SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.36Participação e património cultural imaterial: o estudo de caso de “Tava, lugar de referência para o povo Guarani”Participação efetiva com recurso a narrativas negociadas índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Comunicação e Sociedade

versão impressa ISSN 1645-2089versão On-line ISSN 2183-3575

Comunicação e Sociedade vol.36  Braga dez. 2019

https://doi.org/10.17231/comsoc.36(2019).2350 

ARTIGOS TEMÁTICOS

Plataformas online de participação cidadã: meta-síntese e avaliação crítica de seus impactos sociais e políticos

 

Online platforms for citizen participation: meta-synthesis and critical analysis of their social and political impacts

 

 

//

Rose Marie Santini*

https://orcid.org/0000-0003-0657-7217

Hanna Carvalho**

https://orcid.org/0000-0001-9743-5294

//

//*Departamento de Métodos e Áreas Conexas, Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil, marie.santini@eco.ufrj.br. //
//**Departamento de Métodos e Áreas Conexas, Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil, hannacarvalho35@gmail.com. //

 

 

RESUMO

Com o desenvolvimento tecnológico e comunicacional dos últimos anos, as plataformas online começaram a ser criadas tanto por governantes quanto por setores da sociedade civil com a promessa de aumentar o engajamento civil. Apesar do entusiasmo das discussões sobre o tema em diferentes esferas, pouco se sabe sobre as reais possibilidades de participação online e sua efetividade no processo de tomada de decisão política. Este artigo propõe uma análise crítica sobre as iniciativas online de participação cidadã, suas características e consequências sociais e políticas. São realizadas duas revisões sistemáticas de literatura (RSL) sobre estudos de casos no mundo e no Brasil, usando a base de dados Web of Science, Scopus e DOAJ, entre 1995 e 2015. Os resultados das duas RSL são comparados e 179 plataformas são classificadas de acordo com o novo modelo de análise proposto, mensurando a participação política e o impacto decisório de cada plataforma online estudada. Os principais resultados sugerem um crescimento significativo de plataformas de participação no Brasil e mundo, porém com efeitos mais retóricos do que práticos: a maioria das iniciativas são promovidas por portais de governo eletrônico no modelo descendente, com pouca ou nenhuma influência no processo decisório real. Conclui-se que o poder – e não a tecnologia – é o principal entrave para a efetiva participação cidadã online, cujas barreiras são cultivadas por uma elite política tradicional pouco interessada na construção de uma democracia transparente, inclusiva e colaborativa. Sugere-se uma nova agenda de pesquisa voltada para a elaboração de indicadores de transparência das informações públicas, o desenvolvimento de métodos para a mensuração do impacto social e político das iniciativas governamentais e o investimento em pesquisas empíricas sobre iniciativas da sociedade civil que possam revelar soluções para os problemas, os efeitos colaterais e as contradições inerentes à participação política online.

Palavras-chave: democracia; meta-síntese; plataformas online; participação política; revisão sistemática de literatura (RSL).

 

ABSTRACT

The technological and communicational development of recent years has led to the creation of online platforms both by governors and by civil society sectors, with the promise of enhancing citizen participation. Despite enthusiastic discussions regarding the issue in different spheres, not enough is known about the real potential of online participation and its effectiveness in the political decision-making process. This article proposes a critical analysis of citizen participation on online platforms, their social and political characteristics and consequences. Two systematic literature reviews (SLR) are conducted on case studies – the first one exclusively in Brazil and the second one on cases all over the world – using the Web of Science, Scopus and DOAJ databases, between 1995 and 2015. Primary results indicate a significant growth in participatory platforms in Brazil and the world, however with more rhetorical than practical effects: the majority of the initiatives are promoted by top-down style governmental electronic portals, with little or no influence in the real decision-making process. This article concludes that power – and not technology – is the key obstacle for effective online citizen participation, whose barriers are nurtured by a traditional political elite with little interest in building a transparent, inclusive and collaborative democracy. A new research agenda is suggested to develop public information transparency indicators – methods to measure the social and political impact of the governmental online platforms – as well as investment in empirical studies about civil society initiatives that could promote solutions for the problems, side effects and contradictions intrinsic to online political participation.

Keywords: democracy; meta-synthesis; online platforms; political participation; systematic literature review (SLR).

 

 

Introdução

Em um contexto de questionamento da legitimidade dos modelos de representação político-eleitoral, as novas tecnologias digitais vêm sendo apropriadas a fim de modificar o cenário político contemporâneo. A adaptação dos governantes e dos cidadãos aos meios digitais permitiu o surgimento de iniciativas com o intuito de diminuir o abismo entre as duas esferas e aumentar a participação civil nas questões políticas. Entretanto, questiona-se até que ponto a atuação dos cidadãos é realmente reforçada pelo uso de plataformas digitais e se a decisão dos gestores é influenciada por essa participação política online.

Além das redes sociais ou websites, que em certos momentos acabam se tornando palco de debate público, existem casos de plataformas online[1] criadas exclusivamente para permitir e/ou estimular a participação do cidadão nas questões políticas, seja incentivando-os a cobrar seus direitos, discutir e votar online, seja apenas facilitando o acesso à informação e ao governo. É o caso do DemocraciaOS[2], software livre desenvolvido em Buenos Aires para facilitar a participação da população na tomada de decisão política, e doCode for America[3], tecnologia de código aberto e associação de redes para tornar o "serviço do governo simples, efetivo e fácil de usar" pelos cidadãos nos Estados Unidos. Tais plataformas online para participação política da sociedade civil, tanto as criadas por grupos sociais, ativistas, hackers, acadêmicos, quanto por governantes, trazem novas possibilidades de atuação dos cidadãos na esfera política.

O objetivo deste artigo é diagnosticar os tipos de participação experimentados a partir de plataformas online e os impactos dessa participação no processo de tomada de decisão dos representantes de governo. A questão de pesquisa é: até que ponto as decisões políticas dos governantes é influenciada pela participação cidadã em plataformas online?

Para isso, foram realizadas duas revisões sistemáticas de literatura (RSL), primeiro no mundo e depois no Brasil, com a finalidade de identificar como o tema tem sido estudado dentro dos diferentes contextos da comunidade científica, as características dos casos estudados, questões de pesquisa, métodos e conclusões alcançadas até o momento. As revisões sistemáticas permitem uma análise comparativa entre os cenários mundial e nacional, além de possibilitar uma meta-síntese dos seus resultados (Nye, Menlendez-Torres & Bonell, 2016). No total das duas revisões, 44 artigos foram selecionados para análise comparativa e meta-síntese.

Em seguida, o modelo de Avaliação da Participação Política Online é proposto a fim de mensurar os tipos de participação existentes e seus consequentes impactos decisórios. Na aplicação do modelo são considerados todos os estudos de casos encontrados nos 44 artigos das RSLs, excluindo-se aqueles artigos que apresentaram uma quantidade de plataformas inviável para análise e os que foram publicados pelo mesmo autor sobre o mesmo caso, evitando assim uma contagem duplicada de plataformas. Nessa avaliação final, após tal exclusão, foram considerados 35 artigos e um total de 179 plataformas estudadas no mundo e no Brasil.

Revisões sistemáticas de literatura no mundo e no Brasil

Para este artigo, optou-se por utilizar a revisão sistemática de literatura (RSL), metodologia apropriada para organizar estudos primários, mantendo a transparência e o rigor necessários de acordo com critérios e definições pré-estabelecidas. Seguindo as orientações de Brereton, Kitchenham, Budgen, Turner e Khalil (2007), todas as decisões ao longo do processo são relatadas, permitindo a reprodução e comparação de pesquisas futuras pelo mesmo método.

Para a primeira RSL, com abrangência mundial, foi utilizada a principal coleção da Web of Science (WoS)[4] como base de dados e alguns testes-piloto foram realizados para avaliação das combinações de termos. A expressão de termos definida [(politi* participat* OR politi* engage* OR civic participat* OR democra* OR citizen*) AND (technolog* OR internet OR platform* OR online)] alcançou 434 artigos após aplicação simultânea de filtros, a saber: intervalo da pesquisa entre 1995 e 2015, considerando que a internet começou a ser amplamente disseminada na sociedade civil em meados da década de 90; apenas artigos científicos, que são as principais fontes de pesquisas primárias; apenas nos títulos dos artigos.

A próxima etapa consistiu na leitura de todos os 434 títulos, resumos e palavras-chave encontrados, avaliando-os de acordo com critérios de inclusão e exclusão em formato de pergunta, previamente definidos. São eles:

1. o artigo trata sobre participação ou engajamento político do cidadão?;

2. o artigo trata sobre o meio online, a Internet ou as TICs?;

3. o artigo analisa a participação política do cidadão através do uso de plataformas, redes sociais ou quaisquer ferramentas online de forma geral?;

4. o artigo apresenta uma pesquisa empírica baseada em um ou mais estudos de caso de plataforma online criada para promover participação política do cidadão?

Aplicando os critérios aos resumos, palavras-chave e títulos dos artigos, pode-se observar que quase metade (200 artigos) versa sobre a participação política do cidadão, enquanto a maioria (324 artigos) trata de forma geral sobre a Internet ou o ambiente online (ver Gráfico 1). Os que responderam negativamente aos dois primeiros critérios trazem questões diversas relacionadas ao desenvolvimento da educação e cidadania, análises de jornais, teorias de políticas públicas, consumismo ou comportamento de usuários em redes sociais, por exemplo.

Na intersecção dos dois critérios iniciais, que engloba estudos sobre Internet e participação política, foram encontrados 171 artigos. Destes, 139 abordam aspectos gerais do uso do ambiente online ou de redes sociais, correspondendo ao terceiro critério de exclusão. Ao final, um total de 32 artigos foram definidos como pertinentes a este trabalho, apresentando estudos empíricos de plataformas online para participação política cidadã.

Para a segunda RSL, com abrangência nacional, alguns critérios foram mantidos e outros alterados a fim de se adequar a especificidades do cenário brasileiro. Uma primeira busca na mesma base de dados da revisão anterior, a principal coleção da Web of Science (WoS), trouxe raros exemplos de casos brasileiros. Sendo assim, ampliou-se a busca para todas as coleções da mesma, que inclui o SciELO Citation Index (SciELO CI) (Packer, 2014), além das plataformas Scopus[5] e DOAJ (Directory of Open Access Journals)[6].

Os testes-piloto foram realizados separadamente em cada bases de dados, considerando que cada uma tem um processo de busca diferente da outra e, portanto, a mesma expressão de termos pode resultar em número e qualidade diferentes de artigos. Na WoS, a expressão de termos definida foi igual à da primeira RSL, com filtro de idioma em português, de 1995 a 2015 e apenas artigos. Já na busca da Scopus e DOAJ, foi preciso incluir os termos de busca não apenas nos títulos, mas também nos resumos e palavras-chaves. Ao contrário dos testes na WoS, a expressão que trouxe mais artigos pertinentes para foi a com termos reduzidos: [(politi* OR participat*) AND (internet OR online)], filtro de idioma em português, apenas artigos, entre 1995 e 2015.

Somando os documentos selecionados de cada base, cinco de cada, e descontando os que se encontraram em mais de uma base, obteve-se 12 artigos pertinentes no total. Os dados extraídos dos artigos analisados nas duas revisões são apresentados e comparados a seguir.

Análise comparativa e meta-síntese

Com os resultados das duas revisões sistemáticas de literatura no Brasil e no mundo, é possível constatar algumas diferenças e semelhanças entre o contexto mundial e nacional, tanto com relação às suas características de pesquisa quanto às plataformas encontradas:

 

 

A primeira divergência acontece na busca de dados, com a necessidade de ir além da principal coleção da Web of Science para que uma quantidade significativa de artigos brasileiros sejam encontrados. Isto revela uma questão de política do conhecimento: ou os casos do Brasil não estão sendo estudados pela comunidade internacional e/ou os autores brasileiros têm baixa penetração em uma das maiores bases de dados do mundo. Questiona-se não só a quantidade e a relevância dos casos do Brasil perante aos de outros países como a capacidade de inserção de pesquisadores brasileiros na principal coleção da WoS. Segundo Packer (2014), a comunidade científica brasileira ainda precisa promover grandes esforços de qualidade, principalmente em seus periódicos e agências de fomento, para alcançar maior visibilidade internacional.

Ao analisar os anos de publicação dos artigos nas duas revisões, observa-se que enquanto na RSL mundial foram selecionados 10 documentos entre 1995 e 2005, na RSL brasileira apenas um artigo foi considerado pertinente neste mesmo período. O aumento da produção no tema, porém, é evidente em ambas as revisões, chegando a 14 artigos na primeira RSL e sete na segunda, entre 2010 e 2015.

Com relação às áreas de pesquisa, outras diferenças podem ser destacadas. A primeira RSL não apresentou nenhum artigo nas áreas de Ciência Política ou Economia e Negócios, enquanto a segunda trouxe a maioria dos artigos nessas duas áreas. Por outro lado, nenhum artigo brasileiro se apresenta nas áreas de Ciência da Informação, Engenharia ou Relações Internacionais, enquanto mais de três artigos da primeira RSL se enquadram em cada uma dessas áreas. Além disso, Governo e Direito é uma das áreas mais presentes na primeira revisão, mas no Brasil apenas um artigo é alocado nela. Outras áreas como Comunicação, Sociologia e Administração Pública são encontradas em ambas as revisões.

A origem das plataformas é outro dado divergente se compararmos o Brasil com o mundo. Enquanto na primeira RSL encontramos uma distribuição equilibrada nos estudos de caso, com 13 plataformas do governo, 10 mistas e nove não-governamentais, na segunda revisão, 11 são de origem governamental, uma mista e nenhuma plataforma criada apenas por setores da sociedade. Com relação aos modelos das iniciativas, ambas apresentam portais de governo como maioria – nove na primeira e quatro na segunda RSL –, seguidos de fóruns de discussão e consultas de opinião.

É importante reforçar que não foram encontrados exemplos de fóruns de discussão não-governamentais brasileiros, enquanto na RSL mundial surgiram sete. Casos de votação pela internet, petição online e conselheiro de voto também só foram encontrados na primeira revisão. Isto revela que variados tipos de origem e modelos de iniciativas de participação política são estudados ao redor do mundo, enquanto no Brasil os casos não-governamentais não recebem a devida atenção da academia ou não existem em quantidades comparáveis aos do governo.

No que se refere às questões de pesquisa identificadas nos artigos, ambas revisões apresentam uma maioria de análises sobre a relação entre cidadão e plataforma, as características e uso das ferramentas tecnológicas para favorecer a participação dos cidadãos, ou entre plataforma, governo e cidadão, no que se refere à interação entre representantes políticos e cidadãos por meio de iniciativas online. Outra semelhança entre as duas RSL está nos métodos utilizados, em que a análise de conteúdo é o mais comum entre os artigos selecionados. O segundo método mais utilizado é a análise comparativa.

Além da análise comparativa, é possível identificar vantagens e desvantagens das plataformas online de acordo com seu impacto na participação política, revelando mais semelhanças, diferenças e até complementaridades entre os casos estudados nas duas revisões. Tanto no contexto mundial quanto no brasileiro, os portais de governo parecem ver o cidadão apenas como um consumidor de informações e de serviços públicos (Liste & Sorensen, 2015; Polat & Pratchett, 2014; Saylan, 2009), estabelecendo uma relação do tipo "governo para cidadão"e um modelo pouco ou nada participativo em uma democracia digital pouco explorada (Pinho, 2008; Rossini, 2014; Silva, 2005).

A vigilância e controle do Estado, com reforço da propaganda política pelos portais de governo só foi destacada na primeira revisão (Jiang & Xu, 2009; Polat & Pratchett, 2014). Por outro lado, estudos de ambas as revisões começam a vislumbrar avanços para a participação, com portais cada vez mais orientados para as necessidades do cidadão (Welp, 2008), como é destacado por Marques (2010) no caso brasileiro do portal da Câmara dos Deputados e sua variedade de mecanismos de participação disponíveis aos usuários.

Algumas vantagens são encontradas nos casos de fóruns de discussão online nos estudos de caso dentro e fora do Brasil. A diminuição de barreiras espaciais, temporais e financeiras parecem facilitar o engajamento e debate de cidadãos no meio digital (Klein, 1999; Westholm, 2002), enquanto a existência de temas próximos aos que afetam a vida dos cidadãos de forma direta podem ajudar no processo deliberativo (Sampaio, 2012). Por outro lado, Shen e Liang (2015) identificaram que a maioria dos usuários dos fóruns estudados consomem mais informação do que contribuem ativamente para o debate, enquanto Miola (2009) destaca a existência de diálogos individuais e hierarquizados, com foco na relação Estado-cidadão-Estado e raramente cidadão-cidadão.

Como reforçam Musso, Weare e Hale (2000), os dois tipos de comunicação deveriam ser incentivados: o vertical, com acesso aos representantes políticos, e o horizontal, com interação entre os usuários. De forma geral, fóruns de discussão online estudados no mundo apresentaram baixo nível de deliberação entre os usuários (Hung, 2003; Loveland & Popescu, 2011; Strandberg, 2008) e no Brasil foram identificados casos com alto grau de argumentação e de respeito, representando um bom índice de deliberatividade (Sampaio, 2012).

Já as consultas de opinião online trazem a mesma vantagem nas duas revisões: a possibilidade de conexão e parceria entre governantes e cidadãos, com maior exposição aos princípios democráticos e à educação cívica (Balla, 2014; Mendonça & Amaral, 2014). No entanto, um dos perigos é revelado com o caso do Orçamento Participativo Digital de Belo Horizonte, em que os resultados das consultas não foram levados em consideração, o sentido da ferramenta se perdeu e o descrédito pela sua efetividade levou à diminuição da participação (Abreu & Pinho, 2014).

Nos casos de plataformas participativas, diversas vantagens foram encontradas em ambos os contextos. Pickard (2008) acredita que elas possibilitam a prática de diferentes formas democráticas, enquanto Wells (2010) percebe uma maior atração de jovens em seus modelos de interação livre e Penteado, Santos e Araújo (2014) visualizam a maior influência de cidadãos nas decisões políticas com a união entre modelos tradicionais e de organização em rede permitida por essas plataformas participativas. É o caso da Rede Nossa São Paulo, movimento da sociedade civil que se apropria das tecnologias digitais para interagir e desenvolver projetos com seus membros e parceiros, tanto de setores públicos quanto privados, além de exercer pressão sobre os representantes políticos. Por outro lado, estudos da primeira RSL constataram que a maioria das iniciativas estudadas não são produtos de um esforço colaborativo entre cidadãos e agências públicas (Desouza & Bhagwatwar, 2014) e poucas são ferramentas bidirecionais, em que cidadãos participam ativamente da tomada de decisões (Steinmann, Krek & Blaschke, 2005).

Além disso, a exclusão digital ainda é considerada um dos problemas que mais afeta a participação da sociedade civil nas plataformas online (Desouza & Bhagwatwar 2014; Maia & Marques, 2010; Oliveira & Rodegheri, 2012; Sampaio 2012; Saylan, 2009; Welp, 2008) e outro aspecto limitante para uma participação inclusiva está na dominância de cidadãos privilegiados, com alto nível de educação, renda ou interesse político nas plataformas online (Balla, 2014; Mambrey, Neumann & Sieverdingbeck, 1999; Mendonça & Amaral, 2014; Ribeiro, Costa, Costa & Ribeiro, 2013; Sani, 2004; Solop, 2001; Strandberg, 2008; Tettey, 2001; Westholm, 2002).

Considerando os aspectos quantitativos e qualitativos das plataformas online estudadas, observa-se a necessidade de um aprofundamento na análise crítica dos impactos efetivos da participação cidadã no processo deliberativo e na tomada de decisão política. Sendo assim, o próximo tópico deste artigo considera alguns modelos de avaliação da participação política existentes e um novo modelo é proposto para posterior classificação dos dados encontrados nas revisões.

Modelo de avaliação da participação política online

De forma geral, os modelos de avaliação encontrados nos artigos das RSL (Arnstein, 1969; Gomes, 2005; Jiang & Xu, 2009; Smyth, 2001) trazem poucas etapas de participação com definições muito amplas ou teóricas, além de serem elaborados do ponto de vista governamental e, portanto, não apresentarem possibilidades de atuação ascendente, dos cidadãos para o governo.

