SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.38Discursos migrantes: estratégias de construção de nós e os outros em discursos jornalísticos de opinião índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Comunicação e Sociedade

versão impressa ISSN 1645-2089versão On-line ISSN 2183-3575

Comunicação e Sociedade vol.38  Braga dez. 2020

https://doi.org/10.17231/comsoc.38(2020).3134 

NOTA INTRODUTÓRIA

Discursos sobre migrantes, refugiados e minorias na esfera pública: o século XXI em debate

Discourses on migrants, refugees and minorities in the public sphere: the 21st century under debate

 

Moisés de Lemos Martins*

https://orcid.org/0000-0003-3072-2904

Maria Aldina Marques**

http://orcid.org/0000-0003-3263-1977

Rui Ramos***

http://orcid.org/0000-0001-8700-8301

* Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Portugal

** Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho, Instituto de Letras e Ciências Humanas, Universidade do Minho, Portugal

***Centro de Investigação em Estudos da Criança/Centro de Estudos Humanísticos, Instituto de Educação, Universidade do Minho, Portugal

 

A revista Comunicação e Sociedade dá voz, na presente edição, a estudos sobre diferentes estratégias discursivo-textuais convocadas em discursos políticos, da imprensa e das redes sociais sobre migrantes, refugiados e minorias, que circulam nas sociedades deste nosso século XXI.

Desde a II Guerra Mundial que a Europa não assistia a um fluxo de refugiados e migrantes tão elevado como o que se tem verificado na última década. E, no continente americano, o fluxo migrante tem sido alvo, igualmente, de particular atenção política e mediática. Os êxodos têm-se agudizado, o que configura um novo problema social para os estados e exige posicionamentos dos cidadãos. No espaço público (média e redes sociais, em particular) há práticas discursivas que materializam conflitos entre as vozes mais securitárias, que apelam a inseguranças e ao risco, e as mais humanitárias, que propõem um acolhimento efetivo, evocando valores éticos e de civilização. Mas os medos, as reações ao diferente e os confrontos culturais (onde se incluem os linguísticos, os religiosos, os identitários, os étnico-rácicos, etc.), assim como as imagens construídas de nós e do outro ganham particular relevo entre os argumentos esgrimidos.

Como tantas outras dimensões da nossa vida coletiva, esta é uma questão fortemente condicionada pelos discursos públicos com os quais nos confrontamos. Na imprensa, identificamos discursos de cidadãos “anónimos”, que se cruzam com os de líderes de opinião, e intervenientes reconhecidos no espaço público. Nenhum é neutro, nenhum se encontra desenraizado das suas circunstâncias enunciativas, dos valores e das idiossincrasias do seu autor. Pelo contrário, todos veiculam, necessariamente, uma visão do mundo particular, procurando convencer o leitor a partilhá-la. É verdade que todos os discursos, do mais marcadamente argumentativo ao mais (aparentemente) informativo, são percorridos por uma

generalizada orientação causativa ou factitiva: neles será de surpreender um mais ou menos subtil, mas sempre operante papel de influenciador assumido, quase sempre veladamente, pelo locutor – papel que vai do instituir o alocutário em testemunha e/ou juiz das suas crenças, atitudes ou propósitos, às alterações de natureza cognitiva, emotiva ou comportamental desse mesmo alocutário. (Fonseca, 1992, p. 238).

Contudo, nos casos presentes, porque se trata de discursos públicos, que participam ativamente na configuração da vida social, tais produções discursivas vão além da generalizada dimensão causativa ou factitiva, que enforma todo o enunciado: são estrategicamente configurados como veículos de argumentação, de persuasão e de manipulação. E adquirem poder acrescido por serem discursos que (re)configuram realidades com as quais o cidadão não tem contacto direto, mas mediado pelos média (e aqui o pleonasmo é intencional).

Importa, portanto, analisar tais discursos, desconstruí-los, munindo os cidadãos de instrumentos e competências para leituras conscientes e informadas. Não se trata, necessariamente, de contrariar este ou aquele discurso, oriundo deste ou daquele universo político-ideológico, adotando o investigador posições sociais de denúncia e confrontação. Tal tarefa pode e deve ser deixada ao cidadão, se este considerar que os valores que tais discursos veiculam conflituam com os seus. Mas pode e deve o investigador contribuir para tornar mais visíveis os mecanismos de construção do real que o discurso opera, o exercício da influência, a manipulação. Cidadãos conscientes e alertados são cidadãos com poder acrescido para participarem ativamente na praxis social, de modo crítico e responsável.

Para levar a cabo tal tarefa, os estudos presentes adotam os fundamentos teóricos e os instrumentos analíticos próprios da investigação em torno dos discursos. Significa tal afirmação que é reconhecida uma importância significativa à materialidade discursiva que tece as malhas dos textos/discursos, adotados como objetos de análise. Nuns casos com maior relevo do que noutros, os artigos que o presente volume apresenta assumem uma orientação analítica discursiva, considerando que a comunicação se opera através de discursos contextualizados, dentro de um campo social específico (Bourdieu, 1982), comunicando com dimensões não-verbais e com outros discursos, prévios ou futuros, factuais ou potenciais, como Bakhtine (1930/1981) há muito o sublinhou.

No primeiro estudo do volume, Maria Aldina Marques e Rui Ramos analisam a materialidade linguística dos textos para identificar o tratamento do fluxo migratório em direção à Europa, feito por uma revista e dois jornais portugueses de referência. Situam o corpus num período de intensa visibilidade pública da questão (setembro e outubro de 2015). Concluem que tal tratamento foi fortemente polarizado num nós versus eles e que a argumentação se fundamenta insistentemente em valores éticos, largamente partilhados pelos líderes de opinião e porta-vozes reconhecidos, mas nem sempre por participantes “anónimos” na discussão mediática.

O estudo que surge de seguida, da autoria de Alexandra Guedes Pinto, analisa manifestos políticos (de candidatos às eleições presidenciais portuguesas de 2016), procurando identificar e descrever como estes discursos codificam argumentativamente a questão dos refugiados que chegam à Europa. Com uma abordagem metodológica semelhante à do estudo anterior, conclui que os objetos de análise apresentam similitudes em termos genológicos, mas diversidade de estratégias discursivas, associadas aos diferentes ethè dos candidatos.

O terceiro estudo, de Moisés de Lemos Martins e Valéria Marcondes, direciona o seu foco para outra geografia, mas também para personagens que repetem narrativas de sofrimento e fuga: sob a referência teórico-metodológica da Semiótica Social, analisa uma reportagem publicada em 2019 pela revista brasileira Veja, sobre os venezuelanos que buscam refúgio no Brasil. Também estes investigadores identificam e descrevem estratégias de construção de dicotomias entre nós e eles, concluindo que a reportagem sob escrutínio veicula um discurso excludente do outro, reprodutor de um discurso oficial hegemónico, reducionista, conservador e nacionalista.

No artigo seguinte, Célia Belim sublinha o facto de, nas sociedades modernas ocidentais, se viver numa “esfera persuasiva”, o que significa reconhecer o poder da palavra na praxis social. Convoca os conceitos aristotélicos de ethos, pathos e logos para analisar a retórica de campanhas de comunicação pública sobre refugiados e migrantes e conclui que, para o sucesso do exercício comunicativo nesse campo, há aspetos de credibilidade do enunciador que são fundamentais; há um forte recurso à dimensão afetiva; e são convocados recursos materiais e comprováveis.

Tal como outros investigadores que contribuem para a construção do presente volume, Isabel Margarida Duarte centra a sua análise em artigos jornalísticos (sete crónicas e reportagens extraídas do diário Público e da revista Visão) sobre refugiados e migrantes. Identifica e descreve mecanismos enunciativos geradores de empatia e que, através dessa patemização do discurso, procuram a aproximação entre autor e leitor, favorecendo a eficácia da argumentação. Assinala como estratégia fundamental de tal processo a figuração dos próprios migrantes/vítimas como enunciadores.

Por sua vez, Dora Santos-Silva e Débora Guerreiro analisam a cobertura que os média portugueses fazem de dois movimentos migratórios forçados, um de 2015, outro de 2019. Apoiando-se numa análise de conteúdo das notícias, estas investigadoras mostram de que modo a nossa representação dos refugiados decorre da própria narrativa dos média. Com efeito, os média não se limitam a dizer a realidade; também entram no processo da sua produção. 

Isabel Reboredo Seara e Ana Lúcia Tinoco Cabral selecionam como objeto de análise um conjunto de comentários de utilizadores do Facebook, para analisar as estratégias empregadas no processo de desqualificação de migrantes refugiados em Portugal e no Brasil. Trata-se, assim, de um estudo sobre violência verbal em ambiente digital com destinatário específico, no qual as autoras identificam e descrevem as formas de materialização de tal violência.

Fernando Resende e Fábio Ferreira Agra, no estudo seguinte, abordam igualmente a construção das narrativas jornalísticas sobre os refugiados, recortando um corpus de artigos da Folha de São Paulo (setembro a dezembro de 2015). Coincidem com outros contribuintes para o presente volume na consideração de que os refugiados são configurados como outros, por oposição aos europeus. Enfatizam que o jornalista é criador do real, através do seu discurso, que está longe de ser “neutro” e puramente referencial, mas que entra nos diversos jogos de poder que percorrem as sociedades contemporâneas.

Abordando um corpus parcialmente diferente, constituído por artigos de jornais portugueses e alemães, publicados entre 2011 e 2017, Rita Himmel e Maria Manuel Baptista realizam dominantemente uma análise de conteúdo para identificarem, na construção discursiva do seu objeto de análise, a mesma dicotomia nós/eles que outros investigadores reconhecem nos seus corpora. Contudo, enfatizam no seu caso a reflexão sobre o que define o nós, europeus, e sobre os valores culturais que nos definem.

O conjunto de artigos temáticos encerra com o estudo de Patricia Posch e Rosa Cabecinhas, que selecionam cinco episódios da primeira temporada da série jornalística televisiva Portugal pelos Brasileiros, exibida no Brasil pela Rede Globo de Televisão, no início de 2018. O quadro téorico-metodológico adotado é o da Semiótica Social e o objetivo é o de identificar as imagens que o discurso mediático constrói dos imigrantes brasileiros em Portugal. Segundo as autoras, essa imagem é segmentada e parcial, operando uma homogeneização e uma elitização do fenómeno migratório.

Como pode verificar-se, os artigos temáticos apresentam traços comuns marcados, tanto para analisar as estratégias empregadas do ponto de vista teórico-metodológico, como das conclusões que extraem das análises desenvolvidas. Não deixam, contudo, de apresentar algumas diferenças de foco e objeto de análise específico – e, em alguns casos, de aspetos específicos relacionados com o quadro teórico adotado. Ainda que tenham sido desenvolvidos autonomamente, cruzam-se na emergência de diversas evidências apontadas nas conclusões respetivas.

O presente volume inclui ainda dois textos desalinhados com o seu tema central, na secção Varia.

O primeiro deles, da autoria de Eduardo Barroso, Rui Estrada e Teresa Toldy, reflete sobre o poder da imagem e o uso que dela foi feito em três períodos históricos do século XX: o nazismo, o estalinismo e a contemporaneidade. Defendem os autores que, rivalizando com o poder da palavra, a imagem assume diferentes estatutos, se resultar de fotografia ou de pintura: enquanto a primeira pode ser e tem sido manipulada, com objetivos diversos, a segunda não pode ser apagada.

O segundo artigo da secção Varia tem como autor Vincenzo Susca e reflete sobre a dinâmica social associada ao espetáculo (à indústria cultural), ao seu valor como “mercadoria” e ao respetivo consumo, em particular a partir de segunda metade do século XX.

Finalmente, o volume apresenta duas Leituras: a de Images of immigrants and refugees in Western Europe. Media representations, public opinion, and refugees’ experiences, por Fábio Ribeiro, e a de Empire, por Vítor Sousa.

 

Referências

Bakhtine, M. (1930/1981). La structure de l’énoncé. In T. Todorov, Mikhail Bakhtine et le principe dialogique, suivi de Écrits du Cercle de Bakhtine (pp. 287-316). Paris: Seuil.

Bourdieu, P. (1982). Ce que parler veut dire. Paris: Fayard.         [ Links ]

Fonseca, J. (1992). Ensino da língua materna como pedagogia dos discursos. In J. Fonseca, Linguística e texto/discurso. Teoria, descrição, aplicação (pp. 235-248). Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa.         [ Links ]

 

Notas biográficas

Moisés de Lemos Martins é Professor Catedrático do Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade do Minho. Dirige o Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS), que fundou em 2001. É diretor da revista Comunicação e Sociedade e também da Revista Lusófona de Estudos Culturais (RLEC) e da revista Vista. Doutorado pela Universidade de Estrasburgo em Ciências Sociais (na especialidade de Sociologia), em 1984, tem publicado, no âmbito da Sociologia da Cultura, Semiótica Social, Sociologia da Comunicação, Semiótica Visual, Comunicação Intercultural, Estudos Lusófonos. Dirigiu durante dez anos o Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho (de 1996 a 2000, e de 2004 a 2010). Em 2016, a Universidade do Minho concedeu-lhe o Prémio do Mérito Científico. Destacam-se as seguintes obras: Crise no castelo da cultura. Das estrelas para os ecrãs (2017, 2011); A linguagem, a verdade e o poder. Ensaio de Semiótica Social (2017, 2002); O olho de Deus no discurso salazarista (2016, 1990); A internacionalização das comunidades lusófonas e ibero-americanas de Ciências Sociais e Humanas. O caso das Ciências da Comunicação (2017); Lusofonia e interculturalidade – promessa e travessia (2015).

ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3072-2904

Email: moisesm@ics.uminho.pt

Morada: Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, campus de Gualtar, 4710-057 Braga, Portugal

Maria Aldina Marques é Professora Associada com Agregação do Departamento de Estudos Portugueses e Lusófonos, do Instituto de Letras e Ciências Humanas da Universidade do Minho, Portugal. É investigadora do CEHUM, Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho, e as principais áreas de investigação são a análise dos discursos, a pragmática e a argumentação. Tem orientado trabalhos de mestrado, doutoramento e pós-doutoramento, e possui mais de uma centena de publicações nacionais e internacionais.

ORCID: http://orcid.org/0000-0003-3263-1977

Email: mamarques@ilch.uminho.pt

Morada: Instituto de Letras e Ciências Humanas. Universidade do Minho. Campus de Gualtar. 4710-057, Braga

Rui Ramos possui doutoramento em Linguística desde 2006 e é Professor Auxiliar no Instituto de Educação da Universidade do Minho. É membro integrado do Centro de Investigação em Estudos da Criança e membro colaborador do Centro de Estudos Humanísticos da sua universidade. É editor-adjunto da REDIS – Revista de Estudos do Discurso (Faculdade de Letras do Porto/Universidade de São Paulo). Publicou diversos livros, capítulos de livro e artigos em revistas na área da Linguística (análise do discurso) e do ensino da língua portuguesa. Tem experiência de cooperação e trabalho em contextos internacionais como o Brasil, Timor-Leste e a Guiné-Bissau. Detalhes do seu percurso académico podem ser encontrados em https://www.cienciavitae.pt/281E-FBCD-2E5A.

ORCID: http://orcid.org/0000-0001-8700-8301

Email: rlramos@ie.uminho.pt

Morada: Universidade do Minho. Instituto de Educação. Campus de Gualtar. 4710-057 Braga

 

Agradecimentos

Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto UIDB/00736/2020.

Este trabalho foi também financiado por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto do CIEC (Centro de Investigação em Estudos da Criança da Universidade do Minho) com a referência UIDB/00317/2020.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons