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Comunicação e Sociedade

versão impressa ISSN 1645-2089versão On-line ISSN 2183-3575

Comunicação e Sociedade vol.38  Braga dez. 2020

https://doi.org/10.17231/comsoc.38(2020).2592 

ARTIGOS TEMÁTICOS

Estar presente na ausência: a construção semiótica da imigração brasileira recente em Portugal nos média brasileiros

Being present through absence: the semiotic construction of recent Brazilian migration to Portugal in the Brazilian media

 

Patricia Posch*

http://orcid.org/0000-0003-1839-3511

Rosa Cabecinhas**

https://orcid.org/0000-0002-1491-3420

*Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Portugal

**Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Portugal

 

RESUMO

Nos últimos anos, o deslocamento de brasileiros para Portugal tem-se intensificado, o que tanto confirma algumas das tendências já apontadas na literatura quanto revela mudanças importantes na configuração deste fenômeno. Paralelamente, é possível observar que estas transformações são acompanhadas de um movimento de diversificação discursiva sobre esse cenário e que acontece em diferentes plataformas mediáticas. No caso da televisão, esses discursos são transmitidos na forma de conteúdos audiovisuais que, mais do que apenas uma linguagem alternativa à escrita, são importantes ferramentas de articulação do conhecimento. Buscando-se entender a abordagem semiótica deste fenômeno nos média brasileiros, foi feita uma análise dos episódios da primeira temporada da série jornalística televisiva Portugal pelos Brasileiros, exibida no Brasil pela Rede Globo de Televisão no início do ano de 2018. Os princípios da Semiótica Social de Gunther Kress e Theo van Leeuwen foram utilizados em uma perspectiva interseccional como ponto de partida para se desvelar de que forma os recursos visuais e sonoros na série e a sua conjugação contribuem para a construção de discursos sobre os novos imigrantes brasileiros em Portugal. Face aos arranjos identificados, concluímos atestando a veiculação de um discurso nos média que privilegia a representação da imigração brasileira recente em Portugal de forma segmentada, dando a conhecer a perspectiva de um grupo específico de imigrantes em detrimento da pluralidade de vozes e experiências inerentes ao fenômeno em questão. Entendemos essa intenção de se separar, por meio do repertório semiótico, as representações dos novos imigrantes brasileiros em Portugal, como parte de estratégias discursivas que terão consequências diretas na vida social destes sujeitos.

Palavras-chave: discurso mediático; Semiótica Social; interseccionalidade; migrações; Portugal pelos Brasileiros

 

ABSTRACT

Over recent years, a rising number of Brazilians have migrated to Portugal. This phenomenon confirms certain trends that have already been identified in the literature while also revealing important changes in its configuration. These transformations are accompanied by a diversification of discourses about the phenomenon, that occurs across different media platforms. In the case of television, the discourses are transmitted in the form of audiovisual content which, more than just being an alternative language to writing, constitutes an important tool for articulating knowledge. In an attempt to understand the semiotic approach towards this fact in the Brazilian media, we decided to analyse all episodes from the first season of the television journalistic series, Portugal pelos Brasileiros (Portugal by Brazilians), broadcast in Brazil by Rede Globo de Televisão in early 2018. The principles of Social Semiotics developed by Gunther Kress and Theo van Leeuwen were used from an intersectional perspective as a starting point to unveil how the visual and sound resources used in this series, and the combination thereof, contribute to the construction of discourses about new Brazilian immigrants living in Portugal. In view of the identified arrangements, we conclude that we are facing a media discourse that privileges representation of recent Brazilian immigration in Portugal in a segmented manner, revealing the perspective of one specific group of immigrants, to the detriment of the plurality of voices and experiences that are inherent to the phenomenon as a whole. We view the ongoing intention to separate the representations of the new Brazilian immigrants in Portugal from other representations commonly related to Brazilian migrants from previous migratory waves, through the configuration of new semiotic repertoires to the effect, as a part of broader discursive strategies that might have direct consequences on the social life of the persons in question.

Keywords: media discourse; Social Semiotic; intersectionality; migrations; Portugal pelos Brasileiros

 

Introdução

Os média, na contemporaneidade, assumem um lugar de destaque como fonte de informação e conhecimento sobre o mundo (Talbot, 2007). Dentro da miscelânea de possibilidades mediáticas viabilizadas pelos avanços tecnológicos, a televisão, por suas características e alcance, é um mecanismo comunicacional com grande impacto social e cultural nas sociedades ocidentais contemporâneas. Quando a compreendemos como mediadora da realidade, deixa de ser possível descrever o seu conteúdo como um mero espelho da vida cotidiana. É preciso abordá-lo, portanto, como uma das muitas possíveis interpretações de mundo que recorrem às crenças e valores culturalmente partilhados para fins específicos. Sobretudo diante da proliferação de conteúdos mediáticos que buscam dar a conhecer as diversas nuances das sociedades em que vivemos, torna-se, portanto, imperativa a mudança do olhar para a televisão como um meio de comunicação, com o intuito de se entender de que forma a montagem e o formato dos seus conteúdos influencia o seu significado (Araújo, Cogo & Pinto, 2015; Fiske & Hartley, 1978/2003).

No caso da imigração brasileira em Portugal, nos últimos anos, os média têm tido um papel fundamental em dar a conhecer uma nova vaga migratória de brasileiros1 que têm chegado ao território português. Dando seguimento a um padrão de crescimento que já se delineava nos anos precedentes, em 2018, o número de cidadãos de nacionalidade brasileira a residir em Portugal aumentou em 23,4% em relação ao ano anterior, sem contabilizar aqueles que, por terem adquirido a nacionalidade portuguesa, não foram considerados nesta contagem oficial (SEF, 2019). O assunto tem adquirido espaço na pauta de muitos veículos televisivos, que acabam por realizar produções de conteúdos que buscam dar a conhecer quem são estes novos imigrantes em Portugal. Uma destas produções foi a série jornalística Portugal pelos Brasileiros, exibida entre janeiro e fevereiro de 2018 na Rede Globo de Televisão. Produzida pela produtora Plano Geral Filmes, a série apresenta o relato sobre a experiência de migração e a vida em Portugal de brasileiros que migraram há não muito tempo para aquele país.

Com o objetivo de questionar de que forma os conteúdos audiovisuais dos média televisivos estão a promover os discursos mediáticos sobre os novos imigrantes brasileiros em Portugal, propomo-nos a analisar os cinco episódios que constituem a primeira temporada da referida série. O fato da série apresentar a experiência migratória pelo ponto de vista dos seus protagonistas foi decisivo para a escolha deste objeto de estudo, visto a abordagem biográfica ser uma forma de permitir que a voz desses sujeitos seja colocada em primeiro plano, no sentido de se questionar representações sociais que vão sendo construídas historicamente e se mostram refletidas nos discursos mediáticos. Também nos pareceu não só interessante, como também fundamental, a mudança de foco no sentido de abordar o tema a partir da perspectiva do país de origem, elucidando as representações que estão surgindo e sendo disseminadas naquele território. Enquanto o tema recebe considerável atenção na academia portuguesa, estudar a presença dos emigrantes nos média brasileiros é também investigar esse estar “presente apesar da ausência” (Sayad, 2011, p. 183) e como essa presença delineia o fenômeno e seus sujeitos, um discurso que pode tanto se revelar homólogo àquele do país de destino ou não (Sayad, 2011). Para realizar essa análise, partimos de princípios da Semiótica Social como forma de explorar os recursos semióticos colocados em uso na série a partir de uma perspectiva holística da conjugação dos diversos elementos ali presentes, mas também daqueles que estão ausentes, observando-se sempre uma postura crítica herdada da abordagem interseccional (e.g. Crenshaw, 1991; May, 2015). A atenção que tem sido devotada à imagem não sublimou a análise do som como um importante recurso semiótico dos conteúdos audiovisuais mediáticos, buscando-se assim reverter um quadro de negligência deste recurso semiótico que se tem tornado comum nas Ciências da Comunicação (Oliveira, 2016). Indo um pouco mais além, diante do pouco que ainda se sabe sobre esta nova vaga migratória, cruzamos a nossa análise com uma reflexão mais ampla sobre os discursos que esse conteúdo ajuda a suportar, com o intuito de promover o diálogo sempre necessário entre a cultura, a vida social e as suas manifestações semióticas.

 

Abordagem à articulação semiótica nos média

Os últimos anos correspondem a um período de mudança discursiva no caso em que pretendemos analisar, justamente os períodos em que se torna mais interessante analisar esses novos discursos que são construídos socialmente (Fairclough, 1995). No presente artigo, iremos abordar essas transformações no nível semiótico, com o objetivo de entender de que forma se está a proceder à articulação visual destes novos discursos nos média. Entendemos ser relevante não só desvelar os discursos socialmente constituídos sobre uma determinada questão social, mas também como eles vão sendo articulados de forma semiótica, uma vez que essa prática é tanto reprodutiva, por embasar-se em discursos que lhe são exteriores, quanto criativa, a partir do momento em que torna-se possível articular esse discurso de distintos modos semióticos (Kress & van Leeuwen, 2001).

O caráter multimodal das produções televisivas requer uma metodologia que contemple o seu conteúdo de forma abrangente e articulada. Neste sentido, a análise dos elementos semióticos de forma isolada cede o lugar à apreciação do quadro como um todo e em como os elementos estão relacionados com o objetivo de criarem um sentido mais amplo (Kress & van Leeuwen, 2006). Para o efeito, fizemo-nos valer de algumas das dimensões apontadas por Kress e van Leeuwen (2006, p. 15) em sua gramática visual que pudessem ser aplicadas às imagens em movimento, em especial aquelas que entendemos estarem a ser usadas para criar “padrões de representação”. Também foram considerados os aspectos dos conteúdos multimodais apontados por van Leeuwen (2005) para identificar como os elementos semióticos da série se conjugam no sentido de construírem representações sociais sobre a imigração brasileira recente em Portugal e os seus sujeitos. Entender a multimodalidade como um aspecto central do material analisado revelou-se fundamental, uma vez que, diferente da imagem fixa, que se coloca à disposição para o olhar crítico do espectador (Mota-Ribeiro & Pinto-Coelho, 2011), a imagem em movimento o transporta para o seu espaço-tempo, ficando ele imerso naquela realidade (Gervereau, 2007). Além disso, quando de caráter multimodal, o sentido da imagem é construído na transversalidade de seus modos semióticos, dotando-a de um caráter multidimensional que não merece ser desconsiderado (Machin, 2013).

Com base nesse arcabouço conceitual, foi construída uma grelha de análise visual e sonora da série com os aspectos que nos pareceram ser os de maior importância para o estudo do caso em questão. Na dimensão representacional, optamos por observar a constituição dos padrões conceituais presentes e o modo como os migrantes estavam a ser representados segundo alguns parâmetros mensurados por inferência. A alguns indicadores habituais nas pesquisas sobre o tema, como a raça e o gênero, adicionamos o parâmetro do estatuto social, um indicador que consideramos essencial para este caso por explicitar que a posição social do sujeito é derivada de circunstâncias que vão além da sua condição econômica. Acrescentamos ainda o grupo etário, visto os dados estatísticos sobre os imigrantes em Portugal mostrarem alterações importantes na disposição etária desse contingente populacional. Na dimensão interativa, além dos aspectos fílmicos relacionados com a posição e o movimento da câmera, incluímos a modalidade visual e sonora. No quesito compositivo, optamos por analisar o enquadramento, por meio do qual a relação entre os imigrantes protagonistas da série e os demais sujeitos que nela aparecem poderiam ser ou não relacionados. Por fim, acrescentamos a perspectiva sequencial e simultânea do diálogo, o que possibilitou ter uma visão mais abrangente segundo a temporalidade, sendo esse aspecto da imagem em movimento tão vital na construção do seu significado.

 

 

Análise

A primeira temporada da série Portugal pelos Brasileiros dá a conhecer o percurso migratório de alguns brasileiros que emigraram nos últimos anos para Portugal. Cada episódio é focado na experiência individual de cada um deles, abordando em primeira pessoa alguns aspectos da migração, como a sua decisão de emigrar e a sua rotina na dimensão do trabalho, das opções de lazer, da vida em família e das diferenças percebidas entre a vida cotidiana em Portugal e no Brasil. O recurso ao relato biográfico tem sido um recurso amplamente explorado pelos média, que têm se focado cada vez mais em mostrar essas “fatias de vida” (Bourdieu, 1997, p. 50) como forma de dar a conhecer e representar a diversidade inerente à vida humana. Na série, essas falas são complementadas, de forma intercalada, por uma narração masculina em voice-over que, de acordo com o que está a ser relatado pelo entrevistado, verbaliza informações e dicas para os espectadores brasileiros que quisessem planejar a sua emigração para Portugal.

No que consideramos ser uma etapa de pré-análise, foram montados os storyboards dos episódios de modo a que a narrativa visual pudesse ser vista de um ponto de vista mais distanciado por meio dos frames. A análise destes quadros visuais corresponde ao primeiro dos seis níveis de análise de conteúdos fílmicos e televisivos (Iedema, 2004). Ainda que a imagem em movimento nos tenha levado a uma abordagem metodológica distinta da análise de imagens estáticas, a visualização dos frames permitiu elucidar possíveis tendências estilísticas e visuais, tendo este exercício se relevado um importante norteador para a montagem da grelha de análise e para a efetiva discussão sobre os aspectos específicos das imagens em questão.

Entendendo o conteúdo a partir de sua lógica estrutural, a análise do diálogo não remete apenas à interação verbal, mas também à relação entre recursos semióticos presentes no sentido de sua sequencialidade e simultaneidade. Estas duas óticas têm como pilar a temporalidade e, por meio de sua análise, é possível entender como é criada a coesão dialética que faz com que os diversos modos semióticos presentes interajam entre si no sentido de contribuir para a criação do significado da imagem (van Leeuwen, 2005). Analisando a série em questão em perspectiva sequencial, é possível perceber que a sequência de imagens não obedece a uma lógica de storytelling, mas ilustra o que está a ser verbalizado pelo entrevistado em voice-over. Sendo assim, o que vemos são recortes previamente selecionados e editados da vida do imigrante em Portugal, ao invés de uma narrativa sequencial sobre a sua experiência migratória. Mais do que a história, o que o conteúdo nos dá a conhecer são pequenas parcelas da sua experiência migratória bem-sucedida2 e a vida como imigrante em Portugal no que diz respeito ao trabalho, ao ambiente familiar e às opções de lazer. Essas escolhas, que são feitas pela equipa de produção e não pelo entrevistado, são atravessadas por motivações de cunho ideológico e social que ultrapassam esses conteúdos mediáticos específicos, valendo-se da autoridade do lugar de fala (Ribeiro, 2017) daqueles que são os protagonistas no assunto para ganharem o selo de autenticidade (Fairclough, 1995). Não obstante, a transição entre as cenas é feita de forma rápida, técnica comumente utilizada para se conseguir um fator de ação e excitação face ao tema exibido (Fairclough, 1995).

Já no que tange a coesão dialética, ela acontece por intermédio do uso de quatro trilhas semióticas distintas: a imagem visual, a linguagem escrita, a fala dos imigrantes e a trilha sonora. A fala é a trilha dominante, sendo ela aquela que rege todos os demais recursos semióticos. Importa destacar, ainda, o papel da trilha sonora escolhida para estes episódios. Essa atenção ao aspecto sonoro é crucial porque, não obstante a pouca atenção da academia a esse recurso semiótico (Oliveira, 2016), a modalidade sonora também direciona a interpretação do conteúdo em questão. Os sons, nesse sentido, apelam a uma apreciação sensitiva (Oliveira, 2016) e, no caso da série, a trilha musical segue a orientação da codificação do tipo sensorial, o que quer dizer que visa o impacto emotivo que os parâmetros musicais percebidos irão causar no espectador (van Leeuwen, 1999). O fado cantado com o sotaque português se faz presente com músicas em tons mais graves e lentos no início dos vídeos. No episódio um, por exemplo, ouvimos a cantora portuguesa Ana Moura a cantar o seu Desfado, em que se diz “quer o destino que eu não creia no destino/e o meu fado é nem ter fado nenhum”. Já no episódio quatro, ouvimos a sua conterrânea Gisela João a cantar os versos de Meu amigo está longe, especificamente “meu amigo está longe/e a distância é tão grande”. Essa atmosfera vai, aos poucos, progredindo com outras canções em tom mais agitado e agudo, já se encaminhando para o fechamento dos episódios. Sendo assim, à medida que o entrevistado avança com sua fala, a trilha mostra-se mais alegre e agitada, sobretudo quando ocorrem falas otimistas dos imigrantes.

Ainda em uma perspectiva distanciada, analisamos a modalidade da imagem. Segundo Kress e van Leeuwen (2006), esse aspecto da imagem refere-se aos indicadores visuais semióticos que podem ser colocados em ação com o objetivo de indicar o modo como a imagem deve ser interpretada. Aqui considera-se não só o tipo de iluminação e o brilho da imagem, mas também as manipulações de cor, como a saturação, diferenciação e modulação. Um dos aspectos que diferencia a cor dos demais modos semióticos da imagem é a sua capacidade de apelar às emoções e aos sentimentos, promovendo uma conexão direta entre a imagem visualizada e o campo afetivo do espectador3, escapando, muitas vezes, do campo lógico e racional (Kress & van Leeuwen, 2001). A conjugação destas nuances em escalas que são culturalmente convencionalizadas faz com que o conteúdo possa ser percebido como mais ou menos real, ou mais ou menos abstrato, por exemplo. Sendo o tempo uma dimensão que não se pode ignorar nas imagens em movimento, os referidos parâmetros devem ser apreciados com um olhar ainda mais crítico, de modo a não escaparem as mudanças de modalidade que podem acontecer no desenrolar do conteúdo animado. Estas mudanças, contudo, não parecem estar presentes na série analisada. Ao longo dos episódios, percebemos poucas manipulações ao nível da iluminação e da cor, reforçando a ideia de que o conteúdo pretende se apresentar como uma exata reprodução da realidade – uma codificação da imagem do tipo naturalista que, segundo Kress e van Leeuwen (2006), é dominante nas sociedades ocidentais contemporâneas. Ainda assim, alguns aspectos desta vertente naturalista podem ser olhados de forma crítica. Na série televisiva que analisamos, a iluminação contribui para a criação de uma atmosfera primaveril, embora não haja qualquer menção a datas ou estação do ano. Segundo Kress e van Leeuwen (2001), as estações do ano carregam sentido cultural e estão organizadas discursivamente.

Ao adentrarmos na análise da imagem, o primeiro foco foi colocado nas estruturas representativas (Kress & van Leeuwen, 2006). Nesta série quase não há cenas que mostrem interação entre os imigrantes entrevistados e outros indivíduos para além de familiares, cônjuges, prestadores de serviços e amigos mais próximos. Com isso, percebe-se que a maior parte do conteúdo imagético ali presente é de natureza representativa conceitual, dando a entender que o seu objetivo está voltado para caracterizar quem são os imigrantes brasileiros em Portugal, e não mostrar em que termos acontece a sua interação com outros indivíduos4.

Diante do denominador comum dos participantes representados – serem imigrantes, de nacionalidade brasileira e a residir em Portugal – buscamos explorar outros aspectos que advinham de uma diferença perceptiva, de modo a que pudessem ser inferidas outras informações acerca destes sujeitos. Recortes feitos em estudos sobre as vagas migratórias anteriores foram feitos de acordo com as categorias sociais de gênero, raça e classe econômica, como em Assis, Silva e Frederico (2016). Contudo, não consideramos possível falar sobre elas isoladamente, dado estarem intercruzadas de formas complexas e carregadas de significado. De modo a evidenciar as relações existentes entre as diferentes práticas de posicionamento social por meio das identidades definidas nestes recortes, adotamos em nossa análise a ótica da interseccionalidade. Essa abordagem não se define por um conjunto de regras e métodos de análise específicos, mas sim pela abordagem sobre o objeto de estudo que preza pela orientação analítica e interpretativa em prol de questionar as ideias dominantes sobre indivíduos e grupos sociais (May, 2015), de modo a desvelar as teias da subjetividade que sustentam as relações de poder desiguais. No âmbito das migrações, por ter conseguido ampliar-se além do recorte de gênero sem perder o seu tom político direcionado para mudanças sociais (Bastia, 2014), a abordagem interseccional tem sido adotada para trazer ao primeiro plano importantes diferenças em nível intragrupal, sobretudo no que tange questões como as diferenças de privilégios entre indivíduos do mesmo grupo social (Bastia, 2014).

Neste contexto, é possível perceber como as categorias sociais se entrecruzam na representação do imigrante brasileiro contemporâneo em Portugal. O recorte racial presente na série é talvez aquele que, por ser o mais evidente, se projeta com maior força. Observamos que todos os imigrantes brasileiros presentes na série são brancos, não obstante a diversidade racial ser uma das características mais marcantes da sociedade brasileira. De acordo com o Instituto Brasileiro de Estatística e Geografia – IBGE (2016), é desde 2004 que a composição racial5 da sociedade brasileira tem vindo a se alterar de forma significativa, sendo o ano de 2006 aquele que marca o ponto de viragem no qual o conjunto da população autodeclarada parda e preta superou o da população branca (IBGE, 2018). Em 2018, o percentual que computava a população parda no Brasil era de 46,5%, seguido por 43,1% de brancos e 9,3% de pretos (IBGE, 2019). Não deixa de ser interessante observar como essa representação visual segmentada do imigrante brasileiro em Portugal na série poderá impactar diretamente não só a sua vida social, mas também a dos imigrantes brasileiros que já lá residem. Conforme revelou Machado (2004), as dinâmicas sociais no interior da comunidade brasileira em Portugal operam segundo o que o autor chamou de jogo da centralidade: os imigrantes brasileiros cujas características físicas e comportamento espelhem os estereótipos sobre o brasileiro cristalizados na sociedade portuguesa detêm posições de destaque em estruturas sociais hierárquicas mesmo dentro da própria comunidade brasileira. Na sociedade portuguesa, essas representações sociais suportaram aquilo que o autor chamou de “identidade-para-o-mercado” (Machado, 2004, p. 4) por serem desprovidas de base histórica e serem reduzidas às demandas do mercado português sobre os imigrantes brasileiros. É devido a essa circunstância que Machado (2004, p. 11) alegou que, na sociedade portuguesa, existe um processo de “reversão da hierarquia racial brasileira” que tem regido a sociedade brasileira desde fins do século XIX: os negros e pardos estão a ganhar visibilidade social, justamente por serem assimilados às categorias sociais em vigência e por assim se poder traçar expectativas sobre eles (Moscovici, 1988). O que as imagens visuais da série nos mostram, contudo, faz-nos indagar se essa alegada “reversão” estará mesmo a acontecer, ou se o que está a proceder é o surgimento de novas estruturas representacionais além dos estereótipos convencionalizados na sociedade portuguesa. Cabe ainda observar a peculiaridade deste processo se estar a operar no cenário mediático brasileiro – sendo a série analisada exibida naquele país, e não em Portugal – o que dá margem para se refletir sobre as novas configurações que o racismo vem assumindo na sociedade brasileira (Lima, 2019).

Por outro lado, sabemos que não é possível falar de raça no Brasil sem adentrar o terreno das disparidades sociais que se entrecruzam neste debate, o que nos motivou a analisar também o estatuto social percebido dos imigrantes representados na série. A escolha deste parâmetro se mostrou relevante, uma vez que permite uma análise da representatividade e das relações de poder que vai além da contagem numérica de aparição no conteúdo (Lobo & Cabecinhas, 2018). O estatuto social dos imigrantes brasileiros que aparecem na série foi inferido segundo diversos marcadores percebidos, cujo cruzamento permitiu leituras transversais. A esse respeito, ainda que possa haver diferenças entre os imigrantes representados na série, observamos que estes indivíduos possuem um estatuto social médio a elevado. Somente a classe econômica destes sujeitos – que, mesmo residindo em Portugal há escassos meses, adquiriram um imóvel próprio e outros bens de comodidade, como viaturas – faz com que o seu estatuto social seja significativamente distinto daquele dos imigrantes brasileiros da segunda vaga migratória, para os quais a migração para Portugal envolveu um grande investimento inicial – chegando a comprometer, em alguns casos, uma poupança de anos ou o auxílio familiar para as despesas com passagens aéreas e questões burocráticas (Padilla, Marques, Góis & Peixoto, 2015). Outros indicadores reforçam essa posição, como, por exemplo, a profissão, a residência em zonas geográficas de estatuto social elevado e o estilo de vida, nomeadamente atividades do tempo livre. Por outro lado, é interessante observar, contudo, que os indicadores que poderiam induzir um menor estatuto social percebido dos participantes na série são compensados tanto por meio de estratégias visuais quanto pela menção explícita de outros indicadores que apontam para um estatuto social mais elevado.

Tratando-se dos aspectos visuais, ainda que os imigrantes na série possam ter estatutos sociais variados, o fato de a composição imagética estabelecer uma relação entre os vários imigrantes ali presentes, seja por fazerem parte do contexto mais amplo da série ou por técnicas fílmicas como o enquadramento conjunto ou a falta de indicadores visuais que os separem, faz com que sejam percebidos como indivíduos que estão conectados entre si e pertencem a um mesmo grupo social (Kress & van Leeuwen, 2006). Não é possível concluir, contudo, se é apenas uma parcela dos imigrantes brasileiros que está a ser representada na série ou se a comunidade brasileira em Portugal é, de fato, segmentada como a série nos apresenta. Um dos maiores entraves que não permite ir além dessa dúvida é a inexistência de dados estatísticos referentes a diversos parâmetros sobre as comunidades migrantes em Portugal, dentre os quais encontra-se a origem étnico-racial6. Essa é uma componente também ausente na pesquisa censitária nacional em Portugal, o que tem movimentado o debate sobre todas as questões de origem social e cultural que o fato impõe. Embora o tema tenha vindo a ganhar reconhecimento e importância a nível governamental com a criação do Grupo de Trabalho Censos 2021 – questões étnico-raciais em 2018, mudanças efetivas poderão ainda demorar a aparecer, uma vez que estudar o tema no contexto português é também caminhar por veredas nem sempre fáceis de serem percorridas, como a consciência histórica e a memória social. No que tange os imigrantes, essa ausência vem reforçar não só as dificuldades na legitimação e promoção das suas origens e práticas culturais, mas também os entraves que a falta de dados sobre a questão impõe no desenvolvimento de ações e políticas públicas que respondam aos cenários de discriminação e racismo sofridos por estes sujeitos.

Já no recorte de gênero, observamos que seis imigrantes protagonistas da série são homens e sete são mulheres Diante de um fenômeno que tem sido representado como maioritariamente masculino (Assis, Silva & Frederico, 2016), observar a presença das mulheres enquanto protagonistas na série permite entender os contornos discursivos com os quais se tem dado a sua representação nos média. Durante a primeira vaga migratória, pouco ou nada se falava sobre as migrantes brasileiras, que apareciam em posição de coadjuvantes na migração laboral de seus cônjuges (Pinho, 2007). A sua presença nos meios de comunicação só se daria com maior regularidade na segunda vaga migratória, que marca o início da feminização da imigração brasileira em Portugal (França & Padilla, 2018), rompendo com o perfil masculino que ainda perdurou até o início do novo milênio (Assis, Silva & Frederico, 2016). Ainda assim, muitas vezes, à migrante brasileira é associado o estereótipo da mulher hipersexualizada e ligada ao “mercado do sexo” (Assis, 2017, p. 226; Oliveira, Cabecinhas & Ferin-Cunha, 2011), uma herança reforçada por diversos fatores, dentre eles a interpretação dos portugueses sobre os produtos culturais brasileiros exibidos em sua programação televisiva em décadas anteriores (Iorio & Souza, 2018). Na série em questão, vemos a migrante brasileira que não só assume uma posição de destaque na caracterização do fenômeno, mas a quem é dada voz para narrar o seu percurso migratório em primeira pessoa. Ainda que estejam inseridas em um contexto familiar, já aparecem em outras dinâmicas sociais na esfera pública, como a profissional e social. Além disso, as posições de trabalho em que se inserem são mais qualificadas, o que chama a atenção para possíveis transformações nas estratégias de inserção laboral adotadas pelas imigrantes brasileiras em Portugal.

De modo a aprofundar a nossa análise nesta dimensão, ainda no âmbito das estruturas representativas, selecionamos ainda o grupo etário percebido como outra característica fundamental. O grupo etário mais representativo da segunda vaga migratória era o dos 20 aos 30 anos, em igual proporcionalidade entre homens e mulheres (Padilla et al., 2015), o que condizia com o seu caráter laboral. Na série, inferimos que os imigrantes se encontram em grupos etários mais elevados, em um intervalo que vai dos 35 e os 55 anos, também não havendo grandes discrepâncias observadas entre homens e mulheres. Essa mudança está alinhada com o que nos revelam os dados estatísticos sobre a grupo etário mais representativo em relação ao total de imigrantes que chegaram a Portugal em 2018. De acordo com o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, as faixas etárias mais representativas foram a dos 30 aos 39 anos para as mulheres e dos 25 aos 34 anos para os homens (SEF, 2019). No caso dos imigrantes brasileiros, ao cruzarmos essas estatísticas com o perfil dos imigrantes representados na série televisiva analisada, entende-se que a questão vai além de uma mudança estatística. A mudança do grupo etário mais representativo poderá indicar que já são outras as razões que levaram estes novos imigrantes brasileiros a Portugal, e não mais somente as questões econômicas e de natureza familiar (Padilla et al., 2015) dos imigrantes da vaga migratória precedente. Ao verificarmos a justificativa da emissão de autorizações de residência ao longo de 2018, observamos que, para além da atividade profissional, têm vindo a aumentar o número de pedidos deferidos para fins de estudo e investimento (SEF, 2019), sendo indicadores como esses preciosos para compreender o caso brasileiro na atualidade.

Entendidos os fatores representacionais, seguimos com a análise das imagens em sua dimensão interacional. Dentro dessa esfera, voltamos nossa atenção para as perspectivas da câmera no momento da filmagem, visto serem elas artifícios que denotam o nível de interação entre os participantes representados e o espectador. Para Kress e van Leeuwen (2006), diferentes ângulos possibilitam distintas formas de se relacionar no que diz respeito ao contato entre quem está a ser representado e o espectador, a distância social entre eles e a atitude de um frente ao outro em termos de relações de poder. Nas imagens em movimento, também as movimentações de câmera influenciam estes aspectos, uma vez que estas dinâmicas acontecem mesmo em frente ao espectador. Estas formas são, por sua vez, tanto um reflexo quanto influenciadoras do que é convencionalizado nas práticas sociais do cotidiano, fazendo com que esta relação entre perspectiva e posicionamento subjetivo frente a um determinado sujeito ou objeto representado possa ser vista como natural para aqueles que dela têm conhecimento.

O primeiro aspecto analisado foi o do contato, que se refere a uma espécie de relação social imaginária entre o participante representado e o espectador. Quando ele não acontece, o participante representado torna-se objeto de contemplação de quem vê. Essa relação é conseguida pelo foco do olhar do sujeito representado, que, quando olha diretamente para a câmera, estabelece uma ligação entre si e o espectador, seja ele quem for, configurando-se o que Kress e van Leeuwen (2006, p. 118) chamaram de “demand image”. Prosseguimos com a observação da distância social pretendida, que fala sobre o grau de envolvimento entre o sujeito representado e o espectador que o observa, e pode ser mensurada de acordo com a proximidade da câmera em relação ao que está a ser representado. Quanto mais próximo o participante interativo estiver deste sujeito por intermédio do posicionamento da câmera, objeto ou cenário, maior será o seu grau de envolvimento com ele (Kress & van Leeuwen, 2006). Não menos importante, a dimensão interativa aponta ainda para as relações de poder forjadas entre os entrevistados e o espectador de acordo com os ângulos da posição da câmera. No eixo vertical, o ponto de vista de baixo para cima denota o maior poder do participante representado sobre o participante interativo, enquanto a posição da câmera em um ângulo de cima para baixo frente ao participante representado denota um maior poder do participante interativo sobre o participante representado. Quando o ângulo vertical em que surge o participante representado é o mesmo do espectador, ambos os participantes se encontram no mesmo nível hierárquico de relações de poder, não havendo discrepâncias entre o poder exercido por um sobre o outro (Kress & van Leeuwen, 2006). Já no eixo horizontal, o ângulo frontal exibe o participante representado a partir de um ponto de vista central e promove a aproximação face ao espectador ao indicar que é algo que é “parte do nosso mundo” (Kress & van Leeuwen, 2006), enquanto que ângulos oblíquos permitem visualizá-los a partir de um ponto de vista horizontalmente deslocado em relação à frontalidade do que está a ser representado (Kress & van Leeuwen, 2006), indicando o distanciamento entre o contexto do que que está a ser representado e o daquele que está a visualizar a imagem. No caso das imagens em movimento, esta relação pode se estabelecer tanto em uma cena específica quanto em uma sequência de cenas (Kress & van Leeuwen, 2006). A escolha entre uma ou outra perspectiva influencia diretamente o grau de envolvimento subjetivo entre o participante representado e o produtor-espectador, denunciando ainda o quanto esta relação está ou não baseada na promoção da empatia entre estes dois sujeitos.

Na série televisiva em questão, na maior parte do tempo, os imigrantes dirigem o seu olhar a um(a) possível entrevistador(a) in loco em um ângulo lateral. Contudo, em momentos pontuais, é possível perceber que o seu olhar se volta diretamente para a câmera, criando-se este espaço inventado que o conecta àquele que o estiver assistindo. No que tange a aproximação da câmera, concluímos que não há um padrão definido para a utilização do recurso do plano aproximado ao filmar os imigrantes. Quando ele de fato ocorre, a intimidade gerada pelo plano aproximado, algo já mapeado nos estudos sobre filmes e televisão (Kress & van Leeuwen, 2006), não acontece somente nos momentos em que os imigrantes estão a dar o seu relato, mas também em diferentes momentos do seu cotidiano, o que nos faz concluir que é almejada uma aproximação com os aspectos da vida cotidiana em adição ao que efetivamente está a ser relatado. Essa proximidade também pode ser entendida como uma estratégia de elaboração que visa, pela repetição e/ou reafirmação, aprofundar o conhecimento do espectador sobre o que está a ser exibido (Kress & van Leeuwen, 2006; van Leeuwen, 2005). Por meio da filmagem em close-up, as conhecidas talking heads, as distâncias sociais são reduzidas, transmitindo-se assim uma ideia de igualdade entre o participante representado e o espectador (Fairclough, 1995). Assim, sugere-se ainda que o espectador tenha um conhecimento aprofundado sobre o que lhe está a ser mostrado, por sair de uma dimensão mais impessoal para adentrar espaços subjetivos em âmbitos mais privados (Fairclough, 1995). Com isso, pode-se dizer que os planos aproximados e em close-up são utilizados como uma técnica que almeja uma aproximação entre o espectador e o imigrante brasileiro, buscando-se fomentar um sentimento de empatia junto a esses migrantes.

No que diz respeito ao ângulo da câmera, observamos que, salvo nas cenas em que são filmados em diversos momentos do seu cotidiano, os imigrantes dão o seu depoimento em uma posição de frente para a câmera e ao nível do olhar do espectador. No caso específico que analisamos, ressaltamos duas consequências de se posicionar o imigrante desta forma e que são explicadas por Kress e van Leeuwen (2006). Em primeiro lugar, essa escolha dota os participantes representados de uma autonomia simbólica que faz ser possível que eles sejam transportados para outras locações e contextos sem perder as suas características identitárias percebidas. Esse fato requer o estabelecimento de um conjunto de informações que lhes são associadas de modo a que possam ser reconhecidas em diferentes contextos. Já a segunda consequência tem a ver com o ponto de vista do espectador, uma vez que o ângulo em perspectiva central sugere que o significado atribuído ao imigrante é compactuado entre o produtor do conteúdo exibido e o espectador da série (Kress & van Leeuwen, 2006). Embora esse último ponto possa suscitar a ideia de que não há liberdade interpretativa dos espectadores quanto à forma com a qual os imigrantes são conjecturados, os estudos de recepção e de média no âmbito dos Estudos Culturais têm vindo a acrescentar novas apreciações sobre o tema. Um exemplo disso é a contribuição de Hall (1973/2001) que fala sobre as três posições a partir das quais é possível descodificar o conteúdo mediático, indo-se daquela que concorda com os discursos dominantes para aquela em que há uma maior liberdade interpretativa, na qual a mensagem é assimilada segundo códigos individuais que são usados como alternativa aos discursos hegemônicos. Com base nessa linha de pensamento, embora a codificação do conteúdo estabeleça alguns parâmetros segundo os quais a interpretação será embasada (Hall, 1973/2001), o espectador é também uma instância ativa na construção do sentido da mensagem e, consequentemente, do conhecimento que a mensagem mediática pretende edificar.

 

Conclusões

O crescimento do número de brasileiros que decidiram emigrar para Portugal nos últimos anos tem feito com que esse fenômeno tenha vindo a assumir espaço de destaque nos média brasileiros e portugueses. Por intermédio de diversas plataformas, têm sido produzidos conteúdos de modo a dar a conhecer as características desse novo momento migratório e os seus sujeitos. Reconhecendo a importância das produções audiovisuais em tempos nos quais se tem navegado da palavra para os ecrãs (Martins, 2017), propusemo-nos a analisar os cinco episódios da primeira temporada da série jornalística televisiva Portugal pelos Brasileiros, exibida no Brasil pela Rede Globo de Televisão no início do ano de 2018, que apresenta o relato de brasileiros que migraram nos últimos anos para Portugal. Com o intuito de compreender como a articulação semiótica ali presente caracterizava o fenômeno da imigração brasileira recente em Portugal, a análise, feita de maneira interseccional, esteve ancorada em princípios da Semiótica Social segundo a perspectiva multimodal e das imagens em movimento.

Ao procedermos a uma análise na dimensão estrutural da série, observamos que as cenas interagem entre si não tanto para criarem uma narrativa sobre a experiência migratória, mas sim para dar a conhecer partes dela, evidenciando o trabalho dos média de recorte e seleção do que efetivamente se mostra sobre a vida destes imigrantes em Portugal. Na esfera representativa, observamos que o conteúdo é marcado por cenas que são, em sua maioria, conceituais, indicando que preza pela caracterização dos novos imigrantes brasileiros em Portugal em detrimento da sua dinâmica social naquele território. Não obstante, a caracterização destes imigrantes é feita segundo um recorte cultural, social e econômico bem delimitado que se revela intimamente relacionado às vicissitudes da sociedade brasileira. Isso faz com que as trajetórias migratórias que a série dá a conhecer sejam parecidas, homogeneizando a representação do fenômeno e negligenciando os percalços que aparecem no caminho de muitos outros imigrantes brasileiros que decidiram emigrar para Portugal, que vão desde às dificuldades em se encontrar alojamento para longo prazo às intempéries enfrentadas no processo de legalização.

Tendo em vista as presenças e ausências nos arranjos semióticos da série analisada, concluímos estarmos diante da articulação de um discurso por meio dos média que privilegia a representação da imigração brasileira em Portugal de forma segmentada, dando a conhecer a perspectiva de um grupo específico de imigrantes em detrimento da pluralidade de vozes e experiências diferenciadas. A representação da experiência migratória dos brasileiros que migraram recentemente para Portugal presente na série advoga pela homogeneização do fenômeno que é suportada por uma ideia de elitização do mesmo. No conteúdo analisado, como vimos, são os arranjos visuais e sonoros os recursos semióticos por meio dos quais são construídos esses delineamentos. Esta tática evidencia a representação mediática do imigrante “ideal” (Bourdieu, 1998, p. 18) que tem sido operada nos média portugueses, onde as notícias sobre os novos imigrantes brasileiros nos média impressos têm vindo a relatar o fenômeno de forma mais “positiva” (França & Padilla, 2018, p. 1). Consequentemente, se está a dar a conhecer uma outra faceta do fenômeno além daquelas já estereotipadas socialmente, e em muito derivadas das características distintas das vagas migratórias precedentes. Bourdieu (1997, p. 4) refere que os indivíduos que concordam em aparecer na televisão o fazem para “se mostrarem e serem vistos”, sobretudo quando a sua versão da história não se enquadra nas narrativas dominantes em vigor nos contextos sociais que habitam.

Concluímos indicando que, por lidarem com subjetividades que atravessam as estruturas sociais, os arranjos visuais que identificamos na série se relacionam diretamente com os discursos mediáticos que vão sendo construídos sobre os imigrantes brasileiros em Portugal, afetando diretamente a vida desses sujeitos. Ambas as estratégias discursivas que sustentam, seja a representação da experiência dentro se um contexto elitista quanto o seu caráter diferenciado do senso comum, podem vir a fortalecer alguns processos sociais sobre os quais a série analisada nos dá pistas. Como exemplo, citamos a ausência de interação entre os novos imigrantes e aqueles de vagas migratórias anteriores, o que poderá significar estarem a ocorrer segmentações sociais ao nível intracategorial na comunidade brasileira. Continuar a observar as relações entre as articulações semióticas do discurso sobre os imigrantes brasileiros em Portugal nos média e a sua interferência na vida social desses indivíduos revela-se, portanto, uma linha de estudo tanto importante quanto necessária.

 

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Notas biográficas

Patricia Posch é doutoranda em Estudos Culturais na Universidade do Minho e investigadora do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS). Mestre em Cultura e Comunicação. Desenvolve pesquisas que circunscrevem temas em memória social, migrações, média e museus.

ORCID: http://orcid.org/0000-0003-1839-3511

Email: patriciaposch@gmail.com

Morada: Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Universidade do Minho, Campus de Gualtar, 4710-057 Braga, Portugal

Rosa Cabecinhas é professora no Departamento de Ciências da Comunicação, Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho e investigadora do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS).

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1491-3420

Email: cabecinhas@ics.uminho.pt

Morada: Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Universidade do Minho, Campus de Gualtar, 4710-057 Braga, Portugal

 

Submetido: 14/04/2020

Aceite: 31/07/2020

 

NOTAS

1 Apesar de reconhecermos a diversidade de gênero nas sociedades humanas, adotamos este termo, em consonância com o nome do programa televisivo analisado, para nos referirmos a todas as pessoas de nacionalidade brasileira, com o intuito de garantir a boa legibilidade o texto.

2 Ressaltamos este pormenor com uma postura crítica, tendo em vista que ainda são poucas as notícias nos veículos de comunicação brasileiros que abordam as dificuldades vivenciadas pelos imigrantes brasileiros em Portugal em seu processo migratório (Marmo, 2019; Ribeiro, 2018).

3 Heller (2012) demonstra a relação entre os sentimentos e as cores ao referir que diferentes cores ou arranjos cromáticos conduzem, de acordo com o contexto em que se apresentem, a distintos efeitos sensoriais e psicológicos, sendo que os efeitos emocionais destes arranjos cromáticos variam em função do contexto cultural.

4 Essa ausência aponta na direção contrária da expectativa de que houvesse alguma interação entre estes imigrantes e aqueles de vagas migratórias precedentes, uma probabilidade cogitada a partir de estudos que atestam serem as redes de contato que existem entre o futuro emigrante e aquele que já emigrou para o país de destino em questão um aspecto importante na decisão de emigrar (Fonseca, Esteves & Iorio, 2015).

5 É importante mencionar que a pergunta formulada nas pesquisas realizadas pelo IBGE menciona “cor ou raça”e tem como opções de resposta branco, preto, amarelo, pardo ou indígena. Portanto, não é possível distinguir quantos dos respondentes responderam a esta questão pensando em termos de cor da pele e não raça, ou vice-versa.

6 Nos resguardamos de pontuar diversas questões que consideramos pertinentes em relação ao termo “étnico-racial” por este não ser o foco do presente artigo. Neste sentido, nos limitamos a usar a mesma designação presente no debate sobre o tema na esfera governamental, nomeadamente no Despacho no. 7.363/2018, que institui a criação do Grupo de Trabalho Censos 2021 – questões étnico-raciais.

 

Agradecimentos

Este trabalho recebeu apoio financeiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) por meio de Bolsa de Doutoramento (SFRH/BD/137855/2018) atribuída no âmbito do POCH – Programa Operacional Capital Humano.

Este trabalho é ainda financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto UIDB/00736/2020.

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