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Comunicação e Sociedade

versão impressa ISSN 1645-2089versão On-line ISSN 2183-3575

Comunicação e Sociedade vol.34  Braga dez. 2018

https://doi.org/10.17231/comsoc.34(2018).2931 

NOTA INTRODUTÓRIA

Os Estudos Lusófonos e as Ciências da Comunicação: nota introdutória

 

Lusophone Studies and Communication Sciences: introductory note

 

 

//

Moisés de Lemos Martins*; Alda Costa**; Isabel Macedo***

//

//*Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Universidade do Minho, Portugal, moiseslmartins@gmail.com. //
//**Universidade Eduardo Mondlane, Moçambique, aldamc@tdm.co.mz. //
//***Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Universidade do Minho, Portugal, isabel.macedo@ics.uminho.pt. //

 

 

A comunidade lusófona tem para cima de 250 milhões de falantes, mas apenas uma minoria desenvolve um sentimento de pertença baseado numa língua comum. De acordo com o escritor moçambicano, Mia Couto (2009), a lusofonia não é uma realidade de voz cheia, mas apenas um lugar “luso-afónico”, um lugar sem voz, sem o conhecimento nem o reconhecimento das semelhanças e das diferenças do outro, no vasto espaço geográfico e cultural dos países de língua portuguesa e suas diásporas. Reconhecendo este fosso, as associações de Ciências da Comunicação do espaço lusófono lançaram, em 1997, uma rede de cooperação, primeiramente entre pesquisadores de Portugal e Brasil, logo seguidos pelos investigadores galegos, e posteriormente por todo o espaço lusófono. Este movimento baseia-se no pressuposto de que a diversidade linguística enriquece a ciência e de que esta deve ser global e contextualmente relevante. A lusofonia pode ser discutida de acordo com vários pontos de vista, todos relacionados com a identidade cultural dos países de língua portuguesa. Aprofundar este ponto de vista significa centrarmo-nos no estatuto social da língua, o que nos conduz a considerar o Inglês como língua dominante.

Mas são vários os desafios que os grupos de investigação lusófonos têm de enfrentar num mundo global dominado pelos paradigmas anglo-saxónicos. Centrar a atenção na língua significa considerá-la, todavia, como manifestação cultural, expressão do pensamento, espaço relacional e instrumento de organização simbólica do mundo. Um tal entendimento coincide com a ideia de poder simbólico de Pierre Bourdieu (1977), assim como com a perspetiva pós-colonial, que questiona a dominação, submissão, subordinação e controle das periferias, das minorias, das diásporas, dos migrantes e dos refugiados.

No atual contexto da globalização, que é uma realidade comandada pelas tecnologias da informação e cuja natureza é eminentemente económico-financeira, os estudos sobre a lusofonia impõem, pelo menos, três direções complementares de investigação. Se nos cingirmos a um ponto de vista pós-colonial, podemos interrogar, por um lado, as narrativas lusófonas como construção, a várias vozes, de uma comunidade geocultural transnacional e transcultural. Podemos interrogar, igualmente, as políticas da língua e da comunicação como combate simbólico pela afirmação de uma comunidade plural, na diversidade de povos que falam o Português. E podemos interrogar, ainda, a complexidade do movimento de interpenetração das culturas. Um tal movimento compreende, com gradações diversas, colonialismo, neocolonialismo e pós-colonialismo, na relação entre povos, e traduz, de igual maneira, encontro, assimilação e dominação, na interação entre nós e o outro.

Tendo em atenção diferentes contextos nacionais, os estudos lusófonos movem-se, acima de tudo, no espaço transcultural e transnacional em que a língua portuguesa é língua oficial. Assim como se movem nas diásporas de cada um destes países. Na senda dos estudos pós-coloniais, os estudos lusófonos interrogam a interpenetração identitária de nós com o outro, aberta pela expansão portuguesa dos séculos XV e XVI, uma realidade complexa e contraditória onde se misturam águas ainda revoltas e em convulsão.

