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Comunicação e Sociedade

versão impressa ISSN 1645-2089versão On-line ISSN 2183-3575

Comunicação e Sociedade vol.32  Braga dez. 2017

https://doi.org/10.17231/comsoc.32(2017).2759 

ARTIGOS TEMÁTICOS

Pigmalião digital: a construção simbólica e visual do feminino na revista online CoverDoll

 

Digital Pygmalion: the symbolic and visual construction of the feminine in CoverDoll online magazine

 

 

Maria João Faustino*

*Universidade de Auckland, Nova Zelândia.

Mjcpfaustino@hotmail.com

 

 

RESUMO

Partindo da moldura teórica do ciberfeminismo, e questionando a construção da visualidade no contexto digital e a dimensão de género que a baliza, o presente estudo centra-se na análise dos conteúdos imagéticos e linguísticos publicados na CoverDoll, revista online dedicada às sex dolls. O mito de Pigmalião é proposto como dispositivo hermenêutico na análise da CoverDoll, já que os mecanismos de simulação de uma subjetividade parecem reproduzir o mesmo fundo simbólico: o feminino ficcionado surge numa condição de alteridade, como produto do masculino criador. A nossa análise aponta para continuidades simbólicas e convenções estéticas que permanecem apesar das disrupções técnicas. A construção visual do feminino nas produções fotográficas da revista prolonga mecanismos operantes na tradição da pintura descritos por John Berger: o feminino retratado dirige-se a um voyeur masculino, ausente da imagem. A câmara é na CoverDoll sucedânea do espelho enquanto dispositivo de construção do feminino narcísico: pelas múltiplas referências à camara, a pretensa vaidade feminina surge como artifício de ocultação do voyeur masculino. Os conteúdos imagéticos convergem para a erotização e espectacularização do corpo feminino, tratando-o como objeto visual e traduzindo uma visão padronizada de beleza. As narrativas ficcionais articulam estereotipias do feminino: frivolidade, sedução e cuidado.

Palavras-chave: CoverDoll; ciberfeminismo; sex dolls; Pigmalião; Galateia.

 

ABSTRACT

This study aims to question and problematize the construction of gendered meanings and visual codes in the digital context. Rooted in the theoretical framework of cyberfemism, it analyzes the visual and linguistic content of CoverDoll, a monthly e-zine thematically devoted to sex dolls. The Pygmalion myth is proposed as the symbolic framework of CoverDoll, since the linguistic and pictorial devices that support a simulated subjectivity seem to reproduce its main backdrop: the feminine is constructed as alterity and a product of male desire. The analysis of CoverDoll's portfolio and fictional discourses suggests the persistence of symbolic and aesthetical conventions despite technological ruptures. The operating mechanisms in the tradition of painting described by John Berger seem resiliently translated into the visual construction of the feminine in CoverDoll: the portrayed feminine figure addresses a masculine voyeur which is absent from the picture. The camera replaces the mirror as a symbolic device of the projected female's narcissism, as the multiple references to the camera in the fictional discourses forge the idea of female vanity. The images displayed overall eroticize and objectify the artificial female bodies. The fictional narratives mobilize and intertwine a set of stereotypes that associate femininity with futility, seduction and caring.

Keywords: CoverDoll; cyberfeminism; sex dolls; Pygmalion; Galatea.

 

 

Introdução. Repensar o corpo genderizado: do ciberfeminismo às sex dolls. Pigmalião revisitado: desejo e artifício na era da técnica

O corpo foi, na tradição de pensamento do Ocidente – a despeito das várias construções e derivações epocais, culturais e autorais – simbolizado como instância produtora de erro e equívoco, lugar-matéria dos desejos e apetites menores, reduto da animalidade que um compromisso ético e epistemológico exigiria purgar (Bordo, 1993, p. 2). Do cárcere corpóreo representado no Fédon de Platão, à transitoriedade postulada na matriz cristã, aos múltiplos esforços de supressão do corpo na prossecução do conhecimento, parece, como afirma Bordo, detetar-se um fundo de sentido: o corpo e construído como separado da mente, do espírito, da liberdade (Bordo, 1993, p. 3). Ora, tal dualismo basilar não é neutro nas suas valorações e associações produzidas: assume um carácter genderizado, onde a superioridade do que não é corpo é classicamente conotada com o masculino, ordem cerebral, intelectiva, instância racional. Por contraste, a dimensão somática, carnal, e o seu peso, determinação e concretude, surgem como feminizadas, numa identificação do feminino com o corpo que encontra raízes na tradição ocidental aristotélica (Price & Shildrick, 1999, p. 17).

Foi a mesma tradição de pensamento que Donna Haraway, no seu influente A Manifesto for Cyborgs: Science, Technology, and Socialist Feminism in the 1980s (1985), diagnosticou como sendo estruturada em dualismos, antinomias fundamentais que opunham natureza e cultura, corpo e mente, feminino e masculino. Tais antinomias não pressuponham simetria ontológica ou axiológica, pelo contrário; o império do self, masculino, produto supremo do Ocidente, impôs a sua marcha de progresso pela dominação da sua diferença, da sua dissemelhança, da sua alteridade (1985). Para Haraway, a emergência de uma nova ontologia resultante da profusão de alianças entre corpo e artefacto, biologia e tecnologia, alavanca a erosão dos binarismos, a flutuação das identidades, a assunção da sua contingência. Humano e animal, biológico e mecânico, são já territórios móveis, de fronteiras indistintas: “todos somos ciborgues”, diz-nos Haraway (1985). As ontologias clássicas estão caducas, o que vota também à caducidade a diferenciação entre homens e mulheres: o ciborgue, escreve Haraway, é criatura híbrida de um mundo pós-género; nele se desenha a superação do estatuto de alteridade classicamente reservado ao feminino (1985).

A projeção de futuro que a figura do ciborgue encerra insere-se num movimento mais lato de acolhimento e clamor da técnica e que nela entrevê a reestruturação das identidades convencionadas, hierarquias de género relações e sociais incorporadas. O ciberfeminismo, ou, com rigor, os ciberfeminismos, já que é grande a diversidade interna de correntes, matizes e contributos autorais (Daniels, 2013, p. 102), têm como denominador comum a problematização das relações entre género, práticas feministas e tecnologias digitais (Daniels, 2013, p. 103). As orientações teóricas que, na esteira de Sadie Plant (1997) defendiam o ciberespaço como lugar de dessomatização e potencial fluidez do género, parecem progressivamente suplantadas por propostas mais matizadas, sustentadas em estudos empíricos concernentes às práticas e modalidades de utilização das tecnologias digitais.

Há, por um lado, interpretações do ciberespaço que defendem ainda o potencial subversivo da Internet (Daniels, p. 109), como as defendidas por Lisa Nakamura, que propõe o termo “turismo identitário” para dar conta da possibilidade de auto camuflagem no espaço virtual, onde a supressão do corpo permitiria uma experiência múltipla do eu (2002, p. 8); em sentido próximo, Sherry Turkle apontou para as comunidades e identidades virtuais como potenciais laboratórios de experimentalismo social do género, permitindo um certo camaleonismo identitário (1995, p. 310); problematizando as relações entre Internet e etnia, Mark Hansen defende que a imersão no ciberespaço permite a neutralização dos marcadores sociais, abrindo horizontes de experiência e interação mais igualitários e horizontais (2006, p. 141).

Há, por outro lado, respostas divergentes e dissonantes quanto a esta linha de acolhimento do digital como lugar emancipatório; neste sentido, refira-se a reflexão de Jessie Daniels, quando afirma que a utilização da internet por mulheres e raparigas tem formas complexas que tanto resistem como reforçam hierarquias de género e “raça” (2013, p. 101). A ambivalência apontada pela autora é sustentada pela observação de comunidades virtuais onde visões tradicionais do corpo e do género oferecem o próprio mote e coesão, como páginas de promoção da anorexia como ideal estético, livre de condicionamentos e censuras sociais entre as adolescentes (2013, pp. 112-115). Para além disso, a autora considera a tecnoeuforia dos primeiros quadros teóricos do ciberfeminismo como espelho de um certo estádio inicial da internet, referente apenas à comunicação textual e não ao sistema de redes e multiplataformas que se lhe seguiram, povoados de imagens, som e vídeo – onde a reintrodução das representações do corpo, das identidades corporizadas e dos papéis sociais que se lhes associam foi processo consequente.

