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Media & Jornalismo

versão impressa ISSN 1645-5681versão On-line ISSN 2183-5462

Media & Jornalismo vol.19 no.34 Lisboa jun. 2019

https://doi.org/10.14195/2183-5462_34_3 

ARTIGO

A Publicidade face aos novos contextos da era Digital: privacidade, transparência e disrupção

Advertising versus the new contexts of the Digital era: privacy, transparency and disruption

La Publicidad frente a los nuevos contextos de la era Digital: privacidad, transparencia y disrupción

Francisco Rui Cádima*

* Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Instituto de Comunicação da NOVA FCSH


 

RESUMO

O tempo que corre está a complexificar-se extraordinariamente onde justamente julgávamos que se iria tornar mais transparente. A Internet e a economia digital estão a tornar-se cada vez mais um verdadeiro “data industrial complex”, uma caixa de Pandora de consequências insondáveis. O que se passa com a publicidade digital é apenas um esboço do problema, sendo certo que as primeiras consequências estão aí à vista no sistema de media, que continua a sufocar por falta de receita e de tráfego na web. Este texto é um contributo para aprofundar esta reflexão.

Palavras-chave: blockchain; publicidade digital; internet; privacidade; segurança


 

ABSTRACT

Current times are becoming extraordinarily complex where we just thought it would become more transparent. The Internet and the digital economy are increasingly becoming a true "data industrial complex," a Pandora’s box of unsearchable consequences. What is happening with digital advertising is just an outline of the problem, and the first consequences are certainly there in the media sector, which continues to suffocate due to lack of revenue and web traffic. This paper is a contribution to deepen this reflection.

Keywords: blockchain; digital advertising; internet; privacy; security


 

RESUMEN

Los tiempos actuales se están volviendo extraordinariamente complejos donde justamente nosotros pensábamos que serían más transparentes. Internet y la economía digital se están convirtiendo cada vez más en un verdadero "complejo industrial de datos", una caja de Pandora de consecuencias inescrutables. Lo que está sucediendo con la publicidad digital es solo un resumen del problema, y las primeras consecuencias están ciertamente en el sector de los medios, que continúa asfixiando debido a la falta de ingresos y de tráfico web. Este artículo es un aporte para profundizar esta reflexión.

Palabras clave: blockchain; publicidad digital; internet; privacidad; seguridad


 

A Publicidade face aos novos contextos da era Digital: privacidade, transparência e disrupção

“A new architecture is arising. And this new architecture solves the Internet’s increasing concentration problem, as well as remedies the security vulnerability that comes from that concentration problem.” George Gilder

“Blockchain technology is bringing us the Internet of value: a new platform to reshape the world of business and transform the old order of human affairs for the better.” Dan Tapscott

No livro A Força do Hábito, Charles Duhigg (2013) conta a história de Andrew Pole, com formação em estatística e economia, que entra a certo momento para a Target, grande empresa norte-americana do sector da distribuição, com o objetivo de desenvolver estudos de mercado enquanto especialista de dados. A sua obsessão com o estudo do comportamento humano no contexto do consumo rapidamente o leva a criar aquilo a que chamou uma “pregnancy-prediction machine”, no intuito de conhecer a fundo as potenciais clientes da empresa suscetíveis de consumir toda a plêiade de artigos associados à gravidez e ao nascimento do bebé. O objetivo era iniciar o marketing dirigido os pais antes que o bebé nascesse, ou, melhor ainda, construir um algoritmo de previsão de gravidez com uma lógica de microtargeting de forma a “capturar” as clientes muito antes da concorrência.

Com base no rasto de dados que as clientes iam deixando, através do código de identificação e do cartão-cliente, do cartão de crédito e de outros dados adquiridos no mercado pela Target, incluindo navegação online, a empresa rapidamente identificou milhares de futuras mães. E passou a enviar publicidade e coupons de descontos para compras específicas nessa área a essas mulheres. E foi assim que um belo dia um pai, ao ir buscar o correio e receber coupons de desconto que eram destinados à filha, percebeu que a sua filha adolescente estaria grávida antes mesmo de ela ter tido oportunidade de lho dizer. Não completamente satisfeito com este feito, Pole acrescentaria a Duhigg que a próxima etapa seria enviar aos clientes coupons de produtos que o cliente desejaria mesmo antes de saber que o viria a desejar… Veja-se um pouco mais em pormenor o tipo de dados que são do conhecimento da Target:

“A Target relacionava também com o código de identificação a informação demográfica sobre o cliente, que recolhera ou comprara a outras empresas, incluindo a idade do cliente, se era casado e tinha filhos, em que parte da cidade morava, quantos quilómetros fazia até à loja, uma estimativa de quanto ganhava, se acaso se tinha mudado recentemente, quais os sites da Internet que visitava, que cartões de crédito tinha na carteira, e os números de telemóvel e de telefone fixo. A Target consegue comprar dados que indicam a etnia do cliente, o seu historial de empregos, as revistas que lê, se alguma vez declarou insolvência, o ano em que comprou (ou perdeu) a sua casa, que liceu ou universidade frequentou, e se tem preferência por determinada marca de café, papel higiénico, cereais ou molhos”. (Duhigg, 2013: 240)

Ora, este modelo de “tracking” do consumidor através do rastreio e conhecimento dos seus dados pessoais está hoje em forte colisão com alguns quadros jurídicos de proteção de dados do cidadão, nomeadamente o europeu. Transformar o cidadão em sujeito/target estatístico, deixá-lo à mercê de um qualquer algoritmo cujos fins são, em regra, insondáveis, para além de estarem fora de qualquer controlo jurídico, anula a prerrogativa de proteção de dados pessoais, desde logo num contexto de mercado e consumo, mas depois também num contexto cívico e, naturalmente, político (Cádima, 2015). Daí a aprovação recente na Europa do Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD), que vem reforçar claramente os direitos de privacidade do consumidor e/ou do utilizador. O direito à privacidade por parte do cidadão é assim um fator inexpugnável no contexto das liberdades cívicas, pelo que se a web, o marketing e a publicidade estão a evoluir para modelos invasivos e de tracking sofisticado pondo em causa as liberdades, isso significará que pelo menos algumas instituições também virão em defesa da privacidade e da transparência, tal como sucede já na União Europeia com o RGPD. Do mesmo modo, a tecnologia tem vindo a responder a este modelo crítico com a associação do modelo Blockchain no sentido de se procurar restaurar os direitos do indivíduo que têm sido capturados por grandes distribuidores, empresas de dados, de estudos de mercado, ou mesmo autoridades centrais e de segurança, como foi público e notório com o exemplo dramático dado no contexto das eleições americanas e inglesas pela Cambridge Analytica, ou com o caso NSA/Snowden nos Estados Unidos.

O mercado da publicidade global

Comecemos esta análise por uma radiografia do sector global na atualidade. O mercado da publicidade e a relação entre o anúncio do produto e o efeito de consumo desse mesmo anúncio foram, desde sempre, uma área de grande complexidade e de uma não menor opacidade. A mera contabilidade dos investimentos publicitários nos diferentes suportes de media é, só em si mesma, uma aventura que necessita passar por várias barreiras, todas elas com os seus problemas de transparência e de alguma conflitualidade entre si: preços de tabela, dumping, investimento líquido e quotas de mercado de media, GRPs, retorno sobre o investimento, etc. Mesmo a publicidade digital, por exemplo no Facebook, não escapa à necessidade de clarificação de métricas “voláteis” e de fiabilidade de dados, chegando inclusivamente a APAN - Associação Portuguesa de Anunciantes, a pedir uma “avaliação independente” para os dados do Facebook (Nunes, 2018a).

Com o recente aparecimento das novas tecnologias e plataformas blockchain algo pode estar, definitivamente, a mudar. Este nosso artigo procurará equacionar um conjunto de questões que se prendem com a genealogia desse processo “publicitário” de reduzida transparência associado também aos contextos dos respetivos mercados, para depois aprofundar o tópico sobre o qual começa agora a haver um debate um pouco mais substantivo, e que tem a ver com o reequacionar das práticas da publicidade à luz de tecnologias e “machine learning” em boa parte congregadas no termo e nos previsíveis impactos do modelo blockchain, aplicado, mais em particular, nesta análise concreta, ao mercado da publicidade.