O formato de classificação da participação política que se estabeleceu no meio acadêmico e institucional, expresso pelos modelos de avaliação estudados, não deve ser visto de forma rígida ou definitiva. Considerando suas limitações e faltas, um novo modelo de avaliação foi elaborado com o objetivo de padronizar os casos estudados e analisá-los de acordo com um indicador único e não hierárquico, mais completo, realista e crítico:

 

Figura 1

 

Construído a partir dos casos estudados nas duas revisões sistemáticas de literatura (RSL), o modelo de avaliação da participação política online apresenta categorias totalmente compatíveis com as plataformas encontradas, fazendo com que não haja nenhum tipo de participação superficial ou apenas teórica. As formas de participação são apresentadas de forma não-hierárquica e variam de acordo com a origem da plataforma: criada pelo setor governamental, representado pelo termo "governo", ou pelo setor não-governamental, que abrange todas as camadas da sociedade civil, movimentos sociais, ONG, instituições privadas e o próprio cidadão comum, representados pelo termo "cidadão". O fluxo de informação entre os dois segmentos é exposto pelas setas, tanto em formato vertical e horizontal, quanto unidirecional e bidirecional.

O modelo apresenta seis categorias de participação: a pré-participação, em que o cidadão é informado e não participa ativamente; é representada principalmente por portais de governo que, de forma vertical e unidirecional, apresentam notícias de programas e ações do governo, além de facilitar o acesso a serviços públicos. A participação top-down, de fluxo vertical e bidirecional, em que o cidadão participa como reação à solicitação do governo, expresso nos casos de consultas de opinião online. A participação bottom-up, em que setores da sociedade têm autonomia para criar uma plataforma online, como petições online, arrecadações para campanhas ou projetos de lei de iniciativa popular. A participação deliberativa top-down, em que o governo solicita a opinião pública com espaços para discussão online, seguindo um fluxo simultaneamente vertical e horizontal, na divulgação da plataforma e no processo de debate entre cidadãos; é representada pelos fóruns de discussão governamentais e orçamentos participativos online. A participação deliberativa bottom-up, semelhante à categoria anterior, mas com iniciativas promovidas por setores da sociedade civil, trazendo primeiramente um fluxo horizontal de discussão entre cidadãos para depois levar a um possível retorno ao governo; é representada por fóruns de discussão online não governamentais que permitem maior liberdade aos usuários para criar tópicos, participar e deliberar. E a participação colaborativa, em que há parceria entre segmentos da sociedade civil e do governo na criação e manutenção de plataformas, um fluxo de informação horizontal e bidirecional, com poder de decisão dividido entre eles, como nos casos de plataformas participativas mistas, organizadas por instituições públicas, representantes políticos, acadêmicos, ativistas, especialistas e demais cidadãos interessados.

O principal diferencial deste modelo está na separação entre iniciativas do governo e iniciativas do cidadão, trazendo um destaque que não havia sido dado anteriormente à autonomia de setores da sociedade em diferentes formatos de participação, inclusive na participação deliberativa. A autonomia do cidadão e a deliberação, dimensões essenciais que caracterizam a participação (Prieto-Martin, 2010) estão claramente representadas no modelo de avaliação proposto. Ainda assim, algumas limitações podem ser reconhecidas, como a dificuldade de avaliar questões sociais, culturais e econômicas da participação. Por estar baseada nos casos encontrados nas duas RSL, o modelo também acompanha as limitações do método de revisão utilizado, não possibilitando uma abrangência completa de todas as iniciativas existentes no mundo ou no Brasil – é possível que o modelo não seja suficiente para classificar outras plataformas que não foram estudadas pelos artigos analisados nesta pesquisa.

Resultados

Diferente da análise por artigo feita nas RSL, esta avaliação considera todos os casos estudados dentro de todos os artigos, ou seja, em artigos que apresentam mais de uma plataforma, todas são consideradas e avaliadas de acordo com o modelo proposto. Apenas alguns exemplos de casos múltiplos não puderam ser incluídos na avaliação pela grande quantidade de plataformas e a falta de informações específicas sobre cada uma, como no artigo de Mussoet al. (2000) sobre 270 portais municipais da Califórnia ou no de Shen e Liang (2015) sobre os 103 fóruns de discussão política de 75 países diferentes.

Para casos iguais publicados pelo mesmo autor em artigos diferentes ou com resultados semelhantes, foi avaliado somente um dos casos para evitar uma contagem duplicada de plataformas. Da RSL mundial, por exemplo, foi considerado apenas um dos artigos sobre a consulta de opinião da reforma do sistema de saúde na China, analisada e publicada por Steven J. Balla, em 2012 e 2014, e um dos estudos sobre a votação pela Internet nas eleições primárias do Arizona, publicada por Solop (2001) e Gibson (2001). Da mesma forma, apenas um dos artigos sobre o fórum online do orçamento participativo de Belo Horizonte em 2008 (Sampaio, 2012; Sampaio et al., 2010) foi considerado na avaliação dos artigos brasileiros, enquanto as três edições do mesmo orçamento em 2006, 2008 e 2011, estudadas por Cunha, Coelho e Pozzebon (2014) e Abreu e Pinho (2014), só foram consideradas uma vez. Após a aplicação desses critérios de exclusão, chegou-se a 25 artigos da primeira revisão e 10 da segunda, totalizando uma avaliação de 134 plataformas de diversos países do mundo e 45 do Brasil.

Todas as 179 plataformas foram então categorizadas de acordo com o modelo de avaliação da participação política online. No entanto, apenas a organização das plataformas em diferentes tipos de participação não seria o bastante para avaliar as consequências de cada participação nas decisões políticas:

uma vez que instituições políticas desenvolvem plataformas de participação virtual para possibilitar a interação entre representantes e representados, fiscalização e acompanhamento das atividades políticas, cabe questionar se esta abertura das estruturas políticas institucionais à participação da esfera civil é efetiva, no sentido de garantir ao cidadão a possibilidade de influenciar processos diversos de tomada de decisão. (Rossini, 2014, p. 119)

Para esta pesquisa, o impacto foi analisado em paralelo com o modelo de avaliação proposto, possibilitando diferenciar aquelas plataformas que prometem a consideração da opinião pública no processo de tomada de decisão daquelas que de fato aplicam essas sugestões na decisão, seja pela consideração da opinião dos cidadãos em uma consulta pública, na realização de obras votadas em orçamentos participativos ou na aplicação de soluções encontradas por cidadãos em fóruns de discussão.

Os quadros abaixo mostram os resultados quantitativos da avaliação, dividida entre os artigos das duas revisões, os tipos de participação baseados no modelo proposto e o impacto decisório de cada plataforma. As plataformas que influenciaram a decisão política de alguma forma foram classificadas como "sim", aquelas que não tiveram influência nenhuma foram contadas como "não"e quando o impacto não foi avaliado pelos autores ou não foi exposto de forma clara no artigo, foi classificado como "N/A".

 

 

 

 

Os casos de plataformas que possibilitaram a pré-participação foram maioria nos artigos das duas revisões, representando 27,6% do total de artigos da primeira revisão e 77,8% dos artigos da segunda. A grande maioria das plataformas do mundo não teve seu impacto decisório exposto em seu respectivo artigo e apenas dois casos foram avaliados com nenhuma influência na decisão política: os portais de governo eletrônico nacional e municipal da Turquia, através dos quais os cidadãos não podem participar dos processos de tomada de decisão (Saylan, 2009). Nos estudos do Brasil, apenas uma não teve seu impacto confirmado: na análise do portal da Presidência da República não foi possível encontrar "elementos suficientes para que se possa afirmar a existência de artifícios direcionados a encorajar o envolvimento político dos cidadãos na discussão ou mesmo na produção de decisões sobre políticas públicas"(Marques, 2010, p. 128). Por outro lado, os 24 portais oficiais de capitais brasileiras estudados por Silva (2005) foram considerados fechados à participação e influência dos cidadãos nas decisões públicas.

Na categoria de participação top-down, 30 plataformas foram encontradas na primeira RSL, dentre as quais a maioria não teve impacto decisório analisado pelos autores. É o caso do artigo de Welp (2008), que avalia todos os portais de governo dos 18 países da América Latina e considera sete deles (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Panamá e Peru) como sendo os mais avançados pela abertura de espaços simbólicos de interação com o governo, mas sem identificar os resultados políticos da participação em tais plataformas. Já o caso da votação pela internet nas eleições primárias do Arizona em 2000 parece ter impacto direto na decisão, contribuindo para aumentar a influência ativa dos cidadãos na cidade (Solop, 2001). Nos estudos da segunda RSL não foram encontradas plataformas de participação top-down.

A categoria seguinte, participação bottom-up, é uma das que menos apresenta plataformas correspondentes na primeira revisão, com apenas dois casos: a petição online promovida pelo jornal italiano La Repubblica (Vaccari, 2011), em que a iniciativa da mídia é vista como uma extensão de sua campanha editorial e o impacto decisório não é avaliado; e a plataforma criada por um casal dos Estados Unidos (EUA), o MoveOn, considerado por Pickard (2008) como eficaz em dar voz a um eleitorado sub-representado e influenciar políticas específicas, com ações populares diretas como petições anti-guerra e arrecadações para políticos pró-paz. Mais uma vez, não houve nenhuma iniciativa brasileira para esta categoria de participação.

Já a participação deliberativa top-down foi encontrada em artigos de ambas revisões, com 28 casos em diferentes países do mundo e nove brasileiros. Exemplos estão em oito portais governamentais de províncias da China, que oferecem espaços de bate-papo e fóruns de discussão (Jiang & Xu, 2009) e em uma Comunidade Legislativa Virtual do portal E-Democracia, da Câmara dos Deputados no Brasil, que permitiu o debate e a contribuição para elaboração do projeto de lei sobre o Marco Civil (Freitas, Lima & Lima, 2015). Uma minoria dos estudos desse tipo de participação expõe o impacto decisório das plataformas, como no caso do fórum de discussão online de uma agência da Secretaria de Transportes dos EUA, que possibilitou um planejamento aberto aos cidadãos e, ao final, aprimorou suas estratégias de ação com base nos comentários dos participantes (Stanley & Weare, 2004), e no caso da falta de impacto decisório na consulta pública da Assembléia Legislativa de Minas Gerais em 2011, que serviu mais para alimentar o debate público sobre um tema relevante do que "subsidiar os parlamentares em uma tomada de decisão"(Mendonça & Amaral, 2014, p. 197).

Para a categoria de participação deliberativa bottom-up, nenhum caso brasileiro foi encontrado, enquanto 35 casos da primeira RSL apresentaram iniciativas da sociedade civil com discussão online. Mais uma vez, a maioria não analisa ou não deixa claro se houve impacto da participação na tomada de decisão, como nas 18 plataformas participativas de cidades dos EUA, em que os cidadãos criam e interagem uns com os outros para discutir problemas e encontrar soluções. Neste caso, Desouza e Bhagwatwar (2014) reforçam apenas que a decisão de implementação das soluções continua nas mãos da agência pública, não expondo se e quais trazem uma influência efetiva para a decisão. Já no caso do fórum online criado por uma associação de cidadãos de Boston, Klein (1999, p. 218) afirma ser provável que as decisões tomadas por representantes locais tenham sido "influenciadas pelo fato de que os cidadãos locais se organizaram em torno da questão, atraíram um interesse público substancial e pressionaram os legisladores".

Por fim, a categoria de participação colaborativa é representada por dois casos na RSL mundial e um caso na RSL brasileira. No artigo de Desouza e Bhagwatwar (2014) citado acima, apenas duas das 25 plataformas analisadas nas cidades dos EUA foram classificadas pelos autores como o último grau do modelo de inteligência coletiva, em que o fluxo de informação é bidirecional e as soluções desenvolvidas por cidadãos são implementadas em parceria entre eles e seus governantes. Enquanto isso, no Brasil, Penteado et al. (2014, p. 229) avaliam inúmeros exemplos de ações da Rede Nossa São Paulo e afirmam que apesar de limitações nas ações de pressão sobre o Estado, "ela é capaz de influenciar a agenda, a implementação e a avaliação de políticas públicas". A participação colaborativa parece ser de grande importância para o processo democrático, considerando que as análises de todos os seus exemplos confirmaram alguma influência na tomada de decisão política. Ainda assim, suas plataformas representam uma amostra muito pequena se comparada às outras. Questiona-se então se as plataformas nesta categoria são realmente raras na sociedade atual ou se os pesquisadores não têm interesse ou incentivo para estudá-las.

Os poucos exemplos de participação bottom-up na primeira revisão também refletem a falta de pesquisas ou iniciativas de participação direta dos cidadãos, como petições e outros formatos de pressão popular sem discussão prévia. Por outro lado, o alto número de plataformas que possibilitam a participação deliberativa bottom-up pode indicar que os cidadãos estão mais focados em promover discussões e debates antes de pressionar o Estado ou que os estudos sobre plataformas de origem não-governamental buscam analisar principalmente os casos de deliberação.

Já na avaliação dos estudos do Brasil, as categorias de participação top-down, bottom-up e deliberativa bottom-up não foram representadas por nenhuma plataforma, enquanto as de pré-participação são maioria entre as pesquisas. Além disso, os tipos de participação encontrados trouxeram exemplos que se repetem entre os artigos: são quatro análises sobre o Orçamento Participativo Digital de Belo Horizonte e outras quatro sobre o portal da Câmara dos Deputados. Observa-se então que as poucas iniciativas governamentais que permitem ir além da categoria pré-participação oferecem espaços de discussão e interação entre cidadãos e/ou governantes, mas são limitados a poucos casos. Já as plataformas não-governamentais parecem ser negligenciados pela academia ou não existem em quantidades suficientes para análise.

