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Comunicação e Sociedade

versão impressa ISSN 1645-2089versão On-line ISSN 2183-3575

Comunicação e Sociedade vol.38  Braga dez. 2020

https://doi.org/10.17231/comsoc.38(2020).2596 

VARIA

A despesa improdutiva e a mercadoria espetacular

Unproductive expenditure and spectacular merchandise

 

Vincenzo Susca

https://orcid.org/0000-0002-5489-6514

Lersem - Laboratoire d’études et de recherches en Sociologie et en Ethnologie de Montpellier, Institut de Recherche en Sociologie et Anthropologie, Université Paul-Valéry Montpellier, França

 

RESUMO

Para apreender corretamente o espírito de nosso tempo, é necessário analisar em profundidade e na superfície a correspondência contemporânea entre o espetáculo e o consumo: consumo espetacular e espetáculo de consumo. A cadeia das mercadorias-signos (Baudrillard, 1968), meio e veículo de adesão ao sistema produtivo e político, assume um valor extraordinário a partir do momento em que acolhe tudo o que é não-racional numa sociedade racionalizada, bem como o aspeto anti-utilitarista de um social focado, precisamente, na lógica do utilitarismo. Nesse sentido, o ciclo dos consumos espetaculares coincide com o consumo da individualidade burguesa, enquanto a massa que se tornou público se torna a matriz na qual o sujeito se perde para amortecer o peso das mudanças e exprimir as pulsões marginalizadas pelo sistema social.

Palavras-chave: espetáculo; imaginário; consumo

 

ABSTRACT

In order to fully grasp the spirit of our times, we need to analyse fully the contemporary relationship between spectacle and consumption: spectacular consumption and the spectacle of consumption. The chain of sign merchandise (Baudrillard, 1968) is simultaneously a mean and a vehicle of adherence to the productive and political system. It takes on extraordinary value from the moment it welcomes all that is non-rational in a rationalised society, as well as it embodies the anti-utilitarian aspect of a social system based solely on the logic of utilitarianism. In this sense, the cycle of spectacular consumption coincides with the consumption of bourgeois individuality, while the mass that has become public becomes the matrix in which the subject loses itself and cushions the weight of change in a way to express the impulses marginalized by the social system.

Keywords. spectacle; imaginary; consumption

 

A mercadoria espectacular

O espetáculo apresenta-se ao citadino como uma distração da alienação para a qual é forçado a produzir mercadorias; no entanto, é somente a partir do momento em que se vincula à atividade produtiva e às suas exigências que ele consegue uma ligação perfeita entre tempo de trabalho e lazer, o segundo a tornar-se a linfa vital do primeiro. Quando uma tal rede de correspondências recíprocas é instaurada, todo o espetáculo é mercantilizado e toda a mercadoria é espetacularizada. O valor de uso ou de troca do objeto perde a centralidade e torna-se o apanágio do valor simbólico e, mais exatamente, em virtude da possibilidade de encenar, por meio de diferentes ferramentas ou ecrãs, a natureza do corpo social, dos seus relacionamentos, dos seus sonhos e até das suas alucinações. É por essa razão que o cinema representa o momento fundamental em que se realiza a confusão entre mercadoria e espetáculo, a primeira a tornar-se o objeto do segundo e vice-versa, mas acima de tudo, os dois a funcionar como os recipientes de um conteúdo social: o público.

A história da indústria cultural sobrepõe-se assim à história, a partir do momento em que o corpo social encontra no binómio consumo-espetáculo o eixo sobre o qual orientar o estar-juntos, para além dos imperativos promovidos pela ordem instituída. Os turbilhões de comunicação que a fantasmagoria da mercadoria espetacular inaugura, se, por um lado, fazem com que o citadino se distraia da condição alienada na qual se encontra e para a qual é, porém, forçado, por outro lado, confortam os espíritos mais baixos, materiais-corporais (Bakhtine, 1965/1998), portanto, antissociais, das massas, tecendo novas redes de solidariedade horizontal entre os grupos sociais e relativizando os valores em que o sistema encontra a sua base. E o primeiro de entre todos, é o princípio de utilidade.