Importa então fazer um rápido esboço do que significa, no final de 2018, o mercado mundial de publicidade, procurando comparar o digital e a contínua pressão que este vem estabelecendo sobre o mercado de media tradicional, com os valores que, nomeadamente imprensa e televisão, no seu contexto analógico, vão apresentando no mesmo período. Assim, o dado mais relevante conhecido ao longo de 2018 é justamente o facto de a publicidade digital atingir exatamente neste ano o seu ponto de inflexão, deixando definitivamente para trás os media tradicionais. De acordo com os dados da Dentsu (2018), o investimento publicitário em digital media terá um crescimento de 12,6% em 2018, o que significa um crescimento de cerca de três vezes a taxa de todos os meios de comunicação (3,9%), com destaque para o vídeo on-line (+ 24,6%) e social media (+ 21,6%), sendo que o dado mais marcante é justamente o facto de o digital ultrapassar a TV a nível global, em investimento em publicidade, pela primeira vez, exatamente em 2018. Algo que aliás já era conhecido no contexto europeu, desde 2015, ano em que a publicidade online já tinha ultrapassado a da televisão, segundo dados do IAB Europa. Mas a grande quebra de investimento em 2018 verifica-se, no entanto, na imprensa (-7,0%), sendo que a televisão se manterá estável, ou mesmo com um ligeiro crescimento.

No contexto apenas do mercado europeu convém relevar o facto de a publicidade digital ter duplicado o seu nível de investimento em apenas cinco anos. De 2012 a 2017 a publicidade digital na Europa passou de 24,8 para 48 mil milhões de euros, sendo as áreas mais fortes as que integram as redes sociais, o mobile, o vídeo e os motores de busca (Figura 1). A publicidade “display” em sites, apps, ou media social, por meio de banners ou outros formatos com imagem, vídeo ou áudio teve um forte crescimento em 2017, mas é ainda a publicidade direcionada para a busca e o contexto que gera mais investimento, mais ainda do que aquela direcionada para classificados.

 

 

No caso português, segundo Durães (2017), que analisava os dados da Media Monitor, pela primeira vez no mercado nacional, em 2016, e a preços de tabela, a imprensa teria perdido para o digital o título de segundo meio em termos de investimento publicitário. Ainda muito longe, no entanto, dos valores, também a preço de tabela, indicados para a televisão, em 2016: 6,1 mil milhões de euros. Os valores da Media Monitor indicavam também um crescimento muito significativo do sector - 15,8%, de 2015 para 2016. No conjunto, o investimento publicitário em Portugal ter-se-ia situado, a preço de tabela (excluindo campanhas, descontos e dumping, por exemplo), nos cerca de 8 mil milhões de euros. Por aqui se vê, aliás, alguma da especificidade do mercado português, que continua claramente com valores muito “analógicos” face ao que já se passa no mercado global, como referido acima. Dados disponibilizados no início de 2018 apontavam para valores, em 2017, na ordem dos 20,4% de quota de mercado em Portugal para a publicidade digital, sendo que as previsões para 2020 são de crescimento relativamente conservador, até aos 27,4%.

Ora, o global do investimento em publicidade digital em Portugal em 2017, calculado a preço de tabela em 570 milhões de euros, não tem estranhamente qualquer representação no AdEx Benchmark Study 2017, onde nos 25 principais mercados europeus não aparece Portugal (Figura 2). No gráfico, o último país referenciado é a Bielorrússia, que teve um investimento em 2017 de cerca de 39 milhões de euros, mas que curiosamente é o país da Europa que mais cresceu em investimento, 33,9% (Figura 3). Veja-se também que só o Reino Unido apresenta valores praticamente idênticos aos três outros principais mercados europeus - Alemanha, França e Rússia, o que sugere de facto um mercado bastante mais forte do que o que se passa na restante Europa. Mas retomando o valor de mercado da publicidade digital em Portugal, se em 2017 valia 570 milhões de euros, e se o dumping no mercado nacional tem sido calculado na casa dos 70%, e se sobre este valor cerca de 70% do mercado é da Google e do Facebook, restam apenas cerca de 50 milhões de euros para as empresas portuguesas de publicidade digital.

 

 

 

Se em Portugal, como referimos, a imprensa perdia, em valores absolutos, para a publicidade digital em 2016, o facto é que, segundo os grupos de media portugueses, o grande bolo da publicidade online ia diretamente para as duas grandes plataformas digitais - Google e Facebook, numa ordem de valores não totalmente conhecida, mas certamente entre os 60% e os 75% (Ribeiro, 2017), o que naturalmente criava desequilíbrios no sistema de media, para além das “naturais” isenções fiscais dado que estas plataformas não têm residência fiscal em Portugal, e para além ainda de ambas as plataformas estarem continuamente a aumentar a sua quota de mercado e de terem um potencial de crescimento futuro muito acima do crescimento dos media nacionais.

Native ads

No contexto mais global, uma das áreas em que se estão a desenvolver, nestes últimos anos, estratégias de publicidade claramente diferenciadas dos modelos tradicionais e das métricas voláteis do sistema é na “native advertising” ou “native ads”, que podemos traduzir por “publicidade nativa”, e que tem um potencial muito grande se pensarmos justamente nas possibilidades de convergência com as tecnologias blockchain. A publicidade nativa é uma forma de comunicação estruturada de modo a que a especificidade do anúncio siga de muito perto a forma, a função e os objetivos da experiência do utilizador e o ambiente web em que navega. Estas native ads devem procurar corresponder ao design visual de um determinado website, comportar-se de maneira consistente e próxima da experiência do utilizador e ter a aparência e funcionar como um conteúdo nativo, natural, com o mesmo lettering, as mesmas caixas de texto, etc., dessa página web específica.

Ora, é um facto que hoje as principais plataformas digitais como o Facebook, o Twitter, o Instagram, etc., e também muitas empresas de media, como o Wall Street Journal, o New York Times ou a Forbes, monetizam os seus feeds de conteúdo com anúncios nativos, introduzindo novas soluções de publicidade nos dispositivos móveis procurando criar esse “conteúdo natural” para o utilizador.

A questão é que este tipo de publicidade surge nos écrans como se fosse justamente conteúdo “nativo”, perfeitamente integrado no desenho da página na qual o utilizador navega num determinado momento e também completamente adequado ao contexto da experiência de conteúdo do utilizador nesse mesmo momento. Trata-se de algo muito diferente de um banner, por exemplo, que pode não corresponder à temática específica da experiência do utilizador. Mas também diferente do marketing de conteúdo, uma vez que este aponta para resultados a prazo, rankings de buscas, etc., enquanto a publicidade nativa faz sentido no seu local próprio, está focada em respostas mais imediatas e também se está perante algo que funciona como que de modo “responsivo” em termos de conteúdos propriamente ditos.

De referir ainda que, numa perspetiva de análise de tecnologias de neurociência e eye-tracking, tanto a Sharethrough como a Nielsen, a partir de estudos sobre a forma como os consumidores processam visualmente os anúncios para móvel, obtiveram novos dados sobre a atenção visual em feeds para dispositivos móveis e sobre como maximizar o valor da impressão dos anúncios nativos. Porquê então optar por native ads? Segundo dados da Sharethrough, à partida, 25% dos consumidores visualizam mais feeds de anúncios nativos do que banners padrão, sendo que a frequência também é muito superior entre uns e outros, ou seja, o utilizador olha para a publicidade nativa 53% mais vezes do que para banners ads. A Sharthrough / IPG Media usou tecnologia de rastreamento ocular para avaliar a atenção dos consumidores e para melhor entender a atenção visual e as atitudes dos utilizadores entre anúncios nativos e banners padrão. Segundo estes estudos podemos concluir que os anúncios nativos têm uma melhor aproximação aos conteúdos editoriais da experiência do utilizador e, por outro lado, registam aumentos da ordem dos 18% na intenção de compra em relação aos anúncios com banners. Há ainda uma maior eficácia dos anúncios nativos, estes geram mais atenção e potenciam o valor da marca em relação ao modelo tradicional, sendo certo que os anúncios nativos são consumidos da mesma maneira que as pessoas visualizam o conteúdo editorial. Os mesmos estudos mostram que a atenção visual dos utilizadores para anúncios nativos era quase equivalente ao engajamento visual do conteúdo editorial original.

Vejamos, por fim, algumas das diferentes modalidades de publicidade nativa, sendo que, de um modo geral, podemos identificar entre os principais formatos de anúncios nativos os seguintes: In-Feed Native Ads, com grande variação de possibilidades; Search and Promoted Listings, que apresentam conteúdo num formato e layout prontamente disponível para resultados de pesquisa, parecem idênticas aos produtos ou serviços oferecidos num determinado website e são medidas em métricas de resposta direta; Content Recommendation Widgets, que é uma forma de publicidade nativa em que um anúncio ou link de conteúdo pago é entregue por meio de um "widget"; Custom Content Units, que inclui exemplos que não se encaixam em nenhuma das situações anteriores, como é o caso de listas de reprodução personalizadas.