Assim, os dispositivos tecnológicos de criação e edição imagética e os métodos de manipulação fotográfica foram já problematizados como frequentemente utilizados na prossecução um ideal de beleza que suprime a multiplicidade real de configurações corporais, étnicas, estéticas e etárias, contribuindo para uma normativização estética do feminino assente no ideal de magreza e juventude (Wolf, 1991; Gill, 2007; Mota-Ribeiro, 2005). A produção fotográfica contemporânea oferece uma outra escala ao processo de idealização do feminino, furtando-o visualmente ao envelhecimento, às oscilações de peso, a idade, as pilosidades e imperfeições. Tais mecanismos de idealização do feminino pela subtração destas características, inevitáveis nas mulheres reais, foram problematizada por Rosalind Gill (2007) relativamente às manequins virtuais – que nunca envelhecem, não têm imperfeições físicas e não apresentam qualquer tipo de reivindicações.

As sex dolls, universo temático da revista online CoverDoll que será objeto de análise no presente artigo, inserem-se igualmente neste paradigma de produção do feminino estetizado, e podem ser repensadas à luz do mito de Pigmalião. O mito de Pigmalião foi já proposto como dispositivo hermenêutico do universo simbólico das sex dolls (De Fren; 2008; Smith, 2014; Wosk, 2015). A narrativa mítica da Antiguidade, cuja versão mais célebre é da autoria de Ovídio, publicada no livro X das Metamorfoses, ecoou ao longo dos séculos em múltiplas manifestações culturais da cultura ocidental, na arte, na literatura, no teatro e no cinema (Smith, 2014; Wosk, 2015). Ovídio conta a paixão de Pigmalião, escultor e rei de Chipre, pela estátua de marfim por ele esculpida: Pigmalião, que desprezava as mulheres reais suas contemporâneas, que considerava lascivas e imorais, é arrebatado pela figura feminina por si criada, que considera insuperável em beleza e de aparência virginal. Depois da prece de Pigmalião, a escultura é tornada viva pela intervenção da deusa Vénus, o que culmina com a união conjugal entre Pigmalião, o criador, e a criação inorgânica que recebe o impulso de vida. A escultura, inominada nas Metamorfoses, ganha discurso e nome próprio – Galateia – em ulteriores versões, como no texto dramático de Rousseau, Pygmalion, Scene Lyrique, de 1762 (Wosk, 2015).

A interpretação das contemporâneas sex dolls (e dos modelos que as precederam) pela moldura simbólica de Pigmalião é justificada pela deteção de um eu-criador, masculino ativo e desejante, e de uma segunda criatura: bela, passiva e objeto de posse (De Fren, 2008; Levy, 2008; Smith, 2014). Neste sentido, as sex dolls hiper-realistas reproduziriam uma persistente assimetria, estruturalmente genderizada, que se desenha na narrativa do masculino-criador e do feminino-criatura. A produção tecnológica parece, nos dias de hoje, substituir-se ao efeito de Vénus: a aparência humanizada, os efeitos simuladores da pessoalidade, ganham escala, detalhe e realismo pela crescente sofisticação técnica.

A revista online CoverDoll e a metodologia aplicada

A revista online CoverDoll, criada no ano 2000, tem como universo temático as designadas sex dolls, a que se refere como love dolls, apresentando como desiderato “elevar e glamorizar as love dolls de silicone de topo ao estatuto de esculturas do século XXI”. Figuras sintéticas de função sexual (ainda que esta não exclusiva ou sequer necessária: Smith, 2014, p. 237), de elevado realismo estético, as sex dolls contemporâneas animam um mercado florescente impulsionado pela alta tecnologia e pelo anonimato na comercialização propiciado pela Internet (Ferguson, 2010).

A publicação online CoverDoll[1] é acessível internacionalmente, com periodicidade mensal. A publicação digital surge integrada no CoverDoll Group, uma constelação de sites dedicados em diferentes registos – como fóruns e galerias virtuais – ao que designa como love dolls. A revista é dinamizada, segundo publicita, pelos contributos dos donos e admiradores das bonecas.

