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Media & Jornalismo

versão impressa ISSN 1645-5681versão On-line ISSN 2183-5462

Media & Jornalismo vol.16 no.29 Lisboa dez. 2016

https://doi.org/10.14195/2183-5462_29_1 

ARTIGO

 

Arte da performance e a guerra golonial portuguesa: relações no tempo histórico

 

Performance art and the portuguese colonial War: relations in historical time

 

 

Cláudia MadeiraI

I Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Departamento de Ciências da Comunicação e IFILNOVA, IHA E CET/UL E-mail: madeira.claudia@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo propõe-se refletir sobre as relações entre a arte da performance portuguesa e a guerra colonial portuguesa. A simultaneidade no tempo histórico, entre os anos de 1960-1970, levaria a crer que, tal como aconteceu com as temáticas da Ditadura/Revolução, a guerra colonial pudesse ter sido abordada pela performance desenvolvida em Portugal. Contudo, paradoxalmente, se até recentemente não havia registos de nenhuma obra de arte da performance portuguesa desse período que tivesse tratado diretamente o tema, por outro lado, a rememoração inerente aos 40 anos da Revolução e a temas como o Retorno, a Guerra Colonial, etc., assim como o contexto de crise e a re-emergência de um “guião revolucionário” nos novos movimentos sociais em Portugal (que tem vindo a ser disseminado pelos diversos media) têm levado, quer à emergência de projetos artísticos onde a performance e a performatividade têm vindo a ganhar um papel importante, quer a novas re-significações de alguns projetos de performance acontecidos precisamente entre os anos de 1960-1970. Em 2015, por exemplo, Ernesto de Melo e Castro faz referência ao Funerão de Aragal desenvolvido por António Aragão no âmbito do Concerto e Audição Pictórica (1965) caracterizando-o com um “simbolismo evidente tendo em atenção os mortos das guerras nas colónias de África”. Neste contexto que papéis assume a performance arte na comunicação da “História” da guerra colonial portuguesa?

Palavras-chave: Performance arte portuguesa; guerra colonial portuguesa; memória; História especulativa


ABSTRACT

This article explores the relationship between Portuguese performance art and the Colonial War. Their synchronization in the historic time between the 1960s and 70s could lead us to believe that, as with the themes of the Dictatorship and the Revolution, the performance art being produced in Portugal at the time might well have addressed the Colonial War. Paradoxically, however, there is no record of any performance art of the period directly addressing the issue. On the other hand, the memories stirred by the 40th anniversary of the Revolution and issues such as the returning colonists, the Colonial War, as well as the economic crisis and the re-emergence of a “revolutionary script” in the new Portuguese social movements (disseminated by various areas of the media) has led both to the emergence of artistic projects in which performance and performativity have been acquiring an important role, and to new interpretations of some performance projects that took place between 1960-1970. In 2015, Ernesto de Melo e Castro referred to António Aragão’s Funerão de Aragal (Aragal’s Funeration) - devised within the scope of the Concerto e Audição Pictórica (1965) (Concert and Pictorical Hearing) -, characterizing it as “clear symbolism taking into account the dead from the wars in the African colonies.” In this context, what roles can performance art take on in telling the story of the Portuguese colonial war?

Keywords: Portuguese performance art; Portuguese colonial war; memory; performative history; speculative history


 

 

History is not only a valuable part of knowledge, but opens the door to many other parts, and affords materials to most of the sciences ... A man acquainted with history may, in some respect, be said to have lived from the beginning of the world, and to have been making continual additions to his stock of knowledge ...
(David Hume, “Of the Study of History”1)

 

(De)sincronias históricas

Não podemos deixar de dizer que houve uma simultaneidade no tempo histórico entre dois fenómenos da realidade portuguesa — a guerra colonial e a arte da performance em Portugal. Essa sincronia, contudo, devido à inexistência de registos de performances artísticas que tenham abordado o tema da guerra colonial, parece ter-se traduzido apenas numa coexistência no tempo e no espaço da realidade portuguesa de meados da década de 1960 a meados da década de 1970. Processo que a confirmar-se induziria a um reforço da ideia de autonomia do campo artístico em relação ao social, como se a performance artística dos portugueses e a performance social não estabelecessem entre si uma relação, mesmo que, por vezes, inversa.

A guerra colonial portuguesa teve o seu início em Angola no ano de 1961 e durou até 1974, estendendo-se a vários palcos da colonização portuguesa em África, como Guiné e Moçambique, tendo o seu término com a revolução do 25 de Abril. A arte da performance portuguesa constituiu-se como um género artístico híbrido e indefinido, caracterizado geralmente, através de uma ação física corporal, onde a “obra” é corporizada pelo próprio artista, numa experiência que é o espelho de uma atitude crítica e filosófica e onde a teatralidade é posta em causa através da diluição dos enquadramentos e dos guiões performáticos, acentuando a efemerididade e a não repetição, a informalidade e a co-participação do público. Não se consegue definir uma data de origem para a arte da performance, o que faz com que alguns acontecimentos mais performáticos existentes antes da expressão ter começado a tornar-se suficientemente abrangente e legitimizada, a partir dos anos 60, tenham sido recatalogados através desse conceito. O livro já traduzido para português com o título Arte da Performance: Do Futurismo ao Presente (2007) de Roselee Golberg dá conta desse processo.

Há nas intervenções performáticas modernistas frequentemente uma procura de exposição pública, uma voz que se quer direta, afetando um público, que tanto tem a sua expressão efémera, nos cafés, nas soirées, nos pequenos auditórios improvisados, como procura uma ampliação da sua expressão nos meios de divulgação de massas emergentes, nomeadamente, na imprensa jornalística. As intervenções públicas dos futuristas, surrealistas e dadaístas eram frequentemente divulgadas nas páginas dos jornais, como aconteceu, desde logo, com o manifesto futurista de 1909, assinado por Marinetti no Le Figaro, que pouco tempo depois teve os seus ecos até num pequeno jornal em Portugal, o Diário dos Açores, num artigo assinado por Bettencourt Rebello.

Não sendo um ato inteiramente novo, uma vez que, encontramos antecedentes tanto nos primeiros românticos, como os irmãos Schlegel, e até em Richard Wagner, que já haviam manifestado publicamente e de uma forma programática, as suas intenções artísticas na imprensa escrita emergente — os primeiros, publicando “Da Incompreensibilidade” (1800), no jornal Athenäum, o segundo publicando um ensaio intitulado “A Ópera Alemã” (1836) no jornal Laube, uma espécie de proto-manifesto da obra que em 1849 publicaria sob a denominação de A Obra de Arte do Futuro — a verdade é que o manifesto se tornou uma arma para promulgar novos programas artísticos, anteriormente apresentados geralmente nos prefácios dos livros, como aconteceu com o célebre manifesto romântico Do Grotesco e do Sublime de Victor Hugo, inserido no seu livro Cromwell (1827). A forma mais célere de disseminação dessa mensagem para os modernos passou a ser fazê-lo de viva voz ou escrevê-lo nas páginas dos jornais, para o rápido confronto com apreciadores ou críticos. Em Portugal, por exemplo, a aparição de José de Almada Negreiros, vestido de fato-de-macaco e com um cenário composto pelas costas de uma pintura voltada para o público, no dia 14 de Abril de 1917, no Teatro da República, para apresentar o seu Ultimatum futurista às gerações portuguesas do século XX, foi descrito pelo Jornal A Capital como o Elogio da Loucura. Esta Conferência-manifesto exposta para um diminuto público no Teatro da República apresentava-se como uma crítica ao espírito nacionalista português, preso à História, à nostalgia e ao saudosismo e, portanto, como um programa de recriação da pátria portuguesa do século XX, cuja divulgação na imprensa amplificou o seu gesto.

Também os surrealistas em Portugal fizeram algumas intervenções performáticas, associadas a maior parte das vezes às suas turtúlias e exposições (Madeira 2007, 2016c) mas, foquemo-nos ao período de sincronia entre os dois fenómenos que nos propusemos analisar: em 1965, teve lugar o primeiro happening nacional com o título Concerto e Audição Pictórica, apresentada na Galeria Divulgação, em Lisboa, onde participaram, alguns elementos do recentemente criado, em 1963, grupo da Poesia Experimental, PO.EX, nomeadamente, António Aragão, Clotilde Rosa, E. M. Melo e Castro, Manuel Batista, Jorge Peixinho o musicus poeticus2, Mário Falcão e Salette Tavares. Será aí que Ernesto de Melo e Castro apresentará pela primeira vez Música Negativa que, através dos seus registos podemos denominar um happening, uma performance, uma vídeo-performance, uma performance para a câmara, ou um re-enactment, uma vez que o filme de 16mm a que temos acesso foi posteriormente registado em 1977 por Ana Hatherly. Já para não dizer que entre 1965 e 1977, Ernesto de Melo e Castro re-apresentou, ou melhor dito, recriou, por diversas vezes e em diversos contextos esta peça que simbolizava o silêncio imposto durante a ditadura portuguesa até 1974. E, importa, também, referir que Melo e Castro nunca se definiu nem como artista plástico, nem como homem de teatro, mas antes como poeta experimental ou poeta visual, e foi a partir daí que criou esta e outras peças que podemos incluir hoje na história da performance portuguesa.