De forma geral, o ponto que mais se destaca nesta avaliação é a falta de análises por parte dos autores sobre o impacto decisório das plataformas analisadas. Sabe-se que a influência de uma ação sobre outra não deve ser medida apenas com uma resposta positiva ou negativa, mas o intuito deste questionamento simplista é justamente averiguar se estão sendo avaliados os impactos da participação cidadã no processo de tomada de decisão política. Observa-se que, quando a efetividade da participação é finalmente levantada pelos autores, as conclusões são superficiais e costumam ser acompanhadas da explicação sobre o poder decisório do governo: "a decisão de responder ou incorporar os pontos de vista dos cidadãos reside nos decisores políticos e os políticos que podem escolher ser receptivos ou não"(Tettey, 2001, p. 144).

As poucas tentativas de cruzamento entre as demandas da sociedade e as ações governamentais só foram realizadas em artigos com análises aprofundadas sobre cada plataforma, mas a maioria se baseia apenas na percepção dos autores e não em indicadores de mensuração bem definidos. Apesar da complexidade em se estudar o impacto decisório, é urgente que mais avaliações críticas sejam elaboradas a fim de evitar afirmações ingênuas sobre o aumento da participação política e possibilitar a construção de indicadores de avaliação com um nivelamento de participação mais compatível com seus impactos reais.

Conclusão

Diante das limitações dos modelos políticos vigentes e das expectativas criadas com a disseminação da internet, este artigo busca avaliar as possibilidades de participação política a partir de plataformas online e seus impactos reais nos processos decisórios. A crescente adaptação dos governantes e cidadãos aos ambientes digitais permitiu a criação de diversas plataformas com a promessa de aumentar a participação civil nas questões públicas. No entanto, cabe questionar até que ponto o uso dessas plataformas é realmente capaz de ampliar a atuação política dos cidadãos e influenciar a tomada de decisão dos gestores.

Duas revisões sistemáticas de literatura foram realizadas para mapear as pesquisas empíricas sobre as plataformas online de participação cidadã no mundo e no Brasil. Dos 434 artigos encontrados na primeira RSL, 32 foram selecionados para análise quanti e qualitativa, assim como os 12 artigos selecionados na revisão brasileira. A partir disso, as 179 plataformas analisadas pelos artigos foram categorizadas de acordo com o novo modelo de avaliação da participação política online e seu impacto no processo decisório.

Diante dos resultados, observa-se que a maioria das plataformas encontradas nas duas RSL são iniciativas governamentais que promovem um fluxo de informação top-down (Liste & Sorensen, 2015; Polat & Pratchett, 2014; Rossini, 2014; Saylan, 2009), com alguma possibilidade de interação e discussão entre cidadãos e governantes (Balla, 2014; Marques, 2010), mas pouca ou nenhuma influência no processo de decisão política. No total dos artigos avaliados, 8% dos casos do Brasil e do mundo foram avaliados como tendo algum impacto na decisão final, enquanto 22% não parecem ter impactado a decisão e 70% não tiveram sua influência analisada pelos autores. Por um lado, a evidente falta de análise de impacto prejudica a avaliação das iniciativas e, por outro, tal análise é limitada pela ausência de retorno dos governantes e transparência nos resultados da participação, dificultando o trabalho de pesquisadores no cruzamento entre a demanda dos cidadãos e a decisão dos representantes políticos.

A tomada de decisão final nas mãos dos gestores esconde um dos maiores perigos do uso das plataformas online neste contexto: o discurso da participação como retórica dos representantes políticos. Diversas iniciativas governamentais online começam a surgir com a promessa de promover a participação cidadã, mas na prática são plataformas complexas, fechadas, controladas e monitoradas por seus gestores, e com pouco ou nenhum retorno sobre o resultado da participação, caracterizando uma especie de "participation washing". Ademais, por trás de processos considerados participativos podem se esconder hierarquias informais e outras estruturas de poder disfarçadas, que agem de forma autoritária com base em interesses de pequenos grupos. A retórica da participação promovida pelos governantes pode acabar gerando um ambiente de cidadania elitista, uma falsa politização, um ambiente de participação altamente manipulável e a ascensão de um novo tipo de populismo.

Além disso, existe outro problema para a atuação dos cidadãos na política: a falta de transparência total dos dados públicos. Só é possível participar de fato das questões políticas se as informações relacionadas à esfera pública estiverem totalmente disponíveis e acessíveis para compreensão e uso dos cidadãos. No entanto, os governantes ainda não parecem ter assumido o compromisso de prestar contas à sociedade e de se responsabilizar pelos seus atos. Como constatou-se em 2001, no 2º Fórum Global, o papel do governo deve ir além da criação de portais eletrônicos com informações e serviços básicos (Jardim, 2000). É necessário investir na real transparência das informações públicas e em educação política para aprofundar a noção de cidadania e criar uma cultura de participação ampla e consciente. Não há dúvidas de que tais investimentos envolvem um planejamento complexo e um alto custo financeiro para o Estado, tanto na implementação de novas tecnologias e capacitação de funcionários para gerenciar as informações quanto nos projetos educacionais para toda a população. O problema, no entanto, parece ser ainda maior do que suas condições financeiras – está no interesse dos governantes em abrir os processos políticos para os cidadãos.

Como relembram Jiang e Xu (2009), as estruturas online não são ferramentas naturalmente participativas, dependem diretamente do ambiente político e cultural em que estão inseridas. Neste sentido, com o modelo político conservador e autoritário ainda vigente no Brasil, as novas tecnologias não têm sido utilizadas em todas as suas potencialidades e as melhores experiências são aquelas voltadas para aprimorar a arrecadação fiscal (Pinho, 2008; Sampaio, Maia & Marques, 2010). Essa falta de incentivo governamental para plataformas online de participação política cidadã é explorada nos estudos das duas revisões e a conclusão de é que existe uma indisposição de representantes do governo, tanto no Brasil como no mundo, para criar e manter as iniciativas. O envolvimento do cidadão na tomada de decisão significa o compartilhamento de poder, a redução do papel exercido por esses agentes públicos e a perda de controle sobre a agenda pública (Freitas et al., 2015; Marques, 2010; Stanley & Weare, 2004).

Sendo assim, o resultado desta pesquisa indica que a participação política online não é só uma questão tecnológica, mas principalmente uma questão de poder. Os esforços para possibilitar uma participação política efetiva em plataformas online vão muito além da criação e implementação de novas plataformas digitais. Por parte do governo, é preciso estimular a criação de agências de controle e auditoria para garantir a transparência e a responsabilização dos atos políticos; adequar as condições financeiras para o desenvolvimento da educação política; e, principalmente, abdicar do discurso retórico e compartilhar os poderes de decisão com os cidadãos. Por parte dos cidadãos, é preciso estimular a criação de iniciativas ascendentes e mecanismos de contra-poder; reconhecer sua responsabilidade de pressionar pela transparência no processo decisório e de controlar as ações do governo; disseminar informações e desenvolver o interesse sobre questões políticas para que sejam capazes de reivindicar seus direitos democráticos.

