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Media & Jornalismo

versão impressa ISSN 1645-5681versão On-line ISSN 2183-5462

Media & Jornalismo vol.20 no.37 Lisboa dez. 2020

https://doi.org/10.14195/2183-5462_37_0 

APRESENTAÇÃO

O ensino e o estudo dos media e de jornalismo: tributo a Nelson Traquina

Media and journalism studies and education: a tribute to Nelson Traquina

Marisa Torres da Silva1,
https://orcid.org/:0000-0003-1136-4232

Carla Baptista2,
https://orcid.org/0000-0002-8188-3567

Francisco Rui Cádima3,
https://orcid.org/0000-0002-5449-8831

1 Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Instituto de Comunicação da NOVA - ICNOVA marisatorresilva@fcsh.unl.pt

2 Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Instituto de Comunicação da NOVA - ICNOVA. carla.baptista@fcsh.unl.pt

3 Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Instituto de Comunicação da NOVA - ICNOVA. frcadima@fcsh.unl.pt


 

Este número especial da revista Media & Jornalismo é dedicado ao Professor Nelson Traquina que, em 2002, a fundou e dirigiu. Trata-se de um tributo sincero e um registo da nossa imensa gratidão intelectual e humana, procurando fazer jus ao seu enorme, rico e inovador legado.

Nelson Traquina morreu no dia 26 de setembro de 2019, poucos dias depois de completar 71 anos. Deixou para todos nós uma extraordinária obra para pensar os media e o jornalismo, que atravessou fronteiras e que certamente manterá a sua pertinência no futuro. Deixa também a memória viva de um homem profundamente afetuoso, amigo, inspirador, apaixonado pelo jornalismo, a quem tantos devem a sua formação profissional e académica.

Nascido a 17 de setembro de 1948, nos Estados Unidos, em Chicopee, Massachusetts - estado norte-americano que muito orgulhosamente descrevia como um dos poucos a não dar a vitória a Richard Nixon nas presidenciais de 1972 - era filho de Engrácia Nogueira Tereso e José Marques Traquina, imigrantes açorianos, com quem manteve uma forte ligação afetiva ao longo da vida. Fez licenciatura e mestrado em Política Internacional nos Estados Unidos, mas foi em França que obteve a licenciatura em Ciências da Informação, no Institut Français de Presse, além do Diplome d’Études Superieures Specialisées (D.E.E.S.) em Comunicação Política e Social na Universidade de Paris I e, em 1980, o doutoramento em Sociologia pela Universidade de Paris V - René Descartes. Esta formação diversificada, dos dois lados do Atlântico, cunhou de modo determinante a construção de um olhar singular sobre os campos mediático e jornalístico.

Chegou a Portugal em outubro de 1974, como correspondente da United Press International, experiência que anos depois procurou manter viva nas suas aulas de Produção Jornalística, onde centenas daqueles que hoje preenchem as redações portuguesas aprenderam a evitar o “lead diz nada” e as “frases Sibéria”. Esta passagem pelo jornalismo internacional teve influência no objeto escolhido para a sua tese de doutoramento, centrada na importância das agências noticiosas internacionais. Em 1982, foi convidado a dar aulas na licenciatura em Comunicação Social da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) na Universidade NOVA de Lisboa e, poucos anos depois, leciona no primeiro curso de Mestrado em Comunicação Social na mesma universidade, orientando a área de especialização em Estudos dos Media e de Jornalismo. Os primeiros alunos recordam-no sempre carregado de papéis que distribuía generosamente. Eram cópias de textos de investigadores desconhecidos em Portugal, a maioria norte-americanos, mas também latino-americanos, que nos abriram um admirável mundo novo de questões sobre os media, o jornalismo, a política e a sociedade. É a partir da sua entrada na NOVA FCSH que Traquina se torna uma referência incontornável, não apenas na formação de jovens jornalistas, mas também na consolidação dos estudos jornalísticos em Portugal, área disciplinar até então incipiente ou, diríamos até, inexistente no país.

Em 1996, ascende a professor catedrático e, um ano depois, funda o Centro de Investigação Media e Jornalismo (CIMJ). Apesar de sediado na FCSH, foi idealizado por Traquina como um centro interuniversitário que reunia investigadores, docentes e alunos de mestrado e doutoramento de várias instituições, mas também profissionais de órgãos de comunicação social (Cunha, 2012, pp. 3-4). Criar um centro que conjugasse diferentes experiências profissionais e académicas, com o objetivo de fomentar a investigação científica e contribuir para uma compreensão aprofundada de temas relacionados com os media e o jornalismo, foi à data algo de absolutamente pioneiro e excecional - e, hoje, mesmo sabendo da impossibilidade prática de existência de um centro com características semelhantes no contexto universitário atual, não conseguimos evitar um sentimento nostálgico na lembrança do dinamismo colaborativo, dialogante e reflexivo que pautou os anos de atividade do CIMJ enquanto unidade de investigação interuniversitária.

Os anos 2000 foram particularmente profícuos na atividade do CIMJ, com o surgimento dos primeiros projetos de investigação financiados pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) mas também pela organização de dois grandes seminários internacionais, onde participaram académicos de vários países com quem Traquina mantinha contactos próximos.

O Seminário Internacional “Media, Jornalismo e Democracia”, em março de 2000, na Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa, foi o primeiro momento de reunião entre jornalistas, investigadores portugueses de relevo e académicos estrangeiros que já então eram clássicos para diversas investigações científicas em Portugal, como Philip Schlesinger, Thomas E. Patterson ou Benoît Grevisse. As comunicações apresentadas nesse seminário foram compiladas no livro Media, Jornalismo e Democracia - Comunicações Apresentadas no Seminário Internacional, publicado em 2002, pela Livros Horizonte, onde se iniciaria a coleção Media e Jornalismo, um dos mais importantes veículos de divulgação da investigação realizada por membros do CIMJ (mas não só).

No mesmo ano, funda e dirige, em conjunto com Estrela Serrano e Cristina Ponte, a revista Media & Jornalismo - nela se publicarão, nos primeiros anos, trabalhos de confluência entre a pesquisa europeia mais interpretativa e a tradição anglo-saxónica, conciliando abordagens de pendor conceitual e empírico (Correia, 2008), com o objetivo de ser “um espaço promotor de discussão qualificada não só na comunidade académica mas também entre todos os que se interessam pelos media e pelo jornalismo nas sociedades contemporâneas”, como refere o Editorial do seu primeiro número. O lançamento da Media & Jornalismo é, na verdade, a expressão do seu interesse pelo debate teórico sobre as grandes questões relacionadas com o campo jornalístico, já muito presente nos dois números temáticos que tinha anteriormente coordenado na Revista de Comunicação e Linguagens, em 1988 (Jornalismos) e em 2000 (Jornalismos 2000). Manteve-se como diretor da Media & Jornalismo até 2015, não obstante o seu afastamento da vida académica e universitária em 2011, ano em que se reformou e saiu da direção do CIMJ, tendo regressado aos Estados Unidos. Nelson Traquina é a maior referência dos estudos dos media e de jornalismo em Portugal. Publicou proficuamente sobre as suas teorias, história, ética, valores e profissionalismo jornalístico, revelando uma profunda consciência sobre as dimensões políticas dos media e do jornalismo e, também, o compromisso com a cidadania e a democracia. Conseguiu, ao mesmo tempo, antecipar algumas das grandes questões da reflexão contemporânea sobre os media, incluindo as tendências disruptivas na informação, particularmente em contexto televisivo. Foi igualmente o organizador de vários livros com textos seminais para pensar os media, o jornalismo e a sociedade. A antologia Jornalismo: Questões, Teorias e “Estórias” (Veja, 1993) constitui-se, com efeito, como um marco na qualificação dos estudos jornalísticos no país. Foi aqui que, pela primeira vez, aparecem traduzidas peças de referência no âmbito dos estudos de jornalismo a nível internacional e que atualmente tão bem conhecemos, de autores como Gaye Tuchman, Harvey Molotch e Marilyn Lester, Johan Gatung e Mari Holmboe Ruge, Elihu Katz, David Manning White, Warren Breen, Philip Schlesinger, Michael Gurevitch e Jay G. Blumler, Michael Schudson, Daniel C. Hallin e Paolo Mancini, entre outros. A importância deste livro funda-se não apenas no facto de ter disponibilizado a alunos, docentes e investigadores um conjunto de textos fundadores de difícil acesso (Cunha, 2012, pp. 1-2), mas também no impulso dado à teorização contemporânea dos campos jornalístico e mediático, numa reflexão tripartida sobre as questões (o que é um acontecimento? O que é são as notícias? O jornalismo é uma profissão? O que significa a objetividade?), as teorias (porque é que as notícias são como são?) e as “estórias” (que formas narrativas apresentam?). A obra contém um elemento muito presente em vários livros de Traquina: a dedicatória aos alunos, a quem não se esquece de agradecer o estímulo para reflexões fecundas (ou, ainda, em alguns casos, a colaboração concreta no livro em questão). Ao longo da sua trajetória docente e de investigação, manteve a prática generosa de trabalhar e de partilhar os seus méritos com alunos em diversos estádios de formação, desde a licenciatura ao doutoramento. A importância de Nelson Traquina nos estudos dos media e de jornalismo não se circunscreve, porém, a Portugal - além de diversas publicações em prestigiadas revistas científicas norte-americanas, teve também um forte impacto no Brasil, influenciando um grande número de pesquisadores e de professores nesse país, ávidos leitores da sua obra, muito mobilizada até hoje em investigações científicas e em contexto de sala de aula. Em 2001, publica na Unisinos o livro O estudo do jornalismo no século XX, onde aborda o conceito de agenda-setting e a redescoberta do poder do jornalismo, as teorias do jornalismo, a problemática do HIV/Sida como notícia, o jornalismo cívico ou a necessidade de os cidadãos serem vigilantes em relação ao denominado quarto poder. Anos depois, em 2005, publica em dois volumes as Teorias do Jornalismo, na editora Insular, obra encomendada pelo Programa de Pós-Graduação em Jornalismo e Mídia da Universidade Federal de Santa Catarina.