Publicidade e blockchain

É consensual que o contexto da publicidade necessita, em primeiro lugar, de fiabilidade e de transparência, mas também de privacidade e de proteção de dados. Ora, as aplicações blockchain têm vindo a configurar-se, de forma bastante significativa, como uma solução inovadora, extremamente segura e precisa neste domínio, permitindo criar sistemas descentralizados e protocolos encriptados e encadeados de tal forma que não é possível a qualquer entidade exterior alterar conteúdo ou corromper a plataforma de blocos de informação e de dados. Efetivamente, a robustez destas plataformas está na sua lógica estrutural interna e nas ligações partilhadas que estabelece. Dado que a arquitetura do modelo assenta num sistema descentralizado, peer-to-peer, de registo e armazenamento da informação, isso garante desde logo a segurança desses mesmos registos através das múltiplas cópias criadas pelo sistema. Para além do mais pode aumentar a eficiência, reduzir custos e eliminar fraudes.

Estes registos digitais são encriptados com informação diversa sobre a sua entrada e origem e ficam depois armazenados em blocos que estão interligados em cadeia, sendo que para aceder a um qualquer bloco o utilizador necessita introduzir a sua chave privada, assinatura digital e/ou endereço de carteira. Estes ledgers das tecnologias blockchain são extremamente importantes porque garantem uma forma totalmente segura de fazer e registar transações, acordos e contratos. Nestes sistemas, todos podem visualizar as transações, sendo que os utilizadores não são identificados. Qualquer tentativa de viciar o sistema falha à partida dado que os registos não podem ser adulterados de forma alguma, a informação em ledger pode ser verificada e está visível em qualquer ponto da rede, e daí a segurança deste modelo dado que os aplicativos que correm em cima da tecnologia blockchain o que fazem, na prática, é realizar transações descentralizadas que são, portanto, registadas nos ledgers digitais partilhados.

É um facto que a publicidade, e muito em particular o potencial da publicidade nativa, tanto na indústria de media como noutras plataformas digitais, surge com uma excecional capacidade de adaptação face à nova tecnologia emergente e aos seus mecanismos de registo e de rede através dos “digital ledgers”. Desde logo, estas plataformas digitais são suscetíveis de gerir de modo muito preciso a eficiência de uma estratégia, ou comparar a eficiência de vários investimentos dando dados muito objetivos sobre a cronologia do retorno do investimento (ROI). Uma das grandes vantagens desta tecnologia é que ao descentralizar todo o processo contratual entre anunciante e editores, permite uma economia de custos no plano da intermediação do negócio, sendo que esta passa a ser reduzida praticamente a zero, aumentando o retorno de investimento do anunciante.

Vejamos alguns exemplos relativos a plataformas emergentes nesta nova indústria: i) Qchain: trata-se de uma aplicação que aposta numa estratégia “smooth” para media digitais e direcionada para pequenos anunciantes interessados em transações diretas sobretudo nas áreas do marketing de influenciadores e da publicidade nativa; ii) a AdHive é uma plataforma um pouco mais ambiciosa, tendo desenvolvido competências avançadas, com maior eficiência e economia de tempo, no domínio da automatização da colocação de publicidade nativa com influenciadores; iii) a NYIAX, desenvolvida através de uma parceria com a Nasdaq, permite que anunciantes e editores realizem contratos de publicidade numa base de confiança e a transparência; iv) a AdEx, assente no sistema operativo da Ethereum, tem como prioridade eliminar a fraude na publicidade ao garantir não só um retorno mais fiável mas também que os anunciantes pagam apenas por cliques válidos, isto porque se apresenta como uma plataforma transparente, ou seja, o anunciante com a AdEx tem a possibilidade de acompanhar e verificar a eficácia do seu investimento em publicidade de um modo que não seria possível sem este aplicativo blockchain; v) o BAT - Basic Attention Token, também a correr em Ethereum, propõe-se melhorar radicalmente a eficiência de uma variedade de serviços de publicidade digital ao criar um novo token que pode ser partilhado entre editores, anunciantes e utilizadores. No seu website descreve-se desta forma: BAT “é o novo token para o setor de publicidade digital. Paga aos editores pelo seu conteúdo e aos utilizadores pela sua atenção, dando mais aos anunciantes em troca pelos seus anúncios”. Na área do vídeo refiram-se ainda o MadHive, com uma forte aposta na privacidade das trocas, fornece aos anunciantes de vídeo uma gestão de dados em que as informações de identificação pessoal do utilizador se mantêm privadas e permite que os anunciantes alcancem esses potenciais clientes sem nunca saberem das suas informações privadas; e também o Native Video Box, neste caso, com produtos especializados para publicidade nativa em vídeo com suporte em AI e tecnologia blockchain.

As múltiplas vantagens das tecnologias blockchain aplicadas à publicidade parecem assim evidentes. Por um lado, resolvendo desde logo a questão da intermediação no negócio, depois trazendo uma maior fiabilidade e transparência à relação entre anunciante, produto e/ou suporte/canal propriamente ditos, bem como à aplicação e/ou resolução contratual, ou mesmo no plano da arbitragem do retorno do investimento caso o anunciante não obtenha o tráfego que foi estimado para um determinado contrato. E é um facto que a tecnologia blockchain garante uma renovada transparência da publicidade digital, aumenta a sua eficiência, reduz custos e elimina fraudes. Apenas um senão para este mercado emergente, uma vez que se aguarda que a velocidade na blockchain permita transações de anúncios digitais em tempo real, o que ainda não estará a suceder de forma conveniente.

Novo ecossistema disruptivo

Veja-se um caso mais em concreto, a partir justamente do exemplo do projecto BAT - Basic Attention Token, acima referido. Olhando para a estratégia desta plataforma, podemos verificar desde logo que o diagnóstico feito relativamente ao sector da publicidade na era digital não podia ser mais severo: segundo o BAT, plataforma liderada por Brendan Eich (criador do JavaScript e co-fundador do Mozilla & Firefox), baseada na plataforma blockchain Ethereum, e que desenvolve aplicações com o objetivo de trazer maior transparência e assertividade a este mercado desregulado, prejudicando por isso mesmo utilizadores, editores e anunciantes, o “digital advertising is overrun by middlemen, trackers and fraud”. Ainda segundo a plataforma, o universo da publicidade digital “abusa” dos utilizadores, sendo dados diversos exemplos: até 50% dos dados móveis do utilizador médio são para anúncios e rastreadores; a carga de anúncios reduz a vida útil da bateria até 21%; a privacidade é violada quando os grandes sites de media hospedam largas dezenas de rastreadores; o malware (“malvertisements” e ransomware) subiu 132% num ano, etc. Do lado dos publishers e media, os problemas prendem-se, por exemplo, com o oligopólio das plataformas: as receitas caem abruptamente, Google e Facebook dominam 73% do investimento em publicidade online e 99% de todo o crescimento, bots infligem milhares de milhões de dólares em fraudes, milhões de telefones e desktops executam bloqueios de anúncios, enfim, os editores e media não conseguem monetizar serviços e, naturalmente, também os anunciantes perdem neste contexto, uma vez que não conseguem deter boa informação sobre aquilo que contratam e pagam. O targeting e a segmentação são considerados fracos, tornando os utilizadores mais propensos a ignorar os anúncios e mesmo os publicitários e profissionais de marketing são frequentemente enganados por sites falsos e bots que em regra não passam de fraudes.

Neste contexto, a plataforma de Brendan Eich propõe-se encontrar soluções disruptivas e inovadoras em concordância com as potencialidades das tecnologias baseadas na Ethereum Blockchain, introduzindo um sistema digital, descentralizado e transparente de ad exchange. Desde logo, através da criação de um novo browser, denominado Brave, de fonte aberta e focado na privacidade, que bloqueia “malvertisements”, rastreadores e contém um sistema contábil que de forma anónima captura a atenção dos utilizadores para “premiar” com precisão os editores. Através do Basic Attention Token o utilizador acede a uma variedade de serviços baseados em publicidade, que são trocados entre editores, anunciantes e utilizadores, sendo que a utilidade do token é aqui denominada por “atenção do utilizador”. Combinando ambas as fases, o navegador Brave gera um ecossistema de publicidade digital baseado em tecnologia blockchain transparente e eficiente, que otimiza toda a informação em torno da “atenção” dos utilizadores no sistema. Assim, segundo esta plataforma, os editores recebem mais receita porque os intermediários e as fraudes são reduzidos; os utilizadores, que optam por receber, recebem menos anúncios, mas com melhor segmentação, sendo menos propensos a malware; e os anunciantes obtêm melhores dados sobre os seus investimentos.

Esta nova tecnologia pode efetivamente ajudar a resolver um dos maiores desafios do setor, que se prende com práticas de publicidade opacas, com métricas voláteis e intermediários pouco transparentes. E repare-se que a Internet não é apenas fortemente pulverizada por anúncios que não solicitamos, mas está também repleta de bots e malware. Procurando ver um pouco mais além, poder-se-ia dizer que o modelo oligopolista que domina a Internet não está a cumprir os desígnios dos fundadores de abertura e privacidade da rede, entre eles Tim Berners-Lee e Vint Cerf, mas, pelo contrário, está prioritariamente apostado num modelo centralizador e agregador de conteúdos direcionado para as receitas de publicidade segundo o modelo de métrica “the winner takes it all”, na expressão de Matthew Hindman (2009), ou, pior ainda, numa estratégia que configura o modelo como um “data industrial complex”, na expressão de Tim Cook (Lomas, 2018).

Este oligopólio, onde pontuam sobretudo Google e Facebook, representa, segundo Gilder (2018), o apogeu da centralização, mas está de facto sendo cada vez mais posto em causa por tecnologias descentralizadoras, e de recuperação da segurança e da privacidade, que procuram “devolver” a Internet aos cidadãos, onde claramente se destacam as tecnologias Blockchain. Na Internet, a confiança na segurança das operações e na privacidade são componentes essenciais para a sustentabilidade do modelo computacional e para a arquitetura de informação, e neste ponto o atual sistema deixa muito a desejar. Por isso esta evolução “natural” de uma Googlearchy (Hindman, 2009) para um Cryptocosm (Gilder, 2018), de um sistema centralizado no oligopólio que domina o tempo que passamos online e fica com os dados e lucros dessa “economia da atenção” (Hindman, 2018), para um modelo autónomo que garanta privacidade, segurança e neutralidade da rede. E acima de tudo “liberdade”, o valor maior, para utilizadores e cibernautas.

É, portanto, evidente que o que Brendan Eich pretende com um navegador como o Brave é algo mais do que regular mercados estratégicos para a comunicação de um modo geral, mas mais em particular para a publicidade digital. Também nos parece óbvio que Eich pretende ir um pouco mais longe e basicamente atacar o atual “complexo industrial” oligopolista, onde ele acaba por ser mais pernicioso. E aí estamos a falar, sem dúvida, de um potencial navegador que se está a posicionar para retirar poder às grandes plataformas digitais, devolvendo-o aos utilizadores, editores e criadores de conteúdo.

Podemos assim dizer que faliu em definitivo o ciberoptimismo em torno da possibilidade da Internet ser um acelerador tecnológico da transparência, da privacidade e da segurança dos cibernautas. As velhas hierarquias cristalizaram e constituem-se hoje nas principais barreiras à entrada e à abertura da rede, são hoje geradores de novas desigualdades, num sistema altamente concentrado que também não assegura a diversidade de acesso aos conteúdos. Estamos perante uma “googlearchy”, que se replica e auto-perpetua na Web através da regra do “the most heavily linked” (Hindman, 2009: 55). Daí que a densidade de ligações seja um instrumento plenamente eficaz para a obtenção de quota de audiência, havendo claramente uma inabilidade cognitiva, intrínseca, do utilizador para responder a esta espécie de obsolescência programada dos conteúdos online, publicitários e outros, do modelo que domina a Internet. As tecnologias blockchain têm aqui um papel determinante a desenvolver, não restando dúvidas de que este princípio tecnológico baseado em segurança e privacidade é decisivo para a consolidação próxima futura da Net, havendo assim, para já, garantias de que a liberdade do utilizador e da rede poderão efetivamente ser reconquistadas.

 

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Recebido | Received | Recebido: 2018.07.10 
Aceite | Accepted | Aceptación: 2018.10.18

 

Nota biográfica

Francisco Rui Cádima é Professor Catedrático do Departamento de Ciências da Comunicação (DCC) da NOVA FCSH; - Investigador Responsável do ICNOVA - Instituto de Comunicação da NOVA / CIC.Digital; - Coordenador do curso de Doutoramento do DCC da NOVA FCSH; - Membro da Direção da revista Media & Jornalismo (SCOPUS). É autor de uma vasta obra académica no campo das ciências da comunicação.

Ciência ID: 231F-D7BA-F635

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