.

AL ( )

PSL Mas ele nem declarou nada

AL ( )

PSL Pois, eu tenho regras, as senhoras têm as vossas. Eu respeito as vossas mas peço para respeitarem as minhas. E´ só isso. Mas agradeço o seu convite mais uma vez.

AL Lamento imenso

PSL Obrigado. Eu também

AL Critérios editoriais

PSL Com certeza. Que eu respeito Que eu respeito (.) a sério que respeito

AL Os militantes do PSD ficam privados

PSL Boa noite ((levanta-se e sai do estúdio)

AL (olhando de frente para a câmara)) Fazemos então neste:::: nesta edição daa noite e perante este imprevisto de uma posição de uma tomada de posição de Pedro Santana Lopes que obviamente respeitamos em função de uma edição editorial que foi a de irmos em direto ao aeroporto da Portela para acompanhar a chegada de José Mourinho a Lisboa, fazemos então uma pausa breve (.) Até já.

Como podemos observar, Pedro Santana Lopes (PSL) recusa continuar a entrevista (e portanto eu não vou continuar a entrevista) e, em vez de responder a uma pergunta da entrevistadora, formula ele próprio uma pergunta que incide sobre a temática da entrevista e a sua ordem sequencial: sabe onde estávamos? Numa conversa de Pedro Santana Lopes que ocorresse com Ana Lourenço, num ambiente informal da vida quotidiana, não acharíamos estranho que ele tomasse a iniciativa de dar por terminada a conversa ou questionasse a sua interlocutora sobre o tema da conversa em que estivessem envolvidos. O facto de este comportamento ser considerado notável e de ele próprio sentir necessidade de o justificar revela que se trata da violação de regras específicas de uma entrevista televisiva, mostrando assim duas regras que distinguem esta atividade de outras interações comunicativas que ocorrem habitualmente no quadro da vida quotidiana. Ao contrário do que acontece numa conversa habitual, numa entrevista televisiva não é a qualquer participante que incumbe fazer perguntas e dar por terminada a interação, é o/a entrevistador/a que tem esta incumbência. É isto que descobrimos ao verificarmos que PSL, o entrevistado, sente a obrigação de formular enfaticamente não só a justificação, mas um pedido de desculpas pelo facto de ter adotado o comportamento observado neste exemplo. Tal como AL, a entrevistadora, se sente obrigada, não só a categorizar o comportamento de PSL como um “imprevisto”, mas também a justificar a interrupção da entrevista e a invocar imperativos editoriais.

Casos de rutura de expetativas como este são de grande importância para podermos descobrir as regras que os participantes aplicam e as normas a que obedecem no quadro das entrevistas televisivas, mas a sua observação não é evidentemente a única maneira que o etnometodólogo tem ao seu dispor para descobrir as regras da atividade em que os participantes estão envolvidos. O mais importante procedimento analítico do investigador que adote a atitude etnometodológica é a observação da organização sequencial dos enunciados, a observação cuidadosa do encadeamento das intervenções dos participantes, ao longo da alternância dos turnos de fala.

Antes de explicitar em que consiste a atitude etnometodológica que proponho, sinto necessidade de explicitar a razão por que escolhi fazer este trabalho sobre entrevistas televisivas. O leitor talvez pense que pretendo fazer uma avaliação crítica da conformidade das entrevistas televisivas a padrões éticos, estéticos ou políticos pré-concebidos ou formular regras de comportamento aos profissionais nelas envolvidos. Nada mais contrário à atitude etnometodológica e à minha perspetiva fenomenológica. O meu objetivo consiste em observar como as pessoas envolvidas nas entrevistas televisivas mobilizam de maneira apropriada os recursos que têm à sua disposição, de modo a conseguir compreender a atividade em que estão envolvidas. Tendo em conta este esclarecimento, vejamos então em que consiste a organização sequencial dos turnos de fala.

A organização sequencial e os pares adjacentes

É da observação daquilo que o enunciado de um dos participantes levou o outro participante a dizer que podemos saber a interpretação desse enunciado no momento em que foi produzido. É porque é da interpretação que em cada momento cada um dos participantes faz daquilo que os outros disseram que o leva a dizer aquilo que diz quando é a sua vez de tomar a palavra que podemos saber aquilo que está em jogo em cada momento ao longo da atividade interacional. É por isso que não são as hipóteses interpretativas do investigador, mas as interpretações que os próprios participantes fazem, em cada momento daquilo que está em jogo na atividade comunicativa em que estão envolvidos, reveladas pela análise sequencial das intervenções, que são a chave da investigação etnometodológica.

A unidade da interação comunicativa das entrevistas televisivas, como aliás de qualquer outra interação comunicativa, é o par adjacente, designação proposta por Harvey Sacks (1992, pp. 521-570) para designar o conjunto da intervenção iniciativa e da intervenção reativa que constituem a unidade sequencial mínima. Vejamos o excerto 2 retirado do fecho da entrevista de José Rodrigues dos Santos (JRS) a Mariza (M), no Telejornal da RTP1 de 14 de Abril de 2014:

Excerto 2:

JRS: Mariza, muito obrigado

M: Muito obrigada eu

Neste excerto podemos observar um par adjacente simples, constituído pelo encadeamento de uma primeira parte, produzida pelo entrevistador e formada por um ato de agradecimento, e de uma segunda parte, produzida pela entrevistada, formada pela retribuição do agradecimento do entrevistador.