Nelson Traquina marcou de forma indelével a fundamentação teórica dos media e do jornalismo. Os seus contributos são tão diversificados que não cabem nesta apresentação. Exercemos o poder de seleção e de enquadramento daquilo que, a nosso ver, de mais significativo a sua obra representa (em particular no âmbito dos estudos jornalísticos). Consideramos também o modo como os artigos que compõem este número especial trazem olhares adicionais aos caminhos que Traquina traçou dentro do campo de estudos.

A sistematização das diferentes abordagens teóricas para explicar o que é o jornalismo é um dos elementos mais originais do trabalho de Traquina. No capítulo 3 do livro O que é jornalismo (Quimera, 2002), o autor desenha o percurso histórico do surgimento do estudo do jornalismo como um campo científico. Ressalvando o facto de o próprio termo “teoria” ser discutível, porque não se trata de um conjunto elaborado e interligado de princípios e proposições (Traquina, 2002, p. 74), e a ideia que as “teorias” do jornalismo não se excluem mutuamente, Nelson Traquina categoriza as diferentes lentes teóricas que tentam responder à questão de saber porque são as notícias como são, com um olhar fortemente marcado pela tradição anglo-saxónica:

- a teoria do espelho, assente na ideologia profissional dos jornalistas legitimada quer pela emergência de um novo jornalismo que emergiu no século XIX, quer pelo surgimento do conceito de objetividade a partir dos anos 20 nos EUA;

- a teoria do gatekeeper, que teve como ponto de partida um estudo de caso feito por David Manning White nos anos 50 e que originou uma das “tradições mais persistentes e prolíferas na pesquisa sobre as notícias” (Traquina, 2002, p. 77);

- a teoria organizacional, impulsionada pela pesquisa publicada por Warren Breed na revista científica Social Forces e que coloca em evidência a importância dos constrangimentos organizacionais na atividade dos jornalistas, enfatizando também as diferenças de interesse entre os profissionais (staffers) e os seus superiores hierárquicos (executives);

- as teorias de ação política, onde Traquina enquadra a “versão deesquerda” de Edward S. Herman e de Noam Chomsky na tradição dos chamados news bias studies;

- e as teorias construtivistas (que, como o nome indica, perspetiva as notícias como uma construção), em que o investigador distingue a vertente estruturalista (sedimentada na obra clássica Policing the Crisis, da autoria de Stuart Hall e de um conjunto de autores enquadrados nos estudos culturais britânicos) e a vertente interacionista, que reflete um conjunto diversificado de pesquisas científicas que têm como foco a rotinização do trabalho jornalístico, a tirania do fator tempo, o jogo noticioso entre jornalistas e fontes e a própria cultura jornalística.

Esta teoria interacionista, representada por autores como Philip Schlesinger, Herbert Gans, Gaye Tuchman, Harvey Molotch e Marilyn Lester ou Michael Gurevitch e Jay G. Blumler, era a que lhe colhia maior entusiasmo nas aulas da disciplina de Teoria da Notícia, claramente pela convergência teórica com os próprios interesses de pesquisa de Traquina - podemos aliás dizer que os seus trabalhos no âmbito dos estudos jornalísticos se enquadram plenamente nos pressupostos partilhados por esta abordagem teórica.

O elenco das diferentes teorias do jornalismo tem a crucial importância de nos permitir perceber não apenas os princípios e o foco de cada uma das lentes teóricas, mas também de as inserir em tradições de pesquisa específicas no contexto da pesquisa em comunicação e, ainda, compreender quais as suas ramificações posteriores. Traquina tinha também a convicção de que era tão necessário entender os pontos de disputa entre as diversas teorias da notícia como também os seus possíveis pontos de consenso, tendo em vista um enquadramento teórico mais sólido na compreensão do jornalismo (Silva, 2004, p. 201).

O próprio livro O que é jornalismo pode ser considerado um documento essencial no legado de Traquina, pelo que ainda hoje representa na teorização do campo jornalístico. É uma obra na qual se combinam diferentes vertentes do seu percurso: se por um lado é um manual teórico para a prática jornalística e indispensável para o futuro profissional (Traquina, 2002, p. 11), com os seus conteúdos programáticos muito refletidos na disciplina que Traquina criou e lecionou na FCSH até 2011 (Teoria da Notícia), por outro é também a materialização de um conjunto de reflexões teóricas advindas da sua intensa experiência de investigação. Nele se encontram as temáticas fundamentais para o estudo do jornalismo: a trajetória histórica da evolução do jornalismo em democracia, o seu processo de profissionalização, a construção de uma identidade jornalística e de critérios de noticiabilidade, além das já referidas teorias do jornalismo. O pioneirismo de Nelson Traquina em criar e insistir na repetição bianual de um seminário internacional intitulado “Media, Jornalismo e Democracia”, apenas na sua última edição (2014) acrescentado para “Media, Jornalismo e Democracia na Era Digital”, dá bem conta da sua visão de uma experiência democrática e cívica quase inteiramente moldada na e pela relação com os media. Basta olhar para os sucessivos programas desses encontros para constatar como foram integrando os grandes temas da pesquisa interdisciplinar sobre media, sociedade e política: desde os resultados de estudos mais empíricos sobre coberturas jornalísticas de acontecimentos e protagonistas políticos, até ensaios mais teóricos centrados nos impactos da globalização, da digitalização e da “abundância” de informações.

Nelson Traquina promoveu uma agenda de pesquisa que refletia o que desejava para o jornalismo: ser um promotor do diálogo público e da cidadania plena, isto é, diversa, disputada e inclusiva. A crença na capacidade do jornalismo se preservar como um espaço de liberdade e resistência nunca o abandonou, mesmo se assente no ceticismo (e nunca no cinismo) de quem foi observando e escrevendo sobre a diluição do jornalismo noutros discursos e sobre as disrupções que hoje contaminam (ainda mais) o espaço público. Vivendo nos Estados Unidos desde 2011, os jantares partilhados nas visitas regulares a Portugal eram sempre marcados por essa tensão: nós queríamos falar dos males do “Trumpismo”, ele queria contar as experiências inovadoras de jornalismo local e cidadão. Essa foi uma preocupação sempre presente, vertida no livro “Jornalismo Cívico” (2003), em co-autoria com Mário Mesquita.

Nessa ocasião, Traquina citou o jornalista David Merritt, um dos fundadores desse movimento através de um jornal ultra periférico chamado Wichita Eagle: “a vida pública não vai bem e o jornalismo está em dificuldades.”

Traquina olhou para estas tentativas de revitalização da participação democrática com benevolente realismo. Mais do que uma proposta voluntarista de “faça você mesmo”, acreditou sempre mais no potencial de uma reflexão que conduzisse a uma transformação das práticas profissionais. Estava disposto a rever “velhas” ideias, como a objetividade jornalística, mas também a recordar o “velho” que existe quase sempre no “novo”, como escreveu: “Este ‘novo jornalismo’ não é inteiramente novo. Partilha preocupações levantadas por John Dewey nos anos 20 e 30 sobre o papel dos media em democracia; retira inspiração da teoria de responsabilidade social do jornalismo defendida pela Comissão Hutchins nos anos 40; repercute posições mais recentes de académicos que condenam a teoria libertária do jornalismo como limitada e insuficiente (…). O jornalismo cívico representa uma importante brecha com a busca frenética de notícias, a postura cínica com a vida política, a dependência excessiva nas fontes oficiais, e a desatenção flagrante para com os cidadãos enquanto participantes ativos na vida pública” (Traquina, 2015, p. 303).

Um outro contributo singular na obra de Traquina é a sua concetualização de “tribo jornalística”. O autor segue Barbie Zelizer (1993) na proposta de examinar o jornalismo como mais do que uma profissão, identificando os jornalistas como uma “comunidade interpretativa”, olhando em particular para a relevância do discurso jornalístico em determinar o que fazem (e como fazem o que fazem) os jornalistas, para os seus contactos informais e para a centralidade da narrativa. Traquina inova ao preferir o conceito de “tribo jornalística”, para transmitir mais claramente a forma como os membros desta comunidade interpretativa, ao partilharem uma ideologia profissional e uma cultura jornalística rica em representações, usam uma lógica do concreto no seu trabalho quotidiano. A noção intitula o seu livro de 2004, A Tribo Jornalística. Uma Comunidade Transnacional, da Editorial Notícias, e está presente em vários textos da sua autoria.

A hipótese de que os jornalistas constituem uma tribo transnacional, que partilha quadros de referência, normas e valores-notícia comuns independentemente do contexto organizacional ou cultural em que estão enquadrados, é explorada através do estudo da noticiabilidade da Sida em jornais de vários países, incluindo Portugal, onde foram analisados 20 anos de notícias sobre esta problemática. Trata-se de um estudo que decorre de um dos primeiros projetos de investigação na área dos estudos dos media e de jornalismo financiado pela FCT, onde participaram investigadores como Rogério Santos ou Cristina Ponte, fundamental no pioneirismo de uma abordagem comparativa internacional neste campo de estudos.

As conclusões do trabalho empírico de Traquina confirmam a hipótese de que os jornalistas contaram as mesmas “estórias” sobre a Sida, com um claro predomínio das fontes oficiais, explicado enquanto elemento de rotinização do trabalho jornalístico. O artigo de Traquina na prestigiada revista Journalism: Theory, Practice, and Criticism[1] é aliás citado na entrada “Interpretive Community” da grandiosa obra The International Encyclopedia of Journalism Studies, publicada em 2019, como exemplo referencial de investigação científica centrada no modo como as crenças profissionais de quatro comunidades interpretativas favoreceram a orientação para os acontecimentos em detrimento das problemáticas, como mecanismo para fazer face aos constrangimentos do campo jornalístico, nomeadamente o tempo e os recursos disponíveis (Berkowitz, 2019).

Nelson Traquina era muito consciente da riqueza e da multidimensionalidade dos estudos de jornalismo, no que respeita aos seus objetos, temáticas e metodologias, num campo em permanente e rápida mudança - e, por isso mesmo, alertava para os riscos de um fascínio obsessivo pela novidade e pela inovação tecnológica, contrapondo a necessidade de cruzamento de lentes interdisciplinares para apreender as intersecções políticas, económicas e culturais que constituem o jornalismo enquanto instituição social, na senda da proposta de Barbie Zelizer em “tomar o jornalismo a sério” (Traquina, 2006, pp. 55-56). Mas à medida que o lugar dos jornalistas e das instituições mediáticas na vida pública tem vindo a ser desafiado, emerge também a exigência de novas perspectivas analíticas e enquadramentos conceituais que nos permitam apreender as funções sociais do jornalismo na atualidade (Mellado, Georgiou, & Nah, 2020, p. 335). E, quando os próprios conceitos de “jornalismo” e de “jornalista” estão hoje sujeitos a contestação, amplificados por transformações tecnológicas, políticas, sociais e económicas mais vastas, o futuro dos estudos de jornalismo será certamente pautado por uma ainda maior diversificação e multiplicidade de caminhos de pesquisa (Wahl-Jorgensen & Hanitzsch, 2020, p. 7).

Este número especial da Media & Jornalismo é, assim, uma forma de agradecimento a Nelson Traquina pelos caminhos desbravados na teorização dos media e do jornalismo, a que se juntam novas rotas de pesquisa, certamente devedoras da sua herança. A construção do número teve como base o contacto com uma larga base de investigadores que partilharam e beneficiaram do seu trabalho e do seu convívio. Com exceção de dois artigos por convite (agradecemos a generosa participação de Michael Schudson e de Adriano Duarte Rodrigues), os restantes textos passaram por um processo de revisão cega por pares. Os artigos são por isso assinados por autores que estiveram ligados a Nelson Traquina e com ele partilharam percursos, carreiras, amizades e uma profunda admiração e saudade.

Os dois primeiros artigos são expressivos do alcance e dos contactos internacionais de Nelson Traquina. O número abre, pois, com um texto de Michael Schudson, reputado sociólogo e historiador do jornalismo, cujos trabalhos, como por exemplo a perspetiva histórica que propôs para o surgimento do conceito de objetividade enquanto “norma moral” no contexto norte-americano, eram muito mobilizados e admirados por Nelson Traquina. Intitulado “The revolution in news that nobody named”, o ensaio visa compreender o contexto e as causas de uma revolução no jornalismo que, a seu ver, ainda não foi suficientemente identificada - a transformação que antecedeu a revolução digital na década de 1990 e que se traduziu na passagem de um modelo mais estenográfico (que denomina como objetividade ou profissionalismo 1.0) para um jornalismo mais rico, contextual e crítico (profissionalismo 2.0), a partir dos anos 70, nos Estados Unidos. Schudson argumenta que a objetividade 3.0 (que, para ele, estará a caminho) poderá trazer empatia e honestidade ao jornalismo, não esquecendo as bases factuais e analíticas presentes nos dois modelos anteriores da profissão.

O artigo de Eduardo Meditsch e de Guilherme Neto evidencia o impacto da obra de Traquina nos estudos de jornalismo no Brasil ao longo de duas décadas, partindo de um levantamento bibliométrico de trabalhos apresentados em congressos de jornalismo e comunicação no país. Os resultados obtidos demonstram a consistência da elevada projeção do trabalho de Traquina na pesquisa brasileira em jornalismo, quer enquanto introdutor de autores internacionais na língua portuguesa (através de coletâneas como Jornalismo: questões, teorias e “estórias”), quer enquanto autor, cujo impacto é ainda mais significativo nos dados de 2019.

Olhando para o contexto nacional, no artigo “O legado de Nelson Traquina no estudo dos media e do jornalismo”, Cristina Ponte reflete sobre o seu contributo enquanto docente e investigador, tendo presentes os tempos de transição ao longo de três décadas na Universidade Nova de Lisboa. A autora recorda os seus anos de vida académica e identifica também as lentes mais presentes na investigação de Traquina sobre o jornalismo (Sociologia e Ciência Política), mobilizando a sistematização de Zelizer (1994) sobre as perspetivas disciplinares que têm pautado os estudos de jornalismo. Assinala, por fim, questões para uma agenda de pesquisa em media e jornalismo no atual contexto digital.

O próximo conjunto de textos reflete sobretudo a lente da História no estudo do jornalismo, tendo em conta contributos de Traquina neste e noutros âmbitos. Assim, Jorge Pedro Sousa, Helena Lima e Fátima Lopes Cardoso partem da proposta de Nelson Traquina sobre os valores-notícia (2002) e analisam de que forma o discurso fotográfico sobre o Sidonismo na revista Ilustração Portuguesa (1917-1918) se relaciona com os critérios de noticiabilidade por ele categorizados. Os autores concluem que a notoriedade foi o valor-notícia que mais orientou a seleção fotonoticiosa da narrativa fotojornalística desta revista e, também, que as fotografias publicadas contribuíram para o engrandecimento simbólico do regime de Sidónio Pais.

Já Alberto Pena Rodríguez e Maria Érica de Oliveira Lima dedicam-se à análise da imprensa portuguesa nos Estados Unidos entre 1910 e 1929, cujas publicações, fundadas por imigrantes (sobretudo dos Açores), se consolidaram como importantes meios de informação e de instrução, fomentando o sentimento de pertença. O ponto de partida foi o próprio percurso biográfico de Traquina, enquanto filho de imigrantes portugueses nos Estados Unidos, mas também a sua relevância enquanto pesquisador de referência sobre as dinâmicas mediáticas e jornalísticas. Articulando igualmente a história com os estudos de jornalismo e utilizando, entre outras perspetivas teóricas, o conceito de agendamento e a relação entre problemática e acontecimento (Traquina, 2000, 2002), o artigo de Rogério Santos analisa as peças noticiosas sobre rádio saídas na revista Vida Mundial Ilustrada(1941-1946).

Também numa vertente histórica, mas centrando o olhar no contexto televisivo, presente no conjunto seguinte de artigos, Francisco Rui Cádima analisa o período da abertura da televisão à iniciativa privada em Portugal, à luz dos estudos sobre media e televisão de Nelson Traquina. Entre outras conclusões, o autor destaca o alerta de Traquina em relação à política de “desregulamentação selvagem” do início dos anos 90 (e cujos efeitos ainda hoje são sentidos), com consequências muito negativas na televisão portuguesa na era da concorrência, ao mesmo tempo que retirou ao serviço público a capacidade de defender a qualidade e a diversidade da sua programação. Adriano Duarte Rodrigues, fundador do curso de Comunicação Social da Nova em 1980, colega de Nelson Traquina e autor do seminal texto “O acontecimento”, publicado na Revista de Comunicação & Linguagens em 1988 (no número dedicado aos “Jornalismos”), procura mostrar no seu artigo o modo como o ambiente constituído pelo funcionamento do dispositivo televisivo tem impacto nas normas usadas nas atividades interacionais realizadas nas entrevistas televisivas.

Num programa em que o género entrevista cria sinergias estratégicas, dentro da política de programação da SIC, entre entretenimento e informação, o talk show diário Programa da Cristina foi o estudo de caso escolhido por Carla Baptista, Marisa Torres da Silva e Allan Herrison Ferreira para uma análise da narrativa televisiva popular contemporânea. O artigo recupera as continuidades históricas com as linhas de força apresentadas no livro Big Show Media (1997) de Nelson Traquina, no que diz respeito à desregulamentação da atividade televisiva em Portugal e também à emergência de um novo estilo televisivo assente em critérios de rentabilização e hibridez de formatos. Numa análise temática de uma semana do programa, em pleno período de confinamento originado pela crise pandémica da Covid-19, os autores situam o êxito deste talk show num contexto de reativação de um formato antigo de televisão popular num enquadramento social, político e mediático complexo, procurando ainda complementar a sua abordagem com uma perspetiva de género e com um estudo das redes sociais associadas ao programa e ao perfil de Cristina Ferreira.

O papel da televisão na pandemia de Covid-19 é igualmente o pano de fundo do artigo de Ana Cabrera, Carla Martins e Isabel Ferin Cunha, que propõem uma análise da cobertura jornalística desta crise de saúde pública em Portugal, examinando mais de 300 peças noticiosas dos três canais de televisão generalistas entre os dias 2 e 18 de março de 2020. Nele mobilizam os estudos de Traquina sobre as teorias da notícia e as pesquisas de HIV/Sida realizados pelo autor em conjunto com outros colaboradores. Os resultados obtidos, de carácter exploratório, indicam, entre outros aspetos, a adesão aos definidores primários da informação, que definem a agenda jornalística e enquadram a problemática.

Os dois últimos artigos deste número especial são devedores do contributo de Nelson Traquina quer no ensino e no estudo do jornalismo, quer na reflexão sobre os desafios que atualmente se colocam à comunicação política mediatizada. Anabela de Sousa Lopes, Cláudia Silvestre e Maria José Mata discutem os resultados de uma pesquisa que teve como objetivo captar as perceções estudantes de licenciatura e mestrado em jornalismo da Escola Superior de Comunicação Social, sobre tópicos fundamentais que sustentam as respostas à pergunta que intitula uma das mais conhecidas obras de Traquina: O que é jornalismo? Face ao desfasamento encontrado entre perceções muito negativas sobre o jornalismo atual e expectativas em relação ao que ele deveria ser, as autoras lançam algumas questões sobre o papel das instituições de ensino no processo formativo.

No artigo de fecho deste special issue, Estrela Serrano, figura próxima de Nelson Traquina e sua sucessora na direção do CIMJ, propõe-se a identificar, numa abordagem qualitativa, as marcas de populismo (enquanto expressão do conteúdo e do estilo de comunicação política) nos discursos e declarações de André Ventura (do partido da nova direita radical Chega) que mereceram referência nas edições online de media tradicionais, a propósito de quatro acontecimentos amplamente mediatizados entre 2019 e 2020. A autora reflete também sobre o modo como o “fator media” contribui para legitimar lideranças personalizadas e populistas.

Os textos são reveladores não apenas da proximidade científica aos diversos temas que abordou ao longo da vida, mas sobretudo da relevância do seu trabalho na atualidade e nas apropriações que inspirou em tantos académicos, sobretudo no Brasil, como fica claro no artigo apresentado por Eduardo Meditsch e Guilherme Ferreira Neto. Os leitores encontram contributos ricos que atravessam as dimensões principais da carreira académica e investigativa de Nelson Traquina: o jornalismo, os estudos visuais, a investigação em estudos dos media, os efeitos do entretenimento e a desregulação progressiva do mercado televisivo, a história dos media (imprensa e rádio) e as transformações na comunicação política e no espaço público. O nosso comovido agradecimento aos autores e amigos que tão prontamente acederam a colaborar neste número, diríamos, “especialíssimo”, e ainda assim tão parco em relação à figura do homem que o inspirou. Obrigada, Nelson Traquina.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Wahl-Jorgensen, K., & Hanitzsch, T. (2020). Journalism Studies Developments, Challenges, and Future Directions. In K. Wahl-Jorgensen, & T. Hanitzsch (Eds.), The Handbook of Journalism Studies (pp. 3-20). New York & London: Routledge.         [ Links ]

 

Notas biográficas

Marisa Torres da Silva é Professora Auxiliar do Departamento de Ciências da Comunicação da NOVA FCSH. É investigadora do ICNOVA - Instituto de Comunicação da NOVA e é sub-diretora da revista Media & Jornalismo.

Ciência ID: E811-91FA-DC5E, Scopus Author ID: 56431105300 Email: marisatorresilva@fcsh.unl.pt

Morada institucional: Universidade Nova de Lisboa, Instituto de Comunicação da NOVA, Av. de Berna, 26-C - Lisboa 069-061, Portugal

Carla Baptista é Professora Associada do Departamento de Ciências da Comunicação da NOVA FCSH. Coordena o GI media e Jornalismo do ICNOVA - Instituto de Comunicação da NOVA e é sub-diretora da revista Media & Jornalismo.

Ciência ID: FF1B-13F5-CE58, Scopus Author ID: 57189266192 Email: carla.baptista@fcsh.unl.pt

Morada institucional: Universidade Nova de Lisboa, Instituto de Comunicação da NOVA, Av. de Berna, 26-C - Lisboa 069-061, Portugal

Francisco Rui Cádima é Professor Catedrático do Departamento de Ciências da Comunicação da NOVA FCSH. É investigador Responsável do ICNOVA - Instituto de Comunicação da NOVA e é diretor da revista Media & Jornalismo.

Ciência ID: 231F-D7BA-F635, Scopus Author ID: 57063529500 Email: frcadima@fcsh.unl.pt

Morada institucional: Universidade Nova de Lisboa, Instituto de Comunicação da NOVA, Av. de Berna, 26-C - Lisboa 069-061, Portugal

 

[1] Traquina, N. (2004). Theory consolidation in the study of journalism: A comparative analysis of the news coverage of the HIV/AIDS issue in four countries. Journalism: Theory, Practice, and Criticism, 5(1), 97-116.

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