O que acreditamos ser possível, pelo menos em princípio, é que se torne funcional a dimensão do espetáculo e do consumo que a utilidade promove, na ordem produtiva e nas suas exigências económicas, políticas e morais; mais ainda, esse campo deve permanecer uma referência constante do valor do trabalho e das suas necessidades, permanecendo uma espécie de parêntese que remete sempre para Prometeu. Toda a energia social deve tender e ser projetada para esse objetivo e suas razões. Como verificamos, é por essa razão que o cinema se apresenta como “arte de fábrica” (Abruzzese, 1973/2001). De acordo com essa mesma lógica, o público da indústria cultural é prefigurado no cenário das grandes exposições universais, lá onde as massas são chamadas a virar-se com espanto e admiração para os prodígios da técnica, isto é, do seu trabalho alienado.

É nesta base que se nutre o fetichismo da mercadoria, dirigido, em última instância e em múltiplos aspetos, ao corpo do seu produtor, àquele que constitui a sua fonte. Acabamos, assim, mais ou menos diretamente, a adorar o que fazemos. Nesse sentido, as redes sociais – através das quais acabamos por adorar o que somos – são apenas a realização de um longo processo destinado a tornar o usuário no verdadeiro fetiche do ambiente social. Esta história representa constantemente, ontem como hoje, um elemento contraditório, perigoso para a ordem que o gera. Se é verdade que a cadeia da mercadoria fortalece a indústria a que preside, as suas fantasmagorias, em particular a partir do momento em que se ligam aos dispositivos oníricos do espetáculo, desencadeiam ao mesmo tempo desejos e necessidades nos quais a felicidade do corpo social tende a transcender as fronteiras da fábrica, a projetar-se em mundos imaginários em que todo o objeto não é mais uma referência ao seu valor mercantil, mas uma emoção, no corpo que o interioriza e integra. No entanto, a própria origem da sua superação está inscrita na indústria cultural e na sociedade de consumo. Apesar disso, aqueles que tratam de promover a estrutura político-produtiva aproveitam-se arduamente do mito produtivista, censurando os prazeres dissolvidos aos quais os excessos espetaculares dão acesso. A tal ponto que

qualquer juízo geral sobre a atividade social subentende o princípio de que todo o esforço particular deve ser redutível, para ser válido, às necessidades fundamentais da produção e da conservação. O prazer, quer se trate de arte, de deboche admitido ou de jogo, é reduzido, nas representações intelectuais que estão em vigor, a uma concessão, isto é, a um abandono, cujo papel seria subsidiário. A parte mais apreciável da vida é dada como a condição – e até mesmo como a condição lamentável – da atividade social produtiva. (Bataille, 1949/2003, p. 26)

O trabalho e a razão devem, de fato, ser os fundamentos de um estar-juntos, inscrito no quadro de um projeto abstrato baseado na produção e no sacrifício, tendo a sua projeção no futuro e o seu substrato identitário numa ideologia. A cadeia dos objetos produzidos serve para estabelecer relações entre “indivíduos”, numa referência contínua a princípios que os transcendem: o contrato social, a ordem político-produtiva das nações, a sociedade perfeita… Dessa forma, a potencialidade do social, que consiste em fazer corpo e em descobrir-se como um corpo comum, bem como as pulsões que o habitam e que constituem o seu imaginário profundo, ficam entorpecidas e sempre mantidas à distância desejada. Com a concretização da modernidade, fica assim inaugurada, como grande novidade histórica, uma maneira de nos relacionarmos com os objetos e as pessoas, uma maneira racionalizada, utilitarista e projetada em direção a uma finalidade superior, comparativamente com o “habitar” do corpo social.

Nas economias e nos direitos que precederam os nossos, quase nunca observamos simples trocas de bens, de riquezas e de produtos no curso de uma transação feita entre indivíduos. Primeiro, não são indivíduos, mas comunidades que se obrigam mutuamente, que trocam e contratam. (…) Além disso, o que eles trocam não são exclusivamente bens e riquezas (…). São antes de mais cortesias, festins, rituais, prestações militares, mulheres, crianças, danças, festas, feiras, relativamente aos quais o mercado constitui apenas um dos termos de um contrato muito mais geral e muito mais permanente. (Mauss, 1934/2004, pp. 150-151)

A troca de bens, no contexto ocidental, torna-se o meio e o fim para obter uma máquina capaz de separar indivíduos, para uni-los apenas quando usados na perpetuação da estrutura. As danças, os espetáculos, as feiras e todas essas instituições que, na era pré-moderna, reforçavam o estar-juntos de um corpo social (Durkheim, 1912/2005), são relativizadas e dobradas para serem colocados ao serviço da marcha triunfal da razão e do progresso. Todos os discursos proferidos pelo sistema político e pelos seus funcionários tendem a nomear e, portanto, a construir uma realidade social em conformidade com um critério de equilíbrio e de utilidade, que faz abstração de qualquer desperdício, não atividade ou excesso, que possam prejudicar as instituições político-produtivas. Trata-se de instintos que sempre constituíram a maneira pela qual o corpo social se fundiu e, através do transe, da festa ou do desperdício, deu vida a esse vai e vem entre si e o outro (a divindade, a natureza, o estrangeiro).

O núcleo duro da cultura moderna domina esses instintos de base, funde a sua própria moral nesta dominação e, através do exercício de seu poder/saber, constrói discursos, estigmatizando todo o desperdício improdutivo. Por outro lado,

é verdade que a experiência pessoal, se se tratar de um homem jovem, capaz de desperdiçar e de destruir sem razão, desmente uma vez e outra essa conceção miserável. Mas, assim como ele esbanja e destrói sem prestar a mínima atenção a isso, o mais lúcido ignora o porquê, ou imagina-se doente; é incapaz de justificar de forma utilitária a sua conduta e não lhe ocorre a ideia de que uma sociedade humana possa ter um interesse, tal como ele próprio, nas perdas consideráveis, nas catástrofes que provocam, de acordo com necessidades definidas, depressões tumultuadas, crises de ansiedade e, em última análise, um certo estado orgiástico. (Bataille, 1949/2003, p. 26)

A indústria cultural serve para ligar as pulsões das massas que vão além da ordem burguesa ao nível do seu sistema produtivo e moral, permitindo ao social viver certas paixões potencialmente desenfreadas com moderação, e mesmo com comedimento, simulando uma despesa impossível de experimentar concretamente, porque dotada de uma alma destrutiva em relação aos textos e contextos da vida moderna.

É provável que o Partido tenha incentivado a prostituição como uma válvula de segurança para instintos que são impossíveis de reprimir completamente. Um pouco de deboche não significa grande coisa, desde que seja praticado em segredo e sem alegria. (Orwell, 2008, p. 70)

 

A multidão torna-se medium

O amontoado das massas nas metrópoles, a intensificação dos fluxos de comunicação e dos corpos – em particular na dimensão noturna e fora do trabalho – desencadearam práticas que tendem a relativizar os imperativos categóricos, a desarticular o sistema utilitário e com ele a espinha dorsal da ordem política. Sempre que esses agrupamentos acontecem, o imaginário enche-se de figuras que aludem constantemente ao desperdício, à dissolução, à morte ou a qualquer ato que carrega consigo a sabotagem do sistema. É assim que proliferam as lendas metropolitanas que tecem o elogio dos grandes delinquentes e das prostitutas, aumentando o fascínio e o medo ao estrangeiro, bem como o desejo de sair de si para perder-se em algo maior que o eu.

