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Comunicação e Sociedade

Print version ISSN 1645-2089On-line version ISSN 2183-3575

Comunicação e Sociedade vol.spe2019  Braga June 2019

https://doi.org/10.17231/comsoc.0(2019).3070 

ARTIGOS TEMÁTICOS

Vozes de mulheres em diáspora: hip hop, spoken word, Islão e web 2.0

 

Women's voices in diaspora: hip hop, spoken word, Islam and web 2.0

 

 

//

Cláudia Araújo 1
https://orcid.org/0000-0003-3528-5205

*Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, Portugal.

claudia.araujo@campus.fcsh.unl.pt

 

 

RESUMO

Este trabalho foca-se na produção artística de quatro artistas muçulmanas em diáspora — Poetic Pilgrimage, Alia Sharrief, Hanouneh e Alia Gabres — nos géneros hip hop e spoken word, com vista a analisar se as suas práticas culturais podem ser consideradas formas de ativismo político, cívico e social, com o potencial de alargar ou criar esferas públicas alternativas (Fraser, 1990). Articula uma forma de produção musical frequentemente associada ao Islão — o hip hop (Alim, 2005; Miah & Kalra, 2008) —, com uma prática artística de escrita e recitação de poesia, o spoken word, produzidas por mulheres muçulmanas em diáspora, migrantes ou descendentes de migrantes, de diversas proveniências e origens, com diferentes histórias de entrada no Islão, focando a sua agência na sua auto-representação, através tanto da sua produção artística, como da sua presença online (NTI e web 2.0). A diversidade das produtoras culturais e das suas formas de expressão visa ser demonstrativa da diversidade existente no Islão e anular estereótipos orientalistas (Saïd, 1979) que se lhes queiram impor.

Palavras-chave: Mulheres; hip hop; Islão; esfera pública.

 

ABSTRACT

This paper focuses on the artistic production of four hip hop and spoken word artists belonging to the Muslim diaspora, Poetic Pilgrimage, Alia Sharrief, Hanouneh and Alia Gabres, aiming to understand if such cultural practices can be understood as forms of political, civic and social activism, with the potential to broaden or create alternative public spheres (Fraser, 1990). It articulates a form of musical production often associated with Islam, hip hop (Alim, 2005; Miah & Kalra, 2008), with spoken word, produced by Muslim women in diaspora, migrants or descendants of migrants, with different backgrounds and different life stories associated with Islam, allowing them effective voice in their self-representation, considered from their online presence (NTI and web 2.0). The diversity of the cultural producers and their forms of expression considered in this paper is understood as an example of the diversity within Islam and also as a denial of any orientalist stereotypes (Saïd, 1979) about Muslim women.

Keywords: Women; hip hop; Islam; public sphere.

 

 

Introdução

O objeto deste estudo articula uma forma de produção musical frequentemente associada ao Islão — o hip hop (Alim, 2005; Miah & Kalra, 2008) —, com uma prática artística de escrita e recitação de poesia, o spoken word, produzidas por mulheres muçulmanas em diáspora, migrantes ou descendentes de migrantes, de diversas proveniências e origens, com diferentes histórias de entrada no Islão. Estas mulheres são representativas da grande diversidade existente na religião, e, como tal, as suas práticas artísticas, que compõem, escrevem, apresentam e partilham, são exemplos poderosos dessa diversidade. Interroga se estas produções culturais podem ser consideradas formas de ativismo e contribuir para a criação de esferas públicas alternativas e contrapúblicos subalternos (Fraser, 1990), dando voz efetiva às mulheres muçulmanas na sua autorrepresentação, considerada a partir das suas produções artísticas e da sua presença online, através do uso de instrumentos proporcionados pelas novas tecnologias de informação (NTI) e pela web 2.0 (evolução de páginas da internet para plataformas de social media). Seguindo Stuart Hall (1997), que celebra a profunda revolução cultural resultante da autorrepresentação artística de grupos subalternos e o seu impacto não só na cultura expressiva global, mas também na política e na vida social, este trabalho pretende ser uma contribuição para compreensão desta revolução.

Um segundo objetivo passa pela exploração do potencial destas práticas expressivas na criação de identidades e subjetividades como formas de empoderamento das artistas, desafiando estereótipos orientalistas sobre as mulheres muçulmanas e questionando dicotomias como Ocidente/Oriente (Saïd, 1979), secular/religioso (Asad, 2003) e identidade construída/ identidade atribuída. Acreditando, com Ernst (2005), que é importante olhar o Islão através da lente da arte, enquanto veículo de autoexpressão, para perceber a sua contribuição para a construção identitária e criação de redes de interesse e ativismo, este estudo articula estas práticas com uma exploração das formas como as NTI influenciam redes contemporâneas de artistas, nomeadamente as que se identificam como muçulmanas, demonstrando que estas são inclusivas dos seus públicos, contribuindo para a emergência de uma comunidade transnacional e desterritorializada, na qual jovens muçulmanos redefinem coletivamente o significado de ser efetivamente muçulmano (El-Nawawy & Khamis, 2011), através da construção de identidades e pertenças alternativas, necessariamente híbridas. Desta forma, explora ainda dois conceitos operativos, Umma transnacional online (Mandaville, 2003) e cyber salons islâmicos (Van der Veer, 2006).

Estrutura do trabalho

Partindo de uma discussão de tópicos essenciais para a compreensão dos objetivos (incluindo cultura, subcultura, diáspora, criatividade, hip hop e spoken word, internet, ativismo e esfera pública), este estudo avança para a análise comparativa do discurso e conteúdo das produções culturais das quatro artistas, que foram selecionadas para esta investigação através de pesquisa numa página da internet direcionada para a promoção da produção artística de artistas muçulmanos em diáspora[1]. A partir do número de visualizações no site de partilha YouTube — uma plataforma amplamente usada pelas artistas — foram selecionados alguns temas para análise detalhada, complementada por uma análise de conteúdos publicados nas suas páginas de social media e de internet, assim como dos projetos em que se envolvem.

Enquadramento teórico

Thomas Turino (1993) refere-se a cultura como um processo localizado nas vidas concretas das pessoas através das suas práticas sociais, a partir da seleção, criação e apropriação de recursos disponíveis, e Dick Hebdige (1979) aponta que cultura é sempre um conceito ambíguo, ressalvando a importância de conjeturas e especificidades na criação e articulação de práticas culturais e artísticas de grupos sociais em posições subalternas, que se apropriam da cultura material e dos recursos culturais disponíveis em determinados momentos e contextos, selecionando-os cuidadosamente para construir, a partir deles, identidades alternativas que lhes possam conferir algum sentido de autonomia numa sociedade cada vez mais fragmentada. Da mesma forma, Paul Gilroy (1995) destaca que as práticas culturais na atualidade são herdeiras de um imaginário social partilhado, com grande poder identitário, baseado em relações de autenticidade e solidariedade, proporcionando reconhecimento e valorização, tanto individuais como coletivos, em circunstâncias políticas, económicas e sociais que poderão ser hostis. As práticas artísticas são assim entendidas como constituindo um conjunto de estratégias definidas e selecionadas em relação dialética com os contextos, objetivos e necessidades de grupos sociais em posição de subalternidade e alteridade, em articulação com relações de poder e projetos hegemónicos (Hall, 1992). Como afirma Ramnarine (2007), qualquer expressão cultural é sempre construída em interação entre diferentes grupos que partilham diferentes experiências, o que se reflete nas identidades que engendra — nesse sentido, as produções culturais de jovens diaspóricos em situação minoritária, habitando a tensão entre relações de poder e hierarquias de classe, não podem ser reduzidas à simples função de resistência, mas constituem um instrumento poderoso de construção identitária, de relações interpessoais e de solidariedade.

É, portanto, necessário considerar como a cultura expressiva se transforma criativamente a partir da experiência de mobilidade, particularmente a partir da migração e das vivências diaspóricas femininas, considerando a possibilidade de emergência de novas funções sociais de produções artísticas criadas em contextos globalizados de desigualdade e discriminação interseccional. Com El-Nawawy e Khamis (2011), entendo identidade como um conceito complexo, dinâmico e multifacetado, na intersecção entre variados aspetos, passando pelo género, religião, orientação política, estatuto migratório, classe económica e social, etc., categorias que não são unívocas, mas estão em constante evolução e articulação, produzindo significados culturais que podem ser partilhados em diáspora, mesmo que de forma intermitente.

Práticas artísticas como as aqui exploradas podem constituir um palco de lutas de representação, refletindo novas formas identitárias e de pertença, questionando posições sociais hegemónicas e papéis de género tradicionais, desmontando o significado de termos como tradição, modernidade, cultura, multiculturalismo, termos, aliás, e como demonstra Michaels (1992), de delimitação difícil, ligados a processos de colonização e pós-colonialismo, constituindo formas de adaptação a novos contextos, sendo a urbanização um fator importante.

Estas práticas devem ser consideradas a partir de metodologias e estratégias de análise inovadoras, adaptadas a objetos culturais que também o são — Talal Asad (Mahmood, 1996) afirma a necessidade de compreender estes fenómenos de forma inclusiva, a partir dos seus contextos específicos, tanto de produção como de receção, uma vez que eles são, "simultaneamente, modernos e tradicionais, autênticos e criativos". Asad (2003) rejeita absolutamente o peso ideológico dado à modernidade como um modelo universal, afirmando que este reflete um projeto neoliberal ocidental, constituindo um quadro normativo que define o que a modernidade deverá ser (mais do que uma descrição do que efetivamente é), o que levará à rejeição de atos culturais produzidos por atores em posições não hegemónicas como sendo tradicionais, retrógrados ou meras imitações de padrões ocidentais. Stuart Hall (1997) acrescenta que a emergência de novos temas, regiões, etnicidades, comunidades — a que acrescento religiões e género — anteriormente excluídos das formas mainstream de representação cultural, possibilita o surgimento de novos discursos contra-hegemónicos, em que a subalternidade se afirma como uma nova posição de poder, que pode ser utilizada como forma de legitimação no campo da arte moderna (que se mantém, no entanto, numa posição marginalizada em relação ao mainstream). De facto,

todas as músicas modernas mais explosivas são cruzamentos. A estética da música popular moderna é a estética do híbrido, a estética do cruzamento, a estética da diáspora, a estética da crioulização. É a mistura de músicas que é excitante para um jovem (...) [Os novos artistas querem] apoderar-se de algumas das tecnologias modernas, para falar na própria língua, para falar da sua própria condição, então eles estão fora do lugar, então o Outro não está onde deveria estar. O primitivo de alguma forma escapou ao controlo. (Hall, 1997, p. 40)

Também Hinnells (2005) enfatiza a importância da arte na resolução de um dos principais desafios da globalização: a tensão entre homogeneização e heterogeneização cultural (Appadurai, 1990). O hip hop e o spoken word podem ser então entendidos como resultantes de processos de globalização enquanto fenómeno dialético, em que eventos em diversas localizações se afetam mutuamente, de forma por vezes divergente (Giddens, 2000), sendo que mensagens culturais dispersas a partir de posições hegemónicas — como é o caso do hip hop, disperso a partir dos EUA — são recebidas e interpretadas por indivíduos e grupos em diferentes localizações, reinventadas e adaptadas, incorporando as suas próprias tradições e identidades, também elas reinventadas. À medida que a música migra, os músicos buscam nas suas localidades possibilidades de construção de novos significados, potenciando a emergência de práticas culturais transnacionais (Nooshin, 2011). Assim, Toynbee e Dueck (2011) destacam a importância das práticas de tradução na produção musical: um tropo musical é traduzido porque responde a uma necessidade do grupo social que o adota, ganhando assim uma nova função social, o que é particularmente notório no caso do hip hop, género musical compreendido como "o idioma natural da autoexpressão", como uma "poderosa linguagem de resistência" (Nooshin, 2011, p. 91), ou como a "língua franca da rua" (Miah & Kalra, 2008, p. 17), integrado na linguagem do quotidiano, articulando preocupações locais e transnacionais.

Os músicos de hip hop surgem assim na posição de mediadores de identidades emergentes, reformulando fronteiras de pertença na adaptação ao universo cultural dos centros urbanos, incorporando processos de formação de identidade que dão conta dos estatutos subalternos de alguns dos habitantes da cidade. Assim, Miah e Kalra (2008) veem o hip hop como absolutamente central na cultura urbana de jovens muçulmanos, quer em diáspora, quer em países de maioria muçulmana. Os autores afirmam que o hip hop produzido por muçulmanos exige ao seu público um grau de engajamento ideológico, potenciador de diálogo e debate, uma vez que ultrapassa a fronteira das normas culturais tradicionais, unindo produtores e consumidores no desafio consciente de estereótipos ligados à demonização do Islão, a situações de pobreza e exclusão social, e, acrescento, também à subversão de papéis de género tradicionais. O hip hop poderá servir igualmente como forma de distinção intergeracional e de criação de distância em relação às produções culturais das gerações anteriores, constituindo, portanto, um instrumento de construção de identidade em contexto diaspórico.

Este género musical vai beber influências ao Islão desde a sua génese, quando Afrika Bambaataa funda os Zulu Nation em 1973, incorporando já referências ao Islão e palavras em árabe. Aidi (2011) afirma ser necessário considerar a importância crescente do Islão nos bairros pobres e marginalizados nos EUA e na Europa, como resultado de políticas de imigração e integração, desindustrialização e emprego e diminuição da intervenção do estado social, aliados a ideologias do nacionalismo africano (como é o caso da Nation of Islam), para compreender o apelo que o hip hop exerce junto dos jovens em situação minoritária, subalterna e marginalizada. Relativamente ao Médio Oriente, LeVine (2009) explica que o hip hop e outras formas de música hardcore se tornaram instrumentos populares para criticar o status quo e — igualmente importante — para imaginar um futuro diferente, mais positivo, indo assim ao encontro de Appadurai (1990), que entende o poder da imaginação e da criatividade como fundamental para a criação de mundos alternativos na consciência diaspórica ("Ideopaisagens"). LeVine afirma inclusivamente que o hip hop, o heavy metal e o rock se tornaram a "Al-Jazeera das ruas" (2009, p. 35), sendo assim não apenas uma forma de expressão, mas também uma rede de acesso ao conhecimento e de partilha de informação. Os artistas incorporam elementos da sua vivência económica, política, social e musical nas suas produções culturais, que ultrapassam claramente a simples imitação da produção do Ocidente: surgem novos estilos e novas direções, que redefinem identidades e formas de pertenças à Umma (a grande comunidade transnacional de crença no Islão), contribuindo assim para o surgimento de novas esferas públicas não-tradicionais no mundo árabe em diáspora, alternativas e contra-hegemónicas, maioritariamente jovens e em constante inovação.

À medida que crescem os fluxos migratórios, aumenta também a produção artística por parte de artistas em diáspora, muitas vezes refletindo a existência diaspórica e incluindo as suas tensões como temas principais — recordando de forma nostálgica o lugar de origem ou referindo dificuldades de integração, sociabilização e situações de conflito a vários níveis, tanto nos países de acolhimento como nos de origem, tanto a nível comunitário como pessoal. No entanto, e seguindo Ramnarine (2007), não é objetivo deste estudo apontar a unicidade da produção cultural em diáspora, uma vez que esta não deve ser reduzida ao simples resultado de movimentos migratórios e contatos multiculturais, mas sim compreendida na normalidade da produção criativa, em que os artistas são agentes individuais situados nos seus contextos quotidianos.

As relações entre mobilidade e práticas expressivas não podem, portanto, ser vistas de forma linear. De facto, se os sons e a música podem ser símbolos de alteridade na esfera pública, esta, exatamente porque é pública, também pode ser reapropriada pelas margens. Nancy Fraser (1990) aponta assim a existência de uma esfera pública oficial e de esferas públicas alternativas, em que múltiplos atores, participativos em diferentes níveis e em prol de diferentes interesses — a que chama contra-públicos subalternos —, criam discursos e interpretações alternativos e promotores de novas posições identitárias no espaço partilhado. Observando a esfera pública constituída por mulheres artistas de hip hop e spoken word e os seus públicos, torna-se claro que estas práticas artísticas se tornam uma voz destacada no debate sobre etnia, género, imigração, integração, exclusão social, a nível local, regional e transnacional, questionando simultaneamente qual a versão do Islão que se considera aceitável na esfera pública ocidental — e, neste sentido, equipara-se com os debates sobre a laicidade, a permissibilidade ou não do véu, ou a construção de mesquitas.

Mosquera (2015), num estudo sobre o impacto no público de performances por mulheres muçulmanas, conclui que estas constituem formas poderosas de questionar estereótipos orientalistas e discursos mediáticos sobre o outro(a) muçulmano(a), ampliando o interesse dos espetadores pelo conhecimento de outras culturas e formas de arte. Esta aceitação não é, no entanto, plena: as próprias artistas muçulmanas têm constantemente de assumir a defesa na sua prática artística em várias arenas, tanto face a muçulmanos que consideram não só prática musical como a apresentação de mulheres em palco ou online haran (contrária ao Islão) (Piela, 2010), como face a um público não religioso que não aprecia conteúdos abertamente religiosos e políticos, ou ainda em relação a visões misóginas que não apreciam as mulheres (muçulmanas ou não) no mundo das artes. Desta forma, o hip hop e o spoken word produzidos por artistas muçulmanas têm o potencial de construir um discurso contra-hegemónico, de cariz antirracista, anti-islamofóbico e antipatriarcal que pode, portanto, ser considerado uma forma de ativismo.

cooke (2001) havia já indicado o potencial da poesia produzida por artistas muçulmanas como instrumento de subversão e, inclusivamente, de proteção, com os mais diversos objetivos, seja ativismo pelos direitos das mulheres, ativismo por causas globais, como a paz e o desarmamento, ativismo em prol de causas específicas, como o conflito israelo-árabe, ou ativismo pelo simples direito de ser artista, demonstrando como esta ganha múltiplas funções — memória, catarse, empoderamento, partilha e a criação de comunidades e redes, mas igualmente destruição de estereótipos, tanto orientalistas, como patriarcais. El Saadawi (1997), equiparando criatividade com protesto social, considera que esta implica sensibilidade relativamente a injustiças sociais e a todas as formas de discriminação, pelo que constitui uma forma de ativismo. Também Toman (2009) afirma que a criação artística tem o potencial de ser um meio de comunicação e de ativismo comum às mulheres muçulmanas em diáspora, atribuindo-lhe a função de catalisador para mudança social e reforma. A arte, foco da imaginação, constitui uma forma individual e/ou coletiva de expressão e desenha pertenças no seio de experiências partilhadas: na visão de Arjun Appadurai (1990) de um mundo globalizado a partir da confluência de diferentes paisagens, é precisamente a interseção de paisagens mediáticas, imaginativas, económicas, laborais — inclusiva das suas divergências — que permite que múltiplos atores em espaços múltiplos criem atos culturais inovadores, fluidos e híbridos, consumidos por uma comunidade de públicos ainda mais dispersa, para o qual o desenvolvimento de instrumentos de NTI é fundamental.

Peter Mandaville (2003) reconhece o papel das NTI na criação da Umma virtual transnacional, enquanto comunidade inovadora de crença e conhecimento partilhados, salientando o papel dos jovens muçulmanos em diáspora na sua construção e manutenção, o que possibilita o surgimento de identidades e discursos muçulmanos alternativos, híbridos e contra-hegemónicos online, e, progressivamente, offline, promovendo desta forma o pluralismo e a diversidade do seio do Islão. Peter Van der Veer (2006) descreve este fenómeno como cyber salons islâmicos, comparando-os com os salões iluministas das capitais europeias, tendo assim a capacidade de expandir a esfera pública de discussão política e cívica, em que também a expressão artística está presente. A internet potencia assim a construção e manutenção de redes globalizadas, transnacionais e desterritorializadas (El-Nawawy & Khamis, 2011), a que acrescento genderizadas, em que as mulheres podem criar as suas próprias articulações. No caso das mulheres artistas muçulmanas, novos espaços transnacionais de autonomia (Piela, 2010), conjugando a dimensão online e offline, permitem que se negociam identidades e pertenças a múltiplos níveis: local, nacional, religioso, artístico, etc. (cooke, 2001). No entanto, há que ressalvar que as NTI são um instrumento, uma tecnologia mediada geograficamente: como indica Castells (2004), a sociedade em rede (a estrutura social resultante das interações entre organizações sociais e tecnologias em constante negociação, evolução e inovação, constituída por nós interligados, sem hierarquias, centros ou periferias claramente identificados, ligando níveis locais, nacionais e transnacionais), apesar de global, exclui uma grande parte da população devido à fragmentação das condições de acesso (digital divide), também elas em constante negociação, e às que o género não é alheio.

Existem várias páginas na internet dedicadas à partilha e colaboração artística utilizadas por produtores musicais, como o SoundCloud[2] e o Myspace[3], aliados a plataformas tradicionais de social media como o Facebook ou o YouTube. Igualmente, várias páginas na internet são dedicadas exclusivamente a artistas muçulmanos, como Muslim Hip Hop[4], que apresenta este género musical como uma alternativa viável artística e comercialmente à música mainstream, e promove qualquer artista cujas letras demonstrem que segue os princípios do Islão, ou MUSLIMA[5], Muslimah Montage[6] ou Hijabi Chronicles[7], focados exclusivamente na produção artística de mulheres. Estes são instrumentos que promovem efetivamente a construção de redes de artistas, a sua colaboração e a interação direta com a sua base de apoio (e com os seus opositores). A internet surge, assim, como uma nova arena de autorrepresentação individual e de grupo, potenciadora de novos discursos contra-hegemónicos, mesmo no seio da cultura popular.

Segue-se a análise das práticas artísticas que constituem o foco deste estudo, notando, no entanto, algumas limitações: a amostra selecionada para análise, composta por quatro artistas, pretende ser exemplificativa da diversidade existente no Islão, mas não a demonstra efetivamente; foi limitada a produções artísticas em Inglês, embora a pesquisa dê conta de um número elevado de artistas nestes géneros em todas as línguas da Umma; finalmente, a análise aqui é focada na produção musical e lírica, não no conteúdo multimodal (arte visual, vídeo) produzido por estas artistas, que será, certamente, digno de atenção futura.

As artistas — Poetic Pilgrimage, Alia Sharrief, Hanouneh e Alia Gabres

As Poetic Pilgrimage são um duo de hip hop e spoken word britânico criado em 2002 por Muneera Rashida e Sukina Abdul Noor, poetas, compositoras e cantoras, cidadãs britânicas descendentes de Jamaicanos, convertidas ao Islão em 2005. O seu estilo musical, com grande diversidade instrumental, mistura influências africanas e das Caraíbas com sons do Médio Oriente e temas da música negra, como o soul, o afrobeat ou o jazz, e inclui tropos da linguagem estética do hip hop aliados a tropos da world music (instrumentos tradicionais do Médio Oriente, percussões jamaicanas, cantares tradicionais por mulheres muçulmanas), e letras com referências à existência em diáspora, ao Islão e à situação das mulheres ["Land far away" (Poetic Pilgrimage, 2010a, faixa 6), "What a girl to do" (Poetic Pilgrimage. 2015)], mas em que também se foca política internacional, particularmente assuntos que dizem respeito à Umma ["Silence is consent" (Poetic Pilgrimage e Yahya, 2010b, faixa 12) faz uma lista exaustiva de situações de conflito armado, instabilidade ou falta de liberdade política e democrática que afetam países de maioria muçulmana, referindo em particular o conflito israelo-árabe e a situação política na Arábia Saudita]. As Poetic Pilgrimage identificam-se como artistas de hip hop que também são Muçulmanas, logo a música e a poesia permite-lhes a articulação de identidades múltiplas e complexas na criação dos seus próprios discursos — outras autorreferências são mulher, ativista, britânica, africana e caribenha.

Assim, outra questão que as Poetic Pilgrimage abordam frequentemente é a do racismo e da discriminação, que encontram em várias frentes: pela cor da pele, origem, religião, género, tanto de setores seculares, como de setores muçulmanos da sociedade. O duo assume claramente as suas posições antirracismo, anti-islamofobia e antidiscriminação nos conteúdos líricos [Modern Day Marys (Poetic Pilgrimage., 2007)], nas entrevistas a meios de comunicação ou à academia, nas suas páginas online, focando particularmente a questão da igualdade de género, central também no discurso das cantoras no documentário da Al-Jazeera, Hip hop hijabis[8], em que se testemunha a discriminação interseccional de que são frequentemente alvo. Tanto a sua produção artística como o seu posicionamento em plataformas online de produção própria constituem formas de ativismo político, passíveis de criação e expansão de esferas públicas subalternas (Fraser, 1990), integrando-se na revolução cultural a partir da autorrepresentação de sujeitos nas margens que Hall (1997) descreve. O hip hop surge então como um instrumento de ação e mudança social e política, baseada na participação e na divulgação de uma mensagem poderosa e multidirecional.

As cantoras afirmam inclusivamente que visam posicionar-se como modelos ou exemplos para outras mulheres, muçulmanas ou não, e também para as gerações mais jovens, a vários níveis, desde o uso do hijab até à prática artística, passando pela participação política e cívica, referindo igualmente que recebem contactos de membros do seu público espalhados pelo globo que reconhecem e agradecem pela fonte de inspiração que é o seu trabalho — demonstrando o alcance transnacional da cultura expressiva e a participação dos públicos na criação de comunidades de interesse e pertença agregadas a práticas culturais. De facto, o hip hop é por elas considerado um instrumento de dawah, a prática corânica de educar muçulmanos e não-muçulmanos sobre o Islão. Esta prática pode ser particularmente importante em diáspora, criando espaços de discussão e informação sobre questões globais, transnacionais e locais associadas ao Islão, sendo igualmente uma fonte de empoderamento contra a discriminação de género dentro da própria Umma. As artistas, portanto, criam um espaço de expressão própria através do equilíbrio entre os vários sistemas identitários a que pertencem — Islão, cultura hip hop, diáspora africana, das Caraíbas e muçulmana, Europa, etc.

Já Alia Sharrief, rapper e ativista estadunidense, assume que a sua grande inspiração é o Islão e o seu grande objetivo é fazer dawah: produz hip hop muçulmano, com referências constantes ao Alcorão e à Nation of Islam, explicando claramente aspetos do Islão ao seu público, visando promover a unidade da Umma e a compreensão da religião no Ocidente, desmontando musical e visualmente quaisquer estereótipos orientalistas. A sua produção artística é plena de referências islâmicas, desde o uso do chamamento à oração em "Maula Ya" (Sharrief, 2015) ao constante apelo ao texto corânico, recorrendo à tradição muçulmana de poesia e recitação, incorporada no Alcorão, nas práticas rituais quotidianas e na tradição oral do Médio Oriente. Alia Sharrief interpreta esta tradição como uma forma de empoderamento, justificando a partir dela a sua prática artística face a críticas que associem a produção e performance musical de mulheres a haran. É igualmente clara em relação à sua pertença à Nation of Islam, através de temas dedicados a Malcolm X ["Who ready" (Sharrief, 2017, faixa 1) e "Black heros" (Sharrief, 2014)] e de referências líricas ao movimento. Alia Sharrief define assim a sua identidade primária como a religiosa, e que se juntam outros traços identitários — artista, mulher, negra, ativista, esposa. É particularmente crítica de conteúdos líricos e visuais misóginos, materialistas e hipersexualizados na indústria do hip hop, que visa contrariar com a sua própria prática artística, recorrendo inclusivamente ao discurso feminista de luta contra o patriarcado, e destacando o papel das mulheres muçulmanas na produção e promoção artísticas como forma de ativismo contra a islamofobia, mas, ao mesmo tempo, defendendo valores e papéis familiares e de género tradicionais na Umma.

É também a criadora e administradora do website The Hijabi Chronicles[9], uma plataforma criativa em que artistas muçulmanas podem partilhar conteúdos, funcionando como um espaço de empoderamento das mulheres a partir da sua expressão cultural, pretendendo afirmar-se como forma de educação, motivação e apoio às comunidades, através de instrumentos de NTI e web 2.0. O seu ativismo feminista vai assim ao encontro de cooke, que aceita o termo para definir "qualquer ação das mulheres que vise mudar expectativas relativamente ao seu papel social e às suas responsabilidades" (2001, p. vii) e de Badran (2009), que define ativismo feminista pela consciência das restrições impostas às mulheres e pelas tentativas de as eliminar. De facto, o espetro do feminismo em contextos muçulmanos inclui movimentos islâmicos de mulheres com objetivos feministas que se opõem à identificação como tal (já que a compreendem como aplicando-se a movimentos de carácter exclusivamente ocidental e secular), movimentos assumidamente feministas e seculares, e ainda outros movimentos que se situam de algum modo na intersecção destas duas posições (Badran & cooke, 1993; Karam, 1997), em que Alia Sharrief parece também posicionar-se discursivamente. A artista apela igualmente ao fim da islamofobia, do racismo, da discriminação, da violência policial e de retratos de alteridade atribuídos aos Muçulmanos pelos meios de comunicação de massa ocidentais e refere igualmente a situação na Palestina.

A terceira artista, Hanouneh (um pseudónimo que significa carinhosa, agradável e inteligente em Árabe), é uma compositora e cantora de hip hop e reggae sueca, mas que reclama uma identificação política e cultural com o Médio Oriente, atribuindo-se inclusivamente nacionalidade palestiniana — que, na prática, não tem —, um posicionamento que deixa claro nas suas letras, plenas de conteúdo político sobre o Médio Oriente e a Faixa de Gaza ["Real Gaza me seh" (Hanouheh, 2011a, faixa 1) e "Police inna mi yard" (Hanouheh, 2011, faixa 3)]. A artista justifica este posicionamento identitário como a sua expressão de amor e saudade para com a Faixa de Gaza, onde viveu alguns meses, acrescentando que negoceia a sua posição de algum privilégio no Ocidente vs. culpa por ter abandonado a Palestina com a responsabilidade de "fazer algo", referindo aliás querer ser a voz das suas irmãs no território (Dankic, 2013). O seu ativismo transnacional através da cultura expressiva vai assim ao encontro das reflexões de Appadurai (1990) sobre o poder das ideopaisagens e também de cooke (2001), quando atribui à prática artística das mulheres muçulmanas a função de catarse, memória e criação de comunidades, imaginadas ou não. Artisticamente, Hanouneh distancia-se da tradição hip hop ao criar letras simples e de fácil compreensão, a que atribui mais força, o que contraria a metalinguagem do género, normalmente com construções discursivas complexas, de que a Alia Sharrief é o exemplo mais forte aqui explorado.

Esta artista faz igualmente uso pleno dos instrumentos das NTI e web 2.0 para a construção de redes de colaboração com outros músicos: ligou-se através do Myspace com o coletivo 961 Underground, grupo transnacional baseado no Líbano, com 10 membros em várias localizações na Europa e no Médio Oriente e, mais recentemente (2015/2016), colaborou com vários músicos libaneses num projeto intitulado "Tawasul", dedicado à liberdade de expressão — este projeto insere-se no ativismo de Hanouneh, focado na comunicação intercultural e solidariedade transnacional. Trabalha igualmente com músicos noutras localizações, nomeadamente na Jamaica.

Finalmente, Alia Gabres é uma poetisa e ativista radicada em Melbourne com dupla nacionalidade eritreia e australiana, e dedica-se prática de spoken word. Envolvida em diversos projetos de promoção da literacia e da escrita por mulheres a nível comunitário, o seu ativismo foca-se principalmente na área das artes, visando promover a prática artística como geradora de conhecimento e transmissão cultural, sendo que se posiciona de forma bastante próxima das mulheres produtoras de literatura em cooke (2001): a função de memória, de contar histórias em voz própria, de exigência e criação de um espaço próprio são caraterísticas da sua obra, como se demonstra nos temas "This house" (Gabres, 2011a) ou "She cotton summer dress" (Gabres, 2012). Alia Gabres não atribui à sua religião o foco da sua prática artística, descrevendo a sua identidade como separada por hífens: mulher-muçulmana-africana-migrante (mas não menciona "australiana"). Os conteúdos poéticos focam-se em experiências pessoais, incluindo quebra de estereótipos e resposta a situações de discriminação interseccional em relação aos seus posicionamentos identitários múltiplos ["Scent of love" (Gabres, 2011b)], mas também em questões políticas, nomeadamente o conflito israelo-árabe ["This house" (Gabres, 2011a)]. Este é aliás um ponto em comum às quatro artistas incluídas neste trabalho — de facto, a questão da Palestina é identificada por El-Nawawy e Khamis (2011) como absolutamente central para a identidade de jovens muçulmanos em diáspora, afirmando que a união e solidariedade à volta deste conflito lhes conferem um sentido de pertença à Umma.

Conclusões

A partir desta análise, é possível identificar dois grandes temas comuns à produção cultural destas artistas: o conflito israelo-árabe e a luta contra a islamofobia. Todas partilham a preocupação pela Palestina e uma identificação simbólica com este território e o conflito em curso, bem como a esperança na sua resolução, e todas rejeitam e desconstroem estereótipos e discursos hegemónicos sobre muçulmanos em geral, e sobre mulheres muçulmanas em particular, criando um discurso alternativo e inovador sobre o Islão, em voz própria, abertamente feminino, difundido numa esfera pública alternativa para sua discussão, onde o seu público é encorajado a partilhar e construir opiniões coletivamente, permitindo tanto concordância quanto divergência.

A linguagem do hip hop e o seu constante apelo à intertextualidade parece aliás aplicar-se às identidades e autoposicionamentos múltiplos destas artistas, expressos nos seus poemas, com muitas referências ao campo semântico da dor e sofrimento, assim como da esperança num futuro melhor, mesmo quando se listam exaustivamente situações de discriminação, falta de liberdade, guerra, morte, racismo, etc. (e aqui refiro um tema de cada artista, porque esta metalinguagem é comum a todas elas: "Silence is consent" (Poetic Pilgrimage e Yahya, 2010b, faixa 12), "Black heros" (Sharrief, 2014), "Police inna mi yard" (Hanouheh, 2011b, faixa 3), "This house" (Gabres, 2011a). Estes sentimentos aliam-se aliás a uma das característica dos géneros hip hop e spoken word, que é o apelo à autenticidade como resposta à necessidade de autoexpressão (Alim, 2005; Nooshin, 2011) e vão ao encontro do que Paul Gilroy descreve como "a condição de estar em sofrimento" (1995, p. 203) — a música pode, assim, ser um escape criativo para canalizar experiências de dor ligadas a situações de conflito armado, exclusão social, pobreza, discriminação, injustiça, islamofobia, etc., ultrapassando a função de resistência passiva e assumindo-se como uma prática ativista, enquanto forma de superar a imposição do silêncio e estabelecer diálogos e redes, tanto entre artistas, como com os públicos. Deste modo, a prática destas artistas tem o potencial de criar diálogos alargados a contra-públicos em situações de subalternidade, constituindo-se como um veículo de autoexpressão na luta contra opressão, repressão, discriminação, permitindo, simultaneamente, sentimentos de pertença e desafio (Landau, 2011).

Igualmente, o hip hop surge como uma forma de pertença à Umma, tanto a partir da prática de dawah, que duas das artistas (Poetic Pilgrimage e Alia Sharrief) fazem abertamente, como dos apelos à unidade entre muçulmanos ou a identificação com condições e conflitos comuns. As artistas parecem, portanto, encontrar-se entre duas posições: defesa e educação: defesa do seu direito à prática artística e educação sobre o Islão e sua diversidade, promovendo compreensão e conhecimento mais amplos sobre a religião, fomentando o diálogo inter-religioso e criando um discurso poderoso contra a discriminação de género, mostrando como artistas muçulmanas conceptualizam criativamente as ligações entre sua produção artística e sua fé, contribuindo para a criação e a consciência da Umma. Estas práticas artísticas, portanto, constituem formas de participação em e ampliação da Umma transnacional online de Mandaville (2003) e dos cyber salons islâmicos de Van der Veer (2006), a que acrescentam uma nova dimensão — a do género. São fruto de e proporcionam uma nova linguagem, uma nova forma de estas mulheres exigirem o seu lugar no mundo globalizado, que encaram com um sentido de responsabilidade pessoal e social bastante agudo, combinando Islão e produção artística quando assim o desejam, mantendo e defendendo uma identidade religiosa positiva, num contexto que lhes é, frequentemente, hostil.

O hip hop e o spoken word, práticas essencialmente verbais, permitem um grande âmbito discursivo, logo são importantes para a abertura da discussão no espaço público e permitem às artistas a desconstrução completa de visões orientalistas que as descrevam como distantes, exóticas ou silenciadas. Pelo contrário, estas exigem o reconhecimento da sua autonomia como produtoras culturais, e as suas práticas expressivas constituem ligações transfronteiriças e transnacionais, construídas por meio de um discurso contra-hegemónico orientado para a mudança social e política, contribuindo também para a criação de uma identidade muçulmana partilhada, inclusiva das diferenças entre elas. Esses processos de construção de identidade são realizados por estas mulheres dentro do seu quadro religioso pessoal, exposto mais ou menos abertamente: se a pertença religiosa nunca é ambígua, mesmo que não seja reivindicada como uma identidade primária, não lhes atribui uma posição imediata de alteridade, mas sim posicionamentos complexos e multifacetados, construídos através de diálogo e negociação. Como tal, a diversidade das artistas presentes neste estudo é também um convite para olhar para as mulheres muçulmanas como indivíduos, mesmo se estas partilhem práticas comuns (como ser artista ou optar por um qualquer item de vestuário) — o trabalho aqui é não o de definir a mulher muçulmana, mas sim o de indefini-la, individualizá-la.

Não será assim estranho que outra grande temática partilhada no trabalho destas quatro artistas seja a condição das mulheres e a discriminação interseccional de que são alvo. Todas elas contribuem para a anulação de estereótipos orientalistas, ao mesmo tempo que representam a diversidade existente no Islão: as artistas são diferentes, com passados e entradas no Islão diferentes, com posições na sociedade civil também diferentes e diferentes identidades. Através das suas práticas artísticas, estas mulheres constroem pontes entre si e outras mulheres muçulmanas, mas também com o resto do mundo. Os direitos das mulheres, portanto, constituem um dos focos de sua prática artística e, como tal, esta insere-se no ativismo feminista no sentido que lhe atribui miriam cooke (2001): feminismo como uma epistemologia, revelando a consciência tanto do papel do género na organização da sociedade, como da existência da discriminação interseccional contra as mulheres, lutando ativamente contra a sua perpetuação.

Assim, a produção artística de mulheres muçulmanas em diáspora reflete a existência diaspórica e suas tensões, por vezes apelando nostalgicamente a um lugar de origem (real ou imaginário), por vezes incorporando memórias de situações de conflito e histórias de resistência. Essas mulheres dão a conhecer seu lado da história, recusando-se a ser silenciadas, criando suas próprias narrativas e repertórios de protesto, que são formas legítimas de empoderamento. As histórias são frequentemente contadas pela incorporação de temas tradicionais da música islâmica, reconstruídos e reinterpretados, que funcionam tanto como uma forma de dawah, como de afirmação pessoal, válida mesmo quando as memórias e histórias não foram vividas na primeira pessoa, uma vez que as artistas podem fazer apelo à memória partilhada da Umma relativamente a situações de injustiça e discriminação percebidas como comuns.

As mulheres continuam sub-representadas nos campos artístico e cultural — como afirma Adorno (1975), os critérios da indústria cultural são sempre os do status quo, status quo esse que a revolução cultural identificada por Stuart Hall (1997) tem o potencial de começar a ruir, com a entrada em cena de novos atores, de que estas artistas são apenas uma pequena amostra. Estas novas produtoras culturais desafiam e questionam conceitos como género, multiculturalismo, pertença, etnia, religião e mesmo cultura, e exigem que as suas interpretações sejam consideradas, testemunhando o alcance transnacional da cultura expressiva na anulação de posições de alteridade e subalternidade. A música e a performance podem igualmente criar e manter redes de acesso e partilha de informação e conhecimento à escala transnacional, indo assim ao encontro das funções atribuídas à prática artista por cooke (2001), El Saawadi (1997) e Toman (2009): catarse, memória, protesto social, criação de comunidades, posicionamento identitário. É a partir das suas práticas culturais e sociais que elas expandem a esfera pública a vários níveis, forçando a inserção de complexidades identitárias que Habermas (1991) não considerou, como o género ou a religião, criando esferas públicas alternativas e inclusivas, através de atos sociais e culturais que revelam processos de globalização a partir de baixo, criando comunidades fluidas e abertas à participação transnacional.

 

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http://goingdownswinging.org.au/spoken-wordsters-alia-gabres/

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Nota biográfica

Cláudia Araújo é doutoranda em Estudos sobre a Globalização na FCSH -UNL. É mestre em Migrações, Inter-etnicidades e Transnacionalismo pela mesma Universidade e possui duas licenciaturas, em Línguas, Literaturas e Culturas, variante Estudos Franceses e Estudos Africanos pela FLUL, e em Turismo pelo IPVC. Trabalha sobre movimentos sociais pelos direitos dos migrantes e sua articulação com a governação local, particularmente com foco nas mulheres migrantes.

ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3528-5205

Email: araujoclaudia9@gmail.com; claudia.araujo@campus.fcsh.unl.pt

Morada: Rua Sabino de Sousa, 88, 2.º Dto, 1900-402 Lisboa

 

* Submetido: 30/07/2018

* Aceite: 20/12/2018

 

 

Notas

[1] Disponível em http://creativeummah.com/

[2] Disponível em https://soundcloud.com/

[3] Disponível em https://myspace.com/

[4] Disponível em www.muslimhiphop.com

[5] Disponível em http://muslima.globalfundforwomen.org/

[6] Disponível em http://muslimahmontage.com/

[7] Disponível em http://thehijabichronicles.com/

[8] Disponível em https://www.aljazeera.com/programmes/witness/2015/03/hip-hop-hijabis-150305091541022.html

[9] Disponível em http://thehijabichronicles.com/

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