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Media & Jornalismo

versão impressa ISSN 1645-5681versão On-line ISSN 2183-5462

Media & Jornalismo vol.16 no.28 Lisboa jun. 2016

 

EDITORIAL

 

A Dimensão Laboratorial do Ensino do Jornalismo

 

 

Pedro CoelhoI

I UNL/FCSH/DCC, SIC TV. E-mail: pedrocoelho@sic.impresa.pt

 

 


 

 

A associação da Internet ao jornalismo mergulhou-nos no tempo do grande paradoxo.

É certo que a década de 80 do século passado permitiu que o mercado se apoderasse do jornalismo, convertendo-o, quase em absoluto, à sua lógica estruturadora. Nos anos que se seguiram à desregulamentação dos media no mundo ocidental, as estratégias comerciais associadas ao jornalismo, herdadas do século XIX, alcançaram um fôlego planetário: a transnacionalização dos impérios mediáticos, transnacionalizou a euforia do lucro. A rentabilidade financeira do jornalismo ofuscou a matriz: a necessidade de gerar lucro social.

É certo que esses anos da hiperconcentração dos media precisaram de um jornalismo dócil para que os efeitos da sociedade do lucro se impregnassem no tecido social. Mas o financiamento do jornalismo alimentou uma ambivalência efetiva que, sem deixar de aprisionar o jornalismo, também o libertou. Bill Kovach e Tom Rosenstiel falam num “acidente feliz” para retratarem os 200 anos em que o jornalismo, um bem público, foi financiado por uma atividade comercial, a publicidade (2010: 13). A história do jornalismo é também a história dessa ambivalência. Apesar dos tentáculos do mercado, houve longos momentos de qualidade jornalística, financiada por esse mesmo mercado.

A associação do jornalismo às novas tecnologias abriu brechas na base. O jornalismo não está a conseguir gerar receitas financeiras que assegurem a autonomia do campo, promotora da rentabilidade social que lhe está na génese. Se o jornalismo vinha sendo ameaçado pelo mercado, as novas tecnologias ampliaram o grau dessa ameaça.

A ironia da história está, todavia, no potencial de reconstrução do jornalismo que as novas tecnologias transportam. A integração do público no processo de produção da notícia permite atingir, finalmente, o ideal de Carey: a amplificação da possibilidade de diálogo que a sociedade tem com ela própria (1997: 247); o jornalismo, filtro e motor da comunicação, existe, afinal, para servir o público.

O nosso tempo mostra-nos um jornalismo a lutar pela sobrevivência. O caso português é especialmente paradigmático. O mercado dos media, dominado por quatro grupos privados e um público, vive momentos de agonia. Por um lado, o grupo RTP, terminada a subvenção estatal, vê-se forçado a viver, exclusivamente, da publicidade (limitada) na televisão e da contribuição para o audiovisual, por outro, os quatro grupos privados estão condicionados pela quebra continuada de receitas publicitárias e pelo vazio de alternativas de financiamento. Ao contrário do que observamos, por exemplo nos Estados Unidos da América, onde a sociedade civil, através de fundações, participa na reconstrução do jornalismo, suportando projetos não lucrativos, mas de elevada rentabilidade social, em Portugal, o mercado exíguo depende dele próprio. Assistimos, pois, ao definhamento da imprensa em papel, sem que os sucedâneos digitais conquistem o peso e a influência que as marcas chegaram a ter na versão impressa. E esse definhamento jornalístico vai-se assenhorando das restantes plataformas. A informação televisiva generalista, prosseguindo o processo de perda de audiências para os canais de cabo, vai reforçando as estratégias discursivas associadas ao entretenimento; a informação no cabo substitui a reportagem pelos frente a frente de opiniões opostas, que preenchem tempo de antena e roubam espaço ao jornalismo; as rádios continuam o trajeto em direção à irrelevância jornalística; a internet, ao contrário do que já vamos assistindo noutras geografias investe num jornalismo de corta e cola, feito à custa dos conteúdos produzidos para as plataformas clássicas e, escassas vezes, aproximando-se do lugar da notícia.

Um jornalismo aprisionado alimenta uma sociedade dócil, ordeira, conformada.