A partir do momento em que o estilo de vida metropolitano, bem como a sua extensão nos territórios do imaginário coletivo, geram efervescências urbanas e eletrónicas, que fazem vibrar as massas, cobrindo com emoções a moral instituída e as suas economias, quando a indústria cultural assume o desafio de cristalizar os agentes do imaginário noturno, o indivíduo que, segundo Bataille (1949/2003), não era capaz de imaginar uma ordem que não fosse utilitária e racionalista, começa a desvendar todas as potencialidades imanentes ao seu ser-aí, na massa. A fantasmagoria da mercadoria espetacular consegue, assim, por um lado, acompanhar os sonhos do indivíduo, projetando-o para além da gaiola identitária em que está preso e, por outro lado, confere um novo esplendor, uma outra vida, para além da economia, à cadeia dos objetos industriais. Era necessário dotar os objetos produzidos pela fábrica com uma aura capaz de acolher o corpo das massas, de ativar nele um jogo de trocas, de excitações apaixonadas e de nostalgias.

Somente a dimensão do espetáculo tornará possível essa conjunção. A multidão torna-se, assim, o medium (Rafele, 2010) para o qual todos os objetos e imagens devem remeter. Estes têm a missão de transmitir uma ordem simbólica mais completa e densa, em comparação com aquela que está em vigor nas fábricas, onde o indivíduo prevalece sobre a massa. É essa passagem delicada que lhe permite aceder a uma subjetividade diferente, a partir da qual o pivô da estrutura político-social vê as suas bases modificadas. Quando o deambulador, ou o desiludido entra na massa e desfruta da sua plenitude emocional (Benjamin, 1989/2006), toda a ordem do Leviatã é relativizada (Marramao, 2000) pela subjetividade que deveria submeter-se, de maneira ordenada, à sua própria representação. O indivíduo deixa de estar isolado, o contrato social que o une aos outros, apenas na medida em que se projetam juntos na transcendência do corpo soberano, é substituído por um contágio afetivo, que prevalece sobre tudo e sobre o “todo”.

O deambulador encontra-se no limite, tanto da metrópole como da burguesia. Nenhum dos dois venceu por enquanto; ele não se sente à vontade, nem numa nem noutra e refugia-se na multidão. (…) A multidão é o véu através do qual a cidade bem conhecida aparece para o deambulador como uma fantasmagoria. Nesta fantasmagoria, a cidade é às vezes paisagem e às vezes quarto. (Benjamin 1955/2000, p. 155)

O ciclo dos consumos espetaculares coincide com a consumação da individualidade burguesa, enquanto que a massa que se fez público se torna a matriz em que o sujeito se perde para absorver o peso das mudanças e expressar as pulsões marginalizadas pelo sistema social. Se é verdade que a mercadoria espetacular se torna a sublimação da mercadoria, não podemos ignorar o corolário de um deslize tão radical: o deslocamento de planos que canalizam a energia societal em direção a ilusões desencadeadas pelas imagens e pelos objetos, em vez de se refletir na catedral da fábrica ou da câmara. Quando Debord (1988) escreve perspicazmente que “o humanismo da mercadoria assume ‘os prazeres e a humanidade’ do trabalhador, simplesmente porque a economia política pode e deve agora dominar essas esferas enquanto economia política” (p. 71), esquece-se de acrescentar que “o humanismo da mercadoria” não segue apenas o sentido do sistema social, pelo contrário, torna-se capaz de mover novas peregrinações iniciáticas por parte das massas, justamente porque lhes dá, embora na forma de uma simples ilusão, a possibilidade de viver uma experiência diferente da dos sistemas sociais estabelecidos. Dá vontade de ter férias, de ter estremecimentos apaixonados e sonhos, que não sejam redutíveis aos fins políticos e produtivos instituídos. Que sociedade, aliás, não ficaria abalada e sacudida em profundidade pela proliferação de “ilusões”?

Apesar da propagação mais inflexível e sistemática de imagens e mensagens vindas de cima, nenhum paradigma social, mesmo totalitário, conseguiu alguma vez impor um sentido privilegiado a tais alucinações, prazeres e desvios simbólicos. O consumo e o espetáculo, portanto, servem o sistema apenas na medida em que sustentam a sua ordem económica, enquanto que, no que se refere ao imaginário, tendem a constituir uma subjetividade, uma placenta intangível e idiossincrática em relação à moral instituída. Aqui, a massa, com a sua fragmentação em tribos, redes ou grupos, prevalece sobre o indivíduo, a potência sobre o poder, a ética da estética sobre a ideologia, a despesa improdutiva sobre o utilitarismo controlado (Joron, 2009). Por outro lado, o homo œconomicus é tanto uma novidade na história quanto um sujeito ideal-típico, antes mesmo de se tornar efetivo. De acordo com Mauss, com efeito,

são as nossas sociedades do Ocidente que, muito recentemente, fizeram do homem um “animal económico”. Mas ainda não somos todos seres dessa índole. Nas nossas massas e nas nossas elites, a despesa pura e irracional é uma prática comum; ainda é característica de alguns dos fósseis da nossa nobreza. O homo œconomicus não está atrás de nós, está diante de nós; tal como o homem da moral e do dever; tal como o homem da ciência e da razão. Durante muito tempo, o homem tem sido outra coisa; e é desde há bem pouco tempo que é uma máquina, dotado, para além disto, de uma máquina de calcular. Aliás, felizmente, ainda andamos afastados deste cálculo utilitário constante e glacial. (Mauss, 1934/2004, p. 271)

O advento da indústria cultural coincide com o rompimento, nas profundezas da vida coletiva, da adesão à ordem de valores da sociedade baseada no leitmotiv do progresso, do utilitarismo e da razão abstrata. A devassidão que escapa dos recantos mais sombrios da metrópole faz corpo com a massificação da sociedade e torna-se, de certo modo, o seu incipit, o seu fio condutor secreto. As emoções descontroladas, os espetáculos, as alucinações e as fantasmagorias tornam-se o pão quotidiano das massas (Auclair, 1970), a ponto de levar os sistemas sociais a transigir ou a tentar manipulá-las. Aliás, é interessante verificar os diferentes caminhos adotados pelos Estados Unidos e pela Europa: enquanto, no primeiro caso, o discurso da mercadoria e do espetáculo se torna a mediação e o motor do relacionamento entre o público e os poderes, no segundo caso, é diretamente o político – nas suas versões totalitárias – que incorpora, da maneira mais exacerbada, o princípio do espetáculo e da sua emotividade. Se, nos Estados Unidos, o discurso da mercadoria se torna o elo, embora precário, entre massa e política, na Itália, na Alemanha e na ex-União Soviética, a política refreia a necessidade de extravasamento emocional e de banho imaginário, sentida pela massa, que se tornou público. Assim como a mercadoria na América, o político na Europa transforma-se, deste modo, no fetiche em que descobrimos a natureza monstruosa das massas. Aqui é inútil insistir nas razões desse investimento e nos efeitos que ele causa, já que seria mais pertinente, no contexto de nosso discurso, mostrar como, num caso como no outro, o surgimento das massas coincide com a manifestação trágica de sacrifícios, consumações e destruições de estruturas preexistentes. O humanismo da mercadoria espetacular sairá vitorioso apenas porque é o mais apto a corresponder à natureza do corpo social e ao seu imaginário lúdico e festivo, às suas indispensáveis fantasias, sempre traídas por regimes políticos focados nas ideologias históricas. Além disso, o espetáculo da mercadoria e a mercadoria do espetáculo estão intimamente ligados, de um ponto de vista proxémico e enfático, ao espaço-tempo da vida quotidiana. Deixam-se absorver pelo seu ventre, ao mesmo tempo que os absorvem no seu próprio ventre.

Na esteira da mudança de paradigma, imposta pela sociedade espetacular, a partir da segunda metade do século XX, o princípio de realidade no qual os sistemas sociais se baseavam é sacudido e abalado, apesar das intenções dos seus produtores. A lógica da consumação espetacular, baseada na preponderância do imaginário, das ilusões e de um prazer irrestrito, manifesta-se como sendo sempre menos controlável no âmbito dos esquemas que pretendem prescrever-lhe uma ordem. “O consumidor real torna-se consumidor de ilusões. A mercadoria é essa ilusão efetivamente real, e o espetáculo é a sua manifestação geral” (Debord, 1988, p. 72).

 

Distorção e convalescença

O dispositivo espetacular intensifica a faculdade imaginativa do público e difunde interpretações, sonhos e experiências da realidade que corroem o pedestal monolítico sobre o qual a nossa civilização foi construída. A disseminação de imagens e distrações não pode cingir-se ao interior do arcabouço intencional dos produtores, pois, por um lado, o consumo está sempre localizado socialmente e, por outro, a bacia semântica em que a transfiguração do real acontece é o corpo sonhador das massas. Produz-se, assim, um processo de enfraquecimento do “ser”, que desfaz a identidade e os processos de identificação prefigurados pelo sistema para se manter, e que desvenda todos os seus limites, bem como a sua artificialidade. Assim, a realização do sistema tecnológico – circulação e reprodução de objetos, de imagens e de espetáculos – traz consigo a realização e o princípio da dissolução da metafísica.

Com efeito, de acordo com Martin Heidegger, a imposição do mundo da tecnologia moderna, o Ge-stell, não é apenas o momento em que a metafísica atinge o seu auge, mas também, e por essa mesma razão, “uma primeira centelha do Ereignis” (Vattimo, 1987, p. 180). Isso significa que existe algo que é intrínseco ao mundo da técnica, qualquer coisa que lhe escapa, que não é apenas “técnico”. É somente através de uma Verwindung do Ge-stell, que é inaugurada a possibilidade de um Ereignis (acontecimento, apropriação). O primeiro termo refere-se a uma aceitação trágica, que também é em si mesma superação, distorção e convalescença. É essa, segundo Vattimo (1987), a essência da pós-modernidade filosófica: a dissolução da modernidade, da sua técnica e da sua metafísica, coincide, assim, com a radicalização das tendências que a constituem desde a origem. A partir do momento em que os sistemas político-económicos deslocam o desafio do plano da ordem simbólica das mercadorias e dos espetáculos, empurrando a aliança desses elementos para a confirmação da sua própria ordem, eles expõem-se também à sua própria distorção, uma vez que defender um imaginário coletivo excitado no corpo a corpo dos consumos e das distrações se torna cada vez mais árduo.

Neste domínio, a possibilidade de colocar em discurso (Foucault, 1976) as substâncias mais obscuras, destrutivas e voluptuosas, apresenta-se como um empreendimento penoso, embora constantemente perseguido pela ordem produtiva e pelo saber/ poder científico. A ação societal abandonada à matriz do consumo espetacular é, em si, portadora de uma cadeia de jogos linguísticos, de interpretações, de distorções e de destruições criativas, que corroem os fundamentos dos sistemas sociais, substituindo-os por pequenas mitologias, por sacralizações do que é profano na origem, por universos de sentidos constituídos por micronarrativas, tribais ou locais, por tudo o que leva a uma reapropriação-distorção da técnica, a uma desrealização do real (Vattimo, 1987). É assim que o “mundo real”, a “história de um erro”, “acaba por se tornar numa fábula”.

O mundo real, acessível ao homem sábio, piedoso e virtuoso – ele vive nele, ele é este mundo.

O mundo real, inacessível agora, mas prometido ao homem sábio, piedoso e virtuoso (ao “pecador que faz penitência”).

O mundo real e inacessível, que não pode ser alcançado, nem provado, nem prometido, mas que, pelo mero fato de que é pensado, é consolação, empenhamento, imperativo.

O mundo real – inacessível? De qualquer forma, ainda não alcançado. E, desde que não alcançado, desconhecido. Portanto, nem constitui uma consolação, nem uma salvação, nem uma obrigação: como nos podemos envolver em algo que não conhecemos?

O “mundo real”, uma ideia que já não serve para nada, que não nos obriga a mais nada – uma ideia inútil, supérflua, por conseguinte, uma ideia refutada: abulamo-la.

Abolimos o mundo real: que mundo restava? Talvez o da aparência? … Mas não! Ao mesmo tempo que o mundo real, também abolimos o mundo das aparências! (Nietzsche, 1889/2001, pp. 46-47)

Interpretar o advento da sociedade da comunicação e a lógica do consumo espetacular que dela decorre, à luz da convergência entre as filosofias de Heidegger (citado em Vattimo, 1987) e de Friedrich Nietzsche (1889/2001), leva a descobrir as falhas da modernidade, bem como a ler, por trás da desordem, as reapropriações sociais e o lado sombrio levantados pelo imaginário coletivo, a elaboração de uma outra ordem diferente daquela que é pensada e construída pela longa parábola do progresso. Toda a ilusão fomentada pelos dispositivos espetaculares gera uma forma de encantamento do corpo social, uma série incontrolável de sonhos e, ainda assim, sempre bem fundamentada na natureza da vida quotidiana e dos seus aspetos mais trágicos e banais. Dessa maneira, a ideologia da felicidade deixa de servir para a História e é incorporada nas práticas dos sujeitos sociais – no ser-aí – de modo a incitar o indivíduo a “abandonar o ser como fundamento” (Heidegger, citado em Vattimo, 1987, p. 126).

As imagens e os espetáculos promovidos pelo real e lançados nas vísceras do consumo, no coração da socialidade, favorecem a atualização de vários mundos, além e aquém do social, cada um com um sentido diferente. Nesse entendimento, o advento da pós-modernidade, que se manifestou por completo, com as centelhas libertadas pela sociedade do espetáculo, pode ser lido como “morte de Deus”, ou niilismo (Nietzsche, 1882/1998, p. 202), enquanto condição em que o homem reconhece explicitamente a ausência de fundamento como constitutiva da sua realidade. O que significa a erosão de todo o universalismo e a proliferação de fragmentos, estilhaços, de micronarrativas e até de tudo o que é tanto caótico como vital, que perturba a assepsia generalizada a que o social foi reduzido, enquanto racionalização geral da existência (Weber, 1904/1964). Podemos argumentar que as possibilidades da superação/distorção (verwindung) do social estão no próprio sistema e, por conseguinte, é no preciso momento em que a ordem moderna atinge o seu estado florescente, e aparentemente mais resplandecente, que ela abre caminho para o declínio. Quando a ideologia se apresenta nas vestes da ideologia da felicidade, quando a panóplia de objetos fetiches, produzidos pela indústria, se desmaterializa nas fantasmagorias espetaculares, a ordem social fica sobre-estimulada nas suas produções e criações simbólicas, confortada no estar-juntos, como pura corporalidade sensível, excitada por uma energia que vai além da ordem racional de que nasceu.

O real desrealiza-se, consuma-se fatalmente, através dos jogos experimentados na dimensão soberana do imaginário, lá onde cada sentido é reduzido a um espetáculo e cada espetáculo fica vinculado às sensações de um ou mais corpos apaixonados e reencantados. É por isso que o Ge-stell, na sua natureza anfíbia, arma do Social e, ao mesmo tempo, ordem nas mãos da vida quotidiana, carrega dentro de si, no momento da sua máxima exibição, a realização do “todo” e o seu afundamento. A hibridação e o enxerto recíproco que a vida quotidiana realiza com o sistema de objetos e, de maneira mais geral, com a ecologia do espetáculo, causam o desmoronamento da arquitetura em que foi construído o real elaborado pelo moderno. As distinções que nele serviram de base – objeto/sujeito, real/irreal, elite/massas – confundem-se e geram um caos no coração da vida coletiva.

