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Media & Jornalismo

versão impressa ISSN 1645-5681versão On-line ISSN 2183-5462

Media & Jornalismo vol.20 no.36 Lisboa jun. 2020

 

VARIA

A Memória e a Era Digital

Memory and the Digital Era

F. Rui Cádima*
https://orcid.org/0000-0002-5449-8831

* Universidade Nova de Lisboa. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Instituto de Comunicação da NOVA - ICNOVA


 

RESUMO

O digital expandiu as possibilidades da memória e as suas tecnologias para um plano que nos suscita algumas questões e uma primeira reflexão face ao seu paradoxo essencial. Em síntese, a incerteza que nos propomos discutir neste artigo prende-se com essa contradição que se coloca face a uma mnemotécnica que tanto nos garante essa expansão da memória como o seu fechamento ou as suas disfunções. Um paradoxo entre o arquivo aumentado e a impossibilidade de memória. A dualidade memória vs. esquecimento regressa assim num contexto tecnológico mais complexo, com implicações radicais na perceção da política contemporânea (falsas memórias, câmaras de eco), nos media (pós-verdade, factos alternativos) economia (ideologia do clickbait, desmemoriação) ou no apagamento da própria história (perda do arquivo da web). A memória vertiginosa que nos traz o digital é assim também uma espécie de não-memória.

Palavras-chave: memória; digital; política; história; web


 

ABSTRACT

Digital has expanded the possibilities of memory and its technologies to a plan that raises some questions and a first reflection on its essential paradox. In short, the uncertainty that we propose to discuss in this paper is related to this contradiction that arises with regard to a mnemotechnic that guarantees both the expansion of memory and its closure or its dysfunctions. A paradox between the enlarged archive and the impossibility of memory. The memory / oblivion duality returns in a more complex technological context, with radical implications for the perception of contemporary politics (false memories, echo chambers), in the media (post-truth, alternative facts) economics (clickbait ideology, dememoriation) or in the erasure of the history itself (loss of web archives). The vertiginous memory that digital brings us is thus also a kind of non-memory.

Keywords: memory; digital; politics; history; web


 

Devemos trabalhar de forma a que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens.

Jacques LeGoff

Un monde gagné par la technique est perdu pour la liberté.

Georges Bernanos

Uma das dimensões de maior impacto do digital na experiência humana acontece justamente no domínio da memória, que podemos considerar como um dos últimos redutos da autonomia do humano face ao potencial de adulteração e enviesamento do conhecimento que os ciclos de memórias auxiliares e artificiais, mas também de memórias sociais censuradas e recalcadas, têm vindo a introduzir ao longo dos tempos históricos e sobretudo nesta era da “pós-verdade”, como, por exemplo, no caso do hibridismo de imagens da memória humana com tecnologias de síntese ou simples tratamento de imagem, na delegação da memória e no constante recurso ao “exterior de si” em arquivos e em bases de dados digitais, ou no caso dos vídeos adulterados enquanto deepfakes.

O problema da centralidade da memória como prática cultural e social constitutiva das narrativas do real e da história está intrinsecamente ligado a outras dimensões mais complexas, nos domínios científico e epistemológico, desde as relações entre imagens e linguagem, memória e cognição, experiência e conhecimento, ou mesmo verdade e história - e, em questões mais contemporâneas, do direito à memória ao “dever de memória” (Ledoux, 2016). Cada uma destas dualidades tem a sua complexidade própria, embora nesta reflexão nos interesse fundamentalmente uma outra dicotomia, aquela que trabalha em torno de dois conceitos, designadamente entre mnemónica e mnemotécnica, no contexto da experiência do sujeito e da constituição das próprias subjectividades nos diferentes tempos históricos - da cultura oral à cibercultura.

Trata-se de uma questão tão antiga quanto a própria civilização, mas começa por ganhar maior definição justamente ao tempo do progressivo declínio das sociedades de cultura oral, no período pós-alfabético. Teríamos assim que voltar, por exemplo, ao Fedro, de Platão, para recuperar um primeiro momento de radical fractura neste âmbito. Reavivando a lenda do deus egípcio Thoth, seria o patrono dos escribas e dos funcionários letrados, inventor dos números, do cálculo, da geometria e da astronomia, do jogo de dados e do alfabeto. Thoth transformou a memória, mas no sentido da reminiscência, porque a escrita “tornará os homens mais esquecidos, pois que, sabendo escrever, deixarão de exercitar a memória” chamando as coisas à mente não já do interior, mas do exterior de si, passando a receber grandes somas de informação, o que não será o saber em si mesmo, mas uma “aparência de sabedoria” (Platão, 2000: 121). A escrita emergia então como simulacro numa Grécia essencialmente reactiva ao novo código convencional - o então emergente alfabeto vocálico e consonântico. No contexto da cultura oral da Antiguidade clássica, num ambiente fortemente marcado tanto pela perceção áudio-táctil (McLuhan, 1977), como pela anamnesis como reminiscência mística, mas também pela rememoração e conhecimento, emerge então esse outro modo de lembrar do “exterior de si”, a escrita como pharmakon, neste caso como um código visto, à época, como nefasto para essa passagem da experiência sensível ao mundo das ideias.

Ainda que a “arte da memória” possa ser considerada uma espécie de escrita interna, poder-se-ia dizer, tal como sugere Smolka (2000), e ao contrário de Platão, que “não há como reportar-se à escrita para lembrar”, não há como recorrer à memória auxiliar para rememorar. Aceitando o princípio como bom, no contexto da era pós-alfabética, será que hoje, no ambiente da Web e da “pós-verdade”, podemos dizer o mesmo em relação ao “arquivo” digital, num contexto de falsas memórias, factos alternativos, acontecimentos inexistentes e viciação de dados? Isto sobretudo quando esses registos integram o tracking da pegada digital individual - dos posts e mensagens aos data points de cada cidadão registados em sistemas de Big Data - revelando factos e informação, eventuais reminiscências, antecipando inclusivamente tomadas de decisão, que os próprios, no limite, podem ter dificuldade em reconhecer como seus?

Uma primeira questão a colocar é então essa mesmo: se a autonomia da memória pré-alfabética teve esse primeiro confronto violento com a emergência da escrita, passando neste campo a experiência humana a partilhar, no pós-alfabético, mas também no pós-tipográfico, a sua tradicional mnemónica com a nova mnemotécnica. A ser assim, como avaliar agora na contemporaneidade esse corte epistemológico baseado numa outra mnemotécnica assente agora, não num código convencional de escrita por todos partilhado, mas num potencial “algoritmo-mestre” que terá de nós mesmos um “espelho digital” (Domingos, 2017: 294) integrando conexões complexas de IA, aprendizagem automática (machine learning) e data driven science? É fundamentalmente para esta questão que remetemos agora a discussão do problema, partindo de uma genealogia do conceito, da sua externalização e progressiva alienação, ou marginalização, procurando finalmente contextualizar estas extensões, estas excrescências da memória na contemporaneidade de certo modo como o novo paradoxo contemporâneo da dualidade mnemónica vs. mnemotécnica, isto é, um paradoxo entre uma exteriorização aumentada e uma impossibilidade de memória.

Genealogia

É importante começar por notar as dimensões estruturantes da memória no contexto da experiência individual, dado que, de um ponto de vista aristotélico, é a condição primeira da rememoração e do conhecimento. Essa experiência permite também que o homem seja o agente autónomo das suas próprias representações e associações, interligando registos e cronologias, essenciais a uma concepção do eu e à identidade do sujeito. A memória e a herança cultural dos povos são assim, cada vez mais, elementos essenciais da procura da identidade, individual e coletiva, nas sociedades contemporâneas. Por outro lado, importa notar também o que, consequentemente, conduz à construção social da experiência, o processo de produção e apropriação do conhecimento e da cultura, e, por via deste, o modo como a memória se inscreve na palavra, no discurso, no socius. Repare-se que na concepção aristotélica da memória estamos inclusivamente perante questões de ordem epistemológica, porque ela própria “subentende o processo indutivo e faz assim o laço entre percepção e intelecção” (Morel, 2009: 14-15).

Segundo Leroi-Gourhan (1983b), a história da memória colectiva divide-se em cinco grandes periodizações: transmissão oral, transmissão escrita por meio de tábuas ou índices, fichas simples, mecanografia e seriação electrónica. No caso da transmissão oral falamos fundamentalmente de literatura oral, de memórias familiares e de anciãos, ou também de matéria religiosa e mágica. No caso das primeiras transmissões escritas, as mais antigas nas grandes civilizações da Antiguidade clássica relacionam-se com calendários e distâncias, com a economia do templo e do palácio, com as dívidas para com os deuses e os homens. Repare-se que são também estes os tempos de uma memória social sob o estigma do arbítrio do déspota nas civilizações emergentes da “inscrição” escrita - afinal, legislação, burocracia, contabilidade, tudo se inscreve no cortejo do déspota (Deleuze e Guattari, s/d: 161). O que se prolongará em regra, salvaguardando as devidas distâncias, até à contemporaneidade. Da escrita para a tipografia, e depois até à era da imprensa, é uma vastíssima memória colectiva, uma memória social do mundo que se consolida a par de uma progressiva exteriorização da memória individual. Hagiologias, enciclopédias, literatura técnica e científica, todo esse “arquivo” se estrutura como uma muito alargada memória externa.

No contexto dos séculos XVIII e XIX, a matéria documental adensa-se e complexifica-se, das fichas simples aos registos bibliográficos com múltiplos ordenamentos. Vêm depois os ficheiros perfurados - manuais, mecânicos ou electrónicos - que Leroi-Gourhan considera representarem uma etapa comparável à das primeiras máquinas automáticas. Aqui entramos já nas correlações de cada uma das fichas com as restantes. Temos assim, sucessivamente, a memória étnica nas sociedades sem escrita, a mnemotécnica da oralidade à escrita, a memória medieval, e os inconstantes equilíbrios entre o oral e o escrito, os progressos da memória escrita pós-tipográfica e as complexas questões contemporâneas com os seus novos lugares de memória, os seus não-ditos, os registos esquecidos e as suas espirais de silêncio, correlação que de alguma maneira constitui também um dos objectivos desta reflexão.

Desde o Sapiens, portanto, que a constituição de sistemas de memória social dominam a evolução das sociedades. Tentando perceber melhor a “nebulosa” memória e a sua genealogia, das mnemónicas para as mnemotécnicas, ou das memórias étnicas, que asseguram, segundo Leroi-Gourhan, a reprodução dos comportamentos nas sociedades humanas, para as memórias artificiais, que tinham concretizado a dessacralização da memória, devemos ter em atenção que a memória torna-se, progressivamente, um sistema burocrático ao serviço dos centralismos políticos que então surgem. É determinante nas lutas das forças sociais pelo poder, e pela gestão da memória, dos silêncios e do esquecimento das suas sociedades históricas, isto é, é fundamental na manipulação da memória coletiva.

Nesse tempo de transição, a memória artificial escrita e a expansão de sistemas de notação e de listas hierarquizadas, caminham a par com a instalação do poder monárquico e a organização de um poder novo, e, no Ocidente, a par de uma cristianização da memória e da mnemotécnica. A divisão da memória coletiva entre uma memória litúrgica e uma memória laica é um traço marcante das metamorfoses da memória na Idade Média. No limite, a excomunhão, essa damnatio memoriae cristã, implicava a condenação ao esquecimento de um excomungado, sendo que depois da sua morte nada poderia ser escrito em sua memória.

Chegados à era tipográfica, verifica-se que a imprensa revoluciona claramente a memória ocidental. Até à revolução da memória pela imprensa mal se distingue a transmissão oral da transmissão escrita. Mas, no contexto do impresso e da modernidade, não só se assiste a um alargamento radical das fontes da memória individual e dos locais de memórias, como o sujeito é colocado na presença de uma memória social e coletiva como antes não se havia verificado. Por fim, uma das características fundamentais da contemporaneidade prende-se com a aceleração do tempo e a pressão da história imediata, que, por exemplo, na perspectiva de LeGoff (1984:44) é “em grande parte fabricada ao acaso pelos media, caminha na direção de um mundo acrescido de memórias coletivas e a história estaria, muito mais que antes ou recentemente, sob a pressão dessas memórias coletivas”.

Entre memória humana e memória eletrónica digamos que estamos perante uma memória instável, por um lado, e uma memória da máquina, ou do computador, com uma evidente maior estabilidade. Os novos sistemas integram dados e programas informáticos, dispositivos magnéticos que conservam as informações, cálculo rápido, meios de controle e resultados. Como todas as outras formas de memória automáticas, a memória eletrónica é essencialmente um auxiliar que leva o homem a exteriorizar progressivamente faculdades cada vez mais complexas que não deixam por isso de estar fortemente enraizadas no social.

Externalização

As mnemotécnicas pós-alfabéticas são, portanto, uma extensão ou externalização da memória humana. Mas repare-se que de início, a atividade cognitiva e a memória individual estão indelevelmente ligadas a inscrições externas, regularidades e experiências, e a práticas específicas de um determinado ambiente técnico e social. As memórias externas puderam inclusivamente adquirir a configuração de objectos transmissores de hábitos e usos. Monumentos e locais com história são, também, interpretados como lugares de memória, e através deles predominará, essencialmente, uma memória coletiva, mas podem ser também conteúdos da Web, ou algoritmos, como veremos.

De alguma maneira, a memória individual e social resulta já de um processo específico de externalização de técnicas humanas. Os instrumentos como extensão do homem e a interação com o seu ambiente geram uma transmissão social de práticas e técnicas, e, por conseguinte, uma qualidade reprodutiva dessa mesma memória que, por sua vez, se autonomiza do determinismo biológico. De algum modo foi também esta reprodução da memória social que permitiu a consolidação de uma história social e posteriormente o próprio desenvolvimento da linguagem, inclusive operações de descontextualização ou de recodificação linguística, e a reprodução dessas práticas já autonomizadas em novos contextos de interação social. Leroi-Gourhan (1965) alertava para o facto de a própria técnica comportar em si uma dimensão autónoma, podendo não conferir ao sujeito a possibilidade de responder em tempo ao seu avançado perfeccionismo. Também para Simondon (1969) há como que uma “independência” do objecto técnico. Se no seu estádio artesanal o objecto técnico possui uma certa margem de indeterminação e é susceptível de diversas utilizações consoante diferentes necessidades sociais, ao nível industrial o objecto adquire a sua coerência e é o sistema das necessidades que é menos coerente do que o sistema do objecto; as necessidades moldam-se ao objecto técnico-industrial, que adquire assim o poder de modelar uma civilização. Veja-se ainda McLuhan (1979:65) e o “fim” da descontinuidade homem-máquina: quando em pleno uso da tecnologia, o homem é continuamente modificado por ela, interagindo simultaneamente na sua transformação e evolução como se se tratasse do “órgão sexual do mundo da máquina”.

Bernard Stiegler introduz uma outra dimensão complementar, agora na abordagem da técnica na sua relação “exterior” com a memória, sendo aqui a “tecnologia” entendida como um sistema de acoplamentos funcionais entre os organismos e o seu ambiente. Considera Stiegler que os primeiros instrumentos do Sapiens contêm já em si indicadores de memória, pelo que, na sua perspectiva, “a técnica é acima de tudo uma memória” (1998: 191-192), uma terceira memória que possibilita uma transmissão e uma herança, e, portanto, a possibilidade “filogenética” de uma cultura. De certa forma, tal como Gourhan sugeria, dizendo que a nossa cultura electrónica basicamente tem por suporte um aparelho fisiológico que evoluiu a partir do sapiens, sendo que o que está hoje ligado simbolicamente, esteve verosimilmente ligado outrora por uma identidade conceptual e linguística: “Toda a evolução psico-motriz, desde os primeiros vertebrados, processou-se por adição de novos territórios, que não suprimiram a importância funcional dos precedentes, preservando-lhes o seu papel específico, cada vez mais enraizado nas funções superiores” (1983: 221). Leroi-Gourhan abordará também o tema da memória em expansão através de novos instrumentos, de novas técnicas auxiliares, em particular a escrita e a imprensa; e Bernard Stiegler abordava ainda as novas questões colocadas pela exteriorização progressiva, ou “industrialização” da memória (1998: 188):

La technique, étant devenue une mnémotechnologie et mettant en Suvre un processus généralisé et mondial d’industrialisation de la mémoire, fait aujourd’hui exploser tous les cadres sociaux, économiques, politiques, religieux, esthétiques, et même vitaux, tous les cadres de pensée avec lesquels nous considérions notre identité d’hommes, c’est à dire d’êtres sociaux, et notre cadre de vie dans sa globalité.

Para Leroi-Gourhan, a escrita alfabética garantia ainda uma memória social e mantinha nos indivíduos um imaginário próprio e um “esforço de interpretação” (1983a: 211). Pelo contrário, com a linguagem audiovisual a margem de interpretação individual reduz-se, deixando o espectador “fora de toda a possibilidade de intervenção activa” (Leroi-Gourhan, 1983a: 212). De certo modo, a emergência das novas tecnologias veio introduzir no regime da percepção um cada vez maior restringimento da interpretação individual: “A linguagem audiovisual tende a concentrar a elaboração total das imagens nos cérebros de uma minoria de especialistas que transmitem aos indivíduos matéria totalmente figurada” (Leroi-Gourhan, 1983a: 213), sendo que esta evolução não afecta apenas o audiovisual, mas engloba “todo o gráfico”, sendo “as massas”, os seus destinatários, considerados por Leroi-Gourhan neste contexto “órgãos de assimilação pura e simples” (1983a: 213).

Tal como Pierre Bourdieu (1965) havia referido relativamente aos ritos de integração e recordação social que representavam as fotos dos “álbuns de família” no contexto da fotografia, o historiador Jacques Le Goff (1984: 39) também considera que essa tecnologia “revoluciona a memória: multiplica-a e democratiza-a, dá-lhe uma precisão e uma verdade visuais nunca antes atingidas, permitindo assim guardar a memória do tempo e da evolução cronológica”. Novas são, no entanto, as questões colocadas pelo desenvolvimento de tecnologias digitais da memória coletiva, embora à partida, como refere Leroi-Gourhan (1986: 86-87), o problema essencial possa não estar exactamente aí: “Parler de notre dépassement actuel par les techniques est donc un faux problème: les techniques sont normalement ‘dépassantes’ et le point angoissant n’est probablement pas là”. Sobre a memória electrónica, a questão é, para este antropólogo, que o homem se habitue a ser “mais fraco do que o seu cérebro artificial” (Leroi-Gourhan, 1983b: 66), ou seja, que se vá habituando à ideia de ter de exteriorizar faculdades cada vez mais complexas, sem que isso possa constituir na sua perspectiva motivo de receio imediato:

A hipótese de ver as máquinas providas de cérebro suplantarem o homem sobre a terra não é um facto a recear, pois os riscos situam-se no interior da espécie zoológica (…) O que talvez se possa recear é que daqui a mil anos o homo sapiens tendo chegado ao termo da sua exteriorização, se venha a sentir embaraçado perante este aparelho osteo-muscular obsoleto (…) (Leroi-Gourhan, 1983b:47).

Elisão

Uma imagem possível para as excrescências de memória expandida no digital está nas palavras de Irineu Funes, em “Funes, o Memorioso”, o conto de Jorge Luís Borges, em que o autor coloca na boca de Irineu esta angústia do personagem: “A minha memória, senhor, é como um depósito de lixo”. Transposto para a actualidade e os seus excessos, significará isto, por exemplo, que um dos protagonistas da contemporaneidade, Mark Zuckerberg, é, nesta perspectiva, uma espécie de Irineu Funes da era “tecno”? Tal como Irineu Funes, o Facebook regista na sua timeline as múltiplas dependências, memórias e abusos dos mais de dois mil milhões e meio de utilizadores, ao que se podem juntar os milhões de tentativas diárias de parte deles de criarem contas falsas, impedidas ou não pelos sistemas de deteção da plataforma. Regularmente também, este depósito de lixo tem vindo agora a anunciar as suas purgas desse repositório tóxico como o fez em 2019 e em 2018 (Fung e Garcia, 2019). Em novembro de 2019 o Facebook anunciava o fecho de 5,4 mil milhões de contas falsas na sua plataforma principal, sendo que em 2018 esse número teria atingido os 3,3 mil milhões de contas falsas removidas.

Há como que uma cegueira subliminar nos usos do digital que, por um lado, deriva de uma lenta transformação do olhar num modelo “visual-táctil”, projectado sobre a tela, suspenso em constantes partilhas de posts nas redes sociais, como se o cérebro estivesse nas polpas dos dedos (Andreoli, 2007), o que significa uma interação e uma visão “multitask” dos écrans, visão não distanciada, como que acéfala - e, por outro lado, as novas “paixões crédulas” o encapsulamento das convicções e das crenças num constante looping sobre si próprias, polarizadas, configuradas em fechamentos sobre si, nas câmaras de eco ou nas filter bubbles digitais e nos emergentes populismos políticos e regionalismos e nacionalismos digitais. “Désormais, avec le triomphe du simulacre, commence réellement la démocratie virtuelle”, havia considerado Léo Scheer (1994) em plena expansão inicial da Internet. Scheer foi, efectivamente um dos primeiros pensadores a alertar para este problema: com a invasão de tecnologias digitais uma crise de confiança sem precedentes poderia abalar o sistema político e a democracia e se até então a ideia de democracia plena teria sido uma “ilusão”, a partir daí, com o triunfo dos simulacros digitais, mais dificilmente essa ideia se poderia concretizar.

Do ponto de vista tecnológico e computacional, com base em inferências a partir de dados, os algoritmos evolutivos ou de aprendizagem ganharam a sua própria autonomia, o que permite que os computadores se possam programar a si mesmos. Não haverá dúvida de que os algoritmos moldam hoje o nosso mundo, na área financeira, na área dos media digitais, nos processos eleitorais, nos encontros online, nos robots domésticos, etc. Mas o facto é que poderão mesmo chegar ao dificilmente crível momento de deduzir a partir de dados todo o conhecimento do mundo - passado, presente e futuro - e aí estaríamos perante aquilo a que Pedro Domingos (2017) chama o “algoritmo-mestre”. Neste caso, teríamos, portanto, a nossa “metade digital”, o nosso eu, ou o nosso “espelho digital” que se autonomizaria de nós próprios e atuaria em nosso nome em interações múltiplas na rede. Os megadados seriam então “uma extensão dos nossos sentidos e os algoritmos de aprendizagem uma extensão do nosso cérebro” (Domingos, 2017: 304). Para outros autores poderemos estar perante soluções ainda só anunciadas - do já experimentado biohacking (Ellen Jorgensen) à singularidade (Ray Kurzweil), ou, no limite, ao “mind uploading” (Michael Graziano), ou ainda, ao que está em estudo no Human Connectome Project do consórcio University of Southern California-Harvard, projecto que emprega métodos avançados de neuroimagem para construir uma estrutura informática capaz de ligar dados genómicos a modelos de conectividade.

Mas desde as memórias recalcadas ou censuradas aos acontecimentos recriados, aos factos alternativos e aos novos simulacros do digital, passando pelas deformações e disfunções da memória, pelas memórias expandidas, memórias hipertélicas - bots, troll factories, câmaras de eco, filter bubbles, etc., voltamos de novo às memórias encapsuladas, por vezes hipoteticamente reféns de modelos de “data driven science” e de modelos algorítmicos desregulados, discriminatórios, ou funcionando em puro modelo “black box”. A questão é mesmo podermos vir a estar perante a obsolescência do próprio método científico clássico, submetido agora à verdade exclusiva dos dados e aos ditames dos modelos automatizados assentes em Big Data, machine-learning e Inteligência Artificial. Ciência baseada em dados e indexada a lógicas algorítmicas pouco transparentes, e não no método clássico e no conhecimento e investigação segundo parâmetros científicos estritos, podem ter como consequência o subestimar da teoria científica e têm, portanto, constituído motivo de alerta e reflexão uma vez que o Big Data, entendido como uma complexa rede de tecnologias, métodos e práticas de investigação, desafia concepções tradicionais da relação entre pesquisa teórica e empírica (Kitchin, 2014), não havendo consenso sobre o modo como os modelos de investigação que utilizam Big Data se devem relacionar com as epistemologias e teorias existentes em particular nas áreas das ciências sociais e humanidades.

Amnésia

As novas distopias que a tecnociência anuncia, assentarão, em boa parte, mais na dispersão da atenção e no esquecimento do que na memória, mais na cegueira da história e na amnésia do tempo, do que no acontecimento e nas experiências contemporâneas do humano, sejam elas as lições da história mais extremas, como o holocausto ou o Gulag, ou as mais comuns, relativas à espuma dos dias e ao quotidiano do sujeito.

Como dizia Timothy Snyder (2017), hoje, a emergência da pós-verdade significa, de novo, a ascensão do pré-fascismo e dos populismos. A memória vertiginosa que nos traz o digital é assim uma espécie de desmemoriação, uma não-memória. Perante as falsas e perigosas “desmemórias” e vieses dos sistemas de informação e de comunicação, volta inevitavelmente o medo da emergência de novos holocaustos no contexto desta nova era dos “factos alternativos”. Ou das suas variantes geo-estratégicas, isto é, nacionalismos digitais (Kapur, 2019) soberanias digitais, tecnologias soberanas, territorialização da Internet… O facto é que é possível afirmar comprovadamente que a pós-verdade dissemina cripto-fascismos na rede e no espaço público “pós-nacional”, não bastando, portanto, o apelo ao “direito à memória” e a denúncia das espirais de silêncio sobre as crises humanitárias e genocídios da contemporaneidade, impõe-se então algo mais, e, desde logo, um “dever de memória”.

Em paralelo, importa fazer uma leitura deste fenómeno no plano da neurociência. As notícias falsas começam por desviar a nossa atenção pela sua estranheza, sendo o seu carácter improvável e a sua potencial viralidade, a razão subjacente à base neural do comportamento geral face às fake news. Aquilo que constitui um certo fascínio pelas notícias falsas reforça ligações nos contextos de formação da memória. De facto, é exactamente este tipo de informação inesperada ou imprevisível que estimula mais rapidamente o córtex sensorial uma vez que se verifica uma maior capacidade do hipocampo de criar novas conexões sinápticas entre neurónios face a informação nova ou surpreendente (Strange, B. A. et al., 2005).

Um primeiro elemento dessa vertigem da perda de memória havia sido determinado pela aceleração tecnológica e social (Rosa, 2010) ditada pelos sistemas que suportam o atual modelo comunicacional pós-mediático. Um tempo de “deep mediatisation”, assim lhe chamou Nick Couldry e Andreas Hepp (2016) autores que analisaram a ordem social na era da “dataficação” partindo da teoria crítica e sugerindo novas leituras para a análise da tensão e conflito que existe hoje entre os sistemas baseados nas tecnologias da informação, o processamento de dados, e as consequências face a princípios normativos como a liberdade e a autonomia. Essa aceleração tem, no entanto, outros efeitos de perda: seguindo Didi-Huberman (2011), aquilo a que se pode chamar um novo protagonismo das vozes sem dignidade mediática no passado, não deixa de ser um eufemismo dado que continuam constrangidas na sua “sub-representação” e remetidas para uma não-memória: “subexpostos na sombra da censura a que são sujeitos ou, com um resultado equivalente, sobreexpostos na luz da sua espectacularização” (Didi-Huberman, 2011: 42). Outros autores colocam-se numa posição de antecipação de novos potenciais totalitarismos. Veja-se o filósofo Byung-Chul Han, por exemplo, que alerta para uma ‘embriaguez’ com as tecnologias digitais e uma cegueira que tem vindo a alimentar a crise contemporânea: “A sociedade de vigilância digital, com acesso ao inconsciente e aos futuros comportamentos sociais de massa, adquire traços totalitários. Submete-nos à programação e ao controlo psicopolíticos. A era biopolítica ficou para trás. Hoje avançamos rumo à era da psicopolítica digital” (Han, 2016: 92).

Este é ainda o tempo da economia da distração, de um regime de dispersão da atenção, no fundo, um tempo de um outro défice de atenção, este de efeitos políticos no atual contexto da crise democrática contemporânea, e não tanto da economia da atenção como habitualmente se refere. Tal como já havia sugerido Nicolas Carr (2010) a Internet é projetada para ser um sistema de interrupção, uma máquina orientada a dividir a atenção. Mais do que isso, este tempo tornou-se o da ideologia do clickbait, focada na interrupção, no défice de atenção e no ostensiva amnésia e des-memória dos utilizadores suspensa nos interesses efêmeros, nos desejos do supérfluo dessa economia (ainda) sem moeda das tecnológicas Facebook, Google, Amazon, e outras, dado que, no fundo, é o tempo e as memórias que os utilizadores despendem nestas plataformas que verdadeiramente consomem a atenção dos destinatários. A economia política da atenção (Citton, 2014) captura assim em definitivo as capacidades de concentração e o “capital atencional” dos utilizadores desta efémera cultura das redes, o que se repercute então numa crise permanente da atenção e num enclausuramento informacional ativado pelos poderosos aparelhos de captura das grandes plataformas digitais, muito em particular pelo oligopólio Google/Facebook. Esta economia da atenção torna-se assim uma economia “sufocante” da atenção, o que alerta desde logo para o imperativo de uma reapropriação da experiência reflexiva do sujeito e de uma cidadania vigilante neste contexto de polarização política e de emergência de cripto-fascismos.

Para além desta distração estrutural, cada vez mais, deixamos as nossas memórias quotidianas, fotografias, números de telefone de emergência, dos pais, filhos, do emprego, etc., entregues aos nossos dispositivos electrónicos, confiando que eles estarão sempre disponíveis para quando necessário. O que nem sempre acontece, por perda, roubo, vírus, phishing, etc. Mas essa delegação acontece também por efeito de uma possível falha de memória em resultado dos novos padrões de comportamento em ambiente digital: a memória escapa-nos, é externalizada cada vez mais, passa a reter o caminho para a informação e não a informação propriamente dita, está em permanente contacto com múltiplos focos de atenção e em modo multitarefa, colide com o tempo de descanso, com a ativação das conexões de memória, aumenta o défice de sono, o desenvolvimento equilibrado do cérebro, etc., etc. Em poucos anos, desde a emergência da Internet e dos dispositivos móveis electrónicos, o próprio tempo médio de concentração face a um spot publicitário caiu cerca de um terço, de 12 para 8 segundos.

As mnemotécnicas da memória passaram também a ter maiores entrelaçamentos, da informação à emoção, do conhecimento à inutilidade, tornando-se, em muitos casos, mais um receptáculo de lixo do que uma atividade que se constitui como um traço da nossa singularidade e da ressonância de sentido e dos sentidos no próprio sujeito.

Em suma, o trabalho da memória ganha consistência e sentido não no plano da memória de curto prazo, de “superfície”, ou das memórias artificiais, mas quando integra a inscrição e a inquietude do pensamento e do saber.

O digital, portanto, configura-se como um factor crítico de agressão dos usos fundamentais da memória. Sobretudo nos contextos dos automatismos das redes sociais, das câmaras de eco, chatbots, mas não só. Em matéria de redes sociais importa inclusivamente insistir não no direito à plena exposição e aos comuns narcisismos digitais, mas no direito ao esquecimento, à defesa dos dados pessoais, e à salvaguarda da privacidade. O fluxo de informação de feeds, notificações, partilhas, etc., também deve ser bem gerido e moderado. Mesmo com a intervenção dos filtros de atenção modulados pelo cérebro, podemos estar perante falhas de memória, memórias saturadas, desconexas, ou mesmo situações de burnout, por exemplo. Francis Eustache, neuropsicólogo, referia que a neurociência cognitiva mostra que o funcionamento equilibrado do cérebro e das suas redes é essencial ao nosso equilíbrio psíquico, e isso só acontece quando as conexões da memória são ativadas em contextos reflexivos e não quando se recorre aos auxiliares da memória:

Sans un système où notre cerveau déléguerait une majorité d’informations à des dispositifs techniques, le juste équilibre à maintenir entre mémoire interne et mémoire externe se trouverait rompu. Cela porterait très certainement atteinte à notre réserve cognitive, c’est-à-dire au capital de savoir et de savoir-faire que chacun d’entre nous doit se construire, tout au long de sa vie. (Testard-Vaillant, 2014)

O ato mnemónico fundamental caracteriza-se assim, essencialmente pela sua função social e comunicacional, está na base do processamento das informações, no plano da atenção, da memória, da criatividade ou do saber. A mnemotécnica, como técnica de estimulação da memória, está assim tendencialmente mais próxima de uma técnica ‘autoritária’ imersa agora num tempo de inflexão algorítmica e de inteligência artificial do que de um auxiliar do conhecimento, da acção, da experiência, ou da criatividade. Neste plano, práticas e representações subjectivas do vídeo, expõem o corpo-memória que resiste à sua elisão, ou à sua síntese, evidenciando uma tensão entre a tecnociência e o processo de individuação do eu. Se pensássemos no contexto dos mass-media, poderíamos lembrar Raymond Bellour: “Si Ia télévision (…) détient aujourd’hui une fonction globale de régulation de i’invention et de Ia mémoire, l’autoportait est naturellement l’expression Ia plus subjective de Ia résistance que l’art vidéo oppose de façon spécifique à Ia télévision (Bellour, 1988: 345-346). Um dos artistas contemporâneos que procurou abordar esta descontinuidade foi Bill Viola trabalhando os actos de memória ou os traços do tempo que não ascendem à dignidade histórica, na medida em que expõem o seu contínuo questionamento, o seu inacabamento, a sua deriva. Em Viola, memória e subjectividade precedem a tecnologia. Como se o acto de aceder à liberdade se configurasse no regime mnemónico que opera não por uma linearidade de tópicos, ou por um continuum, mas por descentramentos, por efeitos-luz e por pulsões que apelam e convocam o sujeito no tempo e no espaço, sendo a mnemotécnica o lado conflitual entre a memória artificial e a mnemónica, entre o conhecimento interior e a memória-ilusão, procurando-se assim uma aproximação da essência da percepção, do momento cognitivo.

Sobre a possibilidade remota de manter a memória “epidérmica” secundarizada relativamente à reflexão e ao pensamento, ter-se-ia de verificar aquilo que seria uma cada vez mais difícil inversão da economia do clickbait, da datificação e dos múltiplos trackings, que nos vigiam e perseguem online e offline, para um tempo de recuperação da inscrição do(s) sentido(s) na memória, no conhecimento, e, porventura, nas próprias ontologias e epistemologias da ciência.

Paralelamente, no plano do digital propriamente dito, a amnésia digital pode configurar-se também como um apagamento da própria história da World Wide Web. Ou seja, e ao contrário do que sucede com a nossa pegada digital na rede e os nossos dados pessoais, que estão rastreados em múltiplas bases de dados comerciais em plataformas digitais e aos quais não acedemos, a perda, o apagamento praticamente definitivo de versões ou mesmo da globalidade de websites e portais que constituíram a história da própria Web desde o seu início é um facto extremamente preocupante. Para salvaguarda deste património fundamental importa também preservar essa memória, e apostar claramente numa política de arquivo da Web junto das plataformas de arquivo como o Arquivo.pt em Portugal ou o Internet Archive.

É claro que sobre falsas memórias, ou sobre memória perdidas, ou inclusivamente sobre a amnésia total, podemos sempre encontrar ou antever salvaguardas, se necessário no plano da neurotecnologia e da neurociência. Os estudos mais recentes alertam para o facto mais crítico neste processo: a exposição à propaganda pode, de facto, induzir falsas memórias (Murphy, G., Loftus, E. F., Grady, R. H., Levine, L. J., & Greene, C. M., 2019). As conclusões deste estudo são muito claras, sugerem-nos que os eleitores de uma campanha política são mais suscetíveis a formar memórias falsas de notícias falsas alinhadas com as suas crenças, especialmente se têm baixa capacidade cognitiva.

No limite, face aos previsíveis avanços da IA, podemos imaginar um hipocampo artificial, obter eventualmente “chips” de memória humana acrescentada ou de atenção aumentada, a inserir no cérebro, mas isso também significará que estaremos perante a possibilidade de humanos desiguais, de um “digital Taylorism” (Selinger e Shneider, 2019), ou de um controlo tecnológico e social cada vez mais extremo, que nos poderá escapar (Warren-Smith, 2019). E mesmo que o paradoxo da possibilidade de uma experiência expandida do sujeito, coartada por limites impostos de controlo social não se verifique, restará sempre uma potencial elisão ou “desmemoriação” do humano, como recordação vaga ou desfocada, ou possível falsa memória, subsumidas num dispositivo técnico reprodutor de acontecimentos-memórias cujo vínculo à condição humana pode efectivamente tornar-se cada vez mais precário e efémero. Ora, se nesta era digital emergente a política e a memória do sujeito ressurgem encapsuladas e polarizadas em câmaras de eco, se na dimensão histórica o direito à memória e o dever de memória não têm evitado o espectro de novas tiranias, e se na economia os alertas face à economia da distração e ao regime de dispersão da atenção não evitam a contínua degradação da sustentabilidade do humano, importa, então, garantir que o paradoxo contemporâneo entre a exteriorização aumentada e a impossibilidade de memória não se concretize em absoluto numa construção social e política cujo referente seja, cada vez mais, as falsas memórias e os factos alternativos.

 

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Submetido| Received: 2019.11.27. Aceite | Accepted: 2020.04.22

 

Nota biográfica

Francisco Rui Cádima é Professor Catedrático do Departamento de Ciências da Comunicação da NOVA FCSH. Investigador Responsável do ICNOVA - Instituto de Comunicação da NOVA, integra a direção da revista Media & Jornalismo.

Ciência ID: 231F-D7BA-F635. Scopus Author ID: 57063529500 Email: frcadima@fcsh.unl.pt

Morada institucional: Universidade Nova de Lisboa, Instituto de Comunicação da NOVA, Av. de Berna, 26-C - Lisboa 069-061, Portugal

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