As zonas de resistência que perscrutamos do lado da cidadania e do jornalismo, e a que fazemos referência no primeiro artigo desta sequência, constituem a base de reconstrução do jornalismo. Mas esse longo e exigente processo requer uma base de acolhimento que sistematize as etapas e as promova. Que melhor lugar para sediar essa base senão na academia, nos cursos de jornalismo, um pouco por todo o mundo classifcadosi como as principais fontes formadoras da mão-de-obra?

Sem perderem as marcas identitárias que os moldam, academia e jornalismo, devem, todavia, aprofundar os laços, envolvendo-se numa “aliança estratégica” que, como escrevemos no citado primeiro artigo desta revista, permita ao jornalismo “ultrapassar os constrangimentos criados pelo dilema que o perpassa: servir o púbico, a democracia e o mercado”, encontrando forma de se tornar “social e financeiramente sustentável”.

A dimensão deste desafio é de tal ordem que pressupõe a reconfiguração do próprio modelo de formação. Por um lado, atribuindo à comunicação a missão de articular os saberes diversos que participam na formação do jornalista, por outro, reforçando a dimensão reflexiva da variante profissional, articulando teoria e prática jornalísticas e fazendo dessa articulação a matriz do modelo formativo. Tal pressupõe que o ensino do jornalismo não fique refém das plataformas tecnológicas de distribuição, mas sim do jornalismo, dos géneros jornalísticos, sobretudo da reportagem. Os programas académicos jamais conseguirão acompanhar a evolução tecnológica. O jornalismo e os valores que o enquadram são perenes. Ora, é a proteção dessa perenidade que os programas de formação devem afirmar.

Esta revista reflete sobre o lugar da academia e dos cursos de jornalismo na salvaguarda dos valores do jornalismo num ambiente dominado pelo mercado, atravessado pelo efeito amplificador das novas tecnologias digitais. Os diversos artigos definem os contornos de um novo lugar para os cursos de jornalismo/comunicação, que os torne verdadeiramente participantes no urgente processo de reconstrução do jornalismo, e refletem, igualmente, sobre o lugar da tecnologia no interior dos planos de estudo.

Os sinais de que o novo ambiente digital está a impor-se, nos diversos planos de formação, como um elemento externo ao jornalismo, no sentido em que nos fala Betty Medgser, que, ao invés de o valorizar, o absorve, controlando conteúdos e os próprios valores que o moldam (2000: 202), são identificados e questionados.

Num sobrevoo que faz aos programas das unidades curriculares, associadas ao jornalismo radiofónico, que identifica nos diversos cursos de jornalismo/comunicação, Luís Bonixe deteta aquilo que poderíamos classificar como o alheamento dos docentes responsáveis, relativamente às grandes questões do multimédia: “as questões relacionadas com a presença da rádio na Internet ou são ignoradas ou referidas de uma forma muito reduzida”. Ora esta ausência de uma “discussão aprofundada” menos se explica quando, como reconhece o autor, o digital está a mergulhar a rádio numa “fase de mudança e transição”, que “interfere com os seus tradicionais modos de produção, distribuição, rotinas e cultura profissional”.

Se os programas valorizam, como salienta Bonixe, mais o fazer do que o saber fazer, o autor não deteta, sequer, nessa valorização da componente prática, uma associação a modos de produção multimédia.

As opções formativas identificadas pelo autor, ao mesmo tempo que dissociam a componente prática da reflexiva, ameaçando promover um grau de abstração prática onde se corre o risco de transformar a sala de aula numa antecâmara da redação, subalternizam a componente digital. A conclusão do autor surge, por isso, em forma de apelo:

“Seria, pois, de esperar que os programas fossem mais além nesta matéria, suscitando o debate, a reflexão e a crítica junto dos estudantes, despertando-os para uma realidade que irão encontrar no ambiente profissional.”

O artigo de Galvão Júnior resulta de uma análise mais fina, fruto da observação direta do autor do desempenho de alunos e docentes ao longo de um semestre letivo em unidades curriculares em Portugal e no Brasil. Galvão estabelece uma comparação entre a aplicação dos programas de estudo de jornalismo radiofónico na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP) e no Departamento de Ciências de Comunicação da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (DCC/FCSH/UNL).

