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Media & Jornalismo

versão impressa ISSN 1645-5681versão On-line ISSN 2183-5462

Media & Jornalismo vol.18 no.32 Lisboa abr. 2018

 

ARTIGO

 

O ethos do jornal O Globo e a campanha contra as fake news

 

O Globo newspaper's ethos and the campaign against fake news

 

El ethos del diario O Globo y la campaña en contra las notícias falsas

 

 

Vivian Augustin EichlerI; Janaína KalsingII; Ana GruszynskigIII

I Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGCOM-UFRGS). Porto Alegre - Rio Grande do Sul, Brasil CEP: 90040-060. E-mail: eichlervivian@hotmail.com
II Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGCOM-UFRGS). Porto Alegre - Rio Grande do Sul, Brasil CEP: 90040-060. E-mail: janakalsing@yahoo.com.br
III Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGCOM-UFRGS). Porto Alegre - Rio Grande do Sul, Brasil CEP: 90040-060. Pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).E-mail: anagru@gmail.com

 

 


RESUMO

O artigo avalia o ethos discursivo do jornal O Globo (Brasil) em sua campanha que tem como foco o combate às notícias falsas (fake news). Os procedimentos metodológicos adotados são a pesquisa bibliográfica e a análise de discurso, que orientam o mapeamento de sentidos, a identificação dos sujeitos e das vozes dos enunciados, bem como o atravessamento de discursos de conteúdos jornalísticos e publicitários vinculados à campanha. Observou-se que o periódico busca reforçar a crença no papel do jornalismo a partir da imagem de autoridade para verificar informações. Dessa maneira, utiliza o fenômeno das fake news para alinhar o seu ethos ao novo ambiente de circulação de informações da sociedade midiatizada e legitimar-se junto a seus públicos.

Palavras-chave: Fake news; Ethos; Jornalismo; O Globo; Convergência


ABSTRACT

This article aims to enlighten the meanings attributed to journalism and the discursive ethos of the brazilian newspaper O Globo in its campaign that fights against fake news. The research is based on bibliographic research and discourse analysis, which guide the mapping of meanings, the identification of the subjects and the voices of the utterances, as well as the crossing of discourses of journalistic and advertising content linked to the campaign. As a result, it was observed that the O Globo newspaper seeks to reinforce the belief in the role of journalism through the image of authority to verify information. In this way, the fake news phenomenon is used to align the newspaper's ethos to the new environment of mediatized society and to self legitimize with its audiences.

Keywords: Fake News; Discursive Ethos; Journalism; O Globo Newspaper; Convergence


RESUMEN

El presente artículo evalúa el ethos discursivo del periódico brasileño O Globo en su campaña en contra las noticias falsas (fake news). Los procedimientos metodológicos adoptados son la investigación bibliográfica y el análisis del discurso, los cuales orientan el mapeo de los sentidos, la identificación de los sujetos y de las voces de los enunciados, además del atravesamiento de los contenidos periodísticos y publicitarios vinculados a la campaña. Como resultado, se ha observado que el periódico busca fortalecer la creencia en el rol del periodismo desde un imagen de autoridad para verificar informaciones. Así, se utiliza del fenómeno de las fake news para adaptar su ethos al nuevo ambiente de circulación de informaciones de la sociedad midiatizada y obtener legitimación junto a sus públicos.

Palabras-clave: Noticias falsas; Ethos; Periodismo; O Globo; Convergencia


 

 

1. Introdução

Em tempos de fluxo intenso, rápido e gratuito de informações, especialmente com a disseminação e o uso de redes sociais, as empresas jornalísticas buscam estratégias para cativar e manter um público consumidor. Um dos principais desafios é ser percebido pela audiência como relevantes, o que expressa os sentidos produzidos pelos sujeitos a respeito do papel do jornalismo para a sociedade e para os indivíduos. Esse reconhecimento é construído e reconstruído historicamente e fundamenta o contrato de comunicação (Charaudeau, 2013; Fausto Neto, 2006, 2007) entre os veículos e seus públicos, que também é concebido com base na imagem que o jornal constrói de si, o seu ethos discursivo (Maingueneau, 1997, 2001, 2005, 2008).

As estratégias para atribuir sentido de relevância ao jornalismo e construir o ethos dos jornais na atualidade são inúmeras. Este artigo foca em uma delas, o discurso institucional na enunciação jornalística e na enunciação publicitária que, marcadas pela autorreferencialidade, convertem-se em um dispositivo próprio de linguagem (Fausto Neto, 2006, 2007). Entende-se que, a partir desse dispositivo, é possível compreender a imagem de si e alguns sentidos com os quais o jornal quer ser percebido pelo público, buscando a constituição e/ou renovação do contrato de comunicação.

Toma-se como objeto empírico de análise a campanha institucional do jornal O Globo lançada em 12 de março de 2017, na qual o veículo apresenta um novo slogan – O Globo, conteúdo que você confia e compartilha –, em um contexto no qual o veículo diz "entrar de cabeça na luta contra as fake news"1. Esta engloba anúncios e vídeos publicitários de alerta ao consumidor, reportagens institucionais e sobre notícias falsas e dá visibilidade a procedimentos da Redação de O Globo e Extra2, como o fortalecimento de blogs de checagem. Parte-se da hipótese de que, no atual ambiente de convergência e midiatização – fenômenos caracterizados pela multiplicidade e hiperconcorrência de fontes e meios de informação –, veículos como O Globo procuram renovar atributos tradicionalmente associados ao jornalismo, como a disciplina da verificação (Kovach & Rosenstiel, 2003).

Como objeto teórico, busca-se compreender os sentidos relacionados ao jornalismo a partir do ethos discursivo do jornal. Para tanto, os procedimentos metodológicos adotados são a pesquisa bibliográfica e a análise de discurso, as quais orientam o mapeamento de sentidos, a identificação dos sujeitos e das vozes dos enunciados, bem como o atravessamento de discursos de conteúdos jornalísticos e publicitários vinculados à campanha em discussão.

A relevância desta discussão tendo como objeto o jornal O Globo está atrelada ao fato de se tratar de um dos periódicos de maior circulação3 e formação de opinião no Brasil. A campanha em análise deu-se no período pós-impeachment da presidente Dilma Rousseff (destituída em agosto de 2016 pelo Senado Federal), em um notório contexto de polarização política do país, no qual os meios de comunicação tradicionais ocupam espaço de visibilidade no debate nacional. O presente estudo, entretanto, não tem como objeto analisar o posicionamento e os enquadramentos dados por O Globo sobre a legitimidade do ato de impeachment e seus desdobramentos no governo seguinte4. Seu foco está em identificar elementos que configuram o ethos discursivo do jornal na campanha em questão.

Fundado em 1925, o jornal O Globo integra o maior grupo de mídia no país, que inclui a TV Globo, e tem como perfil majoritário de leitores um público formado pelas classes A e B (65%)5. De acordo com os dados de junho de 2017 do Instituto Verificador de Comunicação (IVC), tem 1.281.000 leitores e circulação de 133.008 exemplares impressos nos dias úteis. Em 2008, uniu site e jornal impresso em uma única marca e reafirmou sua identidade como um veículo multiplataforma com a assinatura “O Globo. Muito além do papel de um jornal”6 – substituída em 2017 pelo slogan contra as fake news.

Em linhas gerais, fake news podem ser definidas como “ações deliberadamente fabricadas e apresentadas como não ficção com a intenção de induzir os destinatários a tratar ação como um fato ou como um fato verificável duvidoso” (Chadwick, 2017). A propagação de notícias falsas notabilizou-se em 2016, nos Estados Unidos, durante a campanha que elegeu Donald Trump presidente e, no Brasil, com os sucessivos episódios de instabilidade política em 2016 e 2017.

A discussão sobre esse fenômeno também está relacionada a mudanças nos modos de produção e distribuição de conteúdo jornalístico em meio a processos de convergência e midiatização (Bell et al., 2017). A midiatização da sociedade atravessa o discurso institucional dos jornais (Fausto Neto, 2007) e diz respeito às transformações estruturais de longa duração na relação entre a mídia e outras esferas sociais, envolvendo “a institucionalização de novos padrões de interações e relações sociais entre os atores, incluindo a institucionalização de novos padrões de comunicação mediada” (Hjarvard, 2014, p.24).

 

2 Jornalismo no cenário de convergência

A convergência das mídias é um fenômeno dinâmico e em curso, associado à digitalização de conteúdos e ao desenvolvimento da Internet. A diversidade de abordagens sobre ele revela critérios e interesses variados, que resultam na ausência de uma definição consensual (Salaverría et al., 2010). Para Jenkins (2009), compreende a circulação de conteúdos em diferentes suportes, a cooperação de mercados midiáticos e o comportamento de migração dos públicos que transitam entre variadas plataformas na demanda por experiências de entretenimento e informação.

No âmbito jornalístico, Palacios & Diaz Nóci (2009) tomam a convergência como processo a ser avaliado em diferentes esferas em um continuum composto por diversas etapas que objetivam a integração. Abrange os modelos e a gerência de negócios, relações de mercado e com a audiência, a cultura das organizações e processos operacionais. Segundo Salaverría et al. (2010), pode ser vista segundo as dimensões tecnológica, empresarial, profissional, editorial, às quais Sábada et al. (2008) agregam os meios e os públicos, ao considerar a linguagem e as características específicas dos primeiros e a relevância da participação ativa dos últimos.

No período denominado como jornalismo industrial (Anderson et al., 2013), organizações jornalísticas controlavam todas as etapas de produção noticiosa, da apuração à distribuição. No contexto atual, vive-se a terceira onda de mudanças tecnológicas do jornalismo pós-industrial (Bell & Owen, 2017), na qual empresas de tecnologia entram na cadeia produtiva sobrepondo escolhas e objetivos dos jornais com as suas próprias escolhas e objetivos. É o que mostra o segundo relatório State of the News Media 2016, do Pew Research Center, ao constatar que metade dos adultos americanos se informam pelo Facebook. A consolidação de poucas e grandes empresas de tecnologia nesse ambiente causa impacto maior na atividade jornalística do que a própria mudança do impresso para o digital (Bell et al., 2017).

Esse fenômeno aprofunda os processos de convergência e de midiatização na sociedade, os quais alteram o reconhecimento que as partes têm de si no contrato de comunicação midiática, cujo estatuto foi construído socialmente (Benetti et al., 2011) a partir da inter-relação identitária entre as partes: as empresas de comunicação, os jornalistas e os leitores (Charaudeau, 2013).

Fausto Neto (2007) observa como a midiatização reflete-se no uso cada vez mais frequente de operações de autorreferencialidade, nas quais os jornais falam de si e de seus processos, conformando estratégias com que “a mídia jornalística tece novos padrões de confiabilidade” (Fausto Neto, 2006, p.2). Embora o autor concentre seu olhar no texto jornalístico, entende-se aqui que o uso combinado de textos jornalísticos e publicitários para promover produtos jornalísticos serve ao mesmo fim: reforçar o contrato de leitura do jornalismo como gênero discursivo e, assim, fortalecer o negócio de jornais.

Assim, a lógica da autorreferencialidade como estratégia de construção de sentidos para conferir legitimidade ao discurso jornalístico é usada de maneira articulada pelos diferentes discursos organizacionais. Combina-se discursos, gêneros e ações, que auxiliam a compor a imagem do jornal como organização empresarial e do jornalismo como instituição. Nesse sentido,

[...] entende-se por instituição o conceito, os princípios e a função da atividade jornalística que, a partir da definição de características universalizáveis, delimita o que pode ser entendido e/ou identificado como jornalismo. Portanto, a instituição está acima da organização, sendo, essa última, a manifestação empírica da primeira. As organizações, por meio de recursos de infraestrutura, tecnológicos e humanos, materializam o conceito, os princípios e a função da instituição jornalística. Diferentemente da instituição, a organização assume particularidades que não são universalizáveis, por estarem ligadas a um modo próprio de produção. (Barichello et al., 2017, p.116)

O discurso jornalístico é reconhecido socialmente como um gênero específico a partir de percepções e sentidos atribuídos a ele pelos sujeitos envolvidos no contrato de comunicação (Charaudeau, 2013). Essa distinção passa pela imagem que os jornais fazem de si, pelo seu ethos discursivo (Maingueneau, 1997, 2001, 2008), o qual se constitui em uma ferramenta metodológica de compreensão sobre como os termos tácitos deste contrato legitimam-se e renovam-se ao longo do tempo. De acordo com Amossy (2005, p.138), a construção da imagem de si no discurso tem "[...] a capacidade de modificar as representações prévias, de contribuir para a instalação de imagens novas e de transformar equilíbrios, contribuindo para a dinâmica do campo".

Assim, o discurso organizacional jornalístico e publicitário do jornalO Globo torna-se um instrumento de identificação do ethos. Prática comum das empresas jornalísticas, as campanhas publicitárias atribuem valor à marca do veículo, renovam slogans, dão visibilidade a processos organizacionais dentro das redações, divulgam novos produtos e engajam os leitores no mote que se pretende destacar. Cada vez mais integram ações de marketing que englobam também matérias jornalísticas sobre o próprio veículo. São ferramentas que se utilizam da autorreferencialidade para tecer novos padrões de confiabilidade e organizar a sua relação com o leitor em novos contratos de leitura, transformando as práticas jornalísticas em um novo dispositivo de produção de sentido (Fausto Neto, 2006, 2007).

 

3 Imagens de si: O Globo, conteúdo que você confia e compartilha

A avaliação de materiais produzidos para a campanha de O Globo considerou a noção de ethos como construção de uma imagem desenvolvida por Maingueneau (2005, pp.73-74), que toma o discurso como " [...] um acontecimento inscrito em uma configuração sócio-histórica e não se pode dissociar a organização de seus conteúdos e o modo de legitimação de sua cena discursiva". Segundo essa perspectiva, o enunciador atribui a si uma posição institucional que é marcada em relação a um saber. Ela pode ser apreendida enquanto voz e corpo, manifestando-se no tom adotado. O enunciador é, assim, um fiador que detém um caráter e uma corporalidade. Para o autor (2001, pp.18-19), o ethos efetivo articula o "ethos pré-discursivo, ethos discursivo (ethos mostrado), mas também os fragmentos do texto nos quais o enunciador evoca sua própria enunciação (ethos dito)". O ethos envolve também o reconhecimento do destinatário acerca da identidade do enunciador, que se dá com base em um conjunto de representações sociais. A cena de enunciação abrange a cena englobante (estatuto pragmático); a cena genérica (gênero ou subgênero de discurso); e a cenografia (construída pelo próprio texto).

O corpus de análise constituiu-se de conteúdos jornalísticos e publicitários utilizados na campanha. Os jornalísticos incluem dois textos publicados no formato de notícia no jornal impresso7 e no site de O Globo na data de lançamento. A primeira delas, com o título "Grupo vai checar e combater avanço de notícias falsas" , noticia a criação dos blogs de checagem "É Isso Mesmo", de O Globo, e "#Éverdade#Éboato”, do jornal Extra, como uma "vacina8" contra as notícias falsas. O segundo texto, "Campanha publicitária contra as fake news"9 noticia que O Globo é o primeiro grande veículo de mídia a lançar uma campanha contra notícias falsas no Brasil (Figura 1).

 

 

As peças publicitárias incluem o novo slogan do jornal e três anúncios10 (Figura 2) cujo conteúdo foi adaptado em vídeo, spots de rádio, para o impresso e site (espaço de venda de assinaturas).

 

 

Os anúncios impressos são preto e branco, sem imagens, apenas com textos. Já os vídeos e spots de rádio utilizam além dos texto animados a voz de três colunistas do jornal (Merval Pereira, Míriam Leitão e Ancelmo Góis) e a seção do site dedicada a captar novos assinantes inclui fotos e frases desses colunistas11(Figura 3).

 

 

Os procedimentos adotados compreenderam: (1) identificação dos núcleos de sentido presentes nos trechos que configuram as sequências discursivas (Quadros 1 e 2); (2) análise do conjunto de sentidos que conformam os três núcleos (Quadro 3; (3) observação da cena de enunciação desses discursos e na identificação de seus sujeitos; (4) avaliação do ethos discursivo (imagem que o jornal constrói de si) a partir do mapeamento dos sentidos e dos sujeitos presentes no discurso.

 

 

 

As sequências discursivas identificadas no corpus são marcas, expressões que "constroem o caminho em direção ao sentido nuclear da FD (Formações Discursivas)" (Benetti, 2007 p. 113), que configuram uma espécie de região de sentidos. Com base nessas marcas, chegou-se a três eixos nucleares de sentido que levam a outros discursos que atravessam o texto. As mesmas sequências foram usadas para identificar os sujeitos ou as vozes dos textos que auxiliam a compreender que lugares ocupam na constituição do ethos do jornal.

Também foram registradas sequências discursivas em notícias publicadas em O Globo (Quadro 2).

A partir das expressões, foram identificados três eixos agregadores de sentido (Quadro 3) e, em torno deles, dispostos os pequenos significados que constroem os sentidos.

Com base no mapeamento, constata-se que, no núcleo de sentidos que atribui oportunidades e riscos ao ambiente digital, o jornal O Globo procura posicionar a si próprio como aberto às tecnologias, como quem acompanha as novidades desta era digital e procura inverter a lógica do risco, de crise no jornalismo. Nesse discurso entram as notícias falsas como um perigo apresentado ao leitor. Assim, atribui-se ao jornal uma função de proteger o leitor contra as armadilhas da rede. Dessa forma, as fake news dão oportunidade ao jornal de demonstrar sua importância enquanto organização que reitera o valor do jornalismo a partir do capital simbólico da credibilidade.

O segundo núcleo de sentido identificado na análise agrega discursos sobre a autoridade do jornalismo a partir de expressões que atribuem credibilidade por meio da especificação de um tipo de jornalismo, relacionado às empresas e à tradição: o jornalismo profissional, o jornalismo feito por organizações com tradição, o velho e bom jornalismo. Os atributos desse tipo de jornalismo está relacionado à prática da checagem, à competência para revelar o que é verdadeiro e investigar o que está oculto, ao compromisso com a qualidade.

Os sentidos agrupados em torno do leitor reconhecem nesse sujeito um perfil de atualização, de mudança, um leitor que navega por múltiplos canais de informação e que compartilha informações, sintonizado com o cenário de convergência. É no perfil de um leitor conectado que o jornal se posiciona como aquele que prestará um serviço de guia. Por fim, atribui ao leitor uma responsabilidade e, para poder exercê-la, é preciso buscar fontes de confiança assinando o jornal.

Seguindo a distinção das três cenas, a campanha tem como cenas englobantes os discursos jornalístico e publicitário. A cena genérica remete a um discurso organizacional autorreferencial. A cenografia construída pelo texto perfaz um enunciado persuasivo por meio de uma ideia de autoridade jornalística e implica, portanto, um ethos que supõe uma definição implícita de um saber especializado. Esse saber especializado é o produzido pelo jornalismo profissional, que tenta se diferenciar de outros conteúdos que circulam nas redes, entre eles, as fake news.

O sujeito que o ethos incorpora como enunciadores são o jornalismo como instituição e o jornalismo organizacional identificado com O Globo. Os produtores de notícias falsas e as empresas de redes sociais são, por sua vez, objetos dessa enunciação. O leitor, que dá sentido ao ethos como coenunciador (Maingueneau, 2001), é também uma voz na campanha, como um público de consumidores em potencial que precisa ser advertido de um risco, o de compartilhar as fake news ou de se guiar por notícias falsas. É um público que o jornal busca persuadir para que pague para receber informações, mas que, por outro lado, começa a perder o jornal como referência.

As peças publicitárias acionam uma rede metafórica de linguagem que remete a provérbios. Maingueneau (2001), ao caracterizar a enunciação proverbial, cuja voz é a da sabedoria popular assentada nas propriedades linguísticas do enunciado e em sua própria memória, atribui a ela um ethos específico, um tom "sentencioso". Esse tom da sabedoria popular, do que é tradicional, é combinado pela atualização dos provérbios com referências atuais sobre o ambiente digital – cauda longa, em referência ao poder de propagação de uma informação falsa na rede, onde há fumaça pode não haver fogo, em uma referência a um lugar novo, de lógicas próprias, não habituais – ou com a referência da investigação jornalística, de saber específico, de uma tradição de revelar o que está oculto.

As cenas de enunciação do discurso publicitário e do discurso jornalístico existem em simbiose na campanha, ou seja, uma apoia-se na outra, caracterizando o uso do dispositivo autorreferencial tanto da publicidade que anuncia o próprio meio e tanto o jornalismo, que retrata a publicidade. Para legitimar e criar efeito de verdade12, o discurso publicitário apóia-se em noções pré-discursivas do jornalismo como instituição, que pressupõe credibilidade. Uma ação real confere um tom de novidade (a criação de mecanismos de checagem com os blogs de O Globo e Extra) e é transmitida em um formato de notícia. As notícias autorreferenciais apresentam um discurso do gênero jornalístico que legitima o ethos do saber especializado, da competência, da autoridade construída no discurso publicitário e vice-versa.

Esse saber é consolidado por meio de uma "representação cultural preexistente, um esquema coletivo cristalizado" (Amossy, 2005, p.142): a autoridade e competência jornalística. O reconhecimento dessa autoridade jornalística expressa no ethos é posta em cheque na nova ambiência da sociedade midiatizada, em especial pelas novas gerações, que não compartilham das mesmas representações sociais que as gerações que têm como referencial de notícia aquela produzida por organizações jornalísticas.

Berger & Luckmann (2009), ao analisarem o processo de legitimação das instituições de uma geração para a outra, permitem inferências sobre os desafios do jornalismo. Segundo os autores, toda atividade humana está sujeita ao hábito e são os processos de sua formação que precedem toda institucionalização, que ocorre quando se dá uma tipificação recíproca de ações cotidianas por tipos de atores. Assim, na primeira fase da institucionalização, os hábitos são transparentes, partilhados por quem os configurou. Na segunda fase, para uma segunda geração que apreende esses hábitos dos pais, a realidade é dada e o mundo institucional que lhes é transmitido tem caráter de realidade histórica e objetiva. A legitimação dessas instituições e hábitos consiste "em tornar objetivamente acessível e subjetivamente plausível as objetivações de ‘primeira ordem', que foram institucionalizadas" (Berger & Luckmann, 2009, p.126). Trata-se de um processo de explicação e justificação:

[...] a legitimação não é necessária na primeira fase da institucionalização, quando a instituição é simplesmente um fato que não exige nenhum novo suporte, nem intersubjetivamente nem biograficamente. É evidente para todas as pessoas a quem diz respeito. O problema da legitimação surge inevitavelmente quando as objetivações da ordem institucional (agora histórica) têm de ser transmitidas a uma nova geração. Nesse ponto, como vimos, o caráter evidente das instituições não pode mais ser mantido pela memória e pelos hábitos do indivíduo. Rompeu-se a unidade de história e biografia. Para restaurá-la, tornando assim inteligíveis ambos os aspectos dessa unidade, é preciso haver "explicações"e justificações dos elementos salientes da tradição institucional. A legitimação é este processo de "explicação" e justificação. (Berger & Luckmann, 2009, p.128)

O comportamento de leitura de jornais mudou radicalmente nas últimas décadas. As novas gerações, que se informam pelas redes sociais, deixaram de ter como referência a instituição jornalismo como a função de informar-se, não vivenciam a leitura de jornais da mesma forma que as gerações anteriores. A crise de legitimidade dos jornais passa também por essa mudança de hábito.

Dessa maneira, as fake news servem como um novo referencial para construir/reafirmar/renovar uma doxa – esquemas coletivos e representações sociais – da legitimidade sobre as funções e sentidos do jornal. Não cabe aqui problematizar a dimensão real do impacto das notícias falsas, mas em compreender como as referências a elas se configuram uma estratégia de legitimação para a existência dos jornais.

 

4 Considerações finais

Entende-se aqui que o fenômeno das fake news e a forma como os jornais se endereçam a ele aportam múltiplas dimensões de análise nas pesquisas em comunicação e uma delas está relacionada a uma crise de legitimidade das instituições de maneira geral. Na sociedade em rede descrita por Castells (2015), a tecnologia de comunicação deu suporte a uma extraordinária ampliação da habilidade de atores individuais e sociais desafiarem o poder do Estado e o significado de democracia. Nesse processo de deslegitimação e contestação, o papel da mídia como instituição se complexifica cada vez mais.

Outra dimensão de análise relaciona-se ao quadro de esgotamento do modo de fazer e distribuir conteúdo jornalístico pelas instituições tradicionais. Em um contexto de transformações do campo jornalístico na sociedade midiatizada, no qual crenças e comportamentos que constituíram a atividade pela lógica industrial não se sustentam mais, as empresas do setor concentram esforços para viabilizar seus negócios. Um dos recursos utilizados para manter um público leitor engajado é o de renovar a percepção sobre a relevância da atividade jornalística. Em outras palavras, é a busca por sentidos que façam com que o jornal se reconheça e seja reconhecido como tal. Sendo assim, o discurso autorreferencial típico das campanhas de marketing e que combinam textos jornalísticos e publicitários configuram-se em dispositivos importantes para renovar os termos do contrato de comunicação descrito por Charaudeau (2013).

Essa validação requer uma construção permanente, e a propagação das fake news é uma oportunidade para o jornal O Globo reafirmar atributos e criar identificação com antigos leitores, assinantes em potencial e, também, anunciantes. O novo slogan – O Globo, conteúdo que você confia e compartilha – que substituiu o anterior – Muito além do papel de um jornal – sintetiza o aprofundamento do fenômeno da convergência na sociedade midiatizada. Se o slogan antigo apresentava a noção de atualização tecnológica de um meio "antigo", o jornal, o novo bordão acompanha um hábito que se consolida (o compartilhamento pelas redes sociais) e reconhece nele uma expressão de relevância do jornal. Diferencia-se, assim, de outros conteúdos compartilhados em rede porque investe em funções tradicionais, porém renovadas, do jornalismo: as credenciais de verificação e de chancela das informações.

Seguindo o mote descrito acima, as peças publicitárias e os textos jornalísticos autorreferenciais remetem aos desafios do novo ambiente digital com um tom sentencioso, descrevendo as fake news como ameaças. Nesse contexto, destacam a especificidade do que classificam como "jornalismo profissional" de checar a veracidade das informações, servindo de "vacina", de "guia" para um leitor que compartilha informações. Em seus enunciados, a campanha combina elementos que dão sentido à ideia de "novo" ("fake news", "informação sem garantia", "boatos", compartilhamento) e de "tradicional" ("velho e bom jornalismo", "compromisso com a qualidade", "investigação", "revelar o que está oculto", revelar o verdadeiro") para construir o ethos discursivo assentado no sentido da credibilidade e de guia do leitor.

O jornal adapta-se, assim, a um novo ambiente de convergência de mídias, aproveitando-se do fenômeno específico de circulação de notícias falsas. Busca reafirmar um ethos de autoridade das empresas jornalísticas para exercer esses papéis, reiterando o relevância do jornalismo enquanto instituição que tem o compromisso e a competência de revelar o que é verdadeiro.

 

 

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Salaverría, R. et al. (2010). Concepto de convergencia periodística. In López, X.; Pereira, X. (org.), Convergencia digital: Reconfiguración de los Medios de Comunicación en España (pp. 41–64). Santiago de Compostela: Servizo de Publicaciones e Intercambio Científico.         [ Links ]

 

 

Recebido / Received / Recibido: 15/09/2017
Aceite /Accepted /Aceptación: 06/03/2018

 

 

Notas

1 Notícia da estreia da campanha em https://goo.gl/e8cHra (Acedido em 3/8/2017).
2 Extra é um jornal popular do Grupo Globo. A redação é integrada ao do jornal O Globo.
3 Disponível em: https://goo.gl/ZxZ25W [Acedido em 13/9/2017].
4 A título de exemplo de pesquisa dedicada ao tema é a de Becker; Cesar; Gallas; Webber (2016), que analisou 12 capas de jornais brasileiros de referência ( O Globo, Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo) de março e abril de 2016. As autoras constataram o sentenciamento em torno da presidente e de seu partido antes mesmo do fim do processo e, da mesma forma, que as controvérsias em torno de políticos implicados nas denúncias de corrupção e argumentos contrários ao impeachment não tinham espaço nos jornais, apontando o impeachment como solução para os problemas do país.
5 Disponível em: https://goo.gl/GYLo4E [Acedido em 13/9/2017].
6 Disponível em: https://goo.gl/b3vraX [Acedido em 13/9/2017].
7 O Globo, 12/03/2017, p.11.
8 Disponível em: https://goo.gl/4LcPAm [Acedido em 5/08/2017].
9 Disponível em: https://goo.gl/yZtb1Y [Acedido em 5/08/2017].
10 Disponíveis em https://goo.gl/FyQNNa [Acedido em 5/08/2017].
11 A imagem dos colunistas foi acessada nos meses de junho e julho pelas autoras, contudo, em agosto, o link foi atualizado e as fotos retiradas. Disponível em: https://goo.gl/7M7y5T .
12 O efeito de verdade está mais para o lado do "acreditar ser verdadeiro" do que para o do "ser verdadeiro", afirma Charaudeau (2013, p.49). Surge da subjetividade do sujeito em sua relação com o mundo e baseia-se na convicção.

 

 

Vivian Augustin Eichler - Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGCOM-UFRGS). Mestre em Relações Internacionais pela Universidad del Salvador, em Buenos Aires. Atuou por 10 anos como repórter e editora na Redação do jornal Zero Hora.

Janaína Kalsing - Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGCOM-UFRGS). Mestre em Estudo dos Media e Jornalismo pela Universidade Nova de Lisboa. Pesquisadora do Grupo Jornalismo Digital (Jordi).

Ana Gruszynski - Doutora em Comunicação. Professora do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGCOM- UFRGS). Pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Coordenadora do grupo de pesquisa Laboratório de Edição, Cultura e Design (LEAD).

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