A performance Música Negativa que representava uma crítica ao silêncio imposto pelo fascismo “consistiu na interpretação ritualizada gestualmente, de uma partitura especialmente criada, usando três grandes chocalhos metálicos, sem os respetivos badalos que, portanto, não emitiam som algum”.3 Como referimos atrás, Melo e Castro repetiu esta intervenção performativa, diversas vezes, com outros instrumentos sem som, como, por exemplo, garrafas de CocaCola. Desenvolveu ainda outra intervenção chamada Foco e Barulho que consistiu “em escurecer a sala para depois abrir inesperadamente um foco de 1500 Watts voltado para a assistência, simultaneamente com o irromper de um barulho muito forte feito pela percussão (Mário Falcão) e por todos os ruídos que puderam ser produzidos pelos outros participantes. Tudo durou pouco mais de 1 minuto, voltando a sala à luz normal”4. Era uma forma de expôr metaforicamente o público aos métodos de tortura dos interrogatórios da PIDE, onde o foco de luz intensa era usado para atordoar os sentidos dos presos políticos.

Será no contexto desse Concerto e Audição Pictórica (1965) que também se apresentará uma outra intervenção performativa, O Funerão do Aragal, re-significada no texto “António António, Aragão Aragão” (2015) por Melo e Castro como uma explícita relação com a guerra colonial portuguesa. Para este autor O Funerão do Aragal, traduziu um momento de absoluto humor absurdo cujo simbolismo era evidente tendo em atenção os mortos das guerras nas colónias de África, cujo processo descreve assim:

Ao redor de uma mesa que foi trazida já posta, com pratos de comida, sentamo-nos e começámos a [simular] comer ruidosamente, mastigando e batendo com os talheres nos pratos... ao lado da mesa foi colocado um caixão de pinho onde o Aragão se deitou. Então todos nos levantámos um a um e despejamos os restos de comida dos pratos por cima do corpo do Aragão. Seguidamente levantamos o caixão e saímos lentamente da cena enquanto se ouviam acordes da marcha fúnebre do costume (2015:132).

Este recente testemunho de Melo e Castro coloca-nos novas questões em relação à ligação entre os dois fenómenos —guerra colonial e arte da performance portuguesa— no sentido em que esta dissociação parece opôr-se à esperada relação directa, nomeadamente, num género artístico com uma vocação marcadamente participativa, política e interventiva.

Se a relação entre arte e guerra tem sido uma constante ao longo da História da humanidade, tornando-se um tema universal que teve o seu fórum privilegiado no teatro da Antiguidade Grega; se Brecht afirmou que a guerra era o verdadeiro tema da arte e reencenou por diversos modos o tema, não só nos palcos teatrais mas também usando os novos media da sua época, como podemos ver na sua montagem fotográfica em War Primer; se, antes dele, os futuristas fizeram elogios à guerra, considerando como Marinetti que “a guerra é bela” e se os dadaístas, compostos por artistas de várias nacionalidades, se refugiaram da I Guerra Mundial em Zurique, criando uma comunidade de linguagens inventadas no Cabaret Voltaire, em 1916 (Madeira 2007), que abriram espaço para dar lugar às poéticas do absurdo e do “indizível” (Wittgenstein 1995) de Ionesco e Beckett; então, podemos dizer que a guerra faz parte das representações das nossas poéticas ocidentais. Efetivamente, o tema da guerra está presente desde as fundações da mitologia grega (e depois, também, romana e lusitana). Dos poetas como Homero até aos pilares da tragédia e comédia da Antiguidade, que serviam o propósito de debater os “problemas concretos da polis” em espaço público através do teatro, estas manifestações assumem uma clara função pedagógica e de reflexão sobre os “dramas sociais” (Turner, 1987).

Teatro e guerra ganham assim uma ligação longínqua no tempo que faz transitar expressões entre o drama social e o drama artístico, testando os seus limites. A tal ponto isto acontece que ficou célebre o relato de Heródoto que quando Frínico compôs a peça A tomada de Mileto e a apresentou no Teatro, o público desfez-se em lágrimas. E, por recordar desgraças nacionais, condenaram-no em mil dracmas e decidiram que esta tragédia nunca mais fosse representada por ninguém5. A interdição, e silenciamento manifesto, da representação desta tragédia, não pôs fim como sabemos à sua constituição como uma das linhas transversais e estruturantes, quer das tragédias, quer das comédias que se apresentavam em palco, representando o trágico cenário, e os trágicos efeitos das guerras, mesmo que com componentes trágico-cómicas, que eram realidade constante destas sociedades. Ésquilo, Sófacles e Eurípedes, foram alguns dos que fizeram essa recriação dos dramas sociais como dramas artísticos, este último até mostrando não só os malefícios que a guerra trazia, quer a vencedores, quer a vencidos, numa espécie de carnaval negro onde se produziam inversões inesperadas, de estatuto, de regras sociais, etc., como ainda inscrevendo aí o olhar dos invisíveis: mulheres, crianças e escravos. Neste contexto, a interdição de que nos fala Horácio, mantém o valor de afirmar que o que se representa e discute em espaço público está dependente dos poderes instituídos em cada momento. Por isso, talvez, não deixámos, de procurar representar essas tragédias e/ou comédias, elas parecem servir-nos de exemplo contra a hybris do homem, apelam à reflexão6 e traduzem um dos antídotos de que dispomos para a amnésia histórica.

Assim sendo, e tendo presente que a arte da performance portuguesa não foi alheia a questões da performance social dos portugueses, da identidade coletiva nacional, como as questões da Ditadura e Revolução, usando temas referentes à falta de liberdade e de expressão, como explicar a não inscrição aparente do tema da guerra neste género artístico? Sabemos, por exemplo, que Clara Menéres, que desenvolveu também atividade performática, expõe em 1974 a obra Jaz Morto e Arrefece, apresentando uma estátua realista de um militar morto em cima de um caixão para ser velado, mas a não ser esta nova re-interpretação em 2015 de Ernesto de Melo e Castro sobre o Funeral de Aragal, as alusões ao tema da guerra colonial por parte dos praticantes de performance ou de intervenções performáticas são difusas, inscrevendo-se numa complexa nublosa sígnica que pode abarcar várias temáticas, como é exemplo, a performance de Manoel Barbosa Identification, apresentada em Barcelona em 1975, logo após a sua vinda da Guerra de África e re-transmitida, em 2014, no projeto de Vânia Rovisco Re-action to Time, onde os movimentos maquínicos dos intérpretes tanto podem ser alusivos à falta de liberdade vigente em regimes ditatoriais, como acontecia ainda em Espanha, em 1975, como aos movimentos rígidos e disciplinados dos militares portugueses transportados para as colónias.

Manoel Barbosa, quando relata a sua estadia em África começa por nos descrever o enorme painel pintando de António Palolo que encontrou no quartel do seu comandante em Zemba, Angola, e que lhe sugeriu a continuação do seu trabalho artístico, com a criação de pequenos desenhos geométricos feitos durante a sua estadia nesse quartel. Desenhos que, por terem sido feitos durante a guerra em Angola, foram recentemente reapropriados para um filme-vídeo de Alexandre Estrela denominado Pockets of Silence, apresentado no Reina Sofia, entre 16 de Dezembro de 2015 e 21 Março de 2016, sob comissariado do português João Fernandes. No catálogo de Pockets of silence Alexandre Estrela escreve:

Graças a este campo de batalha minimalista, e a um enorme consumo de canabis, Barbosa conseguiu encontrar uma forma para se evadir da guerra. Paradoxalmente, estes desenhos em papel de carta tornaram-se, anos mais tarde, mecanismos externos de memória (...), formalizações de um tempo difícil transportando as marcas de uma região hostil e de passado que melhor seria esquecido (Estrela, 2015).

Do mesmo modo, Carlos Nogueira, também militar na guerra colonial portuguesa, quando apresenta O Pombal - 99 pombas de brincar para outros tantos usadores na Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa, em 1978, inscreve similarmente essas pombas de madeira, que se tornam performativas através dos seus usadores, nessa complexidade sígnica que absorve vários significados e memórias.

De facto, o silêncio sobre o tema da guerra em Portugal tem sido analisado como uma singularidade portuguesa mesmo após o seu término. Um silêncio induzido por uma espécie de tradição silenciadora imposta pela ditadura fascista que denegava a existência da guerra, como ficou explícito no programa televisivo, em 1972 intitulado “Conversas em família”, onde o presidente do Conselho, Marcello Caetano, afirmava: “Nunca é demais repetir que nós não estamos em guerra com ninguém”. O que nos permite afirmar que a “improbabilidade da comunicação”, na expressão de Niklas Luhmann (2006) se transformou, por exemplo, para o jornalismo português, em impossibilidade.

Como refere Sílvia Torres no prefácio do livro O Jornalismo Português e a Guerra Colonial (2015) “a verdade sobre as entranhas da guerra, o seu relato verdadeiro, não é publicável” (2015:12), pelo que muitos dos jornalistas portugueses enviados para as colónias no período da guerra colonial nem chegavam a ver os seus textos censurados, não só porque num contexto de silêncio opressivo e opressor havia uma auto-censura imposta mas, também, porque “não era preciso estar sempre a falar da guerra. A guerra estava sempre presente na sociedade portuguesa dos anos 60 e 70, como uma assombração” (2015:21). E, por isso, como é referido neste livro, o volume de notícias sobre a guerra, ao invés de aumentar, foi diminuindo à medida que a guerra colonial avançava.

Este silêncio imposto durante o regime fascista manteve-se depois do 25 de Abril. Durante a guerra colonial o silêncio era usado como instrumento para as entidades dirigentes para a não divulgação dos efeitos reais da guerra, ao mesmo tempo que servia, para a população em geral, e mesmo para os seus divulgadores oficiais, para proteção, uma vez que falar sobre esse assunto equivalia a uma ação de oposição contra o regime fascista. Após a Revolução e Descolonização este silêncio mantem-se como uma das paradoxais singularidades dos portugueses, segundo Eduardo Lourenço (2013; 2014) e José Gil (2005). Para estes autores, mesmo a existência de registos artísticos e literários parece não ter promovido uma dinâmica de discussão pública, mais estrutural, sobre o trauma histórico da guerra e dos seus impactos na sociedade portuguesa e, por isso, para eles, manteve-se o discurso do silenciamento dos temas fundamentais que deveriam ter estado na base da redefinição da identidade portuguesa em democracia7.

No seu ensaio onde discute os factores que levam à noção, já referida acima neste texto, de “improbabilidade da comunicação”, Niklas Luhmann (2006) faz referência a três tipos de obstáculos à comunicação, que podemos sintetizar como: 1) a individualização da memória contextual; 2) o espectro reduzido da comunicação a recetores para além dos presentes na situação; 3) a incerteza em relação à aceitação dos conteúdos da comunicação. Ora todos estes factores se mantiveram presentes sobre a temática da guerra em Portugal e, por isso, o silêncio traduziu-se numa “experiência do indizível”8 , do incomunicável, não deixando por isso de expressar, o que os não-ditos, os meio-ditos, os quase-ditos, os murmúrios, revelam sobre as experiências traumáticas e que nem sempre podem ou devem ser testemunhados9.

Em entrevista recente10 e de forma a explicar esta re-significação de 2015 d’ O Funerão de Aragal, Melo e Castro, dá precisamente conta desse factor tendo contextualizado o Concerto e Audição Pictórica como um evento “inteiramente imaginado de uma forma completamente aberta”, por Jorge Peixinho, caracterizado como “um homem profundamente politizado”, que procurou criar um acontecimento composto por várias intervenções dos participantes convidados, “igualmente politizados”, com total liberdade para fazerem o que quisessem num “contexto onde a liberdade não existia”. Transformando-se num exercício para “desconstruir aquilo que limitava a liberdade”. A guerra colonial, presente metaforicamente na intervenção de António Aragão, era de entre os outros temas referentes às imposições da Ditadura um dos maiores interditos da sociedade portuguesa, sendo justificado por ser, no testemunho de Melo e Castro:

1º) uma nítida alusão à abundância e/ ou refastelamento na comida que se vivia em Portugal enquanto pessoas morriam; 2º) que grande parte dos jovens portugueses estavam a ser mortos de várias maneiras, não só fisicamente, mas também psiquicamente. O próprio Jorge Peixinho foi internado no Hospital militar como louco! Simplesmente simulou a loucura para ser dispensado! Eu não fui à guerra por causa da idade. Se o 25 de Abril não tivesse sido em 1974, na próxima incorporação, eu era chamado. Estava já preparado psiquicamente para não ir, mas, eu tinha família, tinha de me exilar com a família atrás, mas eu ia para o estrangeiro. Mas veio o 25 de Abril e a minha geração foi preservada, mas a geração 3 ou 4 anos mais nova que eu foi toda ainda, entre eles o Jorge Peixinho, que iria para a Guiné e só não foi porque simulou que estava louco para ser dispensado. Mas houve quem desse o chamado literal tiro no pé, houve moços que deram tiros em si próprios para não irem à guerra. Eu conheço um crítico que se auto-mutilou. Cortou um dedo. Não é brinquedo! Outros fugiram e nunca mais voltaram, por exemplo, o Silvestre Pestana apanhou um susto tão grande que foi para Paris, não se sentiu seguro em Paris, foi para Bruxelas, não se sentiu seguro em Bruxelas, foi para a Dinamarca, da Dinamarca foi para a Suécia e só se sentiu seguro na Suécia!11

 

(Re)sincronias históricas

Nas duas últimas décadas, têm surgido em Portugal vários projetos artísticos, do teatro às artes plásticas, onde estão presentes os temas da Ditadura, da Revolução, do colonialismo e do pós-colonialismo, de entre os quais se inscreve o tema dos “silêncios” da guerra. Estes projetos têm a particularidade de serem produzidos, na sua grande maioria, não pela geração que participou na guerra mas pelas gerações posteriores, as denominadas gerações da “pós-memória” (Hirsh, 2012). Estes projetos fazem uso de memórias de arquivo, usando cartas dos militares, registos fotográficos e de vídeo, recolhendo testemunhos documentais ou orais, que conjugam frequentemente com uma expressão performativa. Gera-se assim uma relação entre performatividade e memória histórica, fazendo uma religação entre performance social e performance artística. São exemplos, entre outros, os trabalhos de Joana Craveiro e André Amálio no teatro, mas também, outros artistas como Manuel Botelho, Filipa César, Vasco Araújo ou mesmo Ângela Ferreira, Paulo Mendes que, na primeira pessoa, ou usando intérpretes, reconstroem, recriam, re-imaginam uma história performatizada onde se justapõem elementos factuais e imaginários. Na dança, encontramos mesmo um projeto percursor, em 1995, na peça a Dança de Existir de Vera Mantero, onde a coreógrafa e intérprete refletiu sobre a guerra de ex-Jugoslávia ao mesmo tempo que incluiu uma composição sonora de testemunhos de ex-participantes na guerra colonial em África, que ouvira numa estação de rádio portuguesa.

Estes projetos têm a particularidade de não terem tido por base um arquivo histórico em torno dos percursores da performance, ao contrário do que terá acontecido, por exemplo, na performance americana, produzida pelos denominados Estudos de Performance (Richard Schechner, Marshall Carlson, Diana Taylor, Peggy Phelan, Philipe Auslander, entre outros). Na verdade, tal como aconteceu com os temas da pré e pós história revolucionária e da sua relação com a ditadura fascista, a performance arte portuguesa também não foi transmitida para as gerações futuras nem através da museologia, nem através da academia, pelo que, de algum modo, o ciclo atual de rememoração histórica em Portugal (Madeira, 2012, 2016a), que teve como alguns dos principais elementos despoletadores a crescente crise social em Portugal a partir de 2009, reforçada com a celebração recente, em 2014, dos 40 anos da Revolução de Abril e do início do processo de descolonização do império colonial português, tem levado ao ressurgimento de discursos sobre a memória ou contra-memória histórica.

A uma rememoração mais mediática, despoletada pelo efeito celebratório desses momentos inaugurais da democracia portuguesa, junta-se um repertório de crise que gera outro tipo de influências e memórias. As teorias da comunicação, como a teoria sociológica do campo, também denominada teoria empírica do campo ou dos “efeitos limitados”12, têm sublinhado, que a influência mediática, da comunicação de massas, é apenas uma parte da influência mais global que se encontra presente nas relacões comunitárias e na comunicação interpessoal. Esse repertório de crise acaba por trazer à memória colectiva contextos opressores. A influência ou contaminação do contexto atual por essas memórias faz-se pelo partilhar de um contexto amplo onde esses elementos possam estar latentes (Gumbrecht, 2010), como uma espécie de repertórios incorporados (Taylor, 2003) nas memórias difusas, nos gestos, atitudes, comportamentos, nas palavras usadas, portanto, também de forma indireta. Os estudos do trauma têm aliás reforçado essa ideia mostrando como ele é transmitido entre gerações diferentes, nomeadamente, no seio das famílias, e mesmo sem que dele se fale.

Essa intensa revisitação das memórias coletivas mais invisíveis da história, ou seja, de processos que procuram recuperar “histórias suprimidas que se localizam de formas particulares, a que alguns têm acesso de forma mais eficiente do que outros” (Foster,1999) abrange, pela primeira vez em sincronia, não só temporal mas também de conteúdos, quer as questões da memória histórica portuguesa, quer as questões de recuperação de linhagens artísticas mais performáticas, como a performance arte portuguesa.

De algum modo, acionando processos de contra-memória histórica estes artistas que fazem uso da performance e das memórias históricas procuram mostrar que os discursos dominantes, revelam tão só uma história específica que, como refere Michel Foucault no seu ensaio “The Historical a priori and the Archive” (1969), envolve uma forma de dispersão no tempo, um modo de sucessão, de estabilidade ou de reativação. Estes artistas, usam a performance para dar conta da arqueologia dos discursos, já que para analisar criticamente os discursos dominantes, como nos diz ainda Foucault, é preciso pôr em prática o “princípio da inversão”, ou seja, é preciso experimentar discernir as formas de exclusão, da limitação, da apropriação dos discursos, mostrar como se formaram, para responder a que necessidades, como se modificaram e se deslocaram, que força exerceram efetivamente, em que medida foram contornadas (Foucault, 1997).

 

Conclusão

O que faz a “performance artística” que trata o tema da guerra é recriar as histórias da História portuguesa. Nesse processo, não procura necessariamente a verdade factual e única, mas as verdades subjetivas, mesmo especulativas, onde se incluem as próprias “improbabilidades da comunicação”, contendo também os não ditos e os seus silêncios (Heinich, 2011; Thompson, 2011). O seu papel parece ser o de produzir uma “história performativa” ou uma “performance histórica” (Rokem, 2000), ou mesmo uma abordagem histórica filosófica e/ ou especulativa, no sentido de “uma história auto-consciente, produzida por autores que procuram justificar as suas particulares unidades de referência narrativas, a sua organização narrativa dos materiais históricos” (Fain, 1970: 233). Esta “reorganização” permite-lhes a transmissão intergeracional dessas histórias, produzindo interrelações entre diferentes temporalidades e gerações, através das próprias interelações de factos e imaginários, de géneros e disciplinas. Deste modo, estes projetos artísticos procuram fazer circular sentidos diversos da história, mesmo opostos, promovendo assim a reflexão, a resignificação e a “re-fusão” dos elementos da performance social (Alexander, 2006) dos portugueses, numa dinâmica que permita dar conta da complexidade da constituição das identidades sociais na atualidade, a partir das memórias que foram transmitidas do passado e daquelas que serão transmitidas para o futuro.

 

 

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Notas

1 Citado em Fain, 1970, pp. 9-10.
2 Expressão como refere Teixeira (2006, 145) utilizada mais tarde (1987) por Mário Vieira de Carvalho a propósito da praxis musical de Jorge Peixinho.
3 Descrição desenvolvida pelo próprio E.M de Melo e Castro num texto inédito cedido pelo próprio já em 2016.”
4 Ver nota anterior.
5 Veja-se o artigo de Francisco de Oliveira Teatro e Poder na Grécia (1983) e a tese de Brian Kibuuka Eurípedes e a Guerra do Peloponeso: Representações da guerra nas tragédias Hécuba, Suplicantes e Troianas (2012).
6 Mesmo que saibamos, como refere Steiner (2014 [1958], que a erudição alemã, e a sua leitura sentida dos clássicos, não preveniram a máquina de extermínio nazi.
7 Analisei esta questão no texto “A arte contra o silêncio: Relações entre arte e Guerra Colonial em Portugal”(2016b).
8 Veja-se Caruth (1996).
9 Veja-se Thompson (2011).
10 Entrevista efetuada por mim no dia 24 de Julho de 2016 em Lisboa.
11 Idem.
12 Ver análise de Mauro Wolf em Teorias da Comunicação (1991).

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