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Media & Jornalismo

versão impressa ISSN 1645-5681versão On-line ISSN 2183-5462

Media & Jornalismo vol.19 no.34 Lisboa jun. 2019

https://doi.org/10.14195/2183-5462_34_25 

RECENSÃO

McIntyre, L. (2018). Post-truth. Cambridge, MA: MIT Press.

Patrícia de Matos Sá Rêgo


 

As fake news ganharam expressão a partir da eleição presidencial dos Estados Unidos que elegeu o magnata Donald Trump e da votação do Brexit, em 2016, e tornaram-se um evento fundamental para entender o pensamento contemporâneo, apesar de não serem um fenômeno recente. No livro Post-truth, Lee C. McIntyre percorre um roteiro minucioso para explicar os conceitos de fake news e pós-verdade e o que levou a humanidade a esse ponto. Filósofo, McIntyre é pesquisador do Centro de Filosofia e História da Ciência da Boston University e professor de Ética na Harvard Extension School, nos Estados Unidos. É também autor de Dark ages: The case for a science of human behavior (2006), publicado pelo MIT Press, e Respecting Truth: Willful ignorance in the Internet Age (2015), da Routledge.

No primeiro capítulo, What is post-truth?, McIntyre usa a definição do Oxford Dictionaries, que escolheu pós-verdade como palavra do ano de 2016, para começar a explicar a expressão. A verdade passou a ser irrelevante e sentimentos tornaram-se mais importantes do que factos. O prefixo pós indica a perda da relevância da verdade na atualidade e não está relacionado a um sentido temporal. É traçado um breve panorama sobre a discussão da verdade na filosofia, citando de Aristóteles até filósofos contemporâneos como Harry Frankfurt e o livro On truth (New York: Knopf, 2006), para concluir que apesar de divergências sobre a teoria, a importância da verdade é irrefutável.

Em Science denial as a road map for understanding post-truth, o autor trata da negação da ciência como um factor relevante para a compreensão da pós-verdade. Ao recuperar a campanha de desqualificação dos estudos científicos que relacionaram o alcatrão ao câncer promovida pela indústria do cigarro nos anos 1950, mostra as semelhanças com a estratégia de promoção da desinformação no debate sobre aquecimento global e em outros temas como armas e imigração, servindo a interesses econômicos e ideológicos, como aponta Ari Rabin-Havt em Lies, incorporated: The world of post-truth politics (New York: Anchor Books, 2016).

Baseado em experimentos como os de Brendan Nyhan and Jason Reifler, The roots of cognitive bias é o terceiro capítulo e aborda o viés cognitivo - como o backfire effect e o Dunning-Kruger effect, também chamado “muito estúpido para saber que são estúpidos” -, que faz com que alguém mantenha a crença em algo errado mesmo depois de ser apresentado a evidências. Em seguida, os capítulos The decline of traditional media e The rise of social media and the problem of fake news tratam do surgimento de silos de informações nas redes sociais da internet e o declínio dos jornais. Passamos a ter contato apenas com informações (sejam elas verídicas ou inverídicas) que fortalecem ainda mais aquilo que acreditamos. Também são apontados o aumento no número de programas de opinião há algumas décadas e a adoção da objectividade jornalística como estratégia para apresentar "ambos os lados" em temas tachados de controversos, mesmo quando baseados em factos científicos, como uma tentativa de jornalistas de evitarem serem tachados de tendenciosos.

Em Did postmodernism lead to post-truth?, McIntyre critica os estudos dos pós-modernistas que transformaram tudo, inclusive as ciências naturais, em narrativa passível de influência ideológica. Para finalizar, em Fighting post-truth afirma que a importância do livro no entendimento das raízes do problema da pós-verdade é para que se possa fazer algo em relação à situação atual visto que a verdade continua tendo importância: The issue for me is not to learn how to adjust to living in a world in which facts do not matter, but instead to stand up for the notion of truth and learn how to fight back.

Em sete capítulos, McIntyre disseca as raízes que favoreceram o surgimento do fenômeno da pós-verdade e permite que o complexo problema seja mais facilmente compreendido a partir da análise de diferentes aspectos e personagens envolvidos na questão: políticos, empresários, jornalistas e investigadores. Com a mesma exatidão que contextualiza as fake news e a situação de risco em que encontram-se os factos e a verdade na atualidade, fornece exemplos que provam a criticidade da situação em um cenário no qual o presidente Trump, por meio de sua conta no Twitter, prolifera inverdades e desqualifica qualquer informação contrária às crenças dele.

Rigoroso ao analisar o papel dos jornalistas de ter favorecido a pós-verdade ao incentivar falsas controvérsias ao invés de se apresentar como um facilitador da verdade, o autor não poupa também acadêmicos que ajudaram no trabalho de desqualificação das ciências a partir da disseminação de um pensamento que colocava qualquer descoberta científica à mercê da dúvida e do obscurantismo. E também mostra as teias de relações que envolvem de conservadores a liberais, de executivos de indústrias como a do cigarro e do petróleo a jornalistas e pesquisadores que permitiram a proliferação de notícias falsas. No entanto, embora as redes sociais sejam discutidas no livro, as empresas tecnológicas aparecem mais como atores secundários do que protagonistas ao tratar da responsabilidade da publicação e distribuição de conteúdo na nova mídia.

McIntyre foca principalmente em exemplos nos Estados Unidos sem dar destaque a movimentos que estão ocorrendo em outros países. A União Europeia, por exemplo, montou uma equipa para tratar da ameaça da desinformação à democracia e vem divulgando documentos para tratar da questão. Em um dos relatórios mais recentes, orienta o uso do termo disinformation ao invés de fake news. O autor também não se aprofunda no fact-checking, um movimento reformista ligado à ideologia do jornalismo profissional, segundo Lucas Graves (Deciding what’s true: The rise of fact-checking in American journalism. Nova Iorque, Columbia University Press, 2016), uma estratégia clara de jornalistas para o resgate da autoridade que tinha.

Criada em 2015, a Rede Internacional de Checadores (IFCN, na sigla em inglês) vem atuando como um evangelizador de práticas de fact-checking e ator essencial na estratégia dos media tradicionais de manter o accountability do jornalismo ao construir um discurso unitário sobre fake news. Não à toa, a revista norte-americana Time escolheu como Pessoa do Ano de 2018 Os guardiões e a guerra pela verdade (no original em inglês, The guardians and the war on truth), em dezembro de 2018. A dificuldade em se chegar a um consenso sobre factos básicos e a dedicação dos jornalistas em buscar a verdade foram apresentados como justificativa para a homenagem a um grupo de jornalistas de diferentes nacionalidades que foram assassinados ou ameaçados de morte.

É verdade que muitas das ideias apresentadas no texto foram profundamente trabalhadas por outros autores, muitos deles citados no livro. No entanto, ao reunir em um único estudo esses trabalhos, cria as conexões necessárias que permitem o entendimento das raízes que envolvem a pós-verdade e possíveis caminhos para se enfrentar o problema. Post-truth é um livro que certamente deveria ser lido por todos que se importam com a verdade; e também por aqueles que sequer reconhecem a pós-verdade.

 

Recebido | Received | Recebido: 2018.07.16
Aceite | Accepted | Aceptación: 2018.09.29

 

Nota biográfica

Patrícia de Matos Sá Rêgo é Mestre em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense e graduada em Comunicação Social, Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tem experiência na área de comunicação, com ênfase em jornalismo digital e telejornalismo, atuando principalmente nos seguintes temas: jornalismo, jornalismo digital, auto

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