É evidente que nem sempre os pares adjacentes são simples. Como mostrou de maneira pormenorizada Emanuel Schegloff (2007), a organização das sequências pode ser complexa, com as primeiras partes dos pares adjacentes a ser precedidas de unidades preparatórias, com expansões da segunda parte e com inserções entre a primeira e a segunda parte. As unidades preparatórias da primeira parte servem para realizar atos pressupostos à realização da primeira parte do par adjacente e as unidades de expansão da segunda parte servem para realizar atos de avaliação da segunda parte, ao passo que as unidades inseridas entre a primeira e a segunda parte servem para assegurar as condições que fazem com que o interlocutor possa realizar a segunda parte do par adjacente. Observemos o excerto 3:

Excerto 3: Grande Entrevista RTP1: Sandra de Sousa (SS) a José Manuel Silva (JMS); 11 de Julho de 2012t

SS: Senhor doutor temos mesmo que terminar:: quais são as suas expetativas para o dia de amanhã?

JMS: Bom senso

SS: Bom senso:::: relativamente a quê?

JMS: Relativamente a todos os intervenientes na saúde. Nós pela nossa parte temo-lo demonstrado.

SS: Mas acredita que a greve de amanhã será superior à de hoje como alguns sustentam?

JMS: Eu acredito que sim. Porque de facto o dia de hoje mobilizou, demonstrou a união dos médicos, foi uma manifestação de cidadania. Volto a sublinhar que para nós ((continua))

SS: Senhor doutor, muito obrigada por ter vindo à Grande Entrevista.

JMS: Eu é que agradeço a oportunidade.

SS: Desejo-lhe uma boa noite

Neste excerto, a entrevistadora produz um ato preliminar, anunciando a primeira parte da sequência do fecho da entrevista, mas insere logo de seguida a primeira parte de um par adjacente com uma pergunta endereçada ao entrevistado: quais são as suas expetativas para o dia de amanhã? A esta primeira parte responde o entrevistado com a segunda parte do par: bom senso. Esta segunda parte provoca, por sua vez, uma nova expansão sob a forma de um novo par adjacente, iniciado com uma nova primeira parte formada pela repetição da resposta do entrevistado (bom senso:::) e o pedido de esclarecimento (bom senso relativamente a quê?). A segunda parte deste novo par adjacente provoca ainda a inserção de um novo par e é só no fim destas três inserções que a iniciativa de fecho da entrevista tem finalmente a sua segunda parte (Senhor doutor, muito obrigada por ter vindo à Grande Entrevista), depois de fechadas as sequências inseridas.

Mas neste excerto podemos ainda observar uma pós-expansão. Depois de o entrevistador ter encerrado a entrevista e produzido a primeira parte do par adjacente de agradecimento (Senhor doutor, muito obrigado por ter vindo à Grande Entrevista) e de e o entrevistado ter produzido a segunda parte com a retribuição do agradecimento (Eu é que agradeço), o entrevistador acrescenta uma expansão com um ato de despedida (boa noite). Como podemos ver, o entrevistado não responde ficando a dúvida se o entrevistador interpreta este ato de despedida como lhe sendo endereçado ou como sendo endereçado à audiência, a quem em última instância a entrevista é destinada.

As componentes dos pares adjacentes: as intervenções ou os turnos e os enunciados

Os pares adjacentes são constituídos por turnos ou intervenções e por enunciados. Deste ponto de vista, podemos definir uma entrevista como a alternância de turnos ou de intervenções dos participantes; é esta alternância que define a natureza predominantemente dialogal da entrevista. Uma entrevista é uma atividade em princípio dialogal, ao passo que, por exemplo, um telejornal é uma atividade em princípio monologal. Digo, em princípio, porque evidentemente uma entrevista pode comportar intervenções monologais, como por exemplo quando o entrevistador na introdução apresenta o entrevistado e expõe a temática da entrevista, tal como um telejornal pode comportar evidentemente momentos dialogais, como por exemplo quando o jornalista durante o telejornal interage com um correspondente ou recebe no estúdio um convidado.

Devemos, no entanto, distinguir com clareza a natureza monologal da natureza monológica de uma intervenção. Assim, por exemplo, a introdução de uma entrevista, embora seja em princípio monologal porque é apenas o entrevistador que toma a palavra, é altamente dialógica, uma vez que os enunciados que o entrevistador produz dialogam com intervenções que ele refere ou cita de outros falantes e inclusivamente com enunciados que o próprio entrevistado terá produzido noutras circunstâncias. Mais adiante terei oportunidade de explicitar melhor a distinção entre estas duas dimensões.

Os enunciados não se confundem com os turnos ou com as intervenções, uma vez que, embora haja turnos que comportam apenas um enunciado, como neste exemplo:

Entrevistador: Boa tarde

Entrevistado: Boa tarde

encontramos muitos outros turnos constituídos por múltiplos enunciados, como neste início da entrevista de Ana Sousa Dias (ASD) a Gal Costa (GC):

Excerto 4:

ASD: (olha para a câmara) Boa noite. A convidada desta semana no Por Outro Lado nasceu em Salvador, na Bahia, no Brasil, e está em Portugal com um espetáculo (.) só com músicas do Tom Jobim .h que toda a gente a conhece com certeza. Já esteve várias vezes em Portugal e antes disso já todos a conhecíamos dos discos (eh) vamos já conversar com ela. Vamos ver primeiro como é que o Alfredo Cunha olhou pra ela e depois vamos conversar. (olha para Gal Costa) Boa noite Gal Costa

GC: Boa noite. É um prazer imenso estar aqui.

O enunciado é o resultado ou o efeito da atividade enunciativa e a atividade enunciativa é a realização de um ato de linguagem. Um ato de linguagem, por sua vez, é um determinado comportamento que tem um determinado objetivo como, por exemplo, saudar, afirmar, negar, perguntar, responder, agradecer, prometer, pedir.

É muito importante ter em conta que os enunciados tanto podem ser materializados verbalmente ou realizados por palavras, para-verbalmente ou realizados por modos de entoação, pelo volume de voz, pelo timbre, pela aceleração da fala, como podem ser materializados gestualmente ou manifestados por hiatos ou por silenciamentos (termo que utilizo para designar a ausência de uma verbalização esperada). É por isso que, na análise sequencial das entrevistas, não podemos ter apenas em conta as palavras que os participantes dizem; temos também que observar cuidadosamente e transcrever, tão fielmente quanto possível, as entoações, os gestos, os hiatos e os silenciamentos observados.

Como estamos a ver, a atitude etnometodológica que proponho adotar distingue-se das análises de discurso que apenas procuram dar conta das componentes verbais da atividade comunicativa (Rodrigues & Braga 2014, pp. 117-134).

O princípio da preferência

Os participantes não dizem habitualmente o que lhes passa pela cabeça quando é a sua vez de falar. Cada uma das intervenções ocorre na sequência de intervenções anteriores e projeta as intervenções seguintes. O encadeamento dos turnos ou das intervenções obedece a um princípio a que Harvey Sacks deu o nome de princípio de preferência (1987).

O princípio da preferência não tem a ver com o facto de os participantes preferirem a realização de determinados atos em detrimento de outros, mas com o facto de a realização da primeira parte de um par adjacente criar a expetativa da realização de determinada segunda parte desse par no momento em que ocorre. Assim, se alguém dirigir uma saudação aquilo que é esperado é que a pessoa a quem a saudação foi dirigida a retribua, sendo, por conseguinte, nesse momento o ato de retribuição a segunda parte preferida dessa sequência. Não quer dizer que não ocorram saudações não correspondidas, mas quando isso ocorre verificamos que se trata de uma ocorrência assinalada ou marcada, termo que utilizamos para designar o facto de ser uma intervenção realizada depois de a um hiato ou de uma demora na realização da segunda parte do par, constituída por uma justificação da não retribuição da saudação ou da realização do ato preferido, ou da procura desta justificação. Podemos dizer, em síntese, que os atos preferidos não são marcados, mas ocorrem sem hiato nem justificação, ao passo que os atos não preferidos são marcados e ocorrem habitualmente depois de um hiato e são acompanhados ou substituídos por uma justificação. No excerto 3, já pudemos apreciar na intervenção de Pedro Santana Lopes, quando a entrevistadora lhe dá a palavra, um exemplo eloquente de uma segunda parte não preferida de um par adjacente.

Os princípios que regulam os comportamentos da atividade da interação comunicativa: a aplicação de regras e a obediência a normas

Para que de uma atividade enunciativa resulte um determinado enunciado é preciso que tenha sido aplicada a regra específica prevista para que dela resulte esse enunciado. Assim, por exemplo, para que um enunciado seja uma pergunta é preciso que tenha sido realizada uma atividade enunciativa de acordo com a regra apropriada para a realização de uma pergunta, tal como para que um enunciado seja uma saudação é preciso que tenha sido realizado por uma atividade enunciativa de acordo com a regra apropriada para a realização de uma saudação. Assim, por exemplo, se o entrevistado disser boa tarde no início da entrevista é muito provável que esteja a fazer uma saudação, mas se disser boa tarde no meio da entrevista é muito pouco provável que esteja a fazer uma saudação, mas a fazer, por exemplo, uma ironia ou a citar um enunciado realizado no quadro de uma outra atividade interativa, pela simples razão de que a regra a aplicar para que de uma atividade enunciativa resulte o ato de saudação é ela ser realizada no início ou no fim de uma interação e não durante o seu decurso. Tal como, se o entrevistador produzir um enunciado sob a forma interrogativa, mas a interrogação incidir sobre uma questão para a qual tanto ele como a audiência souberem a resposta, esse enunciado não realizará uma verdadeira pergunta, mas um outro ato que teremos que identificar, de acordo com o princípio da análise sequencial, observando a intervenção que ele provocou da parte da pessoa a quem a interrogação foi endereçada.

Mas evidentemente há muitas maneiras diferentes de fazer perguntas, de fazer saudações ou qualquer outro ato de linguagem, cada uma delas decorrendo do respeito de normas específicas que dependem do entendimento que as pessoas têm daquilo que está em jogo no momento em que realizam esse ato de linguagem pretendido. Entre as normas a que habitualmente as pessoas obedecem quando interagem entre si estão as normas de cortesia. A não aplicação da regra apropriada para a realização de determinado ato inviabiliza a sua realização, mas o desrespeito de uma norma não inviabiliza evidentemente a realização do ato pretendido, embora possa ter implicações na maneira como a interação comunicativa é entendida por parte dos participantes na entrevista. As regras aplicam-se ou não se aplicam, ao passo que as normas respeitam-se ou não se respeitam.

Dados e transcrição

Nos excertos de entrevistas que apresento como exemplos utilizo as seguintes convenções de transcrição habitualmente utilizadas pelos autores que adotam a atitude etnometodológica:

 

 

É importante ter em conta que os materiais transcritos não são os dados, mas o registo dos fenómenos observados, porque é importante não esquecer que por mais minuciosa que seja a transcrição nunca poderá dar conta de maneira exaustiva da riqueza inesgotável dos fenómenos que os dados manifestam. É por isso que nunca devemos esquecer que a cada nova observação dos dados somos levados a corrigir e a melhorar a transcrição e a registar novos fenómenos, tendo sempre em conta que a realidade observada é inesgotável e que a investigação é um processo nunca acabado de descoberta.

Depois de esclarecidos as principais características da atitude etnometodológica que proponho adotar e a terminologia adotada, vou agora abordar dois momentos cruciais das entrevistas televisivas: a abertura e o fecho.

A abertura e o fecho das entrevistas televisivas

Nas interações comunicativas que decorrem em ambientes informais da vida quotidiana, tomar a iniciativa de dirigir a palavra a alguém tal como tomar a iniciativa de dar por terminada uma conversa em que nos encontremos envolvidos são decisões que podem ser tomadas por qualquer dos participantes, mas implicam inevitavelmente um dilema crucial. Quer tomem a decisão dirigir a palavra quer tomem a decisão de não dirigir a palavra ou quer tomem a decisão de encerrar a conversa ou quer tomem a decisão de a continuar, as pessoas envolvidas correm inevitavelmente o risco de ser consideradas inoportunas ou inconvenientes por parte dos outros participantes. No entanto, habitualmente nesses ambientes, a decisão não é da competência nem incumbe em princípio a um dos participantes em particular, qualquer deles podendo tomar a iniciativa de dar início e de dar por finalizada a interação. É, por isso, particularmente importante observar o que se passa no início e no fim das entrevistas televisivas, para compreendermos o que as distingue das interações comunicativas que ocorrem em ambientes informais e deste modo observar o que resulta do facto de se tratar de uma entrevista televisiva e não de uma outra modalidade de interação comunicativa. Observemos o seguinte excerto:

Excerto 5: Entrevista ao Presidente de Moçambique, Felipe Nyusi (FN), no telejornal da RTP de 7 de Julho de 2019:

Entrevistadora (olha para a câmara) o presidente de Moçambique é convidado desta entrevista especial conjunta (...) da RTP e da RTP África (olha para FN) senhor presidente, desde já agradecemos ter aceite este convite. Esta cimeira Portugal Moçambique acaba com o senhor a dizer que o caso Américo Sebastião não é um assunto de Estado. Américo Sebastião, o português sequestrado há três anos que continua desaparecido (olha para baixo, levantando o ombro esquerdo) não é um espinho nas relações entre os dois países?

Nesta introdução, a entrevistadora produz um monólogo, referindo, por um lado, aquilo que o entrevistado, Felipe Nyusi, o Presidente de Moçambique, tinha dito na cimeira Portugal-Brasil e, por outro lado, o acontecimento do desaparecimento de um português ocorrido três anos antes em Moçambique. É da relação entre este acontecimento e aquilo que Felipe Nyusi tinha dito na cimeira que retira a justificação para a primeira pergunta. Como vemos, apesar de ser monologal, esta introdução é de natureza dialógica e é esta sua natureza dialógica que confere à introdução um dos instrumentos mais importantes da postura de neutralidade da entrevistadora. As questões potencialmente polémicas que a entrevistadora vai endereçar ao entrevistado não são feitas em seu nome pessoal, mas decorrem logicamente de enunciados citados explicitamente e dos acontecimentos referidos na introdução.

O olhar da entrevistadora para a câmara com que a entrevistadora acompanha o seu monólogo introdutório é também um comportamento importante, uma vez que se insere no ambiente interacional constituído pelo dispositivo televisivo, dentro do qual decorre a interação da audiência com os comportamentos que ocorrem no estúdio. É nesse ambiente que se encontra a audiência, os verdadeiros interactantes, a quem tudo aquilo que a partir desse momento vai ocorrer no estúdio é finalmente endereçado.

Como vemos, não é pelo facto de ser monologal que a introdução não é uma atividade eminentemente interacional. A interacionalidade desta intervenção monológica é assegurada tanto pelo comportamento não verbal, expresso pelo olhar para a câmara, que assegura a interação da entrevistadora com a audiência, como pela natureza dialógica dos enunciados produzidos, assim designados porque dialogam com aquilo que outros locutores, inclusivamente o próprio entrevistado, disseram noutros ambientes. A natureza dialógica desta introdução monologal é particularmente importante uma vez que é dos enunciados aí relatados que a entrevistadora retira a fundamentação das questões que vai colocar ao entrevistado e esta fundamentação serve de justificação ou de garantia para a imagem da sua isenção ou da neutralidade da sua função de entrevistadora junto da audiência a quem a introdução é finalmente endereçada. Observemos agora outro exemplo.

Excerto 6: RTP de 2002, programa Por Outro Lado, entrevista de Ana Sousa Dias (ASD) à cantora brasileira Gal Costa (GC).

ASD: (olha para a câmara) Boa noite. A convidada desta semana no Por Outro Lado nasceu em Salvador, na Bahia, no Brasil, e está em Portugal .h com um espetáculo (.) só com músicas do Tom Jobim .h que toda a gente a conhece com certeza. Já esteve várias vezes em Portugal e antes disso já todos a conhecíamos dos discos (eh) vamos já conversar com ela. Vamos ver primeiro como é que o Alfredo Cunha olhou pra ela e depois vamos conversar. (olha para Gal Costa) Boa noite Gal Costa

GC: Boa noite. É um prazer imenso estar aqui.

ASD: É? (sorri e inclina a cabeça) Como assim? Então, uma pessoa com tanta experiência, com tantos anos de carreira e acha especial uma entrevista na televisão portuguesa? [Deve ter tanto (.) tantas horas de]

GC: [Acho especial. Sabe por que] eu acho especial ((levanta e desce os ombros)) porque faz algum muito tempo que eu não venho, na verdade (gestos com as mãos) a um estúdio de televisão [aqui] em Portugal

ASD: [É? ]

GC: (levanta as sobrancelhas) pra fazer uma entrevista (.) conversar ((gesto com as mãos)) (.) falar da minha vida, e isso é muito bom. ((gesto afirmativo com a cabeça))

ASD: Então vamos conversar sobre sua vida, temos cinquenta minutos pra nossa conversa .h (gesto com as mãos e sorriso) Vamos (gesto com a cabeça e sorriso) Trabalho, vida, tudo. Gal (.) está em Portugal para apresentar só um espetáculo só com canções do Tom Jobim? ((continua))

Neste excerto, observamos de novo o olhar da entrevistadora para a câmara e podemos reparar a utilização do emprego da primeira pessoa do plural do pronome pessoal (já todos a conhecíamos dos discos e vamos já conversar com ela. Vamos ver primeiro como é que o Alfredo Cunha olhou pra ela e depois vamos conversar...). Podemos considerar este plural um plural inclusivo, por o podermos interpretar como incluindo os espectadores e a entrevistadora.

Observemos agora como ocorrem os fechos das entrevistas. Podemos observar um dos casos mais simples formado apenas por dois pares de dois turnos simples cada um no seguinte excerto:

Excerto 7: entrevista do telejornal da RTP de 14 de Abril de 2014 de José Rodrigues dos Santos (JRS) à cantora Mariza M(M):

JRS: Mariza, muito obrigado

M: Muito obrigada eu

JRS: Boa noite

M: Boa noite

Ao contrário do que aconteceria num ambiente informal, o entrevistador assume unilateralmente a incumbência de tomar a iniciativa de dar por terminada a entrevista sem qualquer necessidade de preparação nem de justificação, iniciando primeiro um turno de agradecimento (Mariza, muito obrigado) e depois um segundo turno de saudação despedida (Boa noite). Como podemos ver, a entrevistada não acha estranho o comportamento do entrevistador, limitando-se a encadear com a primeira parte de cada um dos dois pares iniciados pelo entrevistador as segundas partes preferidas desses turnos: muito obrigada eu e boa noite.

É evidente que nem sempre a sequência final das entrevistas é assim tão simples, como podemos observar no excerto da sequência final da entrevista já referida realizada, em 2002 pela RTP, de Ana Sousa Dias (ASD) a Gal Costa (GC):

Excerto 8:

ASD: Obrigada Gal obrigada por ter vindo [(.) foi um prazer= GC: [obrigada a você

ASD: =tê-la aqui (.) e:: espero agora que o último concerto que é em Lisboa (abre o braço esquerdo) corra bem no Coliseu.

GC: Quero lhe agradecer (abre os braços) e convidar as pessoas que vão a Lisboa no dia 12 no Coliseu

ASD obrigada por ter [vindo

GC: [e no Porto também no dia 16

ASD: obrigada a você o prazer é nosso

É sobretudo nas entrevistas inseridas em telejornais que os fechos são mais rápidos, como podemos observar no seguinte excerto do telejornal da RTP1 de 14.4. 2014, em que José Rodrigues dos Santos (JRS) entrevista Mariza (M):

Excerto 9:

M: ... por que não ser uma cantora da língua portuguesa? (..) Por que não?

JRS: Mariza, muito obrigado

M: obrigada eu

JRS boa noite

M: obrigada eu (.) boa noite

Ou no seguinte excerto do telejornal de 16.02.2018 em que José Adelino Faria (JAF) entrevista Salvador Sobral (SS):

Excerto 10:

JAF: Salvador, muito obrigado. [Benvindo

SS: [Obrigado

JAF: Vai ser melhor ainda

SS: Espero que sim

JAF: Obrigado

SS: Obrigado

Como vemos, é muito frequente observarmos algumas particularidades do fecho da interação comunicativa das entrevistas televisivas. A primeira particularidade é o facto de, tal como a iniciativa da abertura, também a iniciativa do fecho incumbir ao entrevistador. Os casos em que é o entrevistado que toma a iniciativa de encerrar a entrevista são raros e, como vimos, são acompanhados de justificação, o que mostra que se trata de comportamentos que violam a regra específica deste ambiente interacional. A segunda particularidade é o facto de ser muito frequente a troca de agradecimentos entre o entrevistador e o entrevistado. Este facto mostra que a interação que ocorre entre o entrevistador e o entrevistado se insere dentro de um outro ambiente interacional que tem como destinatário a audiência, em benefício da qual a entrevista decorre. A terceira particularidade é o facto de o fecho não resultar de uma negociação entre os participantes, mas ocorrer em função de uma decisão unilateral do entrevistador.

Podemos considerar a primeira particularidade como consequência da natureza institucional da entrevista televisiva, mas também podemos interpretá-la com uma das regras do ambiente constituído pelo dispositivo televisivo. Para compreendermos esta regra observemos o que se passa no ambiente constituído pelo dispositivo telefónico, onde também é a pessoa que toma a iniciativa de chamar que tem a incumbência de dar por terminada a interação telefónica.

Os mecanismos de categorização

Gostaria agora de tratar de um dos fenómenos notáveis que decorre da maneira como os participantes mobilizam aquilo que designamos por mecanismos de categorização[1].

Já mencionei a importância do olhar do entrevistador dirigido para a câmara durante a introdução pelo facto de ser um comportamento que se insere no ambiente interacional constituído pelo dispositivo televisivo e em que interage com a audiência. Com este comportamento, não só se constitui como entrevistador e assume a incumbência das funções desta categoria, mas também constitui duas outras categorias, a de espectador e a de entrevistado. Podemos considerar estas categorias omnirelevantes no ambiente da entrevista televisiva, uma vez que são elas que definem, em permanência durante toda a entrevista, as tarefas que incumbem a cada uma das pessoas que interagem entre si no ambiente interacional em que se encontram. Reparemos agora para o seguinte extrato retirado da entrevista já referida de

José Rodrigues dos Santos (JRS) a Mariza (M):

Excerto 11:

JRS: Quando é que volta agora outra vez a lançar um novo álbum de originais?

M: Estou a trabalhar já nesse álbum para 2015 a::: às vezes é um bocadinho difícil a::: é assim como nos seus livros, não é? Nós às vezes temos alguma dificuldade em nos expressar, queremos fazer tão bem ou queremos pôr tudo o que se tem na cabeça e às vezes é quase impossível. Não se consegue, não é? As coisas têm o seu tempo. (continua)

Podemos observar neste caso um processo curioso de categorização realizado pela entrevistada que decorre do facto de se referir ao entrevistador como escritor. Apresentei aqui este caso de categorização porque, pela sua natureza inesperada, o manifesta de maneira mais evidente, mas o trabalho de categorização pode ser observado em todos os processos de referência dos enunciados produzidos pelos participantes, uma vez que é impossível referir pessoas, objetos, estados de pessoas ou de objetos sem os inserir inevitavelmente numa determinada categoria.

A importância de analisar os processos de categorização tem a ver com o facto de a cada categorização corresponderem expetativas específicas mobilizadas em cada momento da atividade interacional em que, ao longo da entrevista, os participantes estão envolvidos. Assim, no momento em que pretende explicar por que razão só em 2015 irá gravar um novo álbum, Mariza identifica José Rodrigues dos Santos como escritor, categoria que partilha com a categoria de cantora a incumbência da criatividade, que ela própria mobiliza para fazer compreender as dificuldades para encontrar as formas apropriadas de expressão na sua atividade: assim como nos seus livros, não é? nós às vezes temos alguma dificuldade em nos expressar (...) as coisas têm o seu tempo.

Mas evidentemente, como já referi, os processos de categorização ocorrem ao longo de toda a entrevista, uma vez que são inseparáveis da própria função referencial da linguagem.

A alternância das perguntas e das respostas

Vou agora analisar a alternância das perguntas e das respostas, as tarefas que incumbem respetivamente ao entrevistador e ao entrevistado e que, como vimos, são as categorias omnirelevantes da atividade interacional das entrevistas. Comecemos por observar a continuação do extrato 2 da entrevista da RTP ao Presidente de Moçambique, Felipe Nyusi:

Extrato 12:

Entrevistadora: ... Não é um espinho nas relações entre estes dois países?

FN: Bom (..) Primeiro quero agradecer à RTP (.) e à RDP África por mais uma vez nos dar esta oportunidade de falarmos pro mundo a partir de Lisboa desta vez (..) A este assunto eu já respondi (.) e atendendo a que estiveram presentes no ato eu acredito que a mensagem que deixamos é a mensagem (.) melhor que podíamos ter até esta altura. Porque e como viram também o Primeiro Ministro de Portugal a dizer que (.) não se misturam as coisas. Outra coisa é assuntos de Estado e muitos específicos e nós explicámos o que terá acontecido. É verdade usou o termo sequestrado, mas só sabemos que desapareceu e quando alguém desaparece pode ter muitas motivações (continua)

Na primeira questão desta entrevista, a entrevistadora questiona o presidente de Moçambique sobre as relações entre Portugal e Moçambique, mas a pergunta pressupõe a existência de problemas que decorrem das referências dos enunciados da introdução que a entrevistadora formulou com o olhar dirigido para a câmara, como vimos no excerto 5. No longo monólogo da introdução, a entrevistadora refere dois factos aparentemente contraditórios: por um lado, o discurso do Presidente de Moçambique que acabou de afirmar que as relações entre Portugal e Moçambique são excelentes e, por outro lado, o facto de continuar por explicar o desaparecimento de um português em Moçambique, categorizado pela entrevistadora como sequestro, sem que as autoridades locais tenham apresentado qualquer explicação para este desaparecimento. Na sua resposta, Felipe Nyusi, o entrevistado, não contesta os dois factos referidos, mas o facto de a pergunta da entrevistadora categorizar como sequestro o desaparecimento em Moçambique do português.

Mas reparemos que Felipe Nyusi não começa a sua intervenção respondendo à pergunta da entrevistadora, mas diz: Bom (..) Primeiro quero agradecer à RTP (.) e à RDP África por mais uma vez nos dar esta oportunidade de falarmos pro mundo a partir de Lisboa desta vez (..) Começa dizendo Bom e faz uma pausa, assinalando deste modo que a sua intervenção não é um encadeamento direto com a pergunta que a entrevistadora acabou de lhe fazer, mas uma retribuição do agradecimento que ela lhe tinha dirigido na introdução da entrevista.

Escolhi este exemplo para analisar a relação entre as questões e as respostas nas entrevistas televisivas porque ele é esclarecedor acerca da natureza da atividade interacional envolvida na sua realização. Ele mostra que o entrevistador não justifica habitualmente a formulação das questões que coloca aos entrevistados a partir de escolhas ou de interesses pessoais, mas em função de pressupostos factuais e de supostos interesses da audiência. É desta relação das questões com os seus pressupostos que o entrevistador retira habitualmente a garantia de uma atitude de neutralidade na maneira como assegura as funções de que está incumbido[2].

Os processos de categorização, tanto na constituição dos pressupostos como nos termos com que os entrevistadores e os entrevistados se referem aos problemas em questão, desempenham uma função importante na constituição desta atitude de neutralidade do entrevistador. Os pressupostos das questões, tanto podem estar explicitados nos prefácios que as introduzem, como estar subtilmente associados à própria formulação das questões através das categorizações que são utilizadas para referir os problemas sobre que incidem quer as perguntas dos entrevistadores quer as respostas dos entrevistados. De entre os pressupostos associados à formulação das perguntas está o da ocorrência dos factos ou o da existência das pessoas, das coisas, dos estados das pessoas e das coisas acerca dos quais as perguntas são formuladas. Não admira por isso que muitas vezes o entrevistado faça incidir a sua resposta, não sobre a pergunta formulada, mas sobre os seus pressupostos. É o caso, na referida entrevista, da resposta de Felipe Nyusi. A sua resposta não incide diretamente sobre a pergunta da entrevistadora, mas sobre o seu pressuposto, uma vez que se demarca da categorização que, na formulação da pergunta, a entrevistadora faz do desaparecimento do português em Moçambique. Quando o entrevistado se demarca dos pressupostos da pergunta ou da categorização que o entrevistador faz de referências que justificam factos acerca dos quais a pergunta é formulada, deixa evidentemente de ter sentido responder à pergunta formulada pelo entrevistador. O excerto 12 permitiu observar um caso de relação da primeira questão com os pressupostos formulados pelo entrevistador na introdução da entrevista, mas ao longo das entrevistas esta relação das questões com os seus pressupostos é muitas vezes explicitada através de prefácios que integram os turnos do entrevistador.

Considerações finais

Este texto é meramente exploratório. Limitei-me a observar alguns excertos de entrevistas e pretendi apenas mostrar, com estas observações, a pertinência da perspectiva etnometodológica para o estudo da atividade interacional das entrevistas televisivas. Gostaria agora de fazer o ponto da situação, apresentando de maneira concisa as principais descobertas a que este trabalho me levou, de modo a poder fazer algumas propostas para futuros trabalhos.

A primeira descoberta a realçar tem a ver com a natureza interacional específica das entrevistas televisivas, com o entendimento que os participantes têm do ambiente específico em que estão inseridos, decorrente do facto de este ambiente ser produzido pelo próprio dispositivo televisivo. Como vimos em vários excertos, quer o(s) entrevistador(es) quer o(s) entrevistados, tanto pelos seus comportamentos verbais, como pelos seus comportamentos para verbais e corporais, aplicam regras e obedecem a normas que decorrem do facto de jogarem com o encaixe de interações que ocorrem em vários ambientes que decorre do funcionamento do dispositivo televisivo. Os olhares e o jogo com os dispositivos pronominais são talvez os mais evidentes comportamentos que mostram como os participantes jogam com a multiplicidade de ambientes interacionais provocados pelo dispositivo televisivo. Mas as tomadas de decisão em relação à abertura e ao fecho assim como à natureza das intervenções são igualmente manifestações eloquentes da apropriação das regras da complexidade deste jogo interacional.

A segunda descoberta tem a ver com a organização sequencial da entrevista e com a consequente relevância da adoção da perspectiva etnometodológica. É deste imperativo que decorre a proposta da análise sequencial das intervenções ou dos turnos produzidos pelos participantes. Com este ponto me demarco das metodologias que partem de hipóteses interpretativas ou de análises de conteúdo das proposições, metodologias que não têm em conta a situação local dos enunciados produzidos pelos participantes, que não têm por conseguinte em conta nem as intervenções que os provocaram nem as intervenções que elas próprias desencadearam. É por isso que só a análise sequencial das intervenções característica da perspectiva etnometodológica é apropriada para o estudo das entrevistas televisivas.

A terceira descoberta tem a ver com a importância da observação daquilo a que alguns autores que adotam o ponto de vista etnometodológico costumam dar o nome de processo de categorização e que consiste na observação da maneira como localmente, em cada intervenção, os participantes categorizam as pessoas, as coisas, os estados das pessoas e os estados das coisas a que se referem. A relevância destes processos de categorização decorre do facto de ser deles que decorrem efeitos que têm a ver com as incumbências associadas às categorias utilizadas. Vimos que os processos de categorização não decorrem apenas da escolha das palavras; são igualmente o resultado dos comportamentos que os participantes adotam. Assim, por exemplo, o olhar em direção à câmara do entrevistador no início da entrevista categoriza o telespectador em interlocutor, processo de categorização que o próprio entrevistado compreende perfeitamente, uma vez que não responde, quando o entrevistador dirige uma saudação nessa ocasião.

A quarta descoberta decorre da natureza sequencial da análise. Em cada momento, os participantes adotam comportamentos que se inserem na sequência dos comportamentos observados em função da interpretação que eles próprios fazem daquilo que está em jogo no momento em que os observam. Vimos que nem sempre os comportamentos que adotam são aqueles que seriam esperados. Esta noção de expectativa dos comportamentos adotados por ocasião das intervenções no decurso da entrevista decorre daquilo a que damos o nome de lógica ou de organização preferencial das sequências. Vimos alguns exemplos de rupturas de expectativas e pudemos observar a sua importância para a compreensão do entendimento que os participantes nas entrevistas televisivas têm das regras interacionais específicas do ambiente em que se encontram.

Este estudo tinha um objetivo limitado e pretendia apenas formular algumas descobertas e sugestões, abrindo assim caminho e incentivando o aparecimento de futuros estudos sistemáticos, a partir da observação de um mais amplo conjunto de dados recolhidos nas televisões portuguesas.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Agradecimento

Dedico este texto à memória de Nelson Traquina, recordando com saudade os bons momentos de diálogo que com ele tive, desde o dia em que o acolhi no ainda jovem departamento de ciências da comunicação da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

 

Artigo por convite /Article by invitation/

 

Nota biográfica

Professor catedrático aposentado da FCSH. Defendeu o doutoramento na Universidade de Lovaina de que foi assistente. Em 1977 integrou a Universidade Nova de Lisboa, onde fundou o Departamento de Ciências da Comunicação em 1979 de que foi coordenador até 1988. Entre 1988 e 1994 foi diretor da FCSH.

Academia: http://fcsh-unl.academia.edu/AdrianoRodrigues/CurriculumVitae Email: adrodrigues42@gmail.com

Morada institucional: Universidade Nova de Lisboa, Instituto de Comunicação da NOVA, Av. de Berna, 26-C - Lisboa 069-061, Portugal

 

[1] Para uma apresentação sistemática dos mecanismos de categorização nos diferentes ambientes de interação comunicativa aconselho a leitura de Silverman, D. 1988: 74-97 e Watson & Gastaldo 2015: 135-150.

[2] Apresentei sistematicamente o funcionamento das inferências por pressuposição em particular Rodrigues 2005, pp. 155-173.

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