A comunidade científica também tem um papel fundamental no desenvolvimento da participação política online: é preciso aplicar uma agenda de pesquisa que contemple estudos analíticos e críticos em torno das práticas, usos e resultados concretos das plataformas de participação cidadã, especialmente das plataformas criadas por setores da sociedade civil. Faz-se necessário criar métodos e indicadores para mensurar a efetividade da participação online nos processos políticos ao redor do mundo, em seus diferentes contextos. Torna-se ainda mais urgente o desenvolvimento de estudos empíricos sobre a transparência das informações públicas e os usos da própria tecnologia para fraudar resultados, entre outras estratégias possíveis de manipulação da participação online para a autolegitimação de agentes políticos diante da crise de representatividade e de autoridade que caracteriza o mundo contemporâneo.

 

Referências bibliográficas

Abreu, J. C. & Pinho, J. A. (2014). Sentidos e significados da participação democrática através da internet: uma análise da experiência do Orçamento Participativo Digital. Revista Administração Pública, 48(4), 821-846.         [ Links ]

Arnstein, S. R. (1969). A ladder of citizen participation. JAIP, 35(4), 216-224.         [ Links ]

Balla, S. J. (2012). Information technology, political participation and the evolution of Chinese policymaking. Journal of Contemporary China, 21(76), 655-673. https://doi.org/10.1080/10670564.2012.666835        [ Links ]

Balla, S. J. (2014). Health system and political participation on the Chinese internet. China Information, 28(2), 214-236.         [ Links ]

Brereton, O., Kitchenham, B. A., Budgen, D., Turner, M. & Khalil, M. A. (2007). Lessons from applying the systematic literature review process within the software engineering domain. Journal of Systems and Software, 80(4), 571-583. https://doi.org/10.1016/j.jss.2006.07.009        [ Links ]

Cunha V. C., Coelho, T. R. & Pozzebon, M. (2014). Internet e participação: o caso do orçamento participativo digital de Belo Horizonte. Revista de Aministração de Empresas, 54(3), 296-308. http://dx.doi.org/10.1590/S0034-759020140305        [ Links ]

Desouza, K. C & Bhagwatwar, A. (2014). Technology-enabled participatory platforms for civic engagement: the case of U.S. Cities. Journal of Urban Technology, 21(4), 25-50. https://doi.org/10.1080/10630732.2014.954898        [ Links ]

Freitas, C. S., Lima, F. F. & Lima, F. Q. (2015). Os desafios ao desenvolvimento de um ambiente para participação política digital: o caso de uma comunidade virtual legislativa do projeto e-democracia no Brasil. O&S - Salvador, 22(75), 639-658.         [ Links ]

Gibson, R. (2001). Elections online: assessing internet voting in light of the Arizona democratic primary. Political Science Quarterly, 116(4), 561-583.         [ Links ]

Gomes, W. (2005). Internet e participação política em sociedades democráticas. Revista Flamecos, 12(27), 58-78.         [ Links ]

Hung, C. (2003). Public discourse and "virtual"political participation in the PRC: the impact of the internet. Issues & Studies, 39(4), 1-38.         [ Links ]

Jardim, J. M. (2000). Capacidade governativa, informação, e governo eletrônico. DataGramaZero, 1(5).         [ Links ]

Jiang, M. & Xu, H. (2009). Exploring online structures on Chinese government portals. Citizen political participation and government legitimation. Social Science Computer Review, 27(2), 174-195. https://doi.org/10.1177/0894439308327313        [ Links ]

Klein, H. (1999). Tocqueville in cyberspace: using the internet for citizen associations. The Information Society, 15, 213-220. https://doi.org/10.1080/019722499128376        [ Links ]

Liste, L. & Sorensen, K. H. (2015). Consumer, client or citizen? How Norwegian local governments domesticate website technology and configure their users. Information, Communication and Society, 18(7), 733-746. https://doi.org/10.1080/1369118X.2014.993678        [ Links ]

Loveland, M. T. & Popescu, D. (2011). Democracy on the web. Information, Communication & Society, 14(5), 684-703. https://doi.org/10.1080/1369118X.2010.521844        [ Links ]

Mambrey, P., Neumann, H. & Sieverdingbeck, K. (1999). Bridging the gap between Parliament and citizen – the internet services of the German Bundestag. Parliamentary Affairs, 52(3), 480-492.         [ Links ]

Marques, P. J. A. (2010). "Muro baixo, o povo pula": iniciativas institucionais de participação digital e seus desafios fundamentais. Opinião Pública, 16(1), 117-142.         [ Links ]

Mendonça, R. F. & Amaral, F. de L. (2014). Deliberação online em consultas públicas? O caso da Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Revista de Sociologia Política, 22(49), 177-203.         [ Links ]

Miola, E. (2009). A deliberação online em ambientes institucionais. Um estudo do fórum de discussão do portal da Câmara dos Deputados. Contemporanea, 7(2), 1-24. http://dx.doi.org/10.9771/1809-9386contemporanea.v7i2.3640        [ Links ]

Musso, J. A., Weare, C. & Hale, M. C. (2000). Designing web technologies for local governance reform: good management or good democracy? Political Communication, 17(1), 1-19. https://doi.org/10.1080/105846000198486        [ Links ]

Nye, E, Melendez-Torres, G. & Bonell, C. (2016). Origins, methods, and advances in qualitative metasynthesis. Review of Education, 4(1), 57-79. https://doi.org/10.1002/rev3.3065        [ Links ]

Oliveira, R. S. & Rodegheri, L. B. (2012).Ciberdemocracia: análise dos desafios e possibilidades de iniciativa popular via internet no Brasil. Sociedade e Cultura, 15(1), 121-133.         [ Links ]

Packer, A. (2014, 5 de novembro). A visibilidade dos periódicos do Brasil [Post em blogue]. Retirado de https://blog.scielo.org/blog/2014/11/05/a-visibilidade-dos-periodicos-do-brasil/#.XEvAb1xKj        [ Links ]

Penteado, C. L. C., Santos, M. B. P. & Araújo, R. de P. A. (2014). Democracia, sociedade civil organizada e internet: estratégias de articulação online da Rede Nossa São Paulo. Sociologias, 16(36), 206-235.         [ Links ]

Pickard, V. (2008). Cooptation and cooperation: institutional exemplars of democratic internet technology. New Media & Society, 10(4), 625-645. https://doi.org/10.1177/1461444808093734        [ Links ]

Pinho, J. A. G. (2008). Investigando portais de governo eletrônico de estados no Brasil: muita tecnologia, pouca democracia. Revista de Administração Pública, 42(3), 471-93.         [ Links ]