Se o exemplo brasileiro introduz uma dimensão laboratorial que confere elevada visibilidade aos trabalhos dos alunos e onde é possível identificar a articulação permanente entre as dimensões teórica e prática, discernível na forma como os alunos concretizam os conteúdos jornalísticos em ambiente laboratorial, a unidade curricular de Ateliê de Jornalismo radiofónico na FCSH está condicionada pela ausência dessa dimensão laboratorial. Na observação direta e continuada, o autor regista, todavia, sinais da existência de uma articulação entre ação e reflexão, visível nos trabalhos concretizados pelos alunos. Esses trabalhos, afirma, “possibilitaram aos alunos não somente uma vivência prática, mas um aprendizado reflexivo real”.

Se, numa observação macro, Luís Bonixe detetava escassos sinais de articulação entre teoria e prática nos programas das unidades curriculares de jornalismo radiofónico dos diversos projetos formativos em Portugal, na observação direta que fez, Galvão Júnior registou-a, no caso português que analisou. A esse nível não existirão, aliás, grandes diferenças com a realidade que o autor identificou no Brasil:

“O cuidado com a formação proporcionada nas salas de aula e laboratórios vai além das tecnologias, assim como o Jornalismo vai além da Rádio. Tal desígnio, observado nos estudos de caso realizados em Portugal e no Brasil, desvela uma intenção comum às disciplinas Atelier de Jornalismo Radiofónico, Radiojornalismo e Projetos em Rádio: o não provimento de meras habilidades instrumentais, mas a capacitação de profissionais aptos a compreender de forma reflexiva tudo aquilo que envolve o exercício pleno do Jornalismo”.

Se o programa português subalterniza, como, aliás, salientava Luís Bonixe na análise macro, a componente multimédia, quer ao nível da ação, quer da reflexão, o programa da USP valoriza-a plenamente. Galvão Júnior salienta, exatamente, que o “uso intensivo do ambiente digital” permite aos alunos brasileiros a “aproximação à realidade” multimédia que caracteriza a ação jornalística na rádio brasileira. A visibilidade que a USP confere aos trabalhos dos alunos, encontrando “reverberação entre públicos diversos ao serem exibidos pela Rádio USP FM”, é outro dos elementos distintivos da experiência brasileira, alcançado, principalmente, pela dimensão laboratorial associada ao ensino do jornalismo no Brasil. Em 2004, Carlos Chaparro caracterizava, de forma clara, essa dimensão laboratorial:

“Ter bons laboratórios constitui uma peça importante não apenas para aprender a fazer, mas também para aprender a pensar, no sentido em que constroem um espaço para o qual pode convergir a integração das várias vertentes do saber (...) Os laboratórios são a espinha dorsal do curso” (101, 103).

A dimensão laboratorial do ensino do jornalismo é destacada e caracterizada por Paulo Nuno Vicente. Guiado por essa componente, transversal ao plano de estudos, o autor prepara já o próximo lugar da formação académica na área. Um lugar de pontes, de “diálogos produtivos”, de alianças estratégicas, como as que prefiguramos no primeiro artigo desta sequência, “com outras culturas criativas”. Esta abertura da academia concretiza-se, neste olhar de Paulo Nuno Vicente, através da criação de um novo “ecossistema” a envolver a academia, que a dote de “laboratórios experimentais”, onde seja possível criar instrumentos (“start-ups de raiz universitária”) que desempenhem um papel verdadeiramente distintivo na sociedade civil.

No artigo onde defendemos a integração da temática da proximidade nos planos de estudo, sublinhamos, exatamente, esse reposicionamento da academia, colocando-a no epicentro do espaço público, formando novos jornalistas que reconfigurem a ação jornalística praticada fora dos grandes centros, libertando-a dos efeitos do “paroquialismo”, que habitualmente caracteriza as comunidades de proximidade.

Integrando a componente da proximidade nos planos de estudo, estes devem “transformar-se num agente de desenvolvimento”, que, em plena articulação com as comunidades de acolhimento, ajudem a criar projetos jornalísticos que, de facto, participem na reconstrução do espaço público, promovendo “a discussão, a troca de ideias”, questionando “as elites, integrando no debate as opiniões dos agentes sociais que, habitualmente, são excluídos dos processos de decisão.”

Uma vez mais, o novo ambiente tecnológico deve valorizar a estruturação desses novos projetos jornalísticos.

A tecnologia, enquanto complemento do jornalismo, é, igualmente, o modelo estruturador do artigo de Carlos Canelas, Jorge Ferras de Abreu e Jacinto Godinho. Os autores salientam a necessidade de os cursos de jornalismo assumirem um compromisso com a ação tecnológica, de forma a que os alunos a interiorizem “como algo natural” em todas as plataformas.

Os autores discorrem sobre a ação específica em televisão, defendendo a integração da edição de imagem nos programas de estudo. Como reconhecem, “montar em vídeo” afirma-se, cada vez mais, como um “pré-requisito” para que o jornalista de televisão exerça a sua atividade profissional, revelando-se, mesmo, “uma mais-valia na hora da contratação.”

Esta integração, nos moldes defendidos pelos autores, da componente tecnológica no processo produtivo, como elemento interno e não externo ao jornalismo, evitando os riscos atrás enunciados por Betty Medgser, exige o envolvimento dos docentes nesse processo de aquisição de conhecimentos. Não está, pois, em causa a simples aquisição de conhecimentos técnicos. Para Canelas, Abreu e Godinho, a edição de imagem de uma reportagem televisiva é sobretudo “um processo criativo”, contribuindo, decisivamente, “para melhorar o ato de se contar estórias”.

As grandes questões que serviram de base à estruturação deste número são de novo retomadas na última parte:

—a necessidade de preencher o fosso entre jornalismo e academia;
—a afirmação de uma aliança estratégica entre as duas entidades;
—a valorização da componente laboratorial da academia (cursos de jornalismo), testando novas formas de articulação entre reflexão e ação jornalísticas;

Convocámos para o debate quatro dos mais destacados agentes da academia e do jornalismo, representando os três posicionamentos distintos que moldam a formação académica: a visão do académico; do jornalista-académico; e a do jornalista:

— Adriano Duarte Rodrigues, fundador dos estudos de comunicação em Portugal, defende “uma colaboração clara e proveitosa” entre academia e mundo profissional, mas “tanto mais proveitosa, quanto mais respeitadora da autonomia das duas esferas”;

— Adelino Gomes e Joaquim Fidalgo, ambos jornalistas-académicos, ambos conscientes do papel da academia na formação dos jornalistas e da necessidade de aproximar duas entidades – jornalismo e academia – que desenharam a sua matriz em paralelo;

— Carlos Rico, antigo subdiretor da SIC, grande repórter da estação, ansiando fazer dos cursos de jornalismo um prolongamento da profissão, ou uma antecâmara indiscreta que antecipe, na sala de aula, cenários e rotinas do quotidiano profissional.

No último tópico apresentamos sete experiências académicas de fronteira: se, por um lado, tentam recriar, quase fielmente, as rotinas produtivas da redação, por outro ensaiam a dimensão laboratorial desenvolvida nesta revista, onde são testados modelos, onde existe espaço para o erro, para a discussão e para a reconstrução. Os cursos de jornalismo são, afinal, o lugar onde todas as experiências são possíveis... e desejáveis.

 

 

Bibliografia

KOVACH, Bill e ROSENSTIEL, Tom, 2010, Blur, how to know what's true in the age of information overload, New York, Bloomsbury.         [ Links ]

MEDSGER, Betty, 2000, “Visions of mass media education”, in Dickson, Tom, Mass media education in transition, preparing for the 21st Century, New Jersey, Lawrence Erlbaum Associates, Publishers, 200-203.         [ Links ]

MUNSON, Eve Stryker e WARREN, Catherine A. (org.), 1997, James Carey, a critical reader, University of Minnesota Press.         [ Links ]

PINTO Manuel et al, 2004, “Debater a formação em jornalismo é debater o próprio jornalismo, entrevista com o professor Manuel Chaparro”, n.º 5 (“O Ensino do Jornalismo, Revista Comunicação e Sociedade”), 95-107.         [ Links ]

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