O acesso pleno aos conteúdos disponibilizados, não oneroso, enfrenta, contudo, uma dupla condição. A primeira exige manifestação de consentimento aquando da visita ao site, desaconselhando a permanência no mesmo no caso de não maioridade ou, alternativamente, de suscetibilidade pessoal perante teor sexual ou a visualização da nudez das bonecas (informando, contudo, sobre a inexistência de pornografia ou conteúdo sexual ilícito). O acesso à totalidade dos conteúdos continua, porém, condicionado a utilizadores registados.

 

 

A estrutura interna da revista não assume um formato estabelecido desde o número fundacional, sendo, contudo, possível identificar algumas secções constantes. A secção “Na Capa” incide sobre a love doll exposta na capa do respetivo número e dedica-lhe algumas páginas com informação mais elaborada e detalhada, ampliando ainda o portefólio fotográfico da mesma. Seguem-se as secções “artigos”, frequentemente com crítica de cinema; “ficheiro artístico”, com desenho digital sempre alusivo às love dolls; “virtual babes”, “posters” e “calendário”.

O presente artigo procura discernir como é representado o feminino na publicação em análise, nos planos visual e linguístico: como são apresentados os simulacros somáticos e como são ficcionados os discursos. Procurar-se-á descortinar os investimentos simbólicos que as narrativas visuais apresentadas na publicação em análise fornecem relativamente ao corpo sinteticamente construído e ao imaginário discursivo das sex dolls.

A análise da revista CoverDoll incidiu exclusivamente sobre a secção “Na Capa”, analisando-a exaustivamente desde o número 100 (outubro de 2008) ao número 180 (junho de 2015) da revista. A secção indicada foi alvo de escolha uma vez que se apresenta como a mais densa do ponto de vista discursivo, imagético e simbólico, dado que patenteia não apenas uma produção fotográfica das sex dolls, mas uma simulação de inquérito às mesmas.

A abordagem metodológica combinou duas estratégias qualitativas: a análise crítica do discurso, debruçada sobre os conteúdos linguísticos, e a análise semiótica dos conteúdos visuais. As duas vias metodológicas procuraram mapear as representações do feminino discerníveis nos conteúdos visuais e linguísticos da publicação online.

Análise da revista online CoverDoll. Pigmalião na era digital: Galateias sintéticas no espaço virtual

A ilusão de vida do feminino latente na CoverDoll resulta de uma dupla simulação: a corporalidade, na dimensão da “artificialidade mimética” (Smith, 2014, p. 241) (plasmada no realismo do corpo inorgânico) e a subjetividade (vertida na ficção de pessoalidade e no discurso direto que se lhe atribui). A ficção e mimetização do feminino encontram, assim, uma dupla manifestação: corpo e discurso; a antropomorfização genderizada espelha-se tanto na dimensão visual como na produção discursiva.

Considerando o duplo artifício de feminilidade sobre o qual parece erguer-se a revista CoverDoll, adotarei o mito de Pigmalião como primeiro dispositivo de análise da publicação. A apresentação do corpo feminino passa pela representação da sua anatomia mais convencional ou estereotipada, que projeta o feminino numa pretensa “correção anatómica” (Burr-Miller e Aoki, 2013, p. 389): são representados o rosto, frequentemente maquilhado, os cabelos, as curvas, a genitália (quando exposta), os seios – frequentemente hiperbolizados –, como ilustram as Figuras 2, 3 e 4:

 

 

 

 

 

 

A simulação de uma subjetividade

A construção discursiva da secção “Capa” obedece a uma estrutura tipificada: sob o cabeçalho “Perfil CoverDoll”, surgem quatro categorias textuais, identificadas como “Nome”, “Estatísticas Vitais”, “Características Pessoais” e “Questionário”. A atribuição de um nome individualiza cada uma das bonecas, impondo-se como primeiro dispositivo de ficção identitária, distintivo, singularizante, diferenciador. A categoria do “nome” é seguida pelos tópicos “alcunha”, “dono”, “localização” e, finalmente, “breve biografia”.

Neste contexto, a identificação do dono é expressiva: ainda que se simule um nome, uma pessoalidade, uma identidade para as bonecas retratadas, não se verifica a supressão do traço distintivamente reificante da sua condição: o dono, a posse, não encontram qualquer artifício retórico de menorização. Ter um dono é, para estas figuras retratadas, um dos eixos basilares da sua descrição. A localização aponta normalmente para a cidade e o respetivo país, verificando-se a recorrência dos Estados Unidos quanto à indicação geográfica, seguidos pelo Canadá, França e Reino Unido (ainda que nada garanta a veracidade dos dados oferecidos).

O mais interpelante dos tópicos surge, contudo, na breve nota biográfica: a boneca é apresentada como detentora de uma biografia, de uma identidade, de uma história. Em poucas linhas, são fornecidos dados quanto à idade, ao alegado itinerário da boneca (o seu local de origem e a sua situação atual), algumas das suas preferências e contexto relacional. Verifica-se, ademais, uma flutuação nos registos discursivos: se por vezes a nota biográfica é exposta em discurso direto, outras vezes surge como descrição na terceira pessoa, como narrativa da qual é apenas objeto.

O mecanismo simulador da pessoalidade surge aparentemente quebrado pelas duas categorias que se seguem. Em “estatísticas vitais” e “características personalizadas” a corporalidade das bonecas é escrutinada: são apuradas as medidas do busto, da cintura, dos lábios; indicados o tamanho dos seios e dos pés; apontados a altura e o peso. As características secundárias são igualmente minuciosas: indicam-se a cor dos olhos, das unhas, dos cabelos, dos pelos púbicos e respetivas ornamentações. A boneca parece, assim, devolvida à sua condição objetual.

O “questionário” repõe, contudo, a linha simulada da inquirição biográfica, da individuação. As respostas produzidas surgem na sequência de uma grelha fixa de interrogações: são inquiridas as ambições, a melhor qualidade, o lema de vida, o que polariza os afetos, a forma como projetam o serão perfeito, o que as diverte, aquilo que não imaginam poder ter em demasia, os lugares prediletos. São questionadas a fantasia mais privada e inconfessada, o que as faz sentir sexy e até a posição sexual preferida. Contudo, num tom algo dissonante, são perguntadas as preferências desportivas, musicais, artísticas, cinematográficas, televisivas, literárias e a citação favorita. O questionário potencia a sugestão literária de uma figura respondente individual, aparente sujeito de afetos, interlocutora capaz de responder a estímulos de ordem afetiva e cultural, capaz de pronunciar-se sobre música, livros e pintura. As produções fotográficas, articuladas com os questionários apresentados, encerram a moldura simbólica do pigmalionismo: por um lado, o realismo das formas, a mimetização anatómica e a aparência humana são captados pela dimensão imagética; por outro, a simulação de uma pessoalidade, de uma idiossincrasia, emerge das construções discursivas.

O “corpo” feminino como espetáculo

Há, contudo, uma profunda permanência na ordem de sentido da condição objetual, que ressurge apesar de todo o artifício dialógico. Tal resulta não apenas da indicação do dono e das referências a tal vínculo de pertença, que atravessam os questionários, mas porque a própria ordem do discurso reenvia repetidamente para a dimensão da corporalidade. Assim, o item do questionário “a minha melhor qualidade” é frequentemente respondido com alusões ao corpo, ou a partes específicas do corpo: “o meu traseiro!” (Taylor, maio, 2015; Xiaoli, março, 2015); “a minha cara” (Emily, setembro, 2010); “o meu peito” (Karamira, janeiro, 2015); “os meus olhos azuis, pelo menos é o que as pessoas me dizem” (Miami, maio, 2012); “as minhas pernas, são intermináveis” (Alektra, dezembro, 2010); “a minha boca” (Reyna Dayana, setembro, 2013). A remissão para o corpo como sede possível das qualidades do feminino oferece ainda exemplos de referenciação mais difusa: “um corpo perfeito!” (Yurica, janeiro, 2014); “a minha pele suave” (Mami, fevereiro, 2013); “suave e sensual” (Lilica, setembro, 2012); “as minhas curvas” (Stracey, abril, 2013); “gosto de pensar que é a minha personalidade, mas tenho de dizer que é a minha imagem” (Ally, abril, 2015). Surgem por vezes respostas hesitantes, onde se oscila perante diferentes possibilidades na identificação da qualidade a privilegiar; contudo, esta flutuação verifica-se entre diferentes partes do corpo, sendo que a referência à corporalidade como expressão do valor identitário se mantém: “eu penso que é o meu cabelo, é o que a maioria das pessoas diz. Talvez os meus olhos. Eu não sei. O BD [dono] diz que é o meu traseiro…”, (Danielle, junho, 2010); “a minha flexibilidade. O Incred [dono] diz que é o meu traseiro…” (Yoshi, maio, 2010). Comum às últimas respostas, como a outras elencadas, denota-se sobretudo a valoração externa, a determinação pelo outro.

A ficção de autoimagem surge, assim, dependente da atribuição valorativa do dono, do olhar que lhe confere a qualidade, a identidade, a perceção de si. Ressoa, aqui, o diagnóstico de John Berger (1987), na obra Modos de Ver, quando afirma:

os homens agem, as mulheres aparecem. Os homens olham para as mulheres. As mulheres vêem-se a ser vistas. Isto determina não só a maioria das relações entre homens e mulheres como também as relações das mulheres consigo próprias. O vigilante da mulher dentro de si própria é masculino: a vigiada, feminina. Assim, a mulher transforma-se a si própria em objecto – e muito especialmente num objecto visual: uma visão. (Berger, 1987, p. 51)

A construção do feminino como “objeto visual” será transversal aos diversos números analisados da CoverDoll, quer no jogo retórico quer no mosaico imagético que o acompanha. O corpo feminino apresenta-se como espetáculo, como superfície e ornamento (Bartky, 1988). Ornamento cuja estética, pose e constituição refletem valorações estritas: o imperativo da magreza (Bordo, 1993), o repúdio da pilosidade, a pele perfeita, sem mácula ou expressão de idade (Bartky, 1988). A simulada consciência de si que brota das narrativas ficcionais ecoa a autovigilância descrita por Sandra Bartky (1988): o olhar extrínseco, masculino, cuja internalização e autovigilância pelas mulheres dispensa efetivos mecanismos externos de controlo e imposição. O feminino ficcionado que emerge nos questionários olha-se porque é olhado, e do olhar do outro que as anima recebe o critério da validação de si. Este outro que observa está de fora: voyeur, espectador, ausente do retrato – mas determinante na produção da imagem. Novamente, a análise de Berger (1987) a propósito da nudez na pintura europeia parece ecoar no universo imagético da CoverDoll:

o principal protagonista nunca é pintado: é o espectador em frente do quadro, e pressupõe-se ser um homem. Tudo se dirige a ele. Tudo deve apresentar-se como resultado da sua presença ali. Foi para ele que as figuras assumiram a sua situação de nus. Ele, porém, é por definição um estranho – um estranho ainda vestido. (Berger, 1987, p. 58)

Corpo, feminino e espetáculo assumem relação simbiótica: o feminino é construído como imagem, para consumo visual por quem está de fora. A não paridade entre o que olha e o que é olhado nunca é exposta, nos questionários, como desconfortável ou penalizante; pelo contrário, a ficcionada consciência de ser olhada é representada como produtora de prazer, de validação de si, sendo “o seu próprio sentido daquilo que é (...) suplantado pelo sentido de ser apreciada como tal por outrém” (Berger, 1987, p. 50). Assim, o não ser olhada, tocada, investida pelo outro, parece condenar o feminino projetado nas love dolls a um estado de suspensão, da negação de si; neste contexto, é ilustrativa a afirmação de Kaylani Lei, a propósito do que odeia: “ser ignorada” (agosto, 2011).

Na imagem 5, Phoebe surge numa deitada numa cama, o que traduz uma “expressão convencionada de disponibilidade sexual” (Goffman, 1976, p. 41). O tecido rendado transparente revela a totalidade das formas e tem uma abertura visível na zona genital. A boneca é colocada em plano direto relativamente à câmara, o que sugere o olhar direto e contacto visual. Ao mesmo tempo uma das mãos, colocada sobre a genitália, evoca a masturbação – o que, articulado com o contato visual, sugere que o ato sexual e o prazer potencial são eles próprios espetáculo visual, determinados em função de quem está ausente da fotografia. A simulação do prazer solitário é, ultimamente, destinado ao observador; a simulação do estímulo sexual autónomo é, afinal, o estímulo do outro.

