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Media & Jornalismo

versão impressa ISSN 1645-5681versão On-line ISSN 2183-5462

Media & Jornalismo vol.19 no.35 Lisboa dez. 2019

https://doi.org/10.14195/2183-5462_35_14 

ARTIGO

O Telejornal da RTP mostrou o Maio de 68 e escondeu a Crise Académica de 69. Porquê?

The public television, RTP showed “May 68” in France and hid the “academic crisis of 1969”. Why?

Jacinto Godinho*
https://orcid.org/0000-0001-7127-6037

*Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Instituto de Comunicação da NOVA - ICNOVA


 

RESUMO

Este artigo procura aprofundar a reflexão sobre o impacto político do jornalismo televisivo durante o período final do Estado Novo. A RTP tem sido pensada como um dos bastiões do regime de Salazar e Caetano, usada prioritariamente como meio de divulgação propagandística. A clara predominância de homens próximos destes dois Presidentes do Conselho no comando da informação televisiva, a governamentalização dos telejornais com a exclusão de notícias relacionadas com a oposição ou de qualquer outro assunto que desagradasse ao Governo, leva à conclusão de que uma RTP manipulada só pode ter funcionado como um instrumento que ajudou a prolongar a ditadura.

Analisando dois casos semelhantes de agitação estudantil, “Maio de 68” em França e a “Crise Académica” em Coimbra, ocorridos no curto espaço de um ano entre 1968 e 1969, anos decisivos em que a direcção do Governo mudou de Salazar para Caetano, verificamos que a estratégia da RTP foi completamente oposta. Analisando os Telejornais verificamos que a RTP cobriu com abundância de peças os acontecimentos em França que levaram à paralisação da Universidade da Sorbonne em Maio de 68, mas um ano depois, em Abril de 1969, decidiu não cobrir noticiosamente os protestos que levaram ao encerramento da Universidade, à intervenção da GNR e à prisão de dezenas de estudantes. A RTP mostrava, lá de fora no estrangeiro, o que não podia ou não queria mostrar cá de dentro, em Portugal. Que razões podem explicar esta estranha estratégia informativa? Sugerimos neste artigo uma nova interpretação da política de imagens do Estado Novo e levantamos a hipótese de a televisão em Portugal ter sido um mediador evanescente do regime ditatorial.

Palavras chave: RTP; crise académica de 1969; Maio de 68; espectáculo do sigilo; mediador evanescente


 

ABSTRACT

This article seeks to deepen the reflection about the political impact of television journalism during the final period of the Portuguese dictatorship. The public television, RTP, has been thought of as one of the last bastions of the regime of Salazar and Caetano, used primarily as a mean of propaganda. The predominance of men close to the regime in the command of the television information and the governmentalization of news programs with the exclusion of topics related to the opposition or any other matter that displeased the government lead to the conclusion that RTP can only be seen as an instrument that helped to prolong the dictatorship. But analyzing two similar cases of student protests, “May 68” in France, and the “academic crisis of 1969”, in Coimbra, we found that RTP strategy was completely opposite. Analyzing the television news, we find that RTP covered largely the events in France that led to the closure of the Sorbonne University in May 1968, but a year later, in April 1969, RTP decided not to cover any of the students protests that also led to the closure of the University, the police intervention and the arrest of dozens of students. RTP showed international events and concealed internal ones. What reasons can explain this strange information strategy? We suggest a new interpretation of the New State image policy and we raise the hypothesis that television in Portugal has been an evanescent mediator of the dictatorial regime.

Keywords: RTP; academic crisis of 1969; May 68; evanescent mediator; secrecy show


 

1. Como os telejornais da RTP “esconderam” uma crise que o ministro destapou

No dia 17 de Abril de 1969, o Presidente da República Américo Tomás (Figura 1) desloca-se a Coimbra para inaugurar e edifício da secção de Matemática da Universidade.

 

 

A notícia desse dia foi a interrupção da cerimónia solene por parte do Presidente da Associação Académica de Coimbra. Alberto Martins (Figura 2) pede a palavra à mesa para, em nome dos estudantes, expor alguns problemas da Universidade. Não lhe foi dada a palavra mas recebeu uma enorme salva de palmas e a sessão foi interrompida de forma precipitada. Nessa noite seria preso e interrogado pela PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado).

 

 

À noite o Telejornal da RTP passa um resumo dos acontecimentos mas não fala dos incidentes. Uma equipa de reportagem da televisão estava presente. Filmou a cerimónia. Nas imagens em bruto das filmagens vê-se, num plano geral da sala, Alberto Martins sentado em fundo mas a sua intervenção não foi sequer filmada.

Também não há imagens dos cartazes reivindicativos que são ostentados pelos estudantes. Era difícil escondê-los como se vê na reportagem (Figura 3) da secção fotográfica da Associação Académica.

 

 

No entanto a reportagem televisiva conseguiu enquadrar o Presidente da República sem nunca se verem os cartazes.

No dia 22 de Abril de 1969, por causa dos incidentes, oito estudantes são suspensos e proibidos de assistir às aulas mas a televisão ignora o sucedido. Só no dia 30 a televisão fala pela primeira vez na agitação estudantil, mas através de uma nota do Ministério da Educação, José Hermano Saraiva, que é lida na íntegra, logo a abrir o Telejornal. A nota sustenta que:

Foram distribuídos, em Lisboa, panfletos marcando manifestações subversivas para a área da Universidade de Lisboa. Sabe-se que os estudantes são completamente alheios a tais projectos mas poderão ver-se envolvidos neles em virtude da necessidade de comparecerem às aulas.[1]

Anuncia-se depois, a decisão de encerrar os edifícios das Faculdades de Letras, de Direito, de Medicina e de Farmácia da Universidade no dia seguinte, 1 de maio. Nessa noite, após o Telejornal, o Ministro da Educação, José Hermano Saraiva, faz uma comunicação ao país: “Dada a evolução dos factos de indisciplina que nos últimos dias se têm verificado na Universidade de Coimbra considerei vantajoso pôr o país ao corrente da situação”[2].

Depreende-se que, para os portugueses que viram a emissão televisiva, a comunicação tivesse sido uma completa surpresa porque o ministro conta o que realmente aconteceu durante a cerimónia do dia 22.

Os factos foram os seguintes: Quando decorria a inauguração do novo edifício da Secção de Matemáticas da Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra e depois de terem usado da palavra os dois primeiros oradores que mal se conseguiram fazer ouvir no meio da vozearia dos estudantes que enchiam o recinto e a escadaria anexa, um aluno da Universidade dirigiu-se ao Chefe do Estado e pediu para falar na qualidade de representante dos estudantes de Coimbra. Essa intervenção foi imediatamente sublinhada por uma ruidosa e demorada manifestação dos estudantes presentes. O senhor Presidente da República de pé e fitando de frente o aluno que se lhe dirigira afirmou que se seguia no uso da palavra o senhor Ministro das Obras Públicas. Nova e demorada manifestação desrespeitosa que se seguiu a esta decisão tomada aliás com a maior firmeza.[3]

O Ministro apresenta uma versão relativamente concreta dos factos, embora numa linha de argumentação favorável ao regime. O que é relevante é que esta comunicação ao País, de um governante, demonstra que a reportagem televisiva, emitida no dia 22, tinha sido uma farsa. O Ministro narra uma sequência de acontecimentos que a reportagem televisiva não mostrou.

Quando encerrada a sessão em conformidade com o programa previamente elaborado, o senhor Presidente e as autoridades verificaram-se mais uma vez manifestações de grave desrespeito, sendo necessário abrir caminho perante uma massa de cerca de três centenas de estudantes que se tinha aglomerado e que em coro bradavam protestos e expressões incompatíveis com o respeito devido à presença naquele lugar do supremo magistrado da nação. Foi isto que se passou.[4]

O Ministro narra depois a sequência dos acontecimentos anunciando a suspensão dos oito alunos, denunciando a perturbação das aulas e os panfletos que circulam. Conta ao país tudo o que a televisão não mostrou, nem iria mostrar, sobre a agitação estudantil. No dia 6 de Maio o Ministro da Educação decreta o encerramento da Universidade de Coimbra embora se mantenham as datas para a realização dos exames. No dia 2 de Junho, no início dos exames, os estudantes fazem greve às provas e mantêm acções de protesto em Coimbra. Promovem reuniões que contam com multidões de estudantes a assistir. Distribuem balões, colocam pregos e cardos nas ruas para combater as forças da ordem. A cidade está toda vigiada pela GNR (Figura 4). A televisão não envia nenhuma equipa de reportagem, nem noticia os acontecimentos.

 

 

No dia 22 de Junho a RTP não transmite em directo o jogo da final da Taça de Portugal entre a Académica e o Benfica ao contrário do que era habitual. À noite, o resumo da final da Taça de Portugal é, decisão invulgar, a última peça a ser exibida no Telejornal e é emitida sem nenhuma referência aos protestos dos estudantes que encheram as bancadas do Estádio Nacional com cartazes e tarjas de protesto contra a prisão de 36 estudantes (Figura 5).

 

 

Durante todo o período em que durou a chamada “Crise Académica de Coimbra”, não houve praticamente nenhum tratamento jornalístico na televisão portuguesa. O mais importante órgão de informação do país não produziu uma única peça jornalística sobre um dos acontecimentos mais marcantes da vida pública portuguesa do século XX.

2. O telejornal não “escondeu” os violentos acontecimentos de Maio de 68 em França

Um ano antes, em 1968, quando começaram os protestos dos estudantes em Paris, a RTP também começou por não noticiar nada no dia 3 de Maio. Mas o Telejornal noticiou depois os violentos confrontos que aconteceram no dia 6 de maio. Foi aliás esta primeira noite das barricadas que tornou os acontecimentos de Paris, na Sorbonne e no Bairro Latino, notícia em todo o mundo. O pivô da RTP afirma que a polícia bloqueou as ruas de acesso à Sorbonne, mas os estudantes realizaram uma manifestação de violência empunhando bandeiras vermelhas e cantando a “Internacional Comunista”. A RTP nunca mais deixaria de noticiar a crise de Maio de 68 e mostrou sempre as violentas imagens dos confrontos entre estudantes e polícias, em Paris. Descreveu tudo com bastante pormenor e em reportagens desenvolvidas. O texto noticioso chegava a detalhar pormenores deste género, afirmando que “o ar era irrespirável e o fumo das granadas é tão denso que mal se vê”. Concluiu-se que os responsáveis pelo Telejornal da RTP decidem mostrar a violência ocorrida em França e ocultar, um ano depois, acontecimentos semelhantes ocorridos em Portugal.

Igual decisão editorial foi tomada para a guerra colonial em África. Enquanto a guerra do Vietname era noticiada, todos os dias, com amplas descrições dos combates, a guerra colonial portuguesa era resumida através de um boletim seco e curto que falava sobretudo das zonas libertadas, dos bandoleiros e terroristas mortos ou presos. Informação que era lida pelo pivô e apresentada sem imagens. A interpretação desta aparente contradição, de mostrar lá fora o que se negava em Portugal, já foi analisada nalguns estudos importantes como os de Rui Cádima (1996). Os assuntos mais polémicos só eram referidos pelos próprios responsáveis políticos, em directo na televisão, ou através de notas oficiosas lidas nos telejornais ou ainda pelos comentadores autorizados pelo regime. Como conclusão sustenta-se, normalmente, que o mais importante órgão de comunicação da altura, a RTP, foi controlado de forma sufocante e isso ajudou a prolongar o regime de Salazar e Caetano. A explicação para o facto da RTP recusar transmitir, em Portugal, imagens de acontecimentos semelhantes a outros ocorridos no estrangeiro, como o Maio de 68, a Primavera de Praga ou a Guerra do Vietname, parece estar na visão do director do Telejornal[5], que entendia que mostrar o caos nos países comunistas e mesmo nos países democráticos ajudava a transmitir a sensação de segurança em Portugal, um país em que, para o Povo, não se passava nada de grave.

Num comentário feito no programa semanal da RTP TV 7, João Coito, um dos jornalistas comentadores da RTP, afirma: “Bastou-nos observar a paisagem do mundo circundante para ver até que ponto temos de estar gratos à incontestável honestidade e à irrefragável coragem moral e física do grande patriota”[6].

O grande patriota é, nas palavras de João Coito, Salazar. No entanto a lógica dos media é por vezes contraditória nas causas e nos efeitos e este estranho caso exige um aprofundamento dessa complexidade. Gostaríamos de problematizar esta curiosa política de informação censória que o regime do Estado Novo, nesta altura já presidido por Marcelo Caetano, pôs em prática na televisão. Em primeiro lugar não parece oferecer dúvidas que a censura de informação traz vantagens ao regime que a define e põe em prática. Mas quais as razões para não mostrar absolutamente nada em vez de mostrar algo, falamos especificamente de imagens de reportagem, ainda que seja numa visão manipulada dos acontecimentos? Na altura era difícil que o povo, por inteiro, fosse o alvo desta censura televisiva. Havia em Portugal 300 mil televisores registados em 1969. Eram as elites, as que viviam nas cidades, especialmente em Lisboa, Coimbra e Porto, que possuíam a maioria dos televisores. A greve académica não era uma coisa fácil de esconder para estas elites. As greves aconteciam nas ruas, as cargas policiais também. Ao impedir a produção de imagens, dos acontecimentos contestatários, e a sua posterior difusão na televisão, o regime não procurava manter todos os portugueses na ignorância, fazendo de conta que os acontecimentos não existiam como parece ser a lógica censória normal. Aliás parece até ridícula esta estratégia de não mostrar os assuntos polémicos nas reportagens televisivas, mas, depois, os governantes virem à televisão falar desses assuntos discutindo-os em directo como fez o Ministro da Educação e como o fazia regularmente Marcelo Caetano nas Conversas em Família. A comunicação de José Hermano Saraiva relatando o que tinha acontecido, na sala do Senado, é uma clara confissão, perante os espectadores, de que a reportagem televisiva, emitida dias antes, tinha sido uma farsa. Qual a razão para fazer cair desta forma a máscara da censura? Verificámos, consultando os alinhamentos dos Telejornais[7], que também na crise académica de 62, a cobertura televisiva da RTP foi idêntica. Os assuntos só apareceram no Telejornal sob a forma de uma nota oficiosa[8] emanada do Ministério da Educação lida na íntegra pelo pivô do telejornal.

Nesta pesquisa deparámo-nos com um caso que pode ou ser visto ou como gralha involuntária do alinhamento do Telejornal ou como perversão dirigida aos espectadores. No dia 6 de Maio o Governo decide encerrar definitivamente a Universidade de Coimbra. Não há nenhuma referência ao assunto no Telejornal. No dia seguinte, 7 de Maio, o Telejornal[9] noticia que na Holanda existe agitação estudantil em várias universidades e que os estudantes ameaçam ocupar uma universidade e crismá-la “Universidade Karl Marx”. Como ler esta situação? Depois da comunicação do ministro já não se podia esconder a crise académica de Coimbra. O encerramento de uma Universidade não se esconde da população, nem se apagam os polícias da rua. Trata-se de um acto subversivo dos responsáveis do Telejornal sugerindo, sub-repticiamente que mostram na Holanda o que não podem mostrar em Portugal? Mas tendo em conta o controlo politico exercido por Ramiro Valadão na RTP, não nos parece que fosse possível fazer, na televisão portuguesa, jogadas subtis para enganar a censura que apesar de tudo, eram típicas dos jornais impressos. Ou trata-se pelo contrário de uma atitude perversa do regime sugerindo aos espectadores que: “Sabemos que querem ver o que acontece em Portugal, mas só vos mostramos o que se passa na Holanda”. Por mais estranho que possa parecer, na televisão, a caixa das imagens que tudo prometia dar a ver, os assuntos mais polémicos só existiam comunicados pela palavra oral.

3. Os telejornais e o “espectáculo do sigilo”

Penso que a censura televisiva também tem que ser vista numa outra perspectiva, enquadrada no conceito que apelidamos de Espectáculo do sigilo (Godinho, 2017). O regime português explorava de uma forma quase perversa o tabu das imagens. Frustrava constantemente à noite o desejo de ver na televisão, especialmente através de imagens o que muitos cidadãos sabiam que tinha acontecido no país. As notas oficiosas falavam dos acontecimentos mas eram lidas, pelos locutores, sem imagens. Os comentadores e os ministros falavam dos acontecimentos polémicos mas era o seu rosto e voz a base da comunicação. Operava-se assim uma certa tensão do ver, uma iconofobia, estudada por exemplo por Martin Jay (1993) no livro Downcast Eyes: The Denigration of Vision in Twentieth-Century French Thought e ligada ao tabu das imagens das religiões monoteístas. O regime com esta política de imagens demonstra que não se apaga como censor. Não procura ser um censor disfarçado ou invisível. Pelo contrário, usa a televisão como uma continua operação de demonstração de força, exibindo o poder de decidir sobre a visibilidade e sobre a invisibilidade da realidade.

Utilizava-se, para os acontecimentos na televisão, a mesma estratégia que se usava para os agentes da PIDE. Sabia-se que existiam mas não se sabia concretamente quem eram. Daí a sensação de que estavam por todo o lado e que eram mais numerosos do que realmente eram. É este o efeito a que chamamos o espectáculo do sigilo. O efeito de espectáculo do sigilo foi pensado para organizar as ideias sobre a representação pública da polícia política do Estado Novo (PIDE). Trata-se de um efeito significante, operado nas representações mediáticas e inspirado no caso mítico das janelas de Lublianka, a sede histórica do KGB, em Moscovo, no tempo da guerra fria. Ao ficarem acesas toda a noite faziam passar a ideia de que torturas contínuas aconteciam sem cessar naquele edifício apesar de ninguém saber ao concreto o que lá se passava. Na psicanálise lacaniana o tabu das imagens, a proibição de ver, está ligada ao excesso. Proibir gera um excesso de curiosidade mas também gera um excesso de medo. Mais que ignorância, o regime do Estado Novo conseguia produzir medo com esta cuidada e complexa gestão do visível. A televisão passou a ser também, a partir de 1957, um instrumento fundamental da iconofobia posta em prática pelo regime.

Mas será que o regime tinha a sofisticação suficiente para pensar uma estratégia complexa, como esta, ao nível da política das imagens? A resposta é que esta estratégia não é complexa, nem sofisticada. Na realidade o regime pensava as coisas de forma bastante simples porque também tinha medo das imagens. Quando rebentou a guerra colonial, os repórteres da RTP filmaram à vontade os primeiros meses do conflito. Acontece que essas imagens escaparam ao controlo e começaram a aparecer no estrangeiro. Por isso a partir de 1962[10] o regime passou a exercer um controlo muito apertado não apenas sobre a difusão de imagens mas sobretudo sobre a sua produção. No caso da crise académica de 69 os estudantes pensaram a sua ação integrando com eficácia uma política imagética. Fizeram um desafio provocador ao regime num momento em que havia jornalistas e câmaras por todo o lado, pelo menos no dia 17. A rádio gravou a intervenção de Alberto Martins quando este interrompeu a sessão solene, mas, como já referimos, o operador de televisão destacado para reportar o acontecimento, não tinha um censor ali ao lado e, no entanto, não gravou a cena, como não gravou os cartazes de protesto dos estudantes. A autocensura iconofóbica estava verdadeiramente entranhada nos redactores e repórteres de imagem da RTP.

4. A RTP foi um mediador evanescente do regime político de Salazar e Caetano

A última questão que queríamos desenvolver é a seguinte: Será que esta estratégia de controlo da informação ajudou a prolongar o regime? Mostrar lá de fora, no estrangeiro, o que não se mostra cá de dentro, em Portugal, é uma estratégia duvidosa do ponto de vista do controlo político da informação especialmente quando se lida com imagens que são polissémicas e portanto a sua mensagem escapa facilmente ao controlo. O regime do Estado Novo preocupava-se sobretudo com os efeitos imediatos das imagens. A nota oficiosa do dia 30 do Ministério da Educação é sintoma de que os governantes temiam que as imagens fossem um factor de incentivo à perturbação no dia seguinte, a comemoração do 1 de Maio. Mais que o medo da informação, do relato passado dos acontecimentos, temiam-se os efeitos de contágio que as imagens podiam produzir em posteriores acções de contestação. Temia-se também a existência das próprias imagens. Mesmo que não fossem exibidas podiam ser passadas clandestinamente e exibidas fora de Portugal. A simples existência de imagens de contestação era já um problema político a gerir. A fotografia da ocupação da Casa de Portugal em Paris feita para integrar um relatório dos estragos deu origem a este título obtuso no jornal Diário Popular - O Dedo da “Revolução”. Apesar do subtítulo falar de vândalos, a imagem com Che Guevara pode ser vista como um discurso subversivo de incentivo à revolução.

 

 

Mas como interpretar, na longa duração, os efeitos desta estratégia de informação? A RTP podia evitar a existência de imagens perigosas para o regime mas tinha emitir muitas imagens e compensava mostrando sem grandes filtros de acontecimentos internacionais. Será que esta estratégia, no longo prazo, delineada por Manuel Múrias, chefe Divisão de Programas de Informação e Actualidades da RTP, solidificava a ideia de um país calmo onde nada acontece ajudando, com essa propaganda, a prolongar o regime pelo conformismo do povo? A hipótese que colocamos é diferente e explora a hipótese de a televisão ter sido um mediador evanescente do regime. O conceito de mediador evanescente procura perceber como é que doutrinas, ideologias, regimes que são dominantes numa determinada época dão, involuntariamente, origem ao seu oposto. Na leitura que Frederik Jameson (1973) fez de Max Weber, o protestantismo foi o mediador evanescente do capitalismo. O protestantismo criou condições para a emergência da liberdade individual e com isso para o capitalismo mas depois este acelerou a decadência da prática religiosa favorecendo a secularização. O conceito de mediador evanescente também tem servido para pensar como é que os países do Leste da Europa, após a queda do muro de Berlim, passaram do comunismo para o capitalismo muitas vezes com os mesmos líderes no poder, como é o caso de Vladimir Putin, na Rússia.

Conclusão

A televisão nunca foi do agrado de Salazar (Cádima, 1996). Marcelo Caetano, pelo contrário, foi um entusiasta desde a primeira hora (Cádima, 1996). Caetano estava convencido que seria um elemento de modernização do país, mas que ao mesmo tempo ajudaria o regime a comunicar a sua mensagem ao Povo. A difusão de imagens televisivas, por mais controladas que fossem, acabou por ter efeitos opostos ao que se pretendiam. A televisão tornou-se um mediador evanescente do regime precisamente pela estratégia de mostrar lá fora acontecimentos semelhantes aos que se passavam aqui em Portugal e que não eram reportados. Os portugueses tinham diariamente notícias desenvolvidas sobre o Vietname e quase nada sobre a guerra portuguesa nas colónias. Acompanharam a par e passo a crise na Checoslováquia e não tinham nenhuma notícia sobre presos comunistas em Portugal. Alberto Martins, líder da Associação Académica, confirmou em entrevista[11] que os acontecimentos de Maio de 68 mostrados na televisão tiveram muita importância para a decisão de confrontar o regime em 17 de Abril de 1969. Tinham mostrado que os estudantes também podiam ser protagonistas da história e não era apenas a classe operária a vanguarda das revoluções. A estratégia de censurar ou esconder a informação aparentemente deixou de ter o mesmo efeito nos anos 60 que teve nos anos 30 quando o Secretariado da Propaganda Nacional poderia controlar as visões da realidade do povo manipulando a sua ignorância. Nos anos 60 a televisão emitia imagens em contínuo. Só se controlam os efeitos das imagens quando não há imagens. Existindo imagens, elas próprias constroem vias subterrâneas de laboração de sentido na experiência dos indivíduos. O controlo e a autocensura foram enormes na televisão portuguesa durante o período do Estado Novo, mas esse controlo foi paradoxalmente como um acelerador da mudança. Funcionou como um mediador evanescente. O 25 de Abril demonstra aliás que o Governo tinha perdido o apoio das gerações mais novas porque estes vieram para a rua apoiar os revoltosos. Nas Universidades a maioria dos estudantes militava em organizações de esquerda abertamente e muito poucos em organizações do regime. Há toda uma geração, nos anos 60, contemporânea da televisão, que se afastou do regime ditatorial, incluindo o grupo de jovens militares que fez o 25 de Abril, e que pertencia aos cursos da Academia Militar de 60, 61, e 62. Era a primeira geração televisiva.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Cádima, F. R. (1996). Salazar, Caetano ea Televisão Portuguesa. (1 Vol. 1ªed.). Lisboa: Editorial Presença.

Godinho, J. (2017). O Espectáculo do Sigilo. In Garcia, J. L., Alves, T., Léonard, Y. (Coords.), Salazar, o Estado Novo e os Media (pp.149-173). Lisboa: Edições 70.         [ Links ]

Jameson, F. (1973). The Vanishing Mediator: Narrative Structure in Max Weber. New German Critique 1, 52-89.         [ Links ]

Jay, M. (1993). Downcast Eyes: The Denigration of Vision in Twentieth-Century French Thought. BerkeleyLos AngelesLondres: University of California Press.

 

Financiamento

Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto PTDC/COM-JOR/28144/2017 - Para uma história do jornalismo em Portugal.

 

Submetido Received: 2019.01.15

Aceite /Accepted: 2019.08.24

 

Notas

[1] Telejornal de 30 de Abril de 1969. Arquivo da RTP.

[2] Comunicação de José Hermano Saraiva, Ministro da Educação Nacional, no dia 30 de Abril no Canal 1 da RTP. In https://arquivos.rtp.pt/conteudos/comunicacao-de-jose-hermano-saraiva-ministro-da-educacao-nacional/ [consultado em 15/1/1019]

[3] Ibidem Arquivo RTP.

[4] Ibidem Arquivo RTP.

[5] Manuel Maria Múrias foi chefe Divisão de Programas de Informação e Actualidades da RTP, de 23 de Dezembro a Abril de 1969.

[6] Alinhamento de TV 7, 2ª ed., do dia 7-05-1969. Área Museológica e Documental do NEMASP da RTP.

[7] Os alinhamentos dos Telejornais são consultáveis na Área Museológica e Documental do NEMASP (Núcleo Museológico e de Apoio ao Serviço Público) da RTP.

[8] Alinhamento de Últimas Notícias do dia 24-3-1962. Área Museológica e Documental do NEMASP da RTP.

[9] Alinhamento do Telejornal, 2ª ed., do dia 7-05-1969. Área Museológica e Documental do NEMASP da RTP.

[10] Nos inícios de 1962, logo depois do ataque falhado ao Quartel de Beja o SIPEA (Serviço de Informação Pública das Forças Armadas) enviou aos órgãos de informação uma circular classificada de confidencial que limitava ao máximo o serviço de reportagem. Eram: “Normas de segurança a observar na publicação, radiodifusão ou televisão de notícias, crónicas, reportagens, fotografias e filme relativos à acção das forças armadas (Exército, Armada e Força Aérea) no Ultramar.” Circular do SIPEA de 10-1-1962.

[11] Entrevista de Alberto Martins para a série documental da RTP, 50 Anos - 50 Noticias. Arquivo RTP 2007.

 

Nota biográfica

Jacinto Godinho é doutorado em Ciências da Comunicação pela NOVA FCSH, investigador do ICNOVA - Instituto de Comunicação da NOVA e Professor Auxiliar da NOVA FCSH. Jornalista da RTP.

Email: jacintog@hotmail.com

Morada: Universidade Nova de Lisboa, Instituto de Comunicação da NOVA, Av. de Berna, 26-C - Lisboa 069-061, Portugal

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