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Comunicação e Sociedade

Print version ISSN 1645-2089On-line version ISSN 2183-3575

Comunicação e Sociedade vol.38  Braga Dec. 2020

https://doi.org/10.17231/comsoc.38(2020).2593 

ARTIGOS TEMÁTICOS

“Eles”, venezuelanos, e a crise na Venezuela: práticas discursivas na revista Veja

“Them”, Venezuelans, and the crisis in Venezuela: discursive practices in the magazine Veja

 

Moisés de Lemos Martins*

https://orcid.org/0000-0003-3072-2904

Valéria Marcondes**

https://orcid.org/0000-0002-1670-4892

*Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Portugal

**Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas, Universidade do Oeste de Santa Catarina, Brasil

 

RESUMO

Este artigo analisa a reportagem intitulada “Fuga de uma ditadura: a saga dos venezuelanos no Brasil”, da autoria de Jennifer Ann Thomas, publicada, em 2019, pela revista brasileira Veja. O objeto são os refugiados e a crise na Venezuela. Foram identificadas as estruturas discursivas utilizadas para representar os outros, no caso, os imigrantes venezuelanos. E foram analisadas as expressões linguísticas, que simbolizam e produzem as diferenças entre “eles” (os outros, a Venezuela e os seus cidadãos) e “nós” (o Brasil e os brasileiros). A conclusão a que chegámos é a de que o discurso sobre o outro, que na reportagem da Veja compreende também as estatísticas e as fontes próximas do poder governamental, apenas dizem o que é adequado que os públicos da revista saibam, ou seja, os seus leitores. Em síntese, a análise desta reportagem da revista Veja permite concluir que nela ocorre a reprodução do discurso hegemónico sobre “o outro”, um discurso reducionista, conservador e nacionalista. A nossa linha de orientação semiológica tem como referência teórica a Semiótica Social (Martins, 2002/2017), uma disciplina das Ciências Sociais e Humanas, que tem como preocupação essencial estabelecer as condições de possibilidade social do sentido e que, em termos semânticos e pragmáticos, procede à interpretação explicativa e compreensiva dos discursos. Por outro lado, sendo o nosso propósito a compreensão dos processos de construção social do outro, ou seja, a compreensão dos processos de construção social das identidades, inspiramo-nos na corrente de pensamento, que ficou conhecida na Europa como a “filosofia da diferença” (Descombes, 1998; Foucault, 1966; Levinas, 2002; Martins, 2019; Ricoeur, 1991).

Palavras-chave: imigrantes; refugiados; Semiótica Social; Venezuela; representações sociais

 

ABSTRACT

This paper analyses the feature article “Fuga de uma ditadura: a saga dos venezuelanos no Brasil” (Flight from a dictatorship: the saga of Venezuelans in Brazil), by Jennifer Ann Thomas, published by the Brazilian magazine Veja in 2019. The subject of the article is refugees and the crisis in Venezuela. This paper identifies the discursive structures used tin the article to represent “others”, in this case, Venezuelan immigrants. Analysis is also made of linguistic expressions, which symbolise and produce differences between “us” (Brazil and Brazilians) and “them” (the other – Venezuela and its citizens). The paper concludes that the discourse about the “other”, which in Veja’s article also includes statistics and quotes sources close to the government, only states that which is appropriate for the magazine’s audiences to know, i.e. their readers. In summary, analysis of the article published by Veja magazine allows us to conclude that it reproduces the hegemonic discourse about “the other” – a reductionist, conservative and nationalist discourse. The theoretical reference underpinning this paper’s semiological orientation is Social Semiotics (Martins, 2002/2017), a discipline of Social and Human Sciences, whose main concern is to establish the conditions that govern the social possibility of meaning and that, in semantic and pragmatic terms, leads to the explanatory and comprehensive interpretation of discourses. On the other hand, since this paper aims to understand social construction processes of the other, i.e. understand the social construction processes of identities, it is inspired by the intellectual current known in Europe as the “philosophy of difference” (Descombes, 1998; Foucault, 1966; Levinas, 2002; Martins, 2019; Ricoeur, 1991).

Keywords: immigrants; refugees; Social Semiotics; Venezuela; social representations

 

Introdução

A prática de conceder asilo em terras estrangeiras a pessoas que fogem de perseguição é uma das caraterísticas mais antigas da civilização. Encontramos referências em textos escritos há 3.500 anos, durante o florescimento dos grandes impérios do Médio Oriente, como o Hitita, o Babilónico, o Assírio e o Egípcio antigo1. Do latim refugere, que significa ação de fugir, o termo refugiado estava correlacionado pejorativamente com um delito (Arendt, 1943/1994). Posteriormente, o conceito passou a incluir dimensões políticas, sociais e económicas (ONU, 1951). Nas comunidades essencialmente orais da antiguidade ocidental, os estrangeiros e aqueles que não falavam a língua oficial tinham um tratamento diferenciado em relação aos nativos. Não eram considerados cidadãos, portanto não podiam participar da vida pública.

Entretanto, nos nossos dias, reportando-se ao fenómeno migratório, van Dijk (2016, p. 145) assinala que os conhecimentos socialmente partilhados sobre a imigração podem “conter crenças sobre identidade, origem, propriedades, ações e objetivos dos imigrantes, suas relações com ‘nosso’ grupo, associadas cada uma com avaliações positivas ou negativas baseadas em normas e valores”. Porque, “a totalidade, o regime do mesmo, que é o nosso, ganha ainda hoje uma centralidade, que remete o outro para a periferia – um lugar subalterno, apagado, dominado” (Martins, 2019, p. 29).

Representados como diferentes do “nós”, ou seja, do “eu”, categorizados e “classificados” (Bourdieu, 1979) como “eles”, ou seja, os “outros”, imigrantes, refugiados, estrangeiros, todos eles têm a sua subjetividade e identidade problematizadas. Em Ricoeur (1991), a identidade está na dialética entre identidade-idem e identidade-ipse. A identidade-idem, ou mesmidade, o ser idêntico a si, imutável através do tempo e diverso do outro, funda o conceito de caráter. Idem, identitas, palavras latinas, significam “o mesmo”, “a mesma coisa”, “o idêntico”. O termo ipse, também uma palavra latina, remete para a identidade – “o mesmo” em relação ao outro. A identidade-ipse é a ipseidade, a identidade pessoal e reflexiva, narrativa e histórica, marcada pela alteridade (altero é o outro, em latim).

Por sua vez, Stuart Hall (2003) asssinala que a identidade é um lugar que se assume, uma postura de posição e contexto, uma construção social, e não uma essência ou substância. As identidades não estão vinculadas a lugares e a tradições de tempos específicos; são fluidas e híbridas. Levinas (2002) argumenta que a presença do outro “me coloca em xeque” e acentua que na experiência interpretativa entre o “tu” e o “nós” não há identificação e incorporação comum automática, e sim um processo de identificação, produzido pela linguagem, por vivências, experiências, narrativas e discursos.

A coletividade em que digo “tu” o “nós” não é um plural de “eu”. Eu, tu, não são aqui indivíduos de um conceito comum. Nem a posse, nem a unidade do número, nem a unidade do conceito, me incorporam ao Outro. É a ausência de pátria comum que faz do Outro estrangeiro, o estrangeiro que perturba “em nossa casa”. Mas estrangeiro quer dizer também livre. Sobre ele não tenho poder. Escapa à minha apreensão em um aspecto essencial; ainda assim, disponho dele. Não está de todo em meu lugar. Mas eu, que não pertenço a um conceito comum com o estrangeiro, sou como ele, sem gênero. Somos o Mesmo e o Outro. A conjunção e não indica aqui nem adição nem poder de um termo sobre o outro. (Levinas, 2002, p. 63)

O processo de diferenciação permite construir a identidade. Distinguir o eu e o outro é o caminho para a compreensão e a interpretação do que eu sou e do que é o outro (Ricoeur, 1991).

É numa relação que eu encontro o outro, o qual passa, então, a existir em mim, fazendo parte de mim, constituindo-me. Esse é o caminho do enamoramento, e pode ser também o caminho da compaixão e da solidariedade. Mas a relação com o outro não se esgota no encontro. Depois do encontro do outro, seguem-se muitas vezes, por razões minhas, o seu apagamento, assimilação, e mesmo dominação. Em termos rigorosos, o que podemos então dizer é que o outro nunca é redutível ao eu, ou seja, nunca é apagável em mim. E se o que está em causa é segregar, discriminar e dominar o outro, do que se trata mesmo é de exercer sobre o outro uma violência. (Martins, 2019, p. 27)

O processo de diferenciação passa, também, pela semelhança reconhecida na alteridade. É pela diferença do outro que me construo como eu mesmo. Diferir é distinguir-se. “Neste jogo no qual ‘quem perde ganha’, em que se diz ‘identidade’, esta se transforma imediatamente em diferença, e se assinalamos uma diferença, esta se transforma em identidade” (Descombes, 1998, p. 199).

Podemos dizer que compreender um texto é compreender-se a si próprio diante de um texto. E compreender o outro é compreender-se a si mesmo diante de um outro. As experiências, bem como as narrativas, são necessárias para a produção do sentido, sendo este sempre mediado por uma interpretação. A identidade narrativa de uma pessoa ou de uma comunidade é a história que contamos sobre nós próprios, e também a história que outros contam sobre nós mesmos, em diferentes temporalidades, e ainda, a memória que guardamos dessas narrativas. Reconhecemos o outro que existe em nós pelos relatos feitos sobre nós próprios e pela memória que deles guardamos (Ricoeur, 1991).

O encontro de interpretação/diferenciação ocorre no interior do discurso, dado que o discurso exprime o sistema social, sendo um território de lutas pelo poder (Foucault, 1971). Visando a natureza do discurso, Foucault carateriza-o deste modo: “simultaneamente batalha e arma, estratégia e choque, luta e troféu ou ferida, conjunturas e vestígios, encontro irregular e cena repetida” (Foucault, 1969, p. 8), o discurso é “aquilo por que lutamos, o póprio poder de que procuramos apoderar-nos” (Foucault, 1971, p. 12). Por sua vez, todo o alcance de A linguagem, a verdade e o poder, de Moisés de Lemos Martins, está em os discursos serem considerados como obedecendo a um modo de produção do sentido, ou a um regime do olhar (Martins, 2002/2017). Ora, no Ocidente, o modo de produção do sentido assenta no princípio da analogia, ou da representação, com a diferença, toda a diferença, a remeter para a unidade, o que quer dizer, com toda a diferença a ser anulada e assimilada pela unidade. “E é por essa razão que o conto é sempre o mesmo” (Martins, 2019, p. 25).

O discurso é uma prática social, uma ação, exercida dentro de uma estrutura, que também é social. “Performativo, [o discurso] visa uma eficácia. Falamos para sermos compreendidos, mas também obedecidos, respeitados, distinguidos, acreditados” (Martins, 2004, p. 75).

Representar (e a linguagem representa o mundo) é classificar, definir, é um poder de di/visão. Ora, a representação das divisões sociais concorre para a realização das divisões, dada a performatividade da linguagem. Não nos esqueçamos, no entanto, como já referimos, que a magia da palavra é social. O discurso chama à existência aquilo que enuncia, de acordo com o grau de legitimidade do locutor (e ipso facto do alocutário), que é sempre relativa à estrutura e às sanções de um dado campo social. (Martins, 2004, p. 75)

Vejamos o caso da notícia, que é um tipo de discurso específico. A notícia é uma prática discursiva elaborada socialmente e permeada por regras específicas (van Dijk, 1990). Como prática social, qualquer tipo de discurso provoca efeitos de sentido, tem intenção significativa e uma finalidade de significação. Por outro lado, encarando os discursos dos média como exterioridades, cabe ao analista social tornar manifesto o seu modo de produção, enfim, as condições de possibilidade da sua existência, circulação e reprodução (Foucault, 1971; Peruzzolo, 2004).

As narrativas mediáticas inscrevem-se neste regime de funcionamento dos sistemas simbólicos. Os meios de comunicação constituem um regime de práticas discursivas, o que também quer dizer práticas sociais, que funcionam, ao mesmo tempo, como instâncias de produção de sentido, com efeitos sociais. Dada a natureza ilocucionária da linguagem, os discursos concorrem para chamar à existência aquilo que enunciam. Podemos, pois, dizer, em síntese, que construções noticiosas envolvem aspetos não apenas sociais e culturais, políticos e económicos, mas também cognitivos (ver, por exemplo, Berkowitz, 1997; Breed, 1997; Schudson, 1986a, 1986b, 1988; Sousa, 2000, 2004; Traquina, 2001; Tuchman, 1978; White, 1997; Zelizer, 1997); e que quem produz as notícias integra uma comunidade jornalística, inscrevendo-se esta, por sua vez, no contexto organizacional específico de uma dada sociedade.

 

O estudo de caso

Dando-lhe maior ou menor ênfase, podemos dizer que os média brasileiros tornam visível o quotidiano dos imigrantes venezuelanos. Corresponsáveis pela formação da opinião dos cidadãos, os média transmitem pontos de vista contrastados sobre a crise da Venezuela, que está na origem da migração venezuelana.

O estudo que apresentamos tem como propósito fundamental analisar de que modo a revista Veja, que é uma das revistas de maior circulação no Brasil (com uma circulação total, impressa e subscrição digital, de 557.314 exemplares2, a Veja tem 16,5 milhões de seguidores nas redes sociais e 21,8 milhões de visitantes individuais no site da revista3), apresenta a situação política e económica da Venezuela, colocando-se do ponto de vista do que significa para o Brasil a migração de venezuelanos, e descrevendo, por outro lado, as consequências sociais deste fluxo migratório no país de acolhimento. Procuramos responder a esta questão principal: o que é que a Veja torna manifesto e o que é que omite, ou mesmo silencia, ao representar os imigrantes e o seu país de origem?

Partimos do entendimento do texto mediático como prática discursiva, explicando-a como prática social, trabalhando na confluência da textualidade e da enunciação/discursividade. Enquanto, por um lado, acentuamos o domínio da escrita, o domínio do objeto textual, e suspendemos a relação com o contexto, por outro lado, colocamos a ênfase nas dimensões da prática discursiva, ou seja, da interação, da intersubjetividade, da reflexividade, da intencionalidade e da comunicação (Martins, 2002/2017). A análise dos processos de construção social da alteridade, da diferença, enfim, da construção do “outro”, assim como a análise da construção das identidades sociais, adotam a perspetiva da “filosofia da diferença”, designadamente de Foucault (1966), Ricoeur (1991), Levinas (2002), Descombes (1998), Martins (2019).

Este artigo analisa a reportagem, realizada por Jennifer Ann Thomas, intitulada “Fuga de uma ditadura: a saga dos venezuelanos no Brasil”4, publicada na revista brasileira Veja (edição n. 2646, de 07 de agosto de 2019), não apenas sobre os imigrantes venezuelanos no Brasil, mas também sobre a crise, política e humanitária, na Venezuela. Empreendemos uma análise de discurso, centrada nas expressões linguísticas utilizadas, que representam as diferenças entre “eles” (os outros, a Venezuela e os seus cidadãos) e “nós”, o Brasil e os brasileiros. Temos presente que a linguagem é uma construção social, em que os discursos enunciados, não apenas representam as diferenças sociais, como, por outro lado, concorrem para a realidade dessas diferenças. Realizámos o processo analítico recorrendo à reportagem disponibilizada pelo portal da revista Veja.

A revista Veja, criada em 1968 pela Editora Abril, é uma das publicações semanais, em formato revista, de maior circulação no Brasil. Conhecida pela sua linha editorial extremada, é uma revista conservadora, conhecida pela parcialidade das suas coberturas político-partidárias, designadamente na fiscalização do poder político e dos seus representantes. O Grupo Abril não torna explícitos para o público os seus princípios editoriais, nem o código de conduta dos seus jornalistas. Em carta ao leitor (Carta ao leitor: sobre princípios e valores, 2019), explica que os seus “compromissos não são com pessoas ou partidos. São com princípios e valores”. E afirma guiar-se pelo interesse da “opinião pública”. Como missão, afirma estar empenhada em contribuir para a difusão “de informação, cultura e entretenimento, para o progresso da educação, a melhoria da qualidade de vida, o desenvolvimento da livre iniciativa e o fortalecimento das instituições democráticas do país”5.

A edição n. 2646, de 7 de agosto de 2019, dedica a capa à migração venezuelana6. Jennifer Ann Thomas, jornalista inglesa, formada e radicada no Brasil, relata histórias de venezuelanos que “fugiram da crise que assola o país vizinho” (Thomas, 2019). Desde o início da crise (em finais de 2014) até ao presente, nenhuma edição da revista havia destinado a capa à temática, apesar da importância histórica destes acontecimentos e de cumprir vários critérios jornalísticos importantes, como os de proximidade, interesse público e permanência no noticiário nacional. Mas a edição n. 2594 da Veja, de 8 de agosto de 2018, já havia feito uma reportagem, que assinalava na capa a ascensão ao poder de figuras autocráticas por via democrática. Os países citados são a Venezuela, Rússia, Polónia, Hungria e Filipinas. E a edição 2312, de 13 de março de 2013, havia abordado o legado de Hugo Chávez, desde a sua chegada à Presidência da Venezuela até à sua morte, precisamente em 20137.

 

Contextos da crise na Venezuela

A crise económica mundial de 2008 e o abalo no setor petrolífero, em 2009, geraram consequências em todo o mundo, inclusive na Venezuela. Logo após a sucessão de Hugo Chávez (no poder, de 1999 a 2013), um socialista de cariz bolivariano, por Nicolás Maduro, num processo eleitoral acirrado, que fortaleceu a oposição (Botelho, 2008; Lopes, 2013; Schurster & Araújo, 2015), houve, em 2014, mais uma queda do valor do barril do petróleo no mercado internacional.

O petróleo representava grande parte das divisas da Venezuela e o país dependia da exportação. Esta última queda do preço do petróleo assinala o início da crise no país. E a extremada e violenta polarização política que se seguiu gerou graves danos institucionais e sociais:

a situação passou a piorar, até que, em dezembro de 2015, a oposição conquistou a maioria na Assembleia Nacional. O Tribunal Supremo de Justiça suspendeu quatro deputados, alegando fraude eleitoral, a Assembleia Nacional desobedeceu. A partir daí, a confrontação institucional se agravou e foi progressivamente se espalhando pelas ruas, alimentada também pela grave crise econômica e de abastecimento que eclodiu no país. Mais de cem mortos, uma situação caótica. (Sousa Santos, 2017, § 5)

Boaventura de Sousa Santos (2017, § 3) comentou o longo processo de sucessão na Venezuela, assim como as interferências externas, e relembrou a “tentativa de golpe de Estado em 2002, protagonizada pela oposição, com o apoio ativo dos Estados Unidos”, país que, em 2015, caraterizou a Venezuela como uma ameaça à segurança nacional. Todos esses factos terão contribuído significativamente para que a Venezuela entrasse num processo de desestabilização económica, que conduziu o país à hiperinflação, à falta de abastecimentos básicos, à escassez de alimentos, a dificuldades no sistema de saúde, a sanções financeiras internacionais (Santos & Vasconcelos, 2016). Entretanto, estes problemas foram-se agravando e persistem até hoje.

Pode dizer-se, por outro lado, que as reservas de petróleo da Venezuela – recurso estratégico para o país – são de interesse internacional, principalmente de potências com políticas neoliberais, como os Estados Unidos. Assinalando as interferências externas na Venezuela, Sousa Santos reforça:

a história recente mostra que as sanções econômicas afetam mais aos cidadãos inocentes do que aos governos. Basta lembrar das mais de 500 mil crianças que, segundo o relatório das Nações Unidas de 1995, morreram no Iraque como resultado das sanções impostas depois da Guerra do Golfo. Recordemos também que na Venezuela vive meio milhão de portugueses ou lusodescendentes. A história recente também ensina que nenhuma democracia sai fortalecida de uma intervenção estrangeira. (Sousa Santos, 2017, § 9-10)

Por sua vez, o regime de Maduro, com intervenções públicas de cunho propagandístico, foi denunciando a existência de uma “guerra econômica”, tanto da oposição, como de empresários, como ainda, de países capitalistas. E, entretanto, os protestos sociais passaram a pressionar o governo. Ocorreram, então, vários conflitos entre apoiantes e opositores a Maduro, que por sua vez se intensificaram. A repressão à liberdade de expressão passou a ser uma realidade agreste. Nessa época, o presidente queixava-se de uma tentativa de golpe de estado (Queda do petróleo em 2014 marcou início da crise da Venezuela, 2016).

A Organização dos Estados Americanos (OEA) publicou, em dezembro de 2017, um estudo sobre a situação dos direitos humanos na Venezuela. São aí assinalados a fraqueza das instituições democráticas, o crescimento da repressão da sociedade civil, a violência e a insegurança no país. Enfim, era manifesta a “grave crise política, econômica e social que atravessa o país nos últimos dois anos”, “caracterizada pelo desabastecimento generalizado de alimentos, medicamentos, tratamento, material e insumo médico, entre outros. Precisamente em 2015 registrou um aumento de 180,9% nos preços e em abril de 2016 de 80% da população enfrentava escassez de alimentos” (OEA, 2017, pp. 22-23).

Em janeiro de 2020, o líder venezuelano queixou-se, durante uma entrevista: “quando conseguimos um lote importante de medicamentos em algum país e estamos prontos para trazê-lo, chega uma ordem, retiram a carga e o paciente que está na Venezuela fica sem seu medicamento” (Singer, 2020, § 2). E neste mesmo mês de janeiro, Maduro recusou a visita da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) à Venezuela, com o argumento de que o país já não integra a OEA (Maduro nega ingresso de delegação da CIDH na Venezuela, 2020). O ministro dos Negócios Estrangeiros venezuelano, Jorge Arreaza, abordou o tema, nos seguintes termos (Lafuente, 2019):

temos um bloqueio, como não haveria carência de alguns produtos? Os custos deste ano em sanções superam, com o eventual confisco de Citgo, os 30 bilhões de dólares. Evidentemente tem de haver algumas limitações. A UE, o Governo espanhol, a ONU, deveriam fazer o que fizeram em Cuba depois de quase 60 anos: pedir o fim do bloqueio. A hiperinflação pode ter um componente de 25% de responsabilidade do Governo venezuelano, mas 75% é induzida por um câmbio que é colocado em algumas páginas web.

O auge do êxodo dos venezuelanos para o Brasil foi em 2018, quando o Estado de Roraima, apesar das transferências de recursos do governo federal, enfrentou graves problemas logísticos e grandes dificuldades para oferecer alojamentos condignos aos imigrantes. Foi várias vezes decretado em Roraima o estado de emergência social, tendo sido solicitada a intervenção das Forças Armadas para o controle da fronteira, assim como foram mobilizados outros recursos para a assistência à saúde, enfim, para um auxílio generalizado aos venezuelanos. Aos poucos, num processo que envolveu as Forças Armadas, organizações não-governamentais e civis voluntários, a situação regularizou-se, com os imigrantes venezuelanos a serem transferidos por outros Estados.

 

As práticas discursivas da revista Veja

Numa descrição detalhada, a reportagem da revista Veja é testemunha e protagonista do voo em que 63 refugiados são transferidos de Roraima para Santa Catarina, em julho de 2019. Comandado pelas Forças Armadas brasileiras, na Operação Acolhida, esta transferência é parte do processo de distribuição de refugiados do Estado de Roraima por outros Estados.

A narrativa jornalística traça descrições, físicas e psicológicas, das personagens, do ambiente, das ações e dos acontecimentos. Presentes em todo o texto, estas descrições chamam à atenção para as sensações e os sentimentos, procurando humanizar o relato e atrair o leitor. A narrativa circula pelas memórias dos venezuelanos, transita entre o passado, o presente e o futuro, representando o contexto económico e social da Venezuela e projetando, a partir do país de acolhimento, os possíveis cenários da sua permanência no Brasil.

O princípio da reportagem fixa a narrativa no tempo e no espaço e coloca a jornalista no teatro das operações: proximidade do jornalismo à realidade, com destaque para as personagens, as situações e os cenários.

Na chuvosa manhã do último sábado, 20, um Hércules C-130 da Força Aérea Brasileira (FAB) fez valer seus quatro motores para levantar voo de Boa Vista, em Roraima, rumo a Florianópolis, distante 5 000 quilômetros. Desenvolvida em 1951 nos EUA, a aeronave foi projetada para atender a fins militares. No entanto, a decolagem naquele dia de pista molhada nada tinha a ver com guerra. A missão era de paz: levar 63 refugiados venezuelanos, entre eles vinte crianças, para Santa Catarina, onde passariam a residir com familiares ou em abrigos. Um dos passageiros era Carlos Montaño, de 28 anos: ‘Estou com medo por ser a primeira vez que voo. E por não ter ideia do que nos espera’, admitiu ele. (Thomas, 2019, § 1)

A “chuvosa manhã” de sábado cria o efeito de alguma melancolia. O céu cinzento e a insegurança quanto ao amanhã convidam a uma introdução subtil. Palavras como “guerra” e “paz” são escolhidas com o propósito de uma óbvia contraposição. Após uma travessia, da Venezuela para o Brasil, marcada pela escassez e o desamparo, umas largas dezenas de venezuelanos têm agora a possibilidade de construir uma vida melhor. Ao longo da reportagem, várias passagens marcam as diferenças entre “nós”, o Brasil e os brasileiros, e “eles”, a Venezuela e os venezuelanos. Por exemplo, a força e a potência do avião Hércules, da Força Aérea Brasileira, opõem-se à fragilidade demonstrada pelo medo de um dos passageiros.

Sendo certo que a função conotativa da linguagem pode ser empregue em jornalismo, sobretudo em jornalismo de revista, a jornalista, autora da reportagem, ressalta expressões e metáforas com referências ao clima, por simbolizarem a gravidade da situação e os incidentes do percurso, durante a viagem. A utilização conotativa da linguagem é um recurso recorrente em matérias sobre refúgio e migração, porque estas simbolizam a gravidade da situação. Um tal recurso enfatiza a “saga”, a “jornada”, a “odisseia”, a “aventura”, dado que as mudanças quase sempre envolvem dificuldades e incerteza. Verbos como “escapar” e “fugir” são frequentes. É, aliás, o verbo latino refugere, ação de fugir, que está na origem do termo refugiado. O substantivo feminino “fuga” foi utilizado no título da reportagem. Em alguns casos, a “fuga” remete para conceitos vagos, para fatalidades sobre as quais não temos o menor controle e para fatores externos (Thomas, 2019). Entretanto, a narrativa vai descobrir responsabilidades pela dor e pela morte na política externa, seja norte-americana, seja venezuelana (Thomas, 2019). A jornalista prende o enunciado a pessoas, a espaços geográficos, a datas, a factos históricos e a fotografias, como se fossem cópias da realidade – é o chamado efeito de ancoragem e de referencialidade do discurso (Peruzzolo, 2004).

Para grandes reportagens, é reunida muito mais informação do que de facto aquela que se utiliza. A jornalista informa que “conversou com mais de oitenta venezuelanos”. E que elegeu apenas alguns para ilustrar a matéria. São convocadas fontes variadas e plurais. No entanto, o tratamento que lhes é dado insinua um ponto de vista um tanto conservador e elitista. A referência ao medo de um dos passageiros, assinalada acima, remete para um homem de 28 anos, temeroso. E a sua profissão não é revelada. Todavia, já não é assim que é tratado Diover Gonzales, de 59 anos, nem os membros da sua família. Ele próprio neurocirurgião, tem uma esposa enfermeira e um filho advogado (Thomas, 2019, § 2).

Jennifer Ann Thomas é uma jornalista. Sendo diplomada, distingue o “outro”, sem formação, ao mesmo tempo que mostra ao leitor a que ponto é grave a crise de que se ocupa, uma crise que impõe o exílio a profissionais, que são médicos e pedagogos, enfim, que são da classe média e alta. E a mesma coisa acontece mais adiante, quando escolhe a voz passiva para designar a fonte: “Arisnelis Castañeda, de 28 anos, mãe solteira de cinco filhos” (Thomas, 2019, § 9).

A narradora, ora se mostra, ora se esconde; às vezes explica, às vezes insinua; e adianta ou retarda o passo da história. Atribui ao narrador a caraterística da ambiguidade, fazendo-o alternar entre uma mera personagem e um narrador omnisciente (Vilas-Boas, 1996). Evoluindo na terceira pessoa, o narrador pode distanciar-se do discurso e criar o efeito de imparcialidade; ou então, ao aproximar-se dele, o efeito de veracidade. Vejamos os seguintes exemplos: “a reportagem de Veja conversou” (Thomas, 2019, § 2); “Veja flagrara” (Thomas, 2019, § 4). E ao mesmo tempo que se aproxima o narrador dos refugiados e se cria deste modo um efeito de subjetividade, fabrica-se a credibilidade nos leitores, dado que só o procedimento retórico faz a simulação de que alguém narra o vivido, e que esse alguém é precisamente o jornalista, que presenciou os factos “ao longo de cinco semanas de junho e julho” (Thomas, 2019, § 2).

A prática jornalística da reportagem da revista Veja, que é posta em discurso, narrativo, opinativo e interpretativo (Vilas-Boas, 1996), não apresenta, todavia, grande novidade para quem acompanha o assunto. Não instiga o leitor, nem se antecipa às suas expectativas. Reproduz o senso comum, com informações e acontecimentos de ampla divulgação e comoção, como acontece ao citar migrantes que morreram afogados (Alan Kurdi, em 2015, Óscar Martínez Ramírez e sua filha, em 2019) (Thomas, 2019, § 6-7), ou então ao convocar as políticas norte-americanas sobre os imigrantes como exemplo a não seguir. Porém, o uso do advérbio “afinal” dá outro sentido ao discurso, indicando que muitos norte-americanos estavam cansados e esperavam uma solução definitiva:

a situação, de fato, é dramática. Desde 2012 mais que dobrou o número de expatriados em todo o mundo. Hoje, há 25,9 milhões de indivíduos reconhecidos oficialmente pela ONU com o status de refugiados. O país que mais recebeu solicitações em 2018, os Estados Unidos, não tem sido nada caloroso com os imigrantes. Não é de estranhar, afinal o presidente Donald Trump se elegeu justamente com a promessa de construir um muro na fronteira com o México para impedir não só a migração de cidadãos daquela nação como também de qualquer pessoa que faça de seu território a porta de entrada para a realização do sonho americano. (Thomas, 2019, § 6)

Esta prática jornalística não problematiza a questão e elimina a sua complexidade, ao retirar do leitor a possibilidade do contraditório, que é fundamental para a construção da reflexão crítica. Portanto, em síntese, “o conto é sempre o mesmo” (Martins, 2019, p. 8).

Ao assinalar o número de venezuelanos ouvidos e a duração em semanas da realização da reportagem, tem-se a ideia de que a repórter mergulhou no assunto. “Em cinco semanas, de junho e julho, a reportagem de Veja conversou com mais de oitenta venezuelanos” (Thomas, 2019, § 2). E, todavia, do que se trata é apenas de um efeito de aprofundamento. A matéria é bastante parca, superficial, repleta de lugares comuns, de adjetivos e de advérbios – o que é manifestamente insuficiente para constituir capa de uma revista lida por milhões de pessoas.

Os dados de agências oficiais (ONU, Acnur, Polícia Federal, Conare) estão dispostos no texto. Os números “adjetivados” assustam o leitor menos atento: “todos os dias, cerca de 250 venezuelanos buscam exílio no Brasil” (Thomas, 2019, § 5). A ênfase empregue na construção frásica anuncia o conteúdo e o tom do parágrafo:

trata-se do maior fluxo migratório, por meio de fronteiras terrestres, já recebido pelo país. Apenas em 2018, aproximadamente 90.000 pessoas fugiram do regime de Maduro em busca de uma nova vida em solo brasileiro. Desde o agravamento da crise por lá, em 2015, mais de 170.000 pessoas se retiraram da Venezuela tendo o Brasil como destino. No ano passado, o país bolivariano se tornou líder de um ranking vergonhoso: ultrapassou Afeganistão, Síria e Iraque e se transformou na nação de onde saiu a maior quantidade de exilados do planeta. Só em 2018, 341.800 venezuelanos solicitaram asilo em algum lugar do mundo. (itálico acrescentado) (Thomas, 2019, § 5)

Neste caso, os números representam pessoas. O “ranking vergonhoso” remete para indivíduos, que são cidadãos venezuelanos à procura de soluções e de recursos para uma sobrevivência digna, que o seu país já não oferece. Por sua vez, a comparação da Venezuela com o Afeganistão, a Síria e o Iraque constitui uma crítica pesada, dado que os países de referência são ditatoriais e autoritários, além de que enfrentam o terrorismo. A aproximação entre países na comparação feita induz o leitor a pensar a mesma coisa da Venezuela. A reportagem ressalta: “12% da população, de 32 milhões de habitantes, submetida ao regime bolivariano, já deixou o país” (Thomas, 2019, § 7), cerca de 38% dos venezuelanos optaram pelo Brasil – 3% do total de 11.231 indivíduos reconhecidos como refugiados no Brasil. “Até o momento, em torno de 15 000 desses imigrantes já foram transferidos para cidades brasileiras. Mas outros 16 000 ainda aguardam, com alguma esperança, uma chance para recomeçar a vida” (Thomas, 2019, § 11). Não existe referência ao destino que tomam os outros 62%.

E, todavia, existe informação que nos dá conta de que 21 mil venezuelanos já foram reconhecidos como refugiados por outras nações. E são também conhecidos dados de refugiados ao nível mundial. Para Niusarete Lima, assessora do Ministério da Cidadania brasileiro, se cada um dos mais de seis mil municípios brasileiros acolhesse uma família, nem se notaria (Gortázar, 2019). No entanto, informações desta natureza, que têm como objetivo dar perspetiva aos números da onda migratória, utilizando comparações com a população, a extensão territorial e a realidade de outros países, não aparecem na reportagem em análise.

Até 2018, 3,4 milhões de venezuelanos fugiram do país (Thomas, 2019). O Brasil enquadra-se em sexto lugar, entre as nações que mais solicitações receberam para acolhimento de refugiados em 2018, nada menos que 80 mil (Thomas, 2019).

Evidentemente que numa reportagem jornalística, nem todos os aspetos de um tema podem ser abordados. Existem limites que são impostos pelo espaço e pelo escopo. O ponto de vista, a focalização, a abordagem e tom não são limitados pelo espaço. Trata-se de uma escolha da jornalista da revista Veja. O ponto de vista é um propósito, uma linha de orientação, nem sempre explícita, é a proposta de um olhar, para alguma coisa que é apresentada ao leitor. O ponto de vista pode ser apresentado através da interpretação que é dada no desdobramento do facto. O enfoque é o “rumo” a dar à escolha de uma – ou de várias – “nuances” de um facto. Qualquer assunto ou tema exige um enfoque, pois envolve um número significativo de “nuances” ou desdobramentos (Vilas-Boas, 1996, pp. 20-21).

Não existe confronto de ideias na reportagem de capa da Veja. Nem sequer a exposição de argumentos e ideias, que apresentem outras versões para o mesmo facto. É manifesta a ausência de fontes oficiais do governo venezuelano, assim como não é exercido o contraditório sobre a situação política da Venezuela. Direcionada para o seu público específico, esta reportagem mantém um posicionamento conservador, de oposição à esquerda, qualquer que seja o país de que trate. “Fuga de uma ditadura: a saga dos venezuelanos no Brasil” situa o leitor num contexto histórico sobre a migração e sobre a Venezuela, apresentando pontos de vista já conhecidos, mesmo do leitor comum, dada a grande disseminação dos temas. E explica, deste modo, os motivos dos movimentos migratórios:

a situação da Venezuela está diretamente ligada à derrocada de uma proposta de esquerda, calcada no populismo e na irresponsabilidade econômica. O nome do grande vilão, sem dúvida, é Hugo Chávez. Governante de 1999 a 2013, ele inaugurou com seu jeitão histriônico o fracassado bolivarianismo. Após sua morte, assumiu o comando o vice-presidente Nicolás Maduro, uma espécie de clone do antecessor nos trejeitos e na falta de bom-senso. Dono da maior reserva de petróleo do mundo, o país se manteve durante décadas, e de forma artificial, à base da commodity. Quando o preço do petróleo caiu — em 2014 seu valor diminuiu 50% —, a fantasia acabou. Resultado: hiperinflação (hoje em 10 000 000%) e a falta de acesso a alimentos e medicamentos. Depois de uma série de protestos contra o regime, o governo instituiu uma Assembleia Constituinte em 2017 para assumir as funções da Assembleia Nacional, de maioria da oposição. O desdobramento dessa iniciativa agravou a crise: o ditador ganhou ainda mais poderes. Em meio ao caos de 2018, o então deputado Juan Guaidó se tornou líder da oposição. Em janeiro deste ano, ele se autoproclamou presidente da Venezuela. Donald Trump e o presidente Jair Bolsonaro, além de outros líderes ao redor do globo, declararam apoio ao insurgente. De nada adiantou. Maduro continua no poder até hoje. (itálico acrescentado) (Thomas, 2019, § 8)

“Destruída pelo governo autoritário, a Venezuela sofre” (Thomas, 2019, § 9). A crise neste país da América Latina é enquadrada, como se o ponto de vista das nações capitalistas, opositoras ao regime de Maduro, estivesse naturalizado. Não são apresentadas outras explicações sobre os motivos que levaram à crise económica.

Carateres a negrito reforçam, entretanto, os valores temáticos presentes na reportagem: a ditadura, que é um regime político autoritário e uma forma de governo igualmente autoritária, é de alguém, no caso, de Nicolás Maduro. Nicolás Maduro é o responsável pela crise vivenciada no país. A situação na Venezuela é insustentável e as pessoas vão continuar a fugir do país. “É preciso que se chegue quanto antes a um acordo entre os dois lados que brigam pelo poder na Venezuela”, alerta o sociólogo americano David Smilde, membro sénior do Escritório de Washington para a América Latina. “Lamentavelmente, Maduro ainda resiste” (Thomas, 2019, § 11). São utilizados advérbios para reforçar a posição da jornalista. E as fontes escolhidas falam de uma perspetiva unilateral.

Tirando Nicolás Maduro, não existem na reportagem da revista Veja outros políticos venezuelanos – todos são apagados. Oficialmente, a Venezuela é uma república presidencialista. Tendo em conta os acontecimentos dos últimos anos, organizações e instituições internacionais caracterizam-na como uma ditadura, impondo-lhe sanções.

A problemática dos bloqueios e das sanções internacionais, de extrema relevância para a compreensão da crise em curso na Venezuela, não é sequer invocada em termos contrastantes na reportagem da Veja. A reportagem não apresenta dados do relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) sobre o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Não é feita qualquer menção à participação de multinacionais no mercado petrolífero da Venezuela, nem às tentativas de interferência norte-americanas na política do país. Tampouco é feita referência à conturbada oposição de Chávez e Maduro ao imperialismo norte-americano, assim como à oposição dos EUA ao socialismo bolivariano (Lopes, 2013; Sousa Santos, 2017).

As críticas à Venezuela também estão nas vozes das personagens, que se fazem presentes no discurso da Veja. Ao todo, quase 40% da reportagem é preenchida com fotografias, assinadas por Jonne Roriz. Estas fotografias incidem sobre famílias, sendo dado destaque às suas vozes. E seguem-se narrativas que descrevem a travessia empreendida por cada uma delas, assim como a sua atual situação. Ao delegar a palavra em membros de famílias venezuelanas, a jornalista humaniza e dramatiza a reportagem, procurando efeitos de verdade, pela invocação dos altos valores democráticos, como sejam as liberdades individuais, a defesa da pátria, o controle do Estado e a economia de mercado (Thomas, 2019). E através de um artifício retórico, o narrador como que se faz testemunha da história que os refugiados vivem.

“Vi crianças morrendo de desnutrição. Quando perdi o emprego de vendedora de roupas, achei que minha família passaria por drama igual. Vim ao Brasil por ter ouvido que aqui não faltava comida.” Arisnelis Castañeda, 28 anos, mãe solteira de cinco filhos.

Há um mês no abrigo BV8, em Pacaraima, no norte de Roraima, ela saiu com os filhos, com idade entre 2 meses e 10 anos, da cidade venezuelana de San Félix. O marido a abandonou com as crianças. O primeiro trecho da viagem foi feito de ônibus. A partir de Santa Elena, ainda na Venezuela, indígenas ajudaram o grupo a atravessar a fronteira brasileira.

“Buscamos um futuro para nossos filhos”. Roselis Figueira, de 33 anos, com o marido, Ricardo Moreno, de 30, e o filho Miguel, de 9.

“Fiquei desesperado quando minha filha nasceu e não pude estar com minha mulher. Agora vamos reconstruir a vida juntos.” Luis Hernandez, de 29 anos.

“Ela é tão delicada”, disse Hernandez, lágrimas nos olhos, ao conhecer a filha de 1 mês de vida, em Dourados (MS), após três meses separado da família. (Thomas, 2019)

O discurso da Veja apresenta vários exemplos positivos, que enaltecem o Brasil, como é o caso da ação dos militares brasileiros, das Forças Armadas e do Comandante-chefe Jair Bolsonaro, e também da empresa de carnes Seara, responsável por empregar 420 venezuelanos em Dourados (Thomas, 2019), e ainda do “bilionário Carlos Wizard Martin” (Thomas, 2019, § 9). E, simultaneamente, critica a política de Nicolás Maduro, sugerindo um patriotismo equivocado, que decalca a dicotomia bem versus mal, capitalismo versus socialismo:

Operação Acolhida8, capitaneada pelas Forças Armadas desde março de 2018, junta órgãos do governo federal e agências da ONU, com o objetivo de providenciar moradia, alimentação e trabalho aos que fogem da ditadura de Nicolás Maduro – e da miséria que atinge 90% da população da Venezuela. (Thomas, 2019, § 1)

O Exército [brasileiro] atua como uma espécie de RH: tira foto, prepara o currículo e registra habilidades de cada um. (Thomas, 2019, § 9)

Vemos também, na reportagem da Veja, Carlos Wizard Martins a ser fonte na reportagem e personagem da matéria seguinte da revista (Thomas, 2019). Novamente, a relação dominantes versus subalternos aparece como categoria discursiva, fazendo supor que o capitalismo é a única solução para questões sociais. Tudo leva a crer, aliás, que a matéria de capa tenha servido como pano de fundo para a matéria sobre o “bilionário que abraçou a causa dos refugiados”, Carlos Wizard Martins.

Estas e outras passagens marcam as diferenças entre “nós”, país democrático e acolhedor, e “eles”, país ditatorial e miserável: “venezuelanos que atravessaram a fronteira com o Brasil para escapar da crise que assola seu país. O que essas famílias vivem é uma autêntica odisseia” (Thomas, 2019, § 2); “no voo do Hércules da FAB, ninguém passou por essa situação”. “Ao Brasil, cabe a tarefa de continuar servindo de porto seguro (…) é um dever humanitário e nos engrandece como nação” (Thomas, 2019, § 11).

A reportagem alimenta, por certo, a curiosidade do público comum. Mas não vai além disso. Está longe de satisfazer o aprofundamento das matérias, de modo a ser possível formar uma opinião. Em conclusão, a reportagem é parcial e carece de dados que ilustrem a complexidade das questões políticas que atravessam a migração venezuelana.

 

Considerações finais

No paradoxo da relação entre o eu e o outro, quanto mais distantes estivermos daquilo que identificamos como o “nós”, mais os discursos estarão amarrados a lógicas extremadas, segregacionistas, intolerantes, dicotómicas, face ao migrante, ao refugiado, ao estrangeiro, ao outro, refletindo uma ordem de sentido que já não é de promessa, porque nenhuma palavra a redime. Tendo o homem deixado de ser “animal de promessa” (Martins, 2002a, 2009, 2011/2017), como o havia definido Nietzsche (1887/1988, p. II), porque a sua palavra já não é capaz de prometer, deu-se, com efeito, no nosso tempo, a translação do regime da palavra para o regime da imagem tecnológica. E esta translação teve como consequência a crise da verdade, e simultaneamente o “empobrecimento da experiência” (Benjamin, 1933/2005), que na nova “ordem sensológica” (Perniola, 1993), se esgota em excitação, efervescência, espectáculo, euforia, simulacro, meros “guardiões do sono” da razão, como assinalou Guy Debord (1967/1991, p. 16).

E essa translação deixou a comunidade humana “em sofrimento de finalidade” (Lyotard, 1993, p. 93; Martins, 2002a, 2002b), ocorrendo nela profundas alterações no aparelho de percepção. Aí se misturam as águas de fenómenos “como a expropriação da socialidade, a imobilidade e a desterritorialização, a perda de consciência histórica e a dissolução da memória coletiva”, e também, os fenómenos opostos “de naturalização da cultura, intensificação dos laços sociais, localismo, tribalismo e hedonismo” (Martins, 2007, p. 6). Com efeito, cada vez mais, as figuras “de projeto, promessa, historicidade e finalidade”, são substituídas por figuras “onde uma permanente hemorragia de sentido não pára de declinar a temática do fim, seja do fim da história e da verdade, seja do fim do simbólico e da mediação” (Martins, 2007, p. 6).

Noutros estudos, confirmámos que a presença de migrantes e refugiados foi narrada como uma ameaça à normalidade e à estabilidade sociais. A perpetuação deste regime discursivo funciona, com efeito, como um mecanismo de exclusão, gerador de novos medos e inseguranças (Marcondes & Martins, 2019). No estudo atual, concluímos que a revista Veja reproduz um discurso hegemónico, de cariz reducionista, conservador e nacionalista. As explicações, as escolhas linguísticas, as estatísticas e a escolha de fontes próximas ao poder governamental brasileiro dizem o que é adequado que a população saiba. Na reportagem da Veja são ignorados, ou mesmo silenciados, entendimentos que poderiam contrarpor-se aos apresentados, e que a exigência jornalística justificava que se lhes desse destaque.

O silêncio discursivo da Veja é excludente, porque diferencia o “nós” e os “outros”, os dominantes e os dominados (Weber, 2004), os poderosos e os subalternos (Spivak, 1985). Este regime do olhar concretiza-se num discurso de apagamento do outro. Trata-se de um discurso que se inscreve numa ordem que tudo reduz à unidade, não dando espaço à alteridade (Martins, 2019).

As dicotomias que permeiam o discurso, entre o norte (central e desenvolvido) e o sul (periférico e subalterno) são repetidas no contexto latino-americano. Faz-se aí uma acerada crítica ao regime venezuelano, sendo enaltecida a democracia brasileira, sem ter em linha de conta os percalços por que passa o Brasil no que respeita às ameaças à liberdade de expressão e à democracia. As consequências deste regime do olhar são o reforço das disparidades culturais e a negação das diferenças. Estrangeiros, migrantes, refugiados permanecem no discurso dominante como subalternos, vítimas de uma ditadura de esquerda. Com o discurso mediático a reproduzir o ponto de vista hegemónico, os outros mantêm-se apagados no próprio país que escolheram para ser a sua pátria.

As representações sociais que os média fazem dos outros e de si mesmos concretizam efeitos de poder, que interferem na construção da atual visão de mundo, pois produzem o inconsciente cultural que naturaliza a supremacia capitalista, reproduzindo os seus valores e as suas relações hierárquicas.

A narrativa da revista Veja sobre a crise na Venezuela concretiza práticas discursivas de assimilação da diferença e de exclusão do outro. O ponto de vista adotado vai no sentido de enfatizar os perigos dos governos de esquerda. O outro, que é o subalterno, ganha visibilidade pela voz da Veja, que apenas reproduz o pensamento hegemónico. A Veja não se abre ao concerto das vozes plurais, que possibilitem a compreensão ampla da migração de venezuelanos para o Brasil e que fomente a criação de novas perspetivas para a inclusão e para a socialização dos novos atores sociais que os migrantes constituem.

 

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Notas biográficas

Moisés de Lemos Martins é Professor Catedrático do Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade do Minho. Dirige o Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS), que fundou em 2001. É diretor da revista Comunicação e Sociedade também da Revista Lusófona de Estudos Culturais (RLEC) e da revista Vista. Doutorado pela Universidade de Estrasburgo em Ciências Sociais (na especialidade de Sociologia), em 1984, tem publicado, no âmbito da Sociologia da Cultura, Semiótica Social, Sociologia da Comunicação, Semiótica Visual, Comunicação Intercultural, Estudos Lusófonos. Dirigiu durante dez anos o Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho (de 1996 a 2000, e de 2004 a 2010). Em 2016, a Universidade do Minho concedeu-lhe o Prémio do Mérito Científico. Destacam-se as seguintes obras: Crise no castelo da cultura. Das estrelas para os ecrãs (2017, 2011); A linguagem, a verdade e o poder. Ensaio de Semiótica Social (2017, 2002); O olho de Deus no discurso salazarista (2016, 1990); A internacionalização das comunidades lusófonas e ibero-americanas de Ciências Sociais e Humanas. O caso das Ciências da Comunicação (2017); Lusofonia e interculturalidade – promessa e travessia (2015).

ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3072-2904

Email: moisesm@ics.uminho.pt

Morada: Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, campus de Gualtar, 4710-057 Braga, Portugal

Valéria Marcondes é docente na Universidade do Oeste de Santa Catarina (Santa Catarina, Brasil), na Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas (Facisa), Curso de Jornalis-mo. Doutora em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Gran-de do Sul, com bolsa Capes (2011). Pós-doutora pela Universidade do Minho (Braga, Portugal), 2017, sob supervisão de Moisés de Lemos Martins. Participou do Programa de Doutorado com Estágio no Exterior (PDEE), em 2009, na Universidade Autônoma de Barcelona (UAB), com bolsa Capes. Mestre em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, com bolsa Capes (2006), bolsa CNPq. Jornalista pela Universidade de Passo Fundo (2003). Diretora de Pesquisa e Pós-graduação stricto sensu na Unochapecó (2012-2016).

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1670-4892

Email: leriamarcondes@hotmail.com

Morada: Rodovia BR 282, KM 528, Acesso Linha Limeira, 199, CEP 89.825-000 Xa-xim/ SC, Brasil

 

Submetido: 14/04/2020

Aceite: 17/07/2020

 

NOTAS

1 Informação retirada de http://www.acnur.org/portugues/quem-ajudamos/refugiados/

2 Informação retirada de http://publiabril.abril.com.br/svp/tabelas/circulacao?platform=revista-impressa-mais-digital

3 Informação retirada de http://publiabril.abril.com.br/midia_kits

4 Disponível em https://veja.abril.com.br/mundo/fuga-de-uma-ditadura-a-saga-dos-venezuelanos-no-brasil/

5 Informação retirada de https://grupoabril.com.br/

6 Retirado de https://veja.abril.com.br/mundo/fuga-de-uma-ditadura-a-saga-dos-venezuelanos-no-brasil/. O conteúdo disponível no portal da Veja é acompanhado por uma vídeo-reportagem (disponível em https://www.youtube.com/watch?time_continue=5&v=aMBUtIo9gKA&feature=emb_logo). Até 07 de março de 2020, alcançou 40.479 visualizações. Neste artigo, o vídeo não foi analisado.

7 Retirado de https://acervo.veja.abril.com.br/

8 Mais informação disponível em http://www.eb.mil.br/operacao-acolhida

 

Agradecimentos

Este trabalho é apoiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto UIDB/00736/2020.

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