Polat, R. K. & Pratchett, L. (2014). Citizenship in the age of the internet: a comparative analysis of Britain and Turkey. Citizenship Studies, 18(1), 63-80. https://doi.org/10.1080/13621025.2013.780765        [ Links ]

Prieto-Martin, P. (2010). Las alas de Leo: la participación ciudadana del siglo XX. Madrid: Bubok.         [ Links ]

Ribeiro, L. C. Q., Costa, A. S., Costa, L. & Ribeiro, M. G. (2013). Desigualdades digitais: acesso e uso da internet, posição socioeconómica e segmentação espacial nas metrópoles brasileiras. Análise Social, 207, 288-320.         [ Links ]

Rossini, P. G. C. (2014). O papel do cidadão nas ferramentas de democracia digital no Brasil: uma análise do desenho interativo das comunidades legislativas do portal E-Democracia. Revista Compolítica, 2(4), 112-134.         [ Links ]

Sampaio, R. C. (2012). Quão deliberativas são discussões na rede? Um modelo de apreensão da discussão online. Revista Sociologia Política, 20(42), 121-139.         [ Links ]

Sampaio, R. C., Maia, R. C. M. & Marques, P. J. A. (2010). Participação e deliberação na internet: Um estudo de caso do orçamento participativo digital de Belo Horizonte. Opinião Pública, 16(2), 446-477.         [ Links ]

Sani, G. (2004). Verbete "participação política". In N. Bobbio, N. Matteucci, G. Pasquino, Dicionário de política (p. 954). Brasília: Editora UNB.         [ Links ]

Saylan, I. (2009).Internet: "a gateway to democracy? A comparative analysis of Turkish and Italian e-government experiences". Amme Idaresi Dergisi, 42(3), 141-162.         [ Links ]

Shen, F. & Liang, H. (2015). Cultural difference, social values, or political systems? Predicting willingness to engage in online political discussion in 75 societies. International Journal of Public Opinion Research, 27(1), 111-124.         [ Links ]

Silva, S. P. (2005). Graus de participação democrática no uso da internet pelos governos das capitais brasileiras. Opinião Pública, 11(2), 450-468.         [ Links ]

Smyth, E. (2001). Would the internet widen public participation? Dissertação de Mestrado, Universidade de Leeds, Leeds,         [ Links ] Reino Unido.

Solop, F. I. (2001). Digital democracy comes of age: internet voting and the 2000 Arizona democratic primary election. PS: Political Science & Politics, 34(2), 289-293. https://doi.org/10.1017/S104909650100052X        [ Links ]

Stanley, J. W. & Weare, C. (2004). The effects of internet use on political participation – evidence from an agency online discussion forum. Administration & Society, 36(5), 503-527. https://doi.org/10.1177/0095399704268503        [ Links ]

Steinmann R., Krek A. & Blaschke T. (2005). Can online map-based applications improve citizen participation? In M. Böhlen, J. Gamper, W. Polasek & M. A. Wimmer (Eds.), E-Government: Towards Electronic Democracy. TCGOV 2005. Lecture Notes in Computer Science, vol 3416 (pp. 25-35). Berlim: Springer.         [ Links ]

Strandberg, K. (2008). Public deliberation goes on-line? An analysis of citizens' political discussions on the internet prior to the Finnish parliamentary elections in 2007. Javnost – The Public, 15, 71-89.         [ Links ]

Tettey, W. J. (2001). Information technology and democratic participation in Africa. Journal of Asian and African Studies, 36(1), 133-153.         [ Links ]

Vaccari, C. (2011). The news media as networked political actors: how Italian media are reclaiming political ground by harnessing online participation. Information, Communication & Society, 14, 981-997. https://doi.org/10.1080/1369118X.2011.572984        [ Links ]

Wells, C. (2010). Citizenship and communication in online youth civic engagement projects. Information, Communication & Society, 13(3), 419-441. https://doi.org/10.1080/13691180902833208        [ Links ]

Welp, Y. (2008). Latin America in the e-government era: analysis of the introduction of new technologies to the improvement of democracy and government. Revista del CLAD Reforma y Democracia, 41.         [ Links ]

Westholm, H. (2002).e-Democracy goes ahead. The internet as a tool for improving deliberative policies?. Electronic Government, 2456, 240-247.         [ Links ]

 

 

Nota biográfica

Rose Marie Santini é Professora Associada na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), no Brasil. Concluiu o Pós-doutoramento na Universidade Autónoma de Barcelona, em 2011, e desenvolve investigação sobre os seguintes temas: sociologia da internet, redes sociais e consequências socioculturais; sociologia da cultura; microssociologia aplicada a estudos de rede; curadoria algorítmica e sistemas de recomendação online; manipulação e desinformação nas redes sociais; social bots; propaganda computacional; comportamento e manipulação da opinião pública online. Coordena o Laboratório de Microssociologia e Estudos de Rede - NetLab, na UFRJ, desde 2013.

ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0657-7217

Email: marie.santini@eco.ufrj.br

Morada: Av. Pasteur, 250 – fundos, Urca – Rio de Janeiro, CEP: 22290902 - Rio de Janeiro, Brasil

Hanna Carvalho concluiu o Mestrado em Ciência da Informação, em 2017, no Instituto Brasileiro de Informação Ciência e Tecnologia (IBICT), num convénio com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), no Brasil. Em 2012, participou no Programa de Mobilidade Académica da UFRJ, com intercâmbio de estudos na Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris III. Atualmente é assistente de pesquisa do Laboratório de Microssociologia e Estudos de Rede – NetLab. Estuda os seguintes temas: democracia e participação política; iniciativas de plataformas web para comunicação e organização online; microssociologia aplicada a estudos de rede; social bots; fenómenos sociais no mundo e América Latina; uso de redes sociais online e efeitos políticos.

ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9743-5294

Email: hannacarvalho35@gmail.com

Morada: Rua Marques de Abrantes, 88/1905 - Flamengo, Rio de Janeiro, CEP: 22230-061- Rio de Janeiro, Brasil

 

* Submetido: 30/01/2019

* Aceite: 18/04/2019

 

 

Notas

[1] Considera-se plataforma online como o espaço eletrônico composto por páginas html, links e recursos que possibilitam ações e interações no ambiente virtual da internet (Jiang & Xu, 2009).

[2] Site oficial do DemocraciaOS. Retirado de http://democracyos.org/

[3] Site oficial do Code for America. Retirado de http://www.codeforamerica.org/

[4] Este metodologia reconhece que o foco nos artigos da WoS exclui outros contributos, como livros e capítulos de livro.

[5] Retirado de https://www.periodicos.capes.gov.br/images/documents/Scopus_Guia%20de%20refer%C3%AAncia%20r%C3%A1pida_10.08.2016.pdf

[6] Directory of Open Access Journals. Retirado de https://doaj.org/about

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons