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Media & Jornalismo

versão impressa ISSN 1645-5681versão On-line ISSN 2183-5462

Media & Jornalismo vol.19 no.34 Lisboa jun. 2019

https://doi.org/10.14195/2183-5462_34_12 

ARTIGO

A publicidade no Brasil: identidades profissionais e organização do trabalho nas agências

Advertising in Brazil: professional identities and work organization in the agencies

La publicidad en Brasil: identidades profesionales y organización del trabajo en las agencias

Everardo Rocha*, Bruna Aucar*

*Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro


 

RESUMO

Este trabalho pretende realizar uma interpretação do mundo da publicidade e das identidades profissionais nele negociadas através da teoria da ação coletiva de Howard Becker. O objetivo é pensar as várias funções e denominações corporativas elaboradas dentro de uma agência de propaganda no Brasil. Os elos cooperativos e redes de convenções estabelecidos no campo foram determinantes para o reconhecimento da profissão e para a materialização desse tipo específico de comunicação. Atores sociais e suas ações são partes determinantes da produção do conhecimento e da construção das identidades em um determinado sistema social. Neste sentido, é possível entender o discurso que a publicidade deposita na cultura, analisando o resultado da ação conjunta e coordenada de identidades profissionais cuja colaboração é necessária para que o trabalho se realize.

Palavras-Chave: publicidade; agências brasileiras; identidades profissionais; ação coletiva; Howard Becker


 

ABSTRACT

This paper intends to make an interpretation of the world of advertising and professional identities it traded through the theory of collective action of Howard Becker. The objective is to think about the various functions and corporate denominations elaborated within an advertising agency in Brazil. The cooperative ties and conventions networks established in the field were decisive for the recognition of the profession and for the materialization of this specific type of communication. Social actors and their actions are crucial parts of the production of knowledge and the construction of cultural identities in a particular social system. It is possible to understand the speech that advertising deposited in the culture, analyzing the result of joint and coordinated action of professional identities whose assistance is necessary so that the work is done.

Keywords: advertising; Brazilian agencies; professional identities; collective action; Howard Becker


 

RESUMEN

Este trabajo pretende realizar una interpretación del mundo de la publicidad y de sus identidades profesionales a través de la teoría de la acción colectiva de Howard Becker. La meta es pensar las diversas funciones y denominaciones corporativas elaboradas dentro de una agencia de propaganda en Brasil. Los enlaces cooperativos y redes de convenciones establecidos en el campo fueron determinantes para el reconocimiento de la profesión y para la materialización de ese tipo específico de comunicación. Los actores sociales y sus acciones son partes determinantes de la producción del conocimiento y de la construcción de las identidades culturales en un determinado sistema social. En este sentido, es posible entender el discurso que la publicidad deposita en la cultura, analizando el resultado de la acción conjunta y coordinada de identidades profesionales cuya colaboración es necesaria para que el trabajo se realice.

Palabras clave: publicidad; las agencias brasileñas; identidades profesionales; acción colectiva; Howard Becker


 

Introdução

Para expressar seu ponto de vista sobre o mundo artístico, Howard Becker (1977) recorreu a uma tradição sociológica que sustenta que o conhecimento e os produtos culturais possuem um caráter social ou uma base social (Simmel, 2002; Park, 1950, 1952, 1955; Blumer, 1966). A arte é analisada como um fenômeno revelador de uma determinada sociedade e momento histórico.

O maior expoente vivo da Escola de Chicago é um autor bastante estudado nas ciências sociais, especialmente citado nos trabalhos voltados para estudos urbanos e temáticas que dialogam com o interacionismo, análise do indivíduo e da sociedade de forma ampla. A ideia de ação coletiva - doing things together - é central para a compreensão da obra de Becker, seja nos textos sobre desvios, seja nos textos sobre arte. Sua perspectiva destaca rituais e estratégias de interação como preciosos elementos para a compreensão de processos envolvidos na construção dos imaginários culturais (Becker, 2013).

A abordagem interacionista de Howard Becker (1977, 1977a) pode ser aplicada para uma interpretação do mundo da publicidade. Assim como a arte, as condições de existência da narrativa publicitária são resultado e expressão de tipos de interação social e ação coletiva que se materializam dentro do ambiente das agências de propaganda. Ou seja, é possível compreender o discurso que a publicidade deposita na cultura ponderando o resultado da ação conjugada de identidades cuja colaboração é necessária para que o trabalho seja realizado de determinada forma. Seguindo a teoria de Becker (1977), podemos dizer que um “mundo” se define a partir da totalidade de identidades e organizações que produzem determinadas ações necessárias para a existência de acontecimentos e produtos específicos e próprios de tal “mundo”. Seja qual for o objeto da produção, qualquer universo pode ser demarcado pelo conjunto de sujeitos que realizam atividades correlacionadas para esta produção aparecer. “Toda atividade é o trabalho de alguém. Isso quer dizer que para compreender uma atividade, qualquer que seja, é necessário pesquisar junto às pessoas para quem aquela atividade é um trabalho” (Becker, 2013, p.132). Atores sociais e suas ações são parte determinante do conhecimento e da construção de identidades dos sistemas de organização culturais. São as atividades coletivas humanas que criam os produtos sociais e as marcações identitárias, bem como as estruturas que proporcionam os sistemas de criação destes produtos e identidades.

Desta maneira, o mundo da publicidade pode ser pensado a partir do grupo de pessoas e instituições que produzem os acontecimentos e objetos definidos por eles próprios como uma narrativa publicitária. Podemos entender a publicidade através da articulação das identidades individuais projetadas dentro de uma agência de propaganda, seus elos cooperativos, suas redes de convenções para a materialização desse tipo de mensagem midiática. Além dessa conjuntura intrínseca da publicidade, também é possível considerar, de forma mais ampla, a publicidade como uma atividade definidora de nosso mundo social, uma vez que ela produz um tipo de acontecimento - o anúncio - que só é possível no contexto capitalista moderno-contemporâneo e através dele consegue transformar a realidade cultural e subjetiva dos sujeitos.

Publicidade como ação coletiva

Grande parte da bibliografia sociológica faz referência aos sistemas sociais, apontando correspondências que não incluem a análise das ações dos sujeitos que formam as organizações ou sistemas. Becker destaca justamente a participação dos atores sociais e o encadeamento de todas as atividades para que um sistema apareça. “As ações coletivas e os acontecimentos que elas produzem são as unidades básicas de investigação sociológica” (Becker, 1977, p. 222). A organização social se fundamenta no modo como as pessoas atuam em conjunto para produzir uma abundância de eventos diferentes de maneira cíclica. Ao pensar o mundo artístico, o autor vai elencar todas as atividades que devem ser realizadas para que uma obra de arte qualquer exista no plano social:

Para que uma orquestra sinfônica dê um concerto, por exemplo, instrumentos precisaram ser inventados, fabricados e conservados, uma notação precisou ser planejada e a música composta utilizando-se aquela notação, as pessoas devem ter aprendido a tocar aquelas notas nos instrumentos, horas e locais para apresentações precisaram ser providenciados, anúncios para o concerto foram colocados, publicidade preparada e entradas vendidas e uma plateia capaz de ouvir e de alguma maneira entender e responder à apresentação precisou ser recrutada. (Becker, 1977, p. 206)

Um repertório de atividades semelhantes e cadeias de correspondências também pode ser aplicada para explicar o aparecimento de um anúncio na esfera social. Para que uma narrativa publicitária se torne um discurso persuasivo, capaz de vender não apenas produtos e serviços, mas também valores e ideologias que modifiquem a sociedade como um todo (Balonas, 2011), temos que ter profissionais capazes de desenvolver ideias, textos e imagens para estas mensagens. Para isso, esses profissionais tiveram que ser contratados, treinados e formados por agências de publicidade, organizações que se especializaram no oficio de elaborar anúncios. Agências tiveram que ser criadas por operadores que desejavam profissionalizar o campo da publicidade. Neste ambiente profissional, identidades próprias foram moldadas pouco a pouco de acordo com as convenções constituídas para o meio. Além das identidades, departamentos tiveram que ser organizados e funções estabelecidas para que uma espécie de “cartilha” da produção de anúncios pudesse ser definida para estes agentes produtores.

Também foi preciso que os consumidores dispusessem de condições de apreensão da mensagem publicitária e seus códigos narrativos. Logo, o campo publicitário também precisou criar uma linguagem própria que permitisse a compreensão de seus anúncios pela sociedade. Antes de tudo, entretanto, foi necessário ter o produto em si, em geral um artigo manufaturado por sistemas industriais que recebe a marca de uma instituição ou empresa organizada em preceitos capitalistas. Para a criação do anúncio, a corporação contratou a agência com o objetivo de impulsionar não só as vendas, como também a influência cultural de seu produto. E, sobretudo, um público consumidor capacitado para “de alguma maneira entender e responder” a esses anúncios precisou ser recrutado.

Em termos gerais, estamos falando sobre atividades necessárias que interligadas formam uma rede de colaboração, baseada em divisões de trabalhos, para que o acontecimento do anúncio se realize socialmente. Caracteristicamente, as ações incluem a concepção da ideia para o anúncio, o desenvolvimento de artefatos físicos para a sua realização, a formação de instituições que encadeadas dão forma às leis e regras das transações e do mercado, o treinamento de profissionais que entendam e aperfeiçoem o funcionamento estrutural interno das agências de publicidade, a elaboração de uma linguagem própria adequada aos fins de compreensão de determinados interlocutores sociais, o adestramento de um público consumidor que capte as mensagens e as traduza em forma de consumo, valores, ideologias.

As agências só se desenvolveram com a necessidade das sociedades industriais em estabelecer uma comunicação que ultrapassasse os redutos locais de comercialização de bens e serviços. A partir das primeiras décadas do século XX, as mensagens publicitárias passaram a ser fundamentais no esforço de vendas e no processo de aceleração, expansão, multiplicação de mercados e hegemonia cultural mundo afora. Anúncios produzidos por agências e distribuídos em meios de comunicação foram responsáveis por formar novos mercados consumidores e modos de comportamento ajustados aos conteúdos publicitários e atento as novidades trazidas pelo imaginário que esses mesmos meios promoviam. O alargamento da comunicação massiva foi determinante para o aparecimento das narrativas publicitárias. Foram as plataformas de comunicação que passaram a levar as mensagens do campo da publicidade para além dos limites até então conhecidos.

É preciso sublinhar que a publicidade, durante muito tempo, foi entendida como uma atividade que pretende vender produtos, carregando até um sentido pejorativo ligado apenas a propósitos capitalistas. No entanto, seria restritivo demais pensar a mensagem publicitária somente por suas finalidades comerciais. Seu discurso fascinante e sua força de persuasão chegam a alcances muito mais amplos, capazes de transformar a realidade social. Como salienta Balonas (2011), a publicidade é um meio de informação e sensibilização que envolve a sociedade como um todo, incluindo questões ambientais e sociais das mais diversas, como poluição, violência doméstica, racismo, entre outras. Atualmente, o debate em torno da responsabilidade social da publicidade é uma tendência que expõe o paradoxo da publicidade sem fins lucrativos, destinada também a causa sociais (Balonas, 2011). Neste sentido, é importante ponderar que a publicidade pode ser pensada de múltiplas maneiras e suas narrativas, ao longo do tempo, só se fortaleceram como poderosos instrumentos que traduzem e mediam as problemáticas travadas entre cidadãos e sociedades.

