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Media & Jornalismo

Print version ISSN 1645-5681On-line version ISSN 2183-5462

Media & Jornalismo vol.19 no.35 Lisboa Dec. 2019

https://doi.org/10.14195/2183-5462_35_1 

ARTIGO

O corte revolucionário nos mediae o “efeito de atraso” nas teorias da comunicação

The revolutionary break in media and the “delay effect” on communication theories

El corte revolucionario en los media y el "efecto de retraso" en las teorías de la comunicación

Mário Mesquita*

*Instituto Politécnico de Lisboa, Escola Superior de Comunicação Social; Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias


 

RESUMO

A autonomização do campo jornalístico em Portugal teve no período de 1974-1975 um marco importante, com a abolição da censura estatal. Interpretam-se as estratégias relativas aos media e ao campo jornalístico na perspetiva das teorias da comunicação e do conceito designado por “efeito de atraso” (Neveu).

Palavras chave: media portugueses; corte revolucionário; ideologia; jornalistas; 1974-1975


 

ABSTRACT

The autonomy of the journalistic field in Portugal was in the period from 1974-1975 an important milestone, with the abolition of state censorship. In this article, the strategies towards the media and the journalistic field are interpreted through the media theories and the concept called “delay effect” (Neveu).

Keywords: Portuguese media; revolutionary break; ideology; journalists; 1974-1975


 

RESUMEN

La autonomía del campo periodístico en Portugal en 1974-1975 tuvo un hito importante, con la abolición de la censura estatal. Las estrategias relacionadas con los medios y el campo periodístico se interpretan desde la perspectiva de las teorías de la comunicación y el concepto llamado "efecto de retraso" (Neveu).

Palabras clave: medios portugueses; corte revolucionario; ideología; periodistas; 1974-1975


 

Em comunicação apresentada ao Conselho da Europa, em 1995, sobre os media nas transições democráticas europeias[1], delineei uma proposta de periodização, em três fases, dos primeiros vinte anos da Revolução Portuguesa, no domínio da Comunicação Social. A primeira fase tem como palavra-chave Ideologias (1974-76) e como perfil profissional o de um jornalista-militante. A segunda fase, remete para a palavra Instituições (1976-1985) e o retrato dominante seria o jornalista porta-voz. O terceiro período, poderia definir-se pela palavras-chave mercado e tecnologia (1987-1995) e por um perfil dominante de jornalista negociador com as fontes e pesquisador de boas histórias. Este quadro histórico é certamente simplificado e, se for tomado ao pé da letra, redutor, mas ajuda a introduzir o tema, centrando-me apenas no período seguinte à Revolução de 25 de Abril.

De entre os atos libertadores dos revolucionários de 1974, conta-se a abolição da censura prévia. A liberdade de expressão assumia excecional valor, num país que conheceu, ao longo da sua história, toda a espécie de censuras estatais, religiosas e económicas. As medidas imediatas dos revolucionários de Abril em relação à Comunicação Social consistiram, por um lado, na ocupação dos principais meios audiovisuais e, por outro, na abolição imediata da censura e exame prévio.

Se a rádio e a televisão foram militarmente ocupadas, outro tanto não sucedeu à Imprensa escrita, que, com raras exceções, se solidarizou, por sua livre iniciativa, com o propósito dos revolucionários. Sob o regime de Salazar e Caetano, o exame prévio processava-se através de provas tipográficas remetidas às comissões de censura existentes em Lisboa, no Porto e nas capitais de distrito. Ora, no dia 25 de Abril - refere o relatório do Conselho de Imprensa - “quando ainda não se confirmara a vitória do movimento militar, a maioria dos jornais não enviou provas à censura” (Conselho de Imprensa, 1979, p. 1).

O escritor José Cardoso Pires descreveu, com saborosa ironia, esse último alento de perenidade censória:

Na manhã do 25 de Abril, estava Lisboa em revolução, voavam os cravos, corriam os tiros e, a dois passos do Quartel do Carmo onde Caetano se encontrava encurralado com o sumo-inquisidor Moreira Baptista, os censores do fascismo continuavam às secretárias, embalados numa rotina de meio século”. A dada altura levantaram a cabeça, medindo as horas, e todos à uma desataram a telefonar para os jornais. Reclamavam as provas dos textos das edições da tarde. Estavam de tal modo viciados de autoridade, tão enraízados nos cadeirões sombrios - vivendo neles, larvando papel, reproduzindo-se - que se julgavam instituição natural, função pública. Prolongáveis para lá do fascismo que se estava a extinguir (Pires, 1977, p. 244)

A força subversiva da palavra escrita esteve na génese da Revolução portuguesa. Escritores, jornalistas e muitos outros cidadãos participaram nas lutas contra o salazarismo. Através de meios legais, semi-legais ou clandestinos, bateram-se pela liberdade de expressão contra a censura prévia e a polícia política. Alguns jornais e jornalistas, programas de rádio e até de televisão dos anos 60 e 70 - com especial destaque para os vespertinos de Lisboa e do semanário Expresso - contribuíram para a mudança de regime e para a criação do clima favorável à Revolução de 25 de Abril. Abolida a censura, os media passaram a viver em regime de liberdade de expressão.

Os solenes dispositivos institucionais e mediáticos herdados do antigo regime mudaram de orientação. Novos conteúdos tomaram de assalto as velhas formas. As imagens a preto e branco da RTP difundiam pelo país atos de posse e manifestações de rua, solenes discursos e debates políticos, comícios partidários e reivindicações de comissões de trabalhadores e moradores. As emissões de rádio emitiam mensagens revolucionárias.

Da euforia da libertação e da possibilidade de escrever sem que a sombra do lápis de um censor se projetasse na folha branca de papel passou-se, quase sem transição, a um combate permanente pelo controlo dos media. O aparelho de comunicação ligado ao salazarismo não conseguiu prolongar a ‘velha ordem’, embora certas correntes militares e políticas, relevantes até à queda do Presidente Spínola, desejassem manter, sob o manto protetor de uma solução federativa, o controlo militar e político sobre as colónias e, para executar esse projeto, precisavam de condicionar os media. As Forças Armadas tentaram regular os media com a criação de Comissões Ad Hoc, que vieram a extinguir-se em 1976, a primeira à direita (até Setembro de 1974) e a segunda à esquerda[2]. Se a última justificação da censura, ao tempo de Marcelo Caetano, foi a prossecução de operações militares em Angola, Moçambique e Guiné, os primeiros atos de repressão à Imprensa, após o 25 de Abril, relacionavam-se também com a guerra de África. Nos textos sancionados pela primeira Comissão Ad Hoc, estava em causa indiretamente, a forma de conduzir a descolonização. A força negocial portuguesa perante os movimentos de libertação dependia da eficácia militar nas colónias. O projeto federalista de Spínola passava pela coesão das Forças Armadas. E, se não excluía o cessar-fogo em África, pressupunha a presença militar em termos operativos. O fundamento das multas aplicadas pela primeira Comissão Ad Hoc relacionou-se, sempre, com a questão da disciplina militar e com o problema colonial. Em princípios de Agosto, os membros da primeira Comissão Ad Hoc demitiram-se, por não terem sido ouvidos acerca da suspensão aplicada, sem qualquer fundamento legal, pelo Presidente da República, general Spínola, a três vespertinos de Lisboa - República (um dia), A Capital (dois dias) e Diário de Lisboa (dois dias). Motivo invocado: a publicação da notícia de uma manifestação da extrema-esquerda (MRPP). Esta decisão provocou, aliás, um movimento de repúdio: a 2 de Agosto não se publicaram jornais em Lisboa. Perante a ameaça de paralisações na Rádio e na Televisão, as suspensões foram levantadas. Terminou deste modo a primeira fase da acção da Comissão Ad Hoc. Novas censuras emergiram do seio da Revolução, ao sabor de grupos de pressão políticos e militares, prejudicando o pluralismo interno e externo. Visava-se, nuns casos preparar a revolução, noutros conquistar o eleitorado. Diferentes conceções dos media e do jornalismo conduziram a afrontamentos dolorosos. Companheiros na luta contra a censura salazarista encontravam-se, agora, em trincheiras que se combatiam de forma implacável. Ao longo dos anos de 1974 e 1975, a comunicação social foi, simultaneamente, o lugar de afirmação do poder em construção e de luta pela definição do futuro sistema político, económico e social. Algumas forças políticas julgaram que seria possível legitimarem-se através do controlo dos media e da ligação às bases populares, dispensando - ou secundarizando - os mecanismos da democracia representativa (Seaton & Pimlott, 1983, p. 113).

Durante uma visita a Portugal, no ano de 1975, acompanhado pelo seu amigo jornalista Serge July, o filósofo e escritor Jean-Paul Sarte disse que a Imprensa portuguesa, fosse de esquerda ou de direita, “não explica(va) nada”[3]. Colava comunicados emanados dos centros de decisão militares ou partidários. Reportava declarações produzidas em comícios. O Conselho de Imprensa, magistratura de influência independente do Governo, recorreu a palavras e expressões como “monolitismo” e “tom propagandístico” (Conselho de Imprensa, 1979, pp. 43-44) para caracterizar o discurso jornalístico dessa época. Na imprensa, na rádio e na televisão imperavam os paradigmas de agit-prop característicos do início do século XX que postulavam a sobrevalorização do poder persuasivo dos media. Essas representações e modelos de atuação eram inspirados, nuns casos, em “fontes ideológicas ou partidárias” de tendência marxista, noutros em experiências de “ação psicológica” ensaiadas pelas forças armadas portuguesas na guerra colonial.

Emanavam de determinados sectores da instituição militar e de partidos políticos.

A reivindicação de controlo operário sobre o conteúdo de jornais, liderada pelos trabalhadores gráficos, relevantes atores políticos neste período, esteve no centro de vários conflitos em empresas jornalísticas. Situações dramáticas de luta pela posse de órgãos de Comunicação Social, como os casos República e Renascença, desencadearam manifestações de rua e, no primeiro episódio, levaram à queda de um dos governos provisórios (Julho de 1975, IV Governo Provisório). A televisão e a rádio foram objeto de polémicas quase permanentes. A Assembleia Constituinte no Verão de 1975 foi quase reduzida ao silêncio, como demonstram os arquivos da RTP, que não possuem imagens desse rico e conflituoso tempo de debate, porque os jornalistas não estiveram lá.

Apesar de todos os incidentes ocorridos, o círculo das “novas censuras” nunca se fechou completamente sobre si próprio. Ainda que de uma forma imperfeita e irregular, refletindo os andamentos do processo político, os media contribuíram para a criação de um novo espaço público. Os discursos dos comunistas e da esquerda revolucionária, mesmo quando divergiam entre si, poderiam significar para a maior parte dos consumidores dos media, nada treinados a decifrar nuances políticas, uma mesma retórica de propaganda. Contudo, não eram atitudes e posições homogéneas. Para citar exemplos, alguma extrema-esquerda trotskista tomou posições diferenciadas no caso República. No Diário Popular existiu um interessante pacto de não agressão entre uma parte dos jornalistas simbolizada na fórmula “jornalista não saneia jornalista”, que se traduzia numa atitude que permitiu o convívio na redação de jornalistas de várias tendências.

O jornalismo desse tempo desempenhou um papel de pedagogia cívica, estabelecendo pontes entre os leitores, radiouvintes e telespectadores e o novo e complexo poder político-militar ou através da divulgação das regras indispensáveis à preparação dos primeiros atos eleitorais. Conferiu visibilidade aos novos órgãos governativos, aos partidos políticos, aos sindicatos, às personagens civis e militares que ajudaram a instaurar o novo regime. Apesar da agitação revolucionária que se manifestava nas ruas e nos quartéis, organizaram-se teledebates entre líderes políticos, merecendo destaque, pela sua excecional dramaticidade, o debate entre Mário Soares e Álvaro Cunhal, que teve lugar na RTP, a 6 de Novembro de 1975. A orientação dos media oscilava ao sabor das conjunturas e dos equilíbrios, no país e no interior de cada empresa, entre a lógica propagandística e a lógica do pluralismo.

A orientação dos media de 1974-75 resultou da convergência de governos, partidos, políticos, militares, jornalistas e tipógrafos, sindicatos e comissões de trabalhadores. Os especialistas em ação psicológica nas guerras coloniais tentaram transferir para a Metrópole as técnicas de condicionamento, através dos media, assimiladas com vista à aplicação no contexto das guerrilhas.

O discurso dos media não visava explicar ou argumentar, mas agitar e mobilizar. O comentário, a análise, a explicação não eram os métodos habituais. Recorria-se, de preferência, a processos como o tom oratório e triunfalista, a repetição dos chavões doutrinários, o silenciamento de acontecimentos relevantes, a transformação de rumores em notícias...

O círculo não chegou, porém, a fechar-se. O controlo dos comunistas e da extrema-esquerda nunca se estendeu à Comunicação Social no seu todo, embora, a certa altura, se exercesse com grande intensidade na TV e na Rádio, nos jornais de Lisboa (e menos nos do Porto). A direita mantinha influência relevante na Imprensa regional, onde predominava a influência da Igreja. Muitos desses jornais foram sancionados pela segunda Comissão Ad Hoc.

No ano de 1975 novos jornais privados emergiram, na área liberal conservadora, social-democrata ou socialista. O investigador Pedro Marques Gomes examina o surgimento dos diários Jornal Novo e A Luta e dos semanários O Jornal e Tempo: “Os quatro jornais surgidos em 1975 - sustenta Pedro Marques Gomes - (…) com características que os diferenciavam uns dos outros e outras que os aproximavam, (…) cada um à sua maneira, procuraram afirmar-se enquanto projetos jornalísticos alternativos e, em alguns aspetos, inovadores e ousados” (Gomes, 2018, p. 353).

À exceção de A Luta e do Jornal Novo, reforçou-se e consolidou-se o papel específico dos semanários, que se iniciara na época marcelista, com a fundação do Expresso. O caos reinante na Imprensa diária propiciou a implantação dos novos jornais. Era, aliás, mais fácil dotar de coesão, homogeneidade e competência equipas redatoriais reduzidas, criadas a partir do zero, do que reformar velhas redações com heranças pesadas. Esses novos jornais procuravam ir mais longe do que a colagem, apoiada em títulos declarativos, dos comunicados governamentais, partidários e militares, que faziam ainda escola na grande maioria dos diários. Nem todo o jornalismo semanário mereceu aplausos sob o ponto de vista ético e deontológico, embora em graus e estilos diferentes consoante os órgãos em causa. Como principais aspetos negativos avultam: certo relaxamento nos critérios de verificação das fontes e o predomínio da imaginação prospetiva em análises que, sob a invocação da ciência política, confundiam desejos dos articulistas com previsões razoáveis.

Refiram-se ainda as secções “confidenciais” que surgiram na Imprensa semanária, com noticiário alusivo à vida social, política e literária. Sem escrúpulos de invadir a privacidade dos cidadãos, este tipo de jornalismo foi usado para, com base em insinuações e meias-verdades, fazer e desfazer reputações, ao sabor de interesses e conveniências. Esta orientação, pouco escrupulosa, revelou-se eficaz no plano político. Talvez tão decisiva como o jornalismo dos golpes de Estado inventados e das grandes parangonas ideológicas praticado pelos adeptos de Vasco Gonçalves e Otelo Saraiva de Carvalho. A tentação do monolitismo esteve sempre associada ao desconhecimento dos limites de poder dos mass media. Com efeito, a utilização da Comunicação Social num processo de transformação política e social pressupõe que se tenha em atenção os mecanismos de autodefesa da sociedade perante quaisquer agressões às suas crenças e convicções mais arreigadas.

Em 1974-75, a Imprensa, onde predominavam o PCP e a extrema-esquerda revolucionária, atuou como se desconhecesse que o poder dos media noticiosos não é ilimitado. Abalada a credibilidade global do sistema de Comunicação Social, logo a sua eficácia, em termos de persuasão, disso se ressentiu.

As grandes campanhas desencadeadas pelo poder revolucionário saldaram-se em resultados dececionantes. Mantiveram um certo grau de incerteza psicológica no país, geraram grandes manifestações de rua em Lisboa e no Porto, animaram ações localizadas em fábricas, quartéis ou na rua, mas, no plano nacional, o efeito persuasivo não se verificou. O feitiço voltou-se contra o feiticeiro.

As eleições constituintes efetuadas a 25 de Abril de 1975 representaram um duplo insucesso para a esquerda comunista e revolucionária. Apesar da sua preponderância na informação, o PCP e a extrema-esquerda revolucionária foram nitidamente derrotados nas eleições em benefício das correntes defensoras da democracia representativa (PS 38 por cento; PPD - 26 por cento; PCP - 12,5 por cento). O apelo ao “voto em branco”, defendido por certa esquerda militar e civil, como equivalente ao apoio ao MFA, também não surtiu efeito considerável. A percentagem de votos brancos e nulos não ultrapassou os 6,94 por cento.

O uso da Comunicação Social pelas forças revolucionárias, em 1974-75, saldou-se por um efeito de boomerang. A tentação do monolitismo não compensou. Pelo contrário, voltou-se contra quem o tentou implantar. O alarme produzido pelas imagens da Revolução - nas ruas, nas fábricas, nos campos e, sobretudo, nos quartéis - não poderia deixar de ser desastroso na perspectiva dos revolucionários. Entre outros casos merecedores de análise, releve-se o diálogo entre os militares envolvidos no golpe de 11 de Março de 1975, Dinis de Almeida (MFA gonçalvista) com Mensurado (spinolista), mediado pelo jornalista Adelino Gomes.

A 25 de Novembro de 1975, a maior parte dos portugueses assistiu à transição abrupta de alocução revolucionária que o capitão Durão Clemente proferia na TV pelo genérico do filme “O Homem do Dinner’s Club”, com Danny Kaye. A cena, com o seu misto de dramatismo e humor, ficou na memória de muitos telespectadores. Era, apesar de tudo, um final moderado, a condizer com uma Revolução que Miguel Torga qualificou, no seu diário, de “mais psicológica do que sociológica” (Torga, 1977, p. 113). O conceito de “efeito de atraso” proposto por alguma sociologia dos media - cite-se Eric Neveu (2001) - aponta para a possibilidade de que certas teorias da comunicação tenham influência na sociedade já após ter sido declarada a sua invalidade científica.

A teoria da propaganda ou dos “efeitos totais”, construída no contexto histórico do período de “entre as duas guerras” e dos modelos behavioristas adotados em estudos sobre os regimes totalitários, permaneceram com influência na definição de estratégias de comunicação voluntaristas emanadas de governos, partidos políticos, instituições militares e outras. Para recorrer à formulação de Neveu, são “teorias recicladas em instrumentos quotidianos de perceção dos media” (Neveu, 2001, p. 82). Essa crença no poder absoluto dos media e dos jornalistas foi questionada desde as investigações pioneiras de Elihu Katz e Paul Lazarsfeld - com destaque para o estudo Personal Influence (1955), lugar de cruzamento entre a psicologia de massas, herança do princípio do século XX (Tarde, Park) e a psicologia interpessoal.

As análises de campanhas eleitorais revelam desde há muito que a predominância nos media não equivale automaticamente a vitória nas urnas (Cayrol , 1973). Na França de 1924, o “cartel das esquerdas” venceu eleições, apesar da maior parte dos jornais ser adversa a essa aliança. Em 1936, a Frente Popular venceu as eleições apesar da hostilidade de 80 por cento da imprensa.

Na Grã-Bretanha, existe o exemplo mundialmente célebre da derrota eleitoral dos conservadores em 1945. Vencedor da Guerra e apoiado pala maior parte da imprensa, Churchill perdeu as eleições para os trabalhistas. Nos Estados Unidos, Franklin D. Roosevelt venceu as eleições de 1944 com a hostilidade de 78 por cento da tiragem total da imprensa. Destes dados da história dos media não se pode concluir que a influência dos media foi irrelevante, mas que deve ser interpretada num quadro político, sociológico e histórico. Conforme sublinha Mauro Wolf, “há uma espécie de carácter cíclico na existência e no retorno de alguns ‘climas de opinião’ (e respectivas tendências de pesquisa) sobre o tema da capacidade que os mass media possuem para influenciar o público” (Wolf, 1994, p. 54). As investigações de Lazersfeld e da sua equipa no pós Guerra demonstram que os efeitos dos media “são atenuados por processos selectivos de atenção, de percepção e de memória”, os quais, por sua vez, dependem de variáveis como a idade, a história familiar, a tendência política dos destinatários das mensagens. Este paradigma rompeu com a “representação do impacte dos media como total, imediato e sem mediação”, defendendo que a respetiva “influência é um processo que leva tempo e que a conversa sobreviveu nas sociedades modernas...” (Katz, 1989, p. 87).

O poder dos media foi progressivamente revalorizado, a partir do último quartel do século passado, mas numa perspetiva mais complexa do que os modelos lineares da comunicação da primeira metade do século XX. “O ponto principal da questão - explica Manuel Castells - é que os media (…) tornaram-se no espaço privilegiado da política. Não que toda a política possa ser reduzida a imagens, sons ou manipulações simbólicas, mas sem os media não é possível adquirir ou exercer o poder. Deste modo, acabam por entrar no jogo, embora não da mesma forma ou com o mesmo propósito” (Castells, 1989, p. 379)4 . A experiência portuguesa antes e depois do “corte revolucionário” de 1974-75 é um marco relevante na história das teorias da comunicação social. É o que faz notar Jean Seaton, atual historiadora oficial da BBC (Seaton & Curran, 1985, p. 269). Nas décadas de 60 e 70, apesar da censura se ter mantido, a atitude de alguma imprensa foi essencial para estabelecer uma “cultura de oposição ao regime autoritário”, que possibilitou o sucesso da Revolução do 25 de Abril de 1974, mas a “mudança dramática na direção política dos media, entre a primeira e a segunda eleições democráticas, não teve efeito no comportamento dos eleitores”. Num estudo em coautoria com Ben Pimlott, Seaton defendeu que a ação dos media durante o período revolucionário de 1975 teve fraco poder persuasivo: “No Verão de 1975, o controle pró-comunista dos media foi vasto, mas (…) esse domínio não produziu o efeito de converter o povo, mas o de espalhar a desconfiança. O poder persuasivo dos media era muito limitado” (Seaton & Pimlott, 1983, p. 113).

A ilusão dos media como eficazes mentores da revolução, construída com base em teorias guardadas no sótão, ficou desfeita.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Castells, M. (2007). A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura. A Sociedade em Rede (V. I). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.         [ Links ]

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Wolf, M. (1994). Teorias da Comunicação. Lisboa: Presença.         [ Links ]

 

Agradecimento

Agradeço à Comissão Científica e à Comissão Organizadora do Congresso “Os Media no Portugal Contemporâneo - Da ditadura à democracia”, nas pessoas dos investigadores Pedro Marques Gomes, Cláudia Henriques e Sílvia Torres, o convite para apresentar esta comunicação

 

Artigo por convite | Article by invitation

 

Notas

[1] Palestra intitulada “Le rôle des médias dans la consolidation de la démocratie - Réflexions sur l'expérience portugaise”, proferida em Estrasburgo, na mesa-redonda sobre “O papel dos media livres na consolidação da democracia na Europa”, organizada pelo Conselho da Europa, no âmbito das comemorações do 20º Aniversário da adesão de Portugal, a 24 de Setembro de 1996, com a participação de Álvaro Guerra (embaixador de Portugal), Malcolm Dean, Branislav Milosevic, André Pautard, Alexei Venedictov e Peter Zwick.

[2] Sobre estas Comissões Ad Hoc, veja-se Mesquita (1988).

[3] Declarações proferidas, na Casa da Imprensa, a 5 de Abril de 1975, reproduzidas em A Capital e Expresso.

 

Nota biográfica

Mário Mesquita é Professor de Jornalismo na Escola Superior de Comunicação Social do Instituto Politécnico de Lisboa e na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias. É atualmente Vice-presidente da Entidade Reguladora da Comunicação Social.

Email: mariomotamesquita@gmail.com

Morada: Campus de Benfica do IPL, 1549-014 Lisboa, Portugal

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