Ao perder essas determinações, o homem e o ser entram num domínio schwingend, oscilante, que, na minha opinião, deve ser imaginado como o mundo de uma realidade “aligeirada”, que se torna mais leve porque menos nitidamente dividida entre a verdade e a ficção, a informação, a imagem: o mundo da mediatização total da nossa experiência, no qual já nos encontramos em grande parte. (Vattimo, 1987, p. 189)

Numa realidade assim “aligeirada”, na qual o conteúdo da vida real é desmaterializado nos fluxos dos espetáculos e das comunicações, nas centelhas abanadas pelas estéticas societais do Instagram, Tumblr ou Snapchat, na relativização do político que daí decorre, se sobrepõe o surgimento de uma socialidade anómica, de toda essa massa previamente separada em indivíduos prontos para o trabalho. A sua aparição no palco, de uma maneira ou de outra, volens nolens, representa um jamming contínuo no motor oficial da História.

A lógica do consumo espetacular, matriz da experiência do vivido coletivo, a partir da segunda metade do século XX, é animada pela convergência da iconofilia e do neopaganismo, sensibilidades de natureza polimórfica no sentido em que se baseiam na riqueza interpretativa da imaginação, na polissemia do imaginário e na veneração de diferentes objetos, lugares, imagens, minando sempre os fundamentos de todo o universalismo e de toda a transcendência. A perda de si, na consumação que constitui a bacia arquetípica do consumo desenfreado, a fusão com o outro que se realiza no momento em que se partilha uma excitação extática para um produto, para um espetáculo ou para qualquer elemento que remete para a relação com o outro, trazem para o palco as perdas, os excessos e a despesa improdutiva, da qual o ser humano não pode prescindir, para contrariar os limites do princípio de realidade a que se encontra sujeito. Como Bataille observou, com efeito

a vida humana, distinta da existência jurídica e tal como tem lugar, de facto, num globo isolado no espaço celeste, do dia para a noite, de uma região para outra, a vida humana não pode em caso algum estar limitada aos sistemas fechados que lhe são impostos nas conceções razoáveis. O imenso trabalho de abandono, de escoamento e de tempestade, que a constitui, poderia ser expresso, dizendo que ela só começa com o défice desses sistemas: pelo menos o que ela admite em matéria de ordem e de reserva só faz sentido a partir do momento em que as forças ordenadas e reservadas se libertem e se percam, para fins em que não possam estar sujeitas a nada em que seja possível prestar contas. É somente através de uma tal insubordinação, mesmo miserável, que a espécie humana deixa de estar isolada no esplendor sem condição das coisas materiais. (Bataille, 1949/2003, pp. 44-45).

Tradução: Jean-Martin Rabot

 

Referências

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Nota biográgica

Vincenzo Susca é Professor Associado de Sociologia na Universidade Paul-Valéry de Montpellier. Membro do laboratório Lersem-Irsa (Montpellier), McLuhan Fellow na Universidade de Toronto, é o diretor editorial dos Cahiers européens de l’imaginaire (CNRS Editions). Publicou diversos livros sobre a relação entre os média, o imaginário e o quotidiano, incluindo: Gioia tragica. Le forme elementari della vita elettronica (Milão, 2010; Paris, 2011; Barcelona 2012); Les affinités connectives. Sociologie de la culture numérique (Paris, 2016; Porto Alegre, 2019) e Un oscuro riflettere. Black Mirror e l’aurora digitale (Milão, 2020; Montreal, 2020), com C. Attimonelli.

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5489-6514

Email: vincenzo.susca@univ-montp3.fr

Morada: 5 Place de la Comedie, Montpellier 34000, France

 

Submetido: 14/04/2020

Aceite: 07/07/2020

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