Para Becker (1977), todas as atividades que conhecemos envolvem circuitos elaborados de colaboração e uma divisão do trabalho. Dentro do processo de aparecimento, seja de uma representação seja de um artefato, existem muitos envolvidos nas diferentes etapas do trabalho. É preciso uma cadeia de tarefas e um concatenamento de atos propositivos para que a realização de algo seja efetivada. É claro que as várias ações podem eventualmente coincidir em uma mesma pessoa. Uma divisão de atividades é resultado de uma definição consensual prévia da situação ou do campo.

No caso da narrativa publicitária, entendemos que os elos de cooperação pensados por Becker (1977) para definir a constituição de determinado campo e sua representação identitária estão aglutinados em torno da estrutura das agências de propaganda. A agência vai reunir todas as premissas necessárias para a fabricação de mensagens públicas a respeito de produtos, serviços e questões sociais. O aparecimento das agências organiza e demarca o campo profissional da publicidade. Bourdieu (1983) considera que são as instituições que tem o poder de fala no social, acima da voz dos sujeitos particulares. Sendo assim, a legitimidade do campo é a autorização outorgada pelos próprios agentes sociais em conjunto, é a credibilidade dada ao setor para a construção e circulação de determinadas identidades na vida coletiva.

Embora o estudo se concentre na realidade brasileira, é importante destacar que as disposições profissionais do país são derivadas do contexto da publicidade americana. As primeiras agências de publicidade do mundo surgiram nos Estados Unidos, França, Alemanha e Inglaterra em meados do século XIX. Estes países foram pioneiros em instituir modelos de negócios padronizados e rotineiros que forneceram as bases para as demarcações profissionais instituídas posteriormente em outras localidades (Pincas e Loiseau, 2008). O padrão brasileiro foi claramente inspirado em diretrizes norte-americanas. Com o advento da globalização, a partir das últimas décadas do século XX, as agências passaram, cada vez mais, a interagir em âmbito internacional, aproximando seus rituais produtivos, nomenclaturas, inovações com o objetivo de atender múltiplos mercados e alargar sua capacidade de influência cultural.

As diferentes etapas que hoje envolvem divisões das agências no Brasil, como criação, planejamento, produção e veiculação de campanhas foram cunhadas e instituídas sob inspiração dos modos operacionais já praticados nos mercados americanos. A primeira agência estruturada no Brasil foi a Eclética, em 1914 (Rabelo, 1956). Posteriormente, o país também incorporou referenciais europeus, mas o modelo estrutural americano ainda é o principal protótipo das empresas brasileiras. Um estudo interessante a ser desenvolvido seria a comparação dos moldes das agências brasileiras com os da realidade portuguesa, incluindo traduções, a partir do inglês, das funcionalidades e convenções profissionais das agências de comunicação.

A incorporação de normas profissionais, funções, regulamentos, associações empresariais trouxe uma aparência de profissionalismo e reconhecimento para o trabalho do publicitário no Brasil. Dentro do campo, as definições consensuais são elaboradas pelos grupos de poder, são discursos dos dominantes que se põem como práticas, instrumentos de ação de uns sobre outros com a composição de diretrizes que o grupo deve seguir e acreditar. Uma vez instituídas, são como que apagadas as relações de poder que as originaram no campo e a percepção dominante que governa as práticas passa ser a de uma “naturalidade” ou a de uma “lógica auto evidente” (Bourdieu, 1983).

Com a gerência de todos os processos relacionados à confecção de um anúncio integrada por agências de propaganda, um campo se constituiu e a publicidade ganhou uma nova representação e importância na esfera social brasileira. A agência instaurou uma rotina própria para a fabricação de anúncios, maneiras convencionais de desempenhar atividades em que seus membros se dedicaram habitualmente por meio de suas funções de competência, ou seja, os profissionais foram treinados para realizar com facilidade e eficiência tudo que precisa ser feito. Antes das agências, os pressupostos capazes de reger a atividade publicitária estavam dispersos e desorganizados, o que embaraçava, e mesmo impedia, o reconhecimento do campo no país.

Representações culturais do publicitário no Brasil

A agência se torna a instância responsável por assessorar qualquer empresa capitalista em suas necessidades de divulgar a si mesma. Entre as atividades articuladas que seus profissionais exercem estão a criação e execução de ideias para venda de produtos, serviços ou a propagação de mensagens de impacto social, contato e interposição de relações entre o cliente e o veículo de comunicação, coordenação dos trabalhos de fornecedores e produtoras, avaliação de custos e despesas para que o anúncio aconteça seja para a agência, seja para a empresa que a contratou, seja para a mídia que o veiculou e ou para público ao qual atingiu.

Desde seu aparecimento no Brasil - em 1914 com a Eclética - a agência foi planejada privilegiando o interacionismo na elaboração de anúncios. A construção de uma identidade profissional própria para a função de publicitário fez com que a atividade, marginalizada como um ofício menor ou até mesmo não percebida como tal, nas primeiras décadas do século XX ganhasse, pouco a pouco, um campo e com ele status e prestígio social no país. O depoimento do publicitário Francisco Gracioso à revista Propaganda ilustra a dificuldade de percepção que a atividade carregava naquele tempo:

Em 1937, quando a propaganda começou a lançar raízes mais profundas em nosso mundo comercial, as atividades publicitárias não deviam ocupar mais de 200 pessoas em todo o Brasil. A propaganda era considerada uma atividade marginal, sem o status de profissão reconhecida, e aqueles que tinham a coragem de se confessar publicitários (ou propagandistas, como muitos insistiam em chamá-los) eram olhados com clara desconfiança. As primeiras agências de propaganda dignas desse nome somente então começavam a estruturar-se, nos padrões americanos. (Reis, 1990, p. 309)

Alguns mecanismos de legitimação foram acionados pelas agências brasileiras, sobretudo a partir dos anos 1950, a fim de legitimar o campo e cultivar a “identidade sofisticada” do publicitário perante a sociedade como um grupo sério, diferenciado, hierarquicamente privilegiado. Entre eles estão a necessidade de curso superior, requisito específico e elaborado para desempenhar funções de grande reconhecimento do mercado, altos salários e padrão de vida, responsabilidade e função socioeconômica da publicidade (Rocha, 1985). O jornalista Genival Rabelo descreve os hábitos do diretor da agência Standard no início dos anos 1950 como um rico empresário que possui carro do ano, cavalos de corrida, piscina em casa (Rabelo, 1956). O modelo funciona como uma representação do publicitário, uma identidade que o grupo buscou criar socialmente, e para a qual pouco importa sua efetiva realidade.

Para encadear as atividades do processo cooperativo de produção de anúncios, as agências brasileiras criaram departamentos conectados e, ao mesmo tempo, autônomos. Nomenclaturas próprias e incumbências particulares de cada setor foram traçadas discriminatoriamente para trazer valoração e ordenação ao campo, assim como estabelecer o aparelhamento da função de publicitário em cada ambiente profissional.

O primeiro deles é o Atendimento, segmento responsável por fazer todo o contato com o cliente. Seus integrantes atuam como gestores, responsáveis pela rentabilidade da conta, já que concentram dados relativos a faturamento, custos e gastos internos. O profissional de Atendimento é a porta de entrada na agência para novos negócios, por isso acredita-se que devem ser comunicativos, simpáticos e bem vestidos para impressionar os clientes, além de informados sobre as características do negócio, tanto o próprio quanto o do virtual cliente, e os hábitos dos consumidores. O nome atendimento é criticado no meio publicitário brasileiro por se confundir com “atendente”, uma função que não exige os requisitos necessários da categoria. Nos Estados Unidos, a função é denominadas de “Account Handler” ou “Account Manager”, que podemos traduzir por gerente de contas, nomenclatura que enfatiza um estilo profissional, que o aproxima do imaginário, altamente prestigiado, dos “grandes executivos” empresariais (Sant´anna, Rocha Junior e Garcia, 2009).

O setor de Planejamento é o que vai traçar planos de marketing, estratégias de comunicação, avaliar caminhos para levar uma solução que resolva o problema do cliente. Seus integrantes, geralmente chamados de Planners, fornecem ideias para outras áreas, tendo um diálogo próximo com o setor de Criação. A partir de análises do mercado e de pesquisas sobre o produto ou serviço e seu universo de consumidores, o profissional procura desenvolver conteúdos que fundamentem os anúncios, contribuam com a construção da marca e identifiquem oportunidades e ameaças que ajudem a posicionar a empresa. A imagem projetada se aproxima de uma espécie de grande “pensador”, capaz de planejar ou “teorizar” todo o processo (Sant´anna et al., 2009).

Na área de Mídia, os profissionais vão investigar as características de cada meio para indicar o melhor veículo para a propagação de determinado anúncio, além de fazer contato com os canais de comunicação para a compra de espaço ou tempo para inserção ou transmissão dos anúncios. Estuda-se também a posição, formato, distribuição ou volume que a mensagem deverá ter. Com a complexidade e a fragmentação dos meios de comunicação, exige-se que o profissional de mídia não apenas proponha caminhos para que a mensagem chegue ao público-alvo, mas que tenha um conhecimento específico e profundo das diversas plataformas comunicativas. Esse lugar é identificado como eminentemente “exato” e “técnico”, no limite, se aproximando da imagem de um “cientista”.

A Criação é o departamento mais prestigiado, tido como a alma da agência. Não por acaso, são comuns as referências dos publicitários aos poetas, escritores e artistas que fizeram anúncios antes das agências existirem. O setor exerce muito fascínio entre aqueles que almejam alcançar estes desejados e concorridos postos. Os “criadores” das agências são responsáveis pelas ideias, transformadas em textos e imagens, que serão utilizadas nas campanhas, tem a missão de despertar desejos de compra, fortalecer marcas em relação aos competidores e edificar uma imagem pública favorável. A partir dos anos 1970, no Brasil, foi comum termos duplas de criação atuando neste setor, sendo um diretor de arte e um redator que trabalham em parceria para achar soluções para os anúncios. O diretor de criação coordena todas as campanhas e profissionais deste departamento. Um “artista criador” é a idealização dominantemente desejada no imaginário em torno das funções típicas deste departamento. Temos ainda o revisor, responsável pela checagem e avaliação de todo material textual, o arte-finalista, que vai fiscalizar as peças finais antes do envio para gráficas ou produtoras de vídeo. E o produtor gráfico, aquele que intermedia o Departamento de Criação com os de Atendimento, Mídia e fornecedores (Sant´anna et al., 2009).

Atendimento, Planejamento, Mídia e Criação são as quatro grandes divisões dentro das agências de publicidade, no entanto, existem outras funções complementares, como produção gráfica, fotografia, pesquisa, tráfego e gerenciamento de projetos. Cada uma destas ramificações aglutina profissionais que concebem o trabalho, o executam, fornecem equipamentos e materiais e ordena os canais de divulgação para o público que vai consumir a mensagem. Juntos, esses setores formam uma rede cooperativa determinante para o evento do anúncio (Sant´anna et al., 2009).

O ambiente das agências também é composto de modo que o trabalho em equipe seja destacado como uma marca imediata daquela identidade profissional. Não à toa, os anúncios - se e quando assinados - o são, não por indivíduos, mas com o nome da agência. Em geral, poucas paredes dividem os espaços arquitetônicos dos escritórios brasileiros. Funcionários se acomodam em torno de mesas interligadas, dispostas em um grande salão comum. As salas dos diretores, executivos ou donos das agências ficam localizadas no entorno deste escritório coletivo, separadas por estruturas de vidro e portas, que costumam ficar abertas. Esta diferenciação espacial demarca territorialmente as hierarquias e graus de poder. No entanto, a comunicação entre os diferentes setores é facilitada pela disposição fluida dos elementos arquitetônicos que permitem a circulação dinâmica dos conteúdos e trocas de todas as partes envolvidas na produção de um anúncio. Cores fortes e adornos modernos são sempre incorporados à decoração, além de sofás e pufes que proporcionem conforto para a geração de ideias e também diferenciem a agência de um escritório convencional. Cartazes ou quadros com algumas propagandas de sucesso da organização costumam ser expostos nas paredes desde o hall de entrada. No conjunto, a imagem projetada é a de um ambiente contemporâneo, de ideias arejadas, mentalidade ousada e práticas integradas.

A interligação entre setores confere e reforça o espírito de ação coletiva, estimulando a edificação de identidades em torno de valores que prezam as convenções partilhadas pelo campo da publicidade. O interacionismo também aguça um senso de pertencimento àquele empreendimento e reforça o efeito de recompensa que cada agente sente por ter contribuído de alguma forma para o produto final. A troca dependente entre as partes produz um sentido comum do valor daquilo que é produzido coletivamente (Becker, 1977a).

Nestes termos, podemos observar dentro das agências aquele tipo de profissional que Becker (1977a) classificou como integrado. Os profissionais integrados são aqueles que produzem rigorosamente de acordo com as convenções vigentes naquele mundo. As agências organizaram as identidades e ações do mundo da publicidade, elas requisitaram todos os materiais, instrumentos e condições de difusão para que anúncios pudessem ser produzidos e posteriormente veiculados, bem como condicionaram a elaboração do mesmo em torno de preceitos exclusivos e acabados. O profissional integrado é aquele que vai se encaixar nesta estrutura montada para a produção publicitária. Ele não vai usar recursos próprios ou optar por saídas distantes dos elementos disponibilizados em seu mundo. Assim, os integrados reforçam as convenções que legitimam o campo conseguindo atingir um público que entende, aprecia e consome suas narrativas. São profissionais que conhecem, se adaptam e usam as convenções e atividades padronizadas que regulam o funcionamento de seu mundo. A forma satisfatória com que desempenham seu trabalho reflete em todos os aspectos da produção, desde o emprego de materiais, formas, conteúdos, apresentação, tamanho e financiamento de um projeto. O fato dos integrados se conformarem às convenções faz com que os anúncios sejam produzidos de forma mais rápida e fácil, o que não quer dizer que as dificuldades não existam, apenas que as convenções foram pensadas tentando minimizá-las ao máximo (Becker, 1977a). A existência de uma rotina não significa necessariamente que não haja variações, mas a cadeia imposta na estrutura como um todo privilegia muitas vezes a quantidade. Assim, o aprimoramento das convenções é incorporado lentamente sempre que não prejudicarem o ordenamento da produção sucessiva.

As convenções em geral ditam os direitos e obrigações de cada parte. São os termos pelos quais as identidades e as redes de cooperação serão estabelecidas. Por isso, a necessidade de atividades profissionais concatenadas dentro de uma agência de publicidade é fundamental para a produção dos anúncios. Os acordos que definem cada funcionalidade não são tomados diante de uma nova ocasião ou necessidade. Ao contrário, as definições dos elos que conduzem as diferentes pessoas na produção de um anúncio são resultado de acertos anteriores que acabam por se tornar costumeiros, um “habitus”, determinações que se tornaram parte da maneira padronizada de fazer as coisas. O habitus do campo é o efeito automático de vinculação ao campo (Bourdieu, 1983). Pode ser verificado na fala, no gestual, na maneira de olhar, na postura e no andar dos sujeitos. São os “conhecimentos adquiridos”, as “disposições incorporadas” (Bourdieu, 2000), as convenções planejadas. O habitus opera categorias de percepção e princípios de classificação no plano prático (Bourdieu, 1983). As convenções especificam tanto as identidades profissionais, quanto os materiais e as decisões subjetivas ou abstratas que serão combinados para a elaboração de um anúncio. O que se passa em um campo jamais é efeito de demarcações externas e sim resultado da expressão simbólica do mesmo (Bourdieu, 1983). Portanto, ainda que uma decisão particular modifique o processo de produção de um anúncio específico, por exemplo, as normatizações estabelecidas como modelo de produção da agência e suas funções exclusivas já estão traçadas e fundadas dentro do campo publicitário. As mudanças ocorrem sutil e milimetricamente em cada caso, mas não mudam substancialmente o sistema. O conjunto de pequenas mudanças em determinada área pode ser adotado como convenção no futuro, mas será encarado muitas vezes como aperfeiçoamento de uma parte e não como um novo sistema.

Considerações finais

A publicidade, como um setor dentro do macrocosmo social que cria certas convenções formadoras de estilos de vida, cultiva metamorfoses constantemente. É preciso que novas ideias sejam elaboradas para que a publicidade continue a anunciar e tentar vender produtos, serviços e ideologias. O setor tem a incumbência de atribuir novas categorias de valoração ao mundo de práticas e objetos, assim como também tem alargado sua atuação para a sensibilização de problemáticas sociais vigentes (Balonas, 2011). O anúncio é a plataforma que vai articular vínculos de sentidos entre os produtos e os consumidores. Tais vínculos precisam ser sempre renovados e reinventados para que o ritual do consumo se perpetue indiscriminadamente (Rocha, 1985). O sistema publicitário e sua produção narrativa organizada pelas agências demarcam processos de transferência de sentidos do mundo social para os produtos e dos produtos para as identidades dos consumidores, fazendo do consumo uma expressão comunicacional central em nossa cultura.

Desde o marco fundador no Brasil, em 1914, com a agência Eclética, a primeira de muitas que viriam criar um campo de atividades e consagrar a publicidade como essa instância sociocultural reveladora de valores íntimos da vida coletiva, que a agência passou a ser a instituição que localiza as funções necessárias para que o acontecimento do anúncio se realize socialmente através de uma ação coordenada e convenções estabelecidas. Para Becker (2013), o termo “convenção” indica que os significados partilhados tornam a vida social possível. A agência também teve papel privilegiado para a consolidação das identidades profissionais em torno da função do publicitário, atribuindo status, valoração financeira, influência social e prestígio ao profissional.

Assim, são as convenções publicitárias estabelecidas pelas agências que tornam a atividade publicitária possível. As diversas práticas encadeadas nestas empresas são executadas com base em composições que provocam uma ação social eficaz e simplificada sem a qual a esfera da produção não se completaria no consumo e os produtos deste mundo não poderiam aparecer (Rocha, 1985).

Com o desenvolvimento das agências, propagandas e campanhas renomadas deram sua parte no tom da vida pública e incentivaram atitudes e comportamentos traduzidos como estilos de vida, além de reforçarem o consumo como o fenômeno que baliza a experiência cultural em nossa sociedade. Assim como Becker (1977a) afirmou que o mundo da arte expressa a sociedade mais ampla na qual se inscreve, o mundo da publicidade, liberado dos paradoxos e conflitos próprios da complexidade artística, expressa a sociedade moderno-contemporânea ao tecer a narrativa que sustenta a ideologia que nos define como sociedade de consumo.

 

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Recebido | Received | Recebido: 2018.05.14
Aceite | Accepted | Aceptación: 2018.10.24

 

Notas biográficas

Everardo Rocha é Professor associado e coordenador de pesquisa do Departamento de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Coordenador do Laboratório de Antropologia do Consumo da PUC-Rio. Doutor pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Autor de mais de 20 livros sobre consumo e narrativa publicitária.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/4125143035504078

E-mail: everardo@puc-rio.br

Morada: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Centro de Ciências Sociais, Departamento de Comunicação Social, Rua Marques de São Vicente 225. Prédio Kennedy. Departamento de Comunicação Social. 6º andar. Gávea. Rio de Janeiro. Brasil. Cep: 22451-900

 

Bruna Aucar é Professora do Departamento de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Coordenadora do Laboratório de Antropologia do Consumo da PUC-Rio. Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da PUC-Rio.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/1571341987794675

E-mail: aucar@puc-rio.br

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