Este número da Comunicação e Sociedade movimenta-se, precisamente, por entre estas três direções de investigação. Adotando um olhar transdisciplinar e transcultural, e tendo como ângulo de enfoque a linguística aplicada, Armando Jorge Lopes discute o conceito de lusofonia, entendendo-o como um lugar de reflexão, de conhecimento e de reconhecimento de si e do Outro. Na sua perspetiva, a lusofonia não é possível “sem partilha, sem reciprocidade, sem interpenetração dos falares e das culturas dos falantes e escreventes das várias línguas, que milhões de cidadãos da CPLP utilizam nativa e não-nativamente” (p. 36). Nesta reflexão, a noção de relação – “feita de todas as diferenças à nossa volta e no mundo” (p. 30) – revela-se fundamental na análise da interconectividade e da interdependência linguística. Armando Jorge Lopes apresenta um esboço preliminar de um programa de trabalho, tendo em vista articular a planificação e a política linguísticas no domínio da lusofonia.

Por sua vez, Rovênia Amorim Borges e Almerindo Janela Afonso discutem a hegemonia da língua inglesa e o facto de nos países de língua oficial portuguesa as suas políticas contribuírem para reforçar desigualdades e desvantagens para candidatos a programas de mobilidade científica internacional. As rotas de estudantes internacionais voltam-se predominantemente para instituições com oferta de cursos em língua inglesa, sendo os Estados Unidos e o Reino Unido os países que mais recrutam estudantes internacionais. Os autores consideram existir na mobilidade internacional uma nova forma de colonialidade de poder (p. 60). A mobilidade internacional serve-se, com efeito, da hegemonia do inglês para acesso a centros científicos e tecnológicos de excelência, que excluem, à partida, um conjunto de estudantes internacionais, falantes da língua portuguesa, perpetuando, deste modo, “desigualdades invisibilizadas pela hegemonia da língua inglesa” (p. 69).

Nesta linha de pensamento, Moisés de Lemos Martins argumenta que uma grande língua de culturas e de pensamento, como é a língua portuguesa, não pode deixar de ser, igualmente, uma grande língua de conhecimento, humano e científico. O autor cunha o conceito de travessia, para pensar a aceleração da época pela tecnociência, uma travessia tecnológica, através de sites, portais, redes sociais, repositórios, arquivos digitais e museus virtuais. Tomando como objeto a lusofonia, Moisés de Lemos Martins questiona a condição política, estratégica e cultural dos países lusófonos, no contexto da globalização, que tem o inglês como língua hegemónica, situação que coloca estes países perante o problema da sua subalternidade, linguística, cultural, política e científica. Para o autor, a condição de subalternidade política dos países lusófonos exprime-se pela sua condição de subalternidade, linguística, cultural e científica.

Explorando o documentário de Victor Lopes, Língua – vidas em Português (2004), Regina Brito interroga as opiniões dos personagens sobre a língua portuguesa, assim como as representações da cultura a que pertencem, representando a lusofonia como um espaço marcado pelo encontro de diferenças. “Mais do que pontes (que são construídas quase sempre em linha reta e, às vezes, com somente uma direção)” (p. 130), entende a autora que a construção da lusofonia exige a produção de redes de contacto e de significação, numa construção coletiva contínua e legítima.

No texto “Fluxos, trânsitos e lugares de (des)encontro: contributos para uma lusofonia crítica”, Luís Cunha, Lurdes Macedo e Rosa Cabecinhas refletem em torno do conceito de lusofonia, pensado como “um lugar de cruzamento de narrativas alimentadas pela história tanto quanto pela memória” (p. 159). Trata-se, para estes autores, de um lugar de encontro, e também de desencontro e divergência, em que se cruzam distintas narrativas. Luís Cunha, Lurdes Macedo e Rosa Cabecinhas analisam as intervenções de Jorge de Sena, que se deslocou a Moçambique em visita de trabalho, em julho de 1972. Durante a sua permanência em Moçambique, Jorge de Sena refletiu sobre a situação da língua portuguesa no mundo, reconhecendo que, embora fosse falada por milhões, era de facto ignorada. No entender dos autores, Jorge de Sena defendia uma “‘cultura da língua’, fundada no conhecimento científico da história e num multiculturalismo agregador” (p. 152).

A caracterização da produção científica nos últimos 10 anos em Ciências da Comunicação sobre o tema lusófono constitui o principal objetivo do artigo de Anabela Gradim, Paulo Serra e Valeriano Piñeiro-Naval. Estes autores verificam que o interesse pelo tema, assim como a produção científica neste campo têm vindo a crescer, sendo o Brasil e Portugal os países que mais interesse manifestam em o estudar. Por outro lado, referem, a bibliografia utilizada nos textos analisados é feita, predominantemente, em português e são mulheres quem maioritariamente os produz.

No artigo “Contextos periféricos de criação artística: o caso angolano”, José Carlos Venâncio analisa o percurso das artes plásticas angolanas desde finais do período colonial. Apesar das fragilidades e desequilíbrios estreitamente relacionados com os contextos económicos e políticos vividos – especificamente, uma economia dependente em excesso da produção petrolífera – e com a falta de apoios estatais às artes, o contexto de produção artística angolano apresenta, segundo o autor, uma vantagem, que radica na postura dos seus artistas e na qualidade estética dos seus trabalhos, cujas “formas e estilos (…) atribuem autenticidade e identidade às artes do país” (p. 220).

A participação política dos conectados desamparados em Moçambique é o tópico de reflexão proposto por Dércio Tsandzana, que analisa o papel das redes sociais, em particular do Facebook, no envolvimento político e social da juventude urbana em Moçambique, nos últimos quatro anos. O autor constata que as redes sociais ainda não podem ser consideradas, no seu todo, como espaços que permitam uma efetiva participação política da juventude, quer por razões que se prendem com o acesso, quer pelo diminuto interesse que a juventude moçambicana manifesta relativamente à política. De acordo com o autor, os conectados desamparados são os jovens que representam “a face do desemprego urbano e da precariedade social e económica em Moçambique” (p. 248). O autor acrescenta que estes jovens, que vivem nas cidades, e também nas áreas rurais, se servem das redes sociais para “‘reclamar sem mostrar o rosto’ e ‘sem sair da rede’” (p. 248).

Numa análise da participação pública dos portugueses no ciberespaço, Tiago Lima Quintanilha mobiliza dados do Digital news report 2018 (DNR), do Reuters Institute for the Study of Journalism e refere que ocorre, hoje, a apropriação dos múltiplos formatos de participação pública no ciberespaço, por exemplo, da partilha de notícias, de comentários a notícias e de participação em processos de votação online. À semelhança do que mencionam Frenette e Vermette (2013), o autor constata que não está garantida a capacidade da internet para incentivar o envolvimento crítico dos cidadãos. Apesar de a internet potenciar a liberdade de expressão, a partilha de algo já publicado ou a circular na rede sobrepõe-se à publicação por iniciativa própria.

Os dois artigos que se seguem neste número da Comunicação e Sociedade exploram narrativas e memórias coletivas, relacionadas com a Revolução de 1974 em Portugal. Filipa Perdigão Ribeiro apresenta uma visão geral das narrativas e memórias coletivas mais salientes no contexto português, destacando os eventos históricos que as moldaram. A autora conclui que a maior parte das narrativas “perpetua a imagem de Portugal como um país muito homogéneo, com uma forte construção discursiva do ‘nós’” (p. 319). Deste modo, Filipa Perdigão considera que parecem prevalecer, na maioria das narrativas contemporâneas, “memórias coletivas recorrentes de eventos históricos, símbolos e escritos literários canónicos” (p. 319). Por sua vez, Camila Garcia Kieling propõe-nos uma recomposição das narrativas sobre a Revolução de 25 de Abril de 1974 em Portugal, a partir da cobertura de dois jornais brasileiros de referência: O Estado de S. Paulo e Jornal do Brasil. Segundo a autora, o golpe de Estado em Portugal agitou o imaginário político mundial, reavivando confrontos entre esquerda e direita, num momento em que no Brasil a ditadura militar completava 10 anos.

Na secção Varia, Maria José Brites e Cristina Ponte discutem a resistência aos média em contextos familiares de socialização e sociedade mediatizada. As autoras analisam 18 entrevistas realizadas em Portugal a jovens e aos seus familiares, procurando perceber “sinais de resistência e ou de impossibilidade em usufruir dos média” (p. 406). As autoras identificam vários tipos de resistências e constrangimentos, que se manifestam de diferentes modos. Por exemplo, o não uso, seja por razões de ordem estrutural (imposição familiar), seja por razões socioeconómicas, seja pelo interesse em recorrer a outras alternativas de entretenimento e informação.

Esta secção conta, ainda, com o artigo “Reportagem histórica como procedimento narrativo”, da autoria de Juremir Machado da Silva, que cruza história, jornalismo e literatura, entendendo-os como procedimento para a constituição de uma narrativa específica, a reportagem histórica ou intelectual de aprofundamento.

As recensões, da autoria de Vítor de Sousa e Micaela Ramon, encerram este número de Comunicação e Sociedade, sobre “Os Estudos Lusófonos e as Ciências da Comunicação”. Vítor de Sousa apresenta-nos uma leitura de Crítica da razão Negra, de Achile Mbembe. E Micaela Ramon analisa a História sociopolítica da língua portuguesa, de Carlos Alberto Faraco.

Uma nota final para referir que os textos publicados nesta edição de Comunicação e Sociedade seguem as regras do Acordo Ortográfico de 1990. Mas são respeitadas as variantes ortográficas dos vários países lusófonos.

 

Referências bibliográficas

Bourdieu, P. (1977). Sur le pouvoir symbolique. Annales, 32(3), 405-411.         [ Links ]

Couto, M. (2009). Luso-Afonias. A lusofonia entre viagens e crimes. In E se Obama fosse africano e outras Interinvenções (pp. 183-198). Lisboa: Editorial Caminho.         [ Links ]

Frenette, M. & Vermette, M.F. (2013). Os jovens adultos e a esfera pública digital. Comunicação e sociedade, 23, 14-35. Retirado de http://dx.doi.org/10.17231/comsoc.23(2013).1611        [ Links ]

 

 

Nota biográfica

Moisés de Lemos Martins é Professor de sociologia da cultura e da comunicação na Universidade do Minho (Braga, Portugal), sendo nesta universidade Diretor do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS), que fundou em 2001. É autor de uma vasta obra académica no campo da epistemologia e sociologia da comunicação.

ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3072-2904

Email: moiseslmartins@gmail.com

Morada: Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Campus de Gualtar, Universidade do Minho, Braga 4710-057, Portugal

Alda Costa é Professora Auxiliar e Directora de Cultura da Universidade Eduardo Mondlane desde 2010. Trabalhou como museóloga no Departamento de Museus do Ministério da Cultura, que chefiou entre 1986 e 2001, e com o qual mantém, até ao presente, colaboração. Foi Presidente da Comissão Instaladora do Instituto Superior de Artes e Cultura (2007-09). A sua formação académica foi feita em História (1976) e Museologia tendo concluído (2005) o Doutoramento em História da Arte com uma tese sobre arte moderna e contemporânea de Moçambique (c.1932-2004). A sua experiência profissional inclui ainda, entre outros domínios, o ensino e a planificação curricular. Entre as suas publicações contam-se manuais didácticos sobre história e ensino de história, artigos, capítulos e textos sobre museus, museologia e arte em livros, catálogos de exposições e publicações especializadas.

Email: aldamc@tdm.co.mz

Morada: Direcção de Cultura, Universidade Eduardo Mondlane (UEM), Maputo.

Cx.Postal (pessoal) 4020, Moçambique

Isabel Macedo é doutorada em Estudos Culturais pela Universidade do Minho e Universidade de Aveiro, na área da Comunicação e Cultura. É mestre em Ciências da Educação, com especialização em Sociologia da Educação e Políticas Educativas pela Universidade do Minho e licenciada em Ciências da Educação, pela mesma universidade. A sua tese de doutoramento intitula-se Migrações, memória cultural e representações identitárias: a literacia fílmica na promoção do diálogo intercultural, projeto financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia. É investigadora do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade. Os seus principais interesses de investigação conjugam as áreas dos média, das representações sociais e da comunicação intercultural. Alguns dos seus principais trabalhos são: “Representations of dictatorship in Portuguese cinema” (2017), em co-autoria; “Interwoven migration narratives: identity and social representations in the lusophone world” (2016), em co-autoria, e “Os jovens e o cinema português: a (des) colonização do imaginário?” (2016).

ORCID: http://orcid.org/0000-0003-4107-3997

Email: isabel.macedo@ics.uminho.pt

Morada: Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Campus de Gualtar, Universidade do Minho, Braga 4710-057, Portugal

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