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Media & Jornalismo

versión impresa ISSN 1645-5681versión On-line ISSN 2183-5462

Media & Jornalismo vol.20 no.37 Lisboa dic. 2020

https://doi.org/10.14195/2183-5462_37_4 

ARTIGO

A noticiabilidade fotográfica do Sidonismo:uma leitura da Ilustração Portuguesa (1917-1918) com base na proposta de Nelson Traquina sobre valores-notícia

Sidonism’s photographic news: a reading of Portuguese Illustration (1917-1918) based on Nelson Traquina’s proposal on news values

Jorge Pedro Sousa*,
https://orcid.org/0000-0003-0814-6779

Fátima Cardoso Lopes**,
https://orcid.org/0000-0002-7093-7881

Helena Lima***,
https://orcid.org/0000-0003-3023-6412

* Universidade Fernando Pessoa. Instituto de Comunicação da NOVA - ICNOVA jpsousa@ufp.edu.pt

** Instituto Politécnico de Lisboa. Escola Superior de Comunicação Social Instituto de Comunicação da NOVA - ICNOVA fatimalcardoso@gmail.com

** Universidade do Porto. Universidade de Letras hllima@letras.up.pt


 

RESUMO

O regime de Sidónio Pais promoveu uma encenação pública do poder centrada no chefe. Ao tempo, o fotojornalismo era já uma prática consolidada, ganhando expressão na Ilustração Portuguesa, única revista ilustrada de informação geral que circulava em Portugal. De que maneira o discurso fotográfico refletiu, cronologicamente, a marcha do tempo e a coreografia do poder orquestrada pelo Sidonismo e como se entrelaçou com, ou afetou, os princípios da noticiabilidade e os critérios de valor-notícia? Esta investigação procura responder à questão, recorrendo a uma análise do discurso qualitativa das manifestações fotográficas do Sidonismo. Concluiu-se que o discurso fotográfico da Ilustração Portuguesa alimentou o mito de Sidónio Pais, afetando o imaginário e a memória históricas, e que os critérios de noticiabilidade foram influenciados de maneira a acomodar o discurso mediático à situação política. A notoriedade da personagem sobrepôs-se a outros valores-notícia.

Palavras chave: Sidónio Pais; fotografia, fotojornalismo, Ilustração Portuguesa, noticiabilidade


 

ABSTRACT

Sidónio Pais’ regime implemented a public performance of power centered on the chief. At the time, photojournalism was already a consolidated practice in Ilustração Portuguesa, the only news illustrated magazine that then circulated in Portugal. How has the photographic discourse chronologically reflected the march of time and the choreography of power orchestrated by Sidonism, and how has this intertwined or affected the principles of newsworthiness and news values criteria? This research seeks to answer the starting question, throughout a qualitative discourse analysis of photographic manifestations of Sidonism in that magazine. We conclude that the photographic discourse of Ilustração Portuguesa fed the myth of Sidónio Pais, affecting the imaginary and historical memory and that the criteria of newsworthiness were affected to accommodate news media discourse to the political situation. The notoriety of the character overlapped any other news values.

Keywords: Sidónio Pais; photography; photojournalism; Ilustração Portuguesa; newsworthiness


 

Introdução

A ascensão ao poder de Sidónio Pais foi o produto fortuito de uma das várias conjuras armadas que desestabilizaram a I República. Os unionistas de Manuel Brito Camacho, ala direita dos republicanos, conspiraram para remover do poder os democráticos[1] de Afonso Costa pela força das armas, com financiamento da alta burguesia e de grandes proprietários (Oliveira Marques, 1995, pp. 569-570). O líder que encontraram, perante a indefinição de Camacho, foi o major Sidónio Pais (Ramos, Sousa e Monteiro, 2009, pp. 608-609), um destacado republicano, membro do Partido Unionista, maçon, germanófilo, ex-presidente da Câmara de Coimbra (1910), ex-deputado (1911), ex-ministro do Fomento e ex-ministro das Finanças (1911-1912), ex-embaixador de Portugal em Berlim (1912-1916), e professor catedrático de matemática da Universidade de Coimbra, onde chegou a vice-reitor.

O golpe militar liderado por Sidónio Pais ou, segundo Oliveira Marques (1995,p. 570), a “rebelião antidemocrática”, teve lugar entre os dias 5 e 8 de dezembro de 1917, provocando cerca de cem mortos e quase 500 feridos. Sidónio ascendeu à liderança do país. “Era ainda um desconhecido. Ia tornar-se um mito” (Ramos, Sousa e Monteiro, 2009, p. 609). Manteve o poder durante cerca de um ano, até ser assassinado, a 14 de dezembro de 1918. Afonso Costa, líder do Governo, e o Presidente da República, Bernardino Machado, tiveram de abandonar o país.

Sidónio Pais adquiriu “uma auréola popular”, apresentando-se com “o libertador dos pesadelos coletivos”, de quem se esperava “o fim da guerra, o fim da agitação interna, o fim do conflito com a Igreja e o reatamento de relações com a Santa Sé, o fim da política partidária, que se desacreditara, e a (...) reconciliação nacional” (Saraiva, 2003, p. 107). Entendendo o poder da construção e gestão de uma imagem pública adequada às expetativas populares, “compôs uma figura de caudilho, fardado, com um protocolo vistoso, sempre rodeado pelos jovens cadetes (...). Dispôs-se a contactar diretamente a população. Viajou de norte a sul. Fez discursos (...). Muita gente ficou impressionada pelas manifestações populares à sua volta.” (Ramos, Sousa e Monteiro, 2009, pp. 609-610). Exibiu, ainda, o Exército, de cujo apoio necessitava, em paradas aparatosas (Oliveira Marques, 1995, pp. 569-570).

As abordagens históricas sobre Sidónio Pais não são consensuais, como aliás não o são para os diferentes protagonistas da I República. O Sidonismo, a República Nova ou Dezembrismo são distintas denominações para uma mesma temática, de que resultam perspetivas políticas e históricas de enquadramentos muito diferenciados, ora atribuindo-lhe um papel messiânico e anti-sistema, ora facilitador do partido monárquico e da Igreja, ora um ensaio para a ditadura salazarista.

O Sidonismo, entendido como um campo ideológico próprio, é de difícil caracterização. O processo de conquista de poder, através do golpe de estado de 5 de Dezembro de 1917, apesar de ter sido gerado no campo partidário da República, resultaria no afastamento de Brito Camacho e dos Unionistas do projeto sidonista. No campo político, Silva (2002, p. 271) define-o, como um golpe militar nascido nas fileiras republicanas marginais e excluídas, os evolucionistas, os unionistas e patentes militares descontentes com o regime.

Essencialmente, o novo projeto político reunia uma concordância comum, “Portugal livre do democráticos” (Ramos 1994, p. 616), mas a dificuldade em encontrar um programa de representação partidária terá levado ao afastamento de Sidónio Pais da perspetiva da representação parlamentar. A alteração constitucional de Dezembro de 1917, instituiu arbitrariamente o sufrágio direto na eleição do Presidente da República, abrindo caminho para um presidencialismo de tipo americano ou brasileiro. Para Silva, esta conceção de poder, resultaria das “anomalias” do regime republicano de 1917, e teve como efeito perverso a “desequilibrada personalização do Poder Executivo, estimulada pela excessiva personificação coletiva na figura do Presidente da República e Chefe de Governo.“ (Silva, 2002, p. 276).

O programa do sidonismo evoluiu da agregadora oposição aos democráticos para a proposta de um novo regime, onde os partidos seriam o principal obstáculo à harmonia nacional, contrapondo um partido único “dos homens de bem para bem servir a pátria”, nas próprias palavras de Sidónio. Na mesma linha, o regime parlamentar seria igualmente condenado. No plano programático, a “República Nova” proposta por Sidónio Pais traduziu-se num afastamento da perspetiva da representatividade partidária e parlamentar, ao mesmo tempo que procurou granjeou apoios entre os católicos e monárquicos.

Num período marcado pelas dificuldades da Guerra e diferentes clivagens económicas, socias e militares, a atração dos setores mais conservadores parece ter sido a solução possível, dado o afastamento das tradicionais forças republicanas. Em termos pragmáticos, o ideário do poder, corporizado no Partido Nacional Republicano, parece não ter apresentado outras linhas, o que poderia ser contraditório com a popularidade do Presidente, sufragado com uma aprovação largamente maioritária nas eleições de Abril, e em que não participaram os três partidos do arco da I República.

Para Marques (1991, p. 718) a ideia política cimentou-se unicamente em torno da pessoa e as características pessoais que foram o elemento de sedução no seu curto período no poder. Esta capacidade de “seduzir, conduzir, ser amado e seguido” (Medina, 1997, p.173) terá resultado das inúmeras aparições públicas e vistas pelo país, onde Sidónio encontraria alento para contrariar as adversidades sentidas na governação (Silva, 2002).

As representações do elegante líder militar estão presentes nas páginas da Ilustração Portuguesa, tratadas neste estudo, mas também nos enquadramentos históricos. A visão do oficial do exército “galante e bravo, elegante no seu uniforme militar” (Marques 1991, p. 718) parece ser o elemento de conquista dos seus seguidores e terá contribuído para a projeção de uma certa mise-en-scène monárquica do seu poder (Ramos, 1994), imagem acentuada e perpetuada pelo poema de Pessoa de 1920, «À Memória do Presidente-Rei Sidónio Pais».

Fosse ou não chefe carismático ou militar menor, dependendo da abordagem histórica, a sua morte violenta e prematura terá contribuído para o acentuar da ideia do mito do presidente messiânico. A continuidade do sidonismo teria ainda consequências na evolução do ideário republicano e dos acontecimentos posteriores à sua morte. Durante a I República, a imprensa, força considerável na sociedade portuguesa (Matos, 2014), aderiu ao sedutor e cativante espetáculo encenado pelo poder sidonista (Sousa, 2013, pp. 183-190; Saldanha, 2018), impondo o Presidente-Rei no imaginário social (Saldanha, 2018), com a cumplicidade do fotojornalismo (Sousa, 2013, pp. 183-190), cujo palco principal se materializava nas revistas ilustradas. Impõem-se, assim, duas perguntas:

1. Qual foi a narrativa fotográfica do período sidonista construída pela revista Ilustração Portuguesa, que era, à época, o principal palco do fotojornalismo nacional?

2. Até que ponto a noticiabilidade dos acontecimentos durante o período sidonista se moldou - se é que se moldou - à encenação visual do poder montada por Sidónio Pais e centrada na sua figura?

A investigação, centrada no estudo das manifestações fotográficas noticiosas do período sidonista na revista Ilustração Portuguesa, teve por objetivos:

1. Descrever, diacronicamente, a narrativa fotográfica desse período, conforme foi expressa nessa publicação;

2. Sincronicamente, aplicar a grelha interpretativa sobre a noticiabilidade construída por Nelson Traquina ao estudo de manifestações fotográficas noticiosas daquele período na citada revista, com os objetivos secundários de aclarar quais foram: (a) os valores-notícia imanentes aos acontecimentos associados ao Sidonismo que contribuíram para a sua seleção como notícia; (b) os valores-notícia contextuais que facultaram a seleção desses acontecimentos; e (c) os valores-notícia que nortearam a transformação daqueles acontecimentos em notícias gráficas.

Partiu-se das seguintes hipóteses:

1. A seleção dos acontecimentos que foram objeto de cobertura fotográfica pela Ilustração Portuguesa refletiu a conjuntura do período sidonista e o viés ideológico do Sidonismo;

2. Tendo em conta as circunstâncias particulares do período sidonista e a ideologia do Sidonismo, as fotografias publicadas na Ilustração Portuguesa contribuíram, a seu modo, para o engrandecimento do regime sidonista e para o culto da personalidade devotado a Sidónio Pais.

A metodologia da investigação, de natureza qualitativa, combinou três procedimentos.

A primeira operação consistiu na apreciação conjunta, sistemática e temporalmente organizada das fotografias referentes ao período sidonista publicadas na revista Ilustração Portuguesa. Observaram-se os casos fotográficos particulares, mas procurou-se, na sucessão destas singularidades, encontrar os “padrões de significado” (Scheufele, 2008, p. 969), as “estruturas de significado coerentes” (Scheufele, 2008, p. 967), que traduzissem, por indução reconstrutiva, globalmente, a narrativa fotográfica do período sidonista na revista Ilustração Portuguesa.

A segunda operação consistiu na seleção e recolha de exemplos para a construção do corpus de fotografias a analisar. Os exemplos fotográficos foram selecionados tendo em conta o seu potencial para ancorarem, pela sua representatividade (Scheufele, 2008, p. 969), a reconstrução indutiva da narrativa foto-discursiva da Ilustração Portuguesa sobre o período sidonista e justificarem o seu estudo particular. Escolheram-se, pois, fotografias que, pela sua representatividade, constituíssem o que se podem considerar exemplos-padrão (Scheufele, 2008, p. 969), em função do momento, do motivo ou tema, da singularidade a que se referem e da variedade autoral. O corpus empírico foi, assim, composto com base numa amostra arbitrária por casos notáveis, que Wimmer e Dominick (1996, p. 70) consideram ser uma “amostra estratégica”. Enquanto amostra estratégica, é não probabilística, mas sistemática, já que foi construída, sistematicamente, em função da notabilidade e representatividade detetada nas fotografias selecionadas para o corpus, de acordo com os princípios de variação determinados. São amostras admissíveis na investigação em comunicação, quando se procura “compreender processos e não populações” (Hayes, 2008, p. 4451). O terceiro procedimento consistiu na apreciação singular de cada uma das fotografias integrantes da amostra, no contexto de publicação (isto é, tendo em conta o tema e o texto da matéria em que surgiram inseridas), para delas deduzir - ou seja, chegar a uma verdade particular a partir de uma verdade geral - os padrões de noticiabilidade que possam ter motivado a sua publicação, de acordo com a proposta teórica de Nelson Traquina (2002).

1. A noticiabilidade segundo Nelson Traquina

A noticiabilidade segundo Traquina tem pertinência metodológica no estudo de caso em análise, na medida em que autor nos coloca perante uma conceptualização dinâmica. Partindo de uma perspetiva histórica dos valores-notícia, o seu livro remete para uma reflexão que tem como base as categorizações clássicas propostas por Galtung & Ruge (1965/1993) e Erik, Baranek & Chan (1987), que depois de explanadas se traduzem na diferenciação dos valores-notícia de seleção e de construção (Traquina, 2002, p. 186) e que serviriam de ponto de partida para sua própria proposta conceptual.

Em Dicinding What’s News, Gans insere as questões de noticiabilidade não só nos processos decisórios dos jornalistas, mas também no processo de partilha de valores onde os media e profissionais se inserem (Gans, 2004, p. 40). Nesta redição do seu livro, Gans reflete sobre as novas dinâmicas do universo mediático, apontando elementos diferenciadores e elementos de continuidade. Acerca destes últimos, refere: “To the extent that they can, journalists pursue much of the same values as before”, acrescentando: “But news has to be available before journalists can choose what they consider suitable” (in Preface to the New Edition: xi). Retomando a ideia de intemporalidade dos valores notícia apresentada por este autor, Shoemaker & Reese referem a importância de padrões/critérios de noticiabilidade na construção das notícias e nas rotinas orientadas para audiências (2014, p. 170).

Dado o papel central que no processo decisório inerente à construção noticiosa, as abordagens teóricas são multifacetadas, podendo centrar-se, como na obra de Gans, na especialização do médium, nas temáticas, nas coberturas jornalísticas, constrangimentos ou outros, o que é atestado pela vasta bibliografia existente.

O processo de decisão na construção noticiosa evolui de acordo com as dinâmicas históricas do sistema mediático. Retomando a abordagem holística desta temática, o trabalho de O’Neill & Harcup (2001) propõe uma metodologia de análise que tem como base a taxionomia proposta por Galltung & Ruge. Em trabalhos mais recentes (2009; 2016) os autores aplicam e atualizam os aspetos conceptuais a novas dinâmicas do processo mediático, nomeadamente em media sociais. Os resultados apontam para valores inovadores como o de partilhas, mas também de permanência como conflito e exclusividade (O’Neill & Harcup, 2016). É uma lógica deste tipo, a aplicação de um modelo comprovado, que está subjacente ao modelo de análise escolhido para este estudo de caso.

Nelson Traquina (2002, p. 187 e 276) explicita que “as notícias apresentam um ‘padrão’ geral bastante estável e previsível”, sendo a “previsibilidade do esquema geral das notícias” decorrente da “existência de critérios de noticiabilidade” historicamente estáveis. Provando que os temas das notícias dos primeiros periódicos continuam, em grande medida, a ser os temas das notícias no jornalismo atual, Traquina (2002, pp. 174-176) relembra que as notícias sobre celebridades, assassínios, catástrofes, acontecimentos insólitos, guerras e batalhas, heróis e trocas comerciais, entre outros temas, sempre tiveram lugar nos jornais, desde o século XVII. A noticiabilidade seria, assim, de acordo com Nelson Traquina (2002, p. 173):

o conjunto de critérios e operações que fornecem a aptidão de merecer um tratamento jornalístico, isto é, de possuir valor como notícia. Assim, os critérios de noticiabilidade são o conjunto de valores-notícia que determinam se um acontecimento, ou um assunto, são suscetíveis de se tornar notícia, isto é, serem julgados como transformáveis em matéria noticiável, por isso, possuindo “valor-notícia”.

Nelson Traquina (2002, p. 186) nota que existem dois tipos de critérios de noticiabilidade: (1) os critérios de seleção; e (2) os critérios de construção.

os valores-notícia de seleção referem-se aos critérios que os jornalistas utilizam na seleção de um acontecimento (…). Os valores-notícia de seleção estão divididos em dois subgrupos: a) os critérios substantivos que dizem respeito à avaliação direta do acontecimento em termos da sua importância ou interesse como notícia, e b) os critérios contextuais que dizem respeito ao contexto de produção da notícia. Os valores-notícia de construção são qualidades da sua construção como notícia e funcionam como linhas-guia para a apresentação do material, sugerindo o que deve ser realçado, o que deve ser omitido, o que deve ser prioritário nessa construção. (Traquina, citando Wolf, 2002, pp. 186-187)

Segundo Traquina (2002, pp. 187-198), os valores-notícia de seleção (cf. Tabela 1) são os seguintes: morte; notoriedade; proximidade; relevância (ou impacto); novidade; fator tempo/atualidade, cabide noticioso; notabilidade; surpresa; conflito ou controvérsia; infração; e escândalo.

 

 

Os valores-notícia de seleção contextual (cf. Tabela 2) são os seguintes: a disponibilidade; o equilíbrio do noticiário; concorrência; e o dia noticioso (Traquina, 2002, pp. 196-198).

 

 

Os valores-notícia de construção (cf. Tabela 3), para Traquina (2002, pp. 198202), são os seguintes: a amplificação; a relevância; a personalização; a dramatização; e a consonância.

 

 

O mesmo autor explica, ainda, que outros fatores podem influenciar o que chega a ser notícia e a forma como esta se apresenta: a política editorial; os recursos da organização noticiosa; a necessidade de produtividade; e o peso da direção, dos proprietários e dos anunciantes (Traquina, 2002, pp. 201-202), a que se poderiam acrescentar o mercado, o público, a influência de terceiros poderosos, incluindo os governos, e ainda a ordem jurídica, incluindo a censura.

Lendo-se Traquina (2002, pp. 171-204) adquire-se a noção de que os valores-notícia agem associadamente. Por exemplo, um acontecimento forte em vários critérios de noticiabilidade mais facilmente se converte em notícia. Mas um acontecimento particularmente forte num valor-notícia também se pode converter em matéria noticiosa.

2. Representações fotográficas do período sidonista na Ilustração Portuguesa

Na análise à seleção de imagens sobre a cobertura fotográfica do período Sidonista, que começa com uma extensa reportagem que acompanha os momentos conturbados da revolução de dezembro de 2017, onde o ainda major da artilharia Sidónio Pais é protagonista, e que culmina com os dias que sucederam ao homicídio do histórico, mas controverso Presidente da República, a 14 de dezembro de 2018, é evidente como a revista Ilustração Portuguesa, propriedade d’O Século, já demonstra, na fotografia da publicação, um forte sentido do que são as convenções jornalísticas ou valores-notícia identificados por Nelson Traquina e outros autores. Apesar das limitações técnicas do equipamento fotográfico da época com câmaras de grande formato de peso considerável, a preocupação estética está presente nos registos fotográficos de Joshua Benoliel ou, numa fase posterior, Anselmo Franco. A observação das imagens permite perceber que os fotógrafos procuravam obter o ângulo visual, enquadramento ou composição que mais favorecessem a força do momento jornalístico. Através da atenção aos elementos morfológicos da imagem (Villafañe & Mínguez, 2002, pp. 111-125), onde a centralidade da figura política se destaca na multidão e a força das linhas sobressaem, os fotógrafos conseguem construir um sentido de leitura que representa a ideia de ascensão de Sidónio Pais e a subsequente idolatração popular.

A primeira fotografia (Figura 1) da Ilustração Portuguesa sobre Sidónio Pais mostra-o ainda em pleno golpe de Estado, durante as operações militares, conversando, calmamente, com o advogado Alberto de Moura Pinto, do Partido Unionista, seu futuro ministro da Justiça. Mereceu a primeira página. Da autoria de Joshua Benoliel, pioneiro do fotojornalismo em Portugal e colaborador fotográfico principal da publicação, a fotografia, de recorte cândido, contribuiu para apresentar Sidónio, um desconhecido do qual não se sabia o que esperar, à sociedade portuguesa. Obtida no calor da rebelião armada, transmite, apesar de tudo, calma e serenidade. É ponto de partida para uma extensa fotoreportagem de doze páginas e 26 fotos sobre a revolta, realizada por Joshua Benoliel, publicada no número de 17 de dezembro de 1917 da Ilustração Portuguesa. A escolha desta imagem remete para os critérios de noticiabilidade de conflito, dada a natureza da relação entre jornalistas e políticos. Por outro lado, a emergência de um novo líder militar, ainda que desconhecido, alude para os valores da atualidade/ novidade, mas também uma noção de proeminência. Ainda assim, a linguagem corporal das figuras representadas dá uma noção de proximidade, suscetível de gerar fenómenos de identificação com o público. O enquadramento vertical destaca as duas figuras humanas do ambiente envolvente, concedendo-lhes saliência visual e revelando uma cumplicidade entre Sidónio Pais e Alberto de Moura Pinto, em que o observador[2] ou leitor da revista também parece participar.

 

 

O Sidonismo levou altos responsáveis do republicanismo radical dos democráticos a abandonarem o país. O Presidente da República, Bernardino Machado, foi um deles. Numa fotografia de Benoliel, altamente simbólica, de “fim de regime”, Bernardino Machado, destituído pela revolução sidonista, parte para o exílio e despede-se, com cumplicidade, de um jornalista de O Século (Figura 2). A imagem simboliza a natureza problemática das relações entre políticos e jornalistas, moldadas quer pelo antagonismo e pelo confronto, critérios de valor-notícia, quer pela cumplicidade, que, no caso concreto, funcionou como um critério de seleção. Simboliza igualmente o colapso - ainda que momentâneo - do controlo sobre o Estado, imposto, minoritariamente, pelo Partido Republicano de Afonso Costa.

 

 

Ao longo de 1918, ano do consulado de Sidónio Pais, a imprensa concorreu, verbal e iconograficamente, para o culto de personalidade que lhe foi prestado. Os fotógrafos acorriam às viagens presidenciais pelo país, aos atos públicos do Presidente e às iniciativas presidenciais. Sidónio, por várias vezes, foi capa da Ilustração Portuguesa. Uma fotografia (Figura 3) de Vasques funcionou como uma espécie de fotografia oficial do novo Presidente da República. Representa o chefe de Estado a despachar, tranquilamente, assuntos oficiais no palácio de Belém. A foto é posada e foi, posteriormente, colorida para se tornar mais verosímil e apelativa, mas trata-se de uma pose naturalizada, de alguém que, sem olhar a câmara, escreve. O fotógrafo procurou a naturalidade nos gestos do Presidente, precisamente para contornar a questão da pose forçada e artificial. Pelo olho artificial da lente, Sidónio surgia à devassa do olhar público como um indivíduo trabalhador e esforçado. Desempenhava, pictoricamente falando, o seu papel simbólico de olhar por todos os portugueses. A farda do chefe do Estado acentuava a sua autoridade simbólica. Do ponto de vista do critério de noticiabilidade, esta fotografia remete, em primeira instância, para o critério proeminência, dada a notoriedade de S. Outro dos critérios detetáveis, mas não evidente será o conflito, uma vez que a partida é forçada e resulta das lutas entre as hostes republicanas.

 

 

O Sidonismo promoveu, efetivamente, o culto da personalidade militarista e autoritária do novo Presidente da República. Na foto da Figura 4, Sidónio saúda, a propósito, um conjunto de pessoas reunido em Faro, no Algarve, por ocasião de uma das viagens presidenciais pelo país. A fotografia é de Benoliel, que acompanhou o novo Presidente, tal como antes tinha acompanhado outros presidentes e reis.

 

 

Nesta representação de Sidónio (Figura 4), alimentava-se o mito do “salvador da Pátria”. O valor-notícia desta fotografia, captada de uma perspetiva superior ao espaço onde o povo se posiciona e com um plano de perfil que recorre à verticalidade da figura humana principal para impor um sentido conotativo de firmeza e solidez, funciona como um guião de leitura para o público, realçando a pose de estadista, elemento prioritário desta narrativa visual. Esta função de construção de uma narrativa através da imagem está igualmente presente nas fotografias seguintes. Os enquadramentos reforçam a figura do estadista, sendo os contextos parte da construção cerimonial. A lógica da notícia prende-se com a importância ou proeminência da figura retratada, pela ausência de elementos dissonantes e pelo realce conferido pelos contextos e aspetos funcionais. Está-se, pois, perante a perspetiva de critérios contextuais de produção da notícia.

Uma das formas de legitimação discursiva e simbólica dos agentes de poder consiste em dar testemunho visual público, por meio da imprensa jornalística, das atividades que somente eles podem exercer, já que detêm o poder para tal exercício. A cobertura fotográfica infopropagandística do Sidonismo foi pontuada, pois, por um conjunto de imagens que contribuíram, desde esse ponto de vista, para a legitimação do poder do novo chefe-de-Estado. Apesar do cariz documental que é próprio da natureza fotográfica, as imagens das Figuras 5 e 6 referem-se, na linha desse raciocínio, à visita do Presidente ao Parlamento, onde, ocupando a mais importante cadeira da sala, do alto da tribuna, discursou para deputados e senadores da República.

 

 

 

O valor-notícia de seleção notoriedade, que põe em primeiro plano a figura do poder e o seu lugar privilegiado na hierarquia social (Traquina, 2002), está presente nas fotografias seguintes. Da mesma forma que existe, entre os valores-notícia de construção, uma clara tendência para a personalização da narrativa visual, centrada em Sidónio.

A exemplo do que vieram a fazer, depois, outros regimes populistas e autoritários, Sidónio Pais investiu no assistencialismo. É crível que a intenção de Sidónio tivesse sido a melhor. Além disso, num país católico, a caridade assistencialista do Sidonismo ia ao encontro dos valores da Igreja e do povo. Permitia, ainda, contrastar a República Nova com o republicanismo radical que pouco ou nada fez pela erradicação da pobreza e tinha sido responsável pelo desastre que constituiu o envio de tropas portuguesas para a frente Ocidental e pelo desnorte em que, aparentemente, o país tinha caído. A “sopa dos Pobres”, as creches, as iniciativas de apoio à infância tornaram-se marcas políticas do Sidonismo e contribuíam, a seu modo, para o culto da personalidade de Sidónio. Com resultados palpáveis. O Presidente era adorado pelo povo miúdo. Onde ia, o povo acorria. A cobertura fotográfica das iniciativas presidenciais, além do papel testemunhal e informativo que tiveram, concorreram para a afirmação do novo regime e para a legitimação simbólica do Presidente - representado quase sempre rodeado pelo povo, pelas elites e pelos apoiantes da República Nova (Figuras 7 a 13). O líder político aparece, quase sempre, situado no centro geométrico dos fotogramas e é o ponto de atenção das imagens (Villafañe & Mínguez, 2002), atraindo o observador a permacer por mais tempo na figura do estadista, quando olha as fotografias.

 

 

 

 

 

 

 

 

O conjunto de fotografias em que Sidónio é retratado junto dos populares ou na sopa dos pobres remete para a construção da ideia do político próximo do povo ou mesmo como “um deles”, numa estratégia comunicacional comum a vários estadistas. Esta proximidade contribui, in loco, para gerar fenómenos de grande popularidade. Nas representações fotográficas, o critério de proximidade remete para fenómenos de empatia que se estabelecem com os leitores, reforçando esta noção, mesmo para os que não participavam destes acontecimentos.

Relembre-se, a propósito, que na Ilustração Portuguesa, despontava outro dos grandes fotojornalistas do tempo da I República - Anselmo Franco (1879-1965). Foi ele que substituiu Joshua Benoliel como fotojornalista principal da revista, em dezembro de 1918. Várias das fotografias do último mês de vida de Sidónio Pais são da sua autoria, incluindo as imagens da celebração do primeiro aniversário da República Nova, publicadas dois dias depois do assassinato do “Presidente-Rei”. Numa foto (Figura 11), Sidónio, localizado no centro geométrico da composição, surge rodeado de um mar de gente, no meio do povo, onde se sentia como peixe na água. A abordagem fotográfica, de resto, não era nova - Joshua Benoliel tinha-a usado três meses antes, em Sintra, mostrando Sidónio no meio das crianças (Figura 10). As crianças, personagens secundárias da fotorreportagem de Anselmo Franco sobre o aniversário da República Nova, são realçadas fotograficamente como um dos alvos da ação assistencialista do Sidonismo (Figura 12). A composição que valoriza a linha de perspetiva da mesa confere profundidade visual e transmite a dimensão e a importância social da efeméride. Sendo as crianças um dos elementos com mais força simbólica, esta imagem remete para o valor-notícia de seleção visualidade, partindo do pressuposto que a propabilidade de obter uma boa cobertura fotográfica era elevada. O elevado número de participantes visível na mesma imagem é, também, representativo da relevância do acontecimento, critério que pode ter estado na base da seleção noticiosa do evento.

A exploração visual do carácter humanitário do Presidente Sidónio é bem vincada noutra reportagem, de seis fotografias, cuja narrativa se organiza como um filme cronológico - sobre a visita presidencial ao hospital dos tifosos no Porto, durante uma epidemia que se abateu sobre a cidade (Figura 13). O Presidente parece não ter receio de se aproximar dos tifosos e de lhes dirigir palavras de conforto. A sequência dos planos de conjunto selecionados constrói a imagem de um Presidente da República que exalta o humanismo e que prefere mostrar compaixão para com os enfermos do que zelar pela sua própria segurança. Mais uma vez, é a proeminência e a notoriedade da personagem a outorgar grande parte do valor noticioso à peça de onde foram extraídas estas fotografias de reportagem.

O ponto alto do Sidonismo terá sido a proclamação oficial de Sidónio Pais como Presidente da República, a 9 de maio de 1918, depois das eleições de 28 de abril do mesmo ano. A fotografia de Sidónio a saudar, entusiasmado, o povo de Lisboa, a 9 de maio de 1918, desde a varanda da Câmara Municipal, no mesmo lugar onde a República havia sido proclamada, é simbólica (Figura 14). Tal como simbólica é a sua fotografia, isolado, a cavalo, passando revista às tropas (Figura 15), obtida na mesma data - ambas de Benoliel e integrando uma fotorreportagem de seis páginas e treze fotografias.

 

 

 

Com o Sidonismo, a vasta maioria católica tornou-se, novamente, visível na comunicação social e reconciliou-se com a República. O “Presidente-Rei” aproveitou-o politicamente. As cerimónias religiosas evocativas dos soldados mortos na guerra, por exemplo, sucederam-se e tiveram eco na comunicação social. A Figura 16, por exemplo, refere-se à assistência a uma missa católica de sufrágio pelas almas dos soldados mortos na Grande Guerra. Na Figura 17, o Presidente da República, Sidónio Pais, entra numa igreja para, acompanhado por um padre, assistir, no rescaldo da derrota de La Lys, que dizimou o Corpo Expedicionário Português em França, a nova cerimónia religiosa católica de sufrágio pelos soldados mortos pela pátria. Com Sidónio, a vasta maioria católica une-se. Era a vez de passarem para segundo plano os republicanos democráticos que tinham contribuído para a revolução de 5 de outubro de 1910 e instituído um regime laico, urbano e progressista, provavelmente, à revelia da vontade da maioria do povo português, conservador, rural e católico, impedido de votar e totalmente arredado do poder e do processo decisório.

 

 

 

Também os monárquicos aumentaram a sua visibilidade pública com o Sidonismo. A Figura 18 mostra, precisamente, um aspeto da assistência à missa de sufrágio pelo Rei D. Carlos e pelo Príncipe-Real D. Luís Filipe, assassinados por um republicano extremista em 1908.

 

 

As fotografias que associam o Presidente da República Nova à Igreja e aos monárquicos remetem para os mesmos valores de proximidade, onde a construção noticiosa é pautada pelo destaque dos fatores afetivos da reconciliação da sociedade portuguesa. Esta reconciliação é ritual e promovida pelas diversas imagens aqui escolhidas, já que o fotógrafo exclui toda a mensagem dissonante desta representação da pacificação portuguesa. Pode também ser apontado que o valor-notícia conflito não está completamente ausente das imagens. Há o conflito entre a República e a Igreja e o conflito com os monárquicos e daí a necessidade de rituais de aproximação. Há ainda o conflito central, a participação de Portugal na Grande Guerra, que embora não seja visível, está implícito.

De um ponto de vista negativo, o Sidonismo foi sobressaltado por revoltas e outros confrontos armados (Figuras 19, 20, 21, 23 e 24), atentados (Figura 22), greves e manifestações (Figura 25), atos de sabotagem (Figura 28) e outras ocorrências. A cobertura pictórica desses acontecimentos mostrava o descontentamento que reinava entre alguns setores da população. Mas também evidenciava, por parte do regime, alguma tolerância perante a cobertura - ainda que pontual - de acontecimentos que, potencialmente, o colocavam em xeque. Aliás, por vezes, o que se destaca nessa cobertura é, precisamente, a apaziguadora e tranquilizadora imposição da ordem, depois do momento de perturbação (Figuras 21, 23 e 24). É possível que ao regime também interessasse explorar o medo e a intranquilidade da população portuguesa, mostrando, na imprensa, o que faziam os inimigos do Sidonismo. As manifestações, as greves - algumas violentas, a sabotagem, os atentados, os confrontos armados, as rebeliões e acontecimentos semelhantes certamente confrontavam o desejo de tranquilidade, ordem e paz social que, possivelmente, a maioria da população, cansada das convulsões da República e da participação na Grande Guerra, acalentava. Daí que a exposição pública dos atos dos inimigos do regime pudesse beneficiar o próprio regime.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

De qualquer modo, é patente que nas fotografias 19 a 27 se realça um valor-notícia primordial para o Sidonismo - o conflito. A oposição à República Nova esteve presente em todo o mandato de Sidónio e o desenlace dramático da sua morte - de cuja cobertura emergem, combinados, os valores-notícia da proeminência da personagem e da morte (Figuras 30 a 34) - é o culminar da oposição feroz que lhe foi feita. A primeira revolta antissidonista ocorreu a 8 de janeiro de 1918. Desencadeada pelos assíduos e quase profissionais revolucionários da Marinha, foi controlada pelas forças do Exército, fiéis ao regime. Publicadas, somente, a 21 de janeiro de 1918, 13 dias depois da revolta, na revista Ilustração Portuguesa, as fotografias do inevitável Joshua Benoliel (Figuras 19, 20, 21) mostram, sempre desde o ponto de vista das forças sidonistas, aspetos da tomada de posição dos militares fiéis ao Governo (Figura 19), que bombardearam os marinheiros sublevados a bordo do couraçado Vasco da Gama (Figura 20). A narrativa pictórica evolui até ao aprisionamento dos sublevados (Figura 21). A confirmação visual da derrota dos sublevados, no contexto, era relevante.

 

 

 

 

 

 

 

A partir do verão de 1918, a hostilidade de vários setores da população ao regime sidonista irrompeu com mais vigor. Ocorreram vários episódios de violência, como a revolta de 12 de outubro, em diversas cidades do país; atentados bombistas, também em diferentes pontos do país; e mesmo um confronto armado, a 16 de outubro, nas ruas de Lisboa, que resultou na morte de vários prisioneiros da revolta de 12 de outubro, quando estavam a ser transportados para o forte de São Julião da Barra. As fotos de um desses atentados - no Porto, contra um armazém da empresa de distribuição Jerónimo Martins - evidenciam o grau de destruição e podem ter contribuído para suscitar a raiva da população contra os indivíduos sem rosto que queriam minar o regime recorrendo à violência (Figura 22). Mas as fotos relativas à revolta de 12 de outubro (Figura 23), obtidas a posteriori, ou as imagens referentes ao confronto armado de 16 de outubro (Figura 24) não têm em si qualquer embrião de violência. Muito pelo contrário, delas emanam sensações de calma e controlo da situação pelo regime.

No mundo operário também surgiram focos de descontentamento. Se bem que algumas manifestações e greves não tenham tido consequências de maior (Figuras 25 e 26), possibilitando mesmo, a Sidónio, passear-se pelas ruas de Lisboa, em carro aberto e quase sem escolta, para inspecionar a situação (Figura 26), outras houve que incluíram episódios de alguma violência, caso, por exemplo, da greve anarquista de novembro de 1918, durante a qual sobrevieram episódios de sabotagem (Figura 27).

Curiosamente, se houve ocasiões de descontentamento cujos ecos se repercutiram, pictoricamente, na Ilustração Portuguesa, também houve, porém, manifestações de agrado e apoio, como uma manifestação de funcionários públicos apoiantes do regime (Figura 28).

Quando ascendeu ao poder, Sidónio Pais não enviou, ou não conseguiu enviar, reforços, provisões, material e equipamentos para o Corpo Expedicionário Português. Após um inverno duro que os portugueses enfrentaram, sem roupas nem equipamentos adequados, a situação no setor da frente em que o CEP se posicionava, já de si grave, deteriorou-se. A derrota portuguesa e aliada na batalha do rio Lys, ou batalha de La Lys (9 a 29 de abril de 1918), perto de Ypres, ditou o fim da efetiva presença portuguesa na frente Ocidental. Os soldados do CEP foram remetidos à condição de auxiliares. Alguns deles, feridos e doentes, regressaram a Portugal a 16 de abril de 1918 e foram recebidos por Sidónio, constituindo a primeira leva de retorno de veteranos de guerra. No país, a instabilidade aumentou tanto que o Presidente se viu obrigado a declarar o estado de sítio, a 13 de outubro de 1918. Para agravar a situação, o Governo sidonista foi incapaz de repatriar de imediato todos os soldados portugueses em França, após o armistício de 11 de novembro de 1918, apesar dos esforços, documentados fotograficamente, como elemento de prova, e devidamente publicitados pela imprensa (Figura 29). O clima conspirativo adensou-se.

O Presidente Sidónio Pais escapou a uma primeira tentativa de assassinato a 5 de dezembro de 1918, durante a cerimónia de condecoração dos sobreviventes do navio patrulha oceânico Augusto de Castilho, afundado num combate contra um submarino alemão, enquanto protegia a fuga de um navio comercial com passageiros a bordo. A 14 de dezembro, porém, o “Presidente-Rei” foi assassinado por um militante republicano. A morte da maior figura política portuguesa da época e as condições em que o homicídio ocorreu remetem para quase todos os valores de seleção noticiosa identificados por Nelson Traquina (2002). Os jornais e a Ilustração Portuguesa trouxeram o assunto à primeira página logo que lhes foi possível. Semanal, a Ilustração Portuguesa só cobriu o assunto no número de 23 de dezembro, sendo revelador das suas morosas rotinas de produção que não tivesse sido possível alterar o número anterior, de 16 de dezembro, já posterior ao assassinato, para dar conta do sucedido[3]. Na primeira página, rodeado de uma significativa tarja preta, em sinal de luto, aparece um retrato de corpo inteiro do Presidente assassinado (Figura 30), da autoria do retratista Otávio Bobone (1894-?). No interior, outra foto de Otávio Bobone, testemunhal, igualmente ladeada de uma tarja negra, mostra Sidónio Pais no seu leito mortuário (Figura 31).

O carácter fraturante da personalidade de Sidónio Pais foi bem visível nos seus funerais, acompanhados por dezenas de milhares de portugueses, mas interrompidos, vezes sucessivas, por incidentes violentos. As fotos escolhidas dos funerais (Figuras 32, 33 e 34) são da autoria do substituto de Joshua Benoliel como fotógrafo principal de O Século e da Ilustração Portuguesa - Anselmo Franco (18791965)[4] - e mostram, principalmente, comoção geral, a afluência popular e a pompa e circunstância no cortejo fúnebre do primeiro líder populista português, precursor de todos os autoritarismos populistas e nacionalistas que alastraram, depois, pela Europa. É interessante notar a tentativa de Anselmo Franco prestar atenção a certos detalhes humanizadores da fotorreportagem, como acontece na fotografia que serviu de capa à Ilustração Portuguesa de 30 de dezembro de 1918, que vale pela mistura dos ternos “anjinhos”, de branco vestidos, promessa de eternidade e futuro, com a urna pesada e negra, num escuro camião militar, rodeada por um grupo de militares e civis (Figura 33). Uma das fotografias é, simbolicamente, emoldurada pelos símbolos nacionais, acrescentados sob a forma de desenho, nas laterais do topo (Figura 34).

As fotografias aqui apresentadas após o assassinato de Sidónio são construções de uma imagem cerimonial, onde a figura do estadista em pose pontua como elemento de notoriedade e reverência, inclusive na imagem da morte. O valor-notícia proximidade é reforçado pelas multidões retratadas nas cerimónias, pela pose das crianças que reforçam a emotividade do momento retratado. O elemento conflito permanece ausente das notícias sobre a morte e cerimónias a ela associado, contribuindo, através de um critério de exclusão, para a construção de uma imagem idealizada de estadista proeminente, próximo do povo.

Conclusões

Os critérios de noticiabilidade explanados por Nelson Traquina (2002) ajudam a explicar o discurso iconográfico da Ilustração Portuguesa sobre o Sidonismo. A investigação realizada permitiu concluir, nomeadamente, que a notoriedade foi o valor-notícia que mais orientou a seleção fotonoticiosa que fundou a narrativa fotojornalística construída pela Ilustração Portuguesa sobre o Sidonismo, exceto num único momento - a revolução fundadora do novo regime. A revolução de 5 a 8 de dezembro de 1917 foi notícia por ser surpreendente, conflitual, infratora, notável, nova, próxima, atual, relevante e mesmo mortal para cerca de cem pessoas. Sidónio ainda era um desconhecido, daí que a notoriedade não tenha sido uma das qualidades noticiosas que se podem colar ao acontecimento, mas começou a ganhar protagonismo visual na revista logo a 17 de dezembro, quando já se adivinhava que controlava a situação.

A notoriedade da personagem sobrepôs-se, depois, a quaisquer outros valores-notícia. Sidónio Pais era, afinal, a personagem sustentadora da República Nova. Além disso, soube orquestrar uma encenação pública do poder a que a imprensa aderiu, ou foi condicionada a aderir. Por isso, os fotojornalistas - destacando-se o pioneiro Joshua Benoliel e, mais tarde, Anselmo Franco - cobriram, sem surpresa, os atos públicos mais relevantes do chefe de Estado. Num tempo em que o fotojornalismo era já uma prática consolidada em Portugal e os fotojornalistas eram aceites, nas redações, como repórteres de pleno direito, o discurso fotográfico da Ilustração Portuguesa - publicação importante e socialmente impactante por ser única revista ilustrada de informação geral e grande expansão que circulava durante o Sidonismo - alimentou, efetivamente, o mito de Sidónio Pais, afetando o imaginário português e a memória histórica. A investigação demonstrou também que os relatos verbais dos historiadores sobre o período Sidonista correspondem aos relatos pictóricos da Ilustração Portuguesa. Isto é, diferentes historiadores (Oliveira Marques, 1995; Saraiva, 2003; Ramos, Sousa e Monteiro, 2009) destacam que Sidónio Pais teve sabedoria e habilidade para compor uma espécie de figura de caudilho, de pai da Pátria, que projetou em cerimónias públicas, desfiles militares, presença em iniciativas assistencialistas e visitas ao país. A narrativa pictórica da Ilustração Portuguesa, que acompanhou esse período é, pois, consonante com a narrativa verbal, posterior, dos historiadores, contribuindo, em última análise, para sustentar e validar os relatos destes últimos.

Tendo em consideração a proposta de Nelson Traquina (2002) sobre a noticiabilidade, outros valores-notícia, como a proximidade, a novidade, o tempo, ou seja, a atualidade, a notabilidade e a relevância também interferiram na seleção fotonoticiosa da Ilustração Portuguesa, mas não ofuscam o critério da notoriedade. O critério do cabide noticioso ajuda a explicar, por seu turno, a cobertura das celebrações do aniversário da República Nova, enquanto os critérios do conflito e da infração contribuem para esclarecer a presença, na Ilustração Portuguesa, de peças - e correspondentes fotografias - de acontecimentos que desafiaram o Sidonismo, mas que também, pela sua violência, podem ter gerado mais rejeição do que aceitação pelos portugueses, passando, pois, incólumes pela censura. O assassinato de Sidónio, além das qualidades valorativas anteriores, foi notícia por ser surpreendente e, claro, mortal. Entre os valores-notícia de seleção contextual sugeridos por Traquina (2002), a visualidade é aquele que se destaca na narrativa fotográfica da Ilustração Portuguesa sobre o período sidonista. A coreografia montada para promover o enérgico líder da República Nova e o novo regime, que prometia a regeneração do país e da República e a união de todos os portugueses, gerou oportunidades fotográficas para os fotojornalistas. Já entre os valores-notícia de construção, assume particular relevância o critério da personalização da narrativa visual em torno de Sidónio Pais, mas a carga dramática que pôde ser adicionada pictograficamente a esta narrativa em certos momentos - como os desfiles militares, a morte de Sidónio e os funerais de Estado - também influenciou as escolhas. Os restantes critérios de construção também se detetam na narrativa, embora com menos repercussões.

Finalmente, pode aceitar-se, em parte, a primeira hipótese colocada: a seleção dos acontecimentos do Sidonismo que foram objeto de cobertura fotográfica pela Ilustração Portuguesa refletiu a conjuntura do período sidonista e o viés ideológico do Sidonismo, mas também mereceram cobertura pictórica acontecimentos potencialmente negativos para a imagem da República Nova e do seu líder - casos das revoltas, dos atentados e das greves violentas. Das imagens, porém, não emana pouca violência simbólica - como se o regime controlasse a situação, o que não era verdade, conforme comprovou o assassinato do chefe-de-Estado.

Pode aceitar-se, por seu turno, a segunda hipótese. Isto é, tendo em conta as circunstâncias particulares do período sidonista e a ideologia do Sidonismo, as fotografias publicadas na Ilustração Portuguesa contribuíram para o engrandecimento simbólico do regime sidonista e para o culto da personalidade devotado a Sidónio Pais.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Submetido| Received: 2020.02.07. Aceite | Accepted: 2020.09.08

 

Notas biográficas

Jorge Pedro Sousa é Professor Catedrático na Universidade Fernando Pessoa. É investigador integrado no ICNOVA.

Ciência ID: 4110-C40A-9ACF. Email: jpsousa@ufp.edu.pt

Morada institucional: Universidade Fernando Pessoa. Praça de 9 de Abril 349, Porto 4249004, Portugal

Universidade Nova de Lisboa, Instituto de Comunicação da NOVA, Av. de Berna, 26-C - Lisboa 069-061, Portugal

 

Fátima Lopes Cardoso é Professora Adjunta Convidada na Escola Superior de Comunicação Social do Instituto Politécnico de Lisboa. É investigadora integrada no ICNOVA.

Ciência ID: 5A10-3EFB-C190. Email: fatimalcardoso@gmail.com

Morada institucional: Escola Superior de Comunicação Social do Instituto Politécnico de Lisboa. Campus de Benfica do IPL, 1549-014 Lisboa, Portugal

Universidade Nova de Lisboa, Instituto de Comunicação da NOVA, Av. de Berna, 26-C - Lisboa 069-061, Portugal

 

Helena Lima é Professora Auxiliar do Departamento de Ciências da Comunicação e Informação da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

Ciência ID: 451F-FE7D-B94A. Scopus Author ID: 55253005600 Email: hllima@letras.up.pt

Morada institucional: Via Panorâmica Edgar Cardoso s / n, 4150-564 Porto, Portugal

 

[1] O chamado Partido Democrático era, na verdade, o velho Partido Republicano Português, depois da cisão de unionistas e evolucionistas, situados mais à direita do espectro político, em 1912.

[2] Para Jonathan Crary (2017, p.28), “um observador, ainda que seja obviamente alguém que vê, é acima de tudo, alguém que vê um conjunto enunciado de possibilidades, alguém que está inserido num sistema de convenções e limitações”.

[3] O número de 16 de dezembro contém uma fotorreportagem de Anselmo Franco sobre o primeiro aniversário da República Nova.

[4] Joshua Benoliel abandonou, entre dezembro de 1918 e 1924, a profissão de repórter fotográfico.

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