 

 

Do espelho à câmara: mecanismos de simulação do feminino narcísico

Os questionários apresentam múltiplas referências à câmara, ao olhar externo e à produção fotográfica. Quando inquiridas sobre o que as faz sentir-se sexy, as respostas muitas vezes convergem: “o fotógrafo para de fotografar e olha-me” (Xioli, março, 2015); “uma câmara aponta para mim” (Jenna, agosto, 2014); “[quando] estou em frente à camara e sei que as pessoas vão olhar-me” (Tamara, junho de 2014); “[quando] o Fred me observa e quando ele me fotografa” (Yurica, janeiro, 2014); “[quando] penso em todos os olhares do outro lado da camara” (Belinda Josephine, outubro, 2013); “[quando] estou a ser fotografada” (Kylie, abril, 2012).

A câmara surge, assim, como símbolo da relação visual basilar do universo imagético da CoverDoll. Relação visual assimétrica, desigual, entre o que olha e o que é olhado: o olhar masculino está de fora, furta-se ao juízo e à exposição; o corpo feminino expõe-se ao olhar, é o próprio objeto da visão. A câmara parece ocupar, assim, o lugar que antes pertencia ao espelho, como descreve Berger (1987): “o espelho foi muitas vezes utilizado como símbolo da vaidade feminina”, sendo que tal “moralização” era, escreve o autor, “basicamente hipócrita”:

Pintava-se uma mulher nua por se gostar de olhar para ela; colocava-se um espelho na mão e chamava-se ao quadro “Vaidade”, condenando moralmente por este meio a mulher cuja nudez se havia pintado por prazer. A verdadeira função do espelho era outra. Era a de forçar a mulher a tratar-se a si própria, em primeiro lugar e essencialmente como visão. (Berger, 1987, p. 55)

É detetável o paralelo entre os mecanismos operantes na tradição da pintura, retratada por Berger, e na construção visual do feminino latente nas produções fotográficas das love dolls: a exposição do corpo acontece porque quem olha o determinou; a vaidade feminina surge como artifício de ocultação do observador, que imprime sobre a figura exposta a pretensa veleidade de ser vista. Tal processo é, aqui, ainda mais flagrante: na ausência de sujeito autónomo, o narcisismo feminino é inteira e inequivocamente projetado pela figura do observador ou do fotógrafo, que se afigura extrínseco e presume masculino. O feminino e constituído como “objecto a ser olhado, isto é, um espectáculo para os sentidos, um ecrã visual no qual se projectam as mais diversas fantasias” (Pinto-Coelho, 2007, p. 176). A câmara surge, assim, como sucedânea do espelho enquanto dispositivo simbólico de construção do feminino narcísico.

A insistente referência à câmara, como símbolo da representação de si como espetáculo visual, é indissociável da construção do feminino em torno da sedução e da tentação do outro. Ora, se a persistência do retrato destas figuras enquanto sedutoras não causará espanto, porquanto a dimensão erotizada do feminino sintético é pedra basilar da própria revista, vale a pena visitar algumas das suas expressões discursivas e, sobretudo, articulá-lo a outras caracterizações que emergem nos questionários.

Estereotipias do feminino ficcionado: sedução, beleza, frivolidade e cuidado

Sendo que o imaginário da sedutora se impõe como o grande fundo arquetípico do feminino retratado na CoverDoll, este assume diversas modelações, algumas das quais profundamente estereotipadas. Assim, refira-se o exemplo de Honor, fotografada com os olhos vendados, cuja conceção de diversão surge apresentada como “disfarçar-me de femme fatale!” (junho, 2011). Outro exemplo ilustrativo é oferecido no questionário de Karamira: a propósito da fantasia por contar, exclama “uma sessão orgiástica!”; a propósito do que a diverte, indica “Kinky Cosplay”; na sequência da interrogação sobre o que não imagina poder ter em demasia, responde “preservativos com sabor”; como desporto favorito, escolhe “BDSM” (janeiro, 2015). No mesmo padrão, vale a pena referir o questionário de Jessica: a sua ambição é revelada como “transitar de estrela pornográfica para estrela erótica”; o que odeia, como “ejaculação precoce”; a ideia de divertimento, como “strip poker” (julho, 2010). A reiteração, padronização e simplificação da dimensão sexual aqui espelhada aponta para a redução caricatural da sexualidade feminina, resultante da unidimensionalidade das respostas, a par das imagens que a acompanham. O universo imagético assenta primordialmente na erotização do feminino retratado, processo ilustrado pelas Figuras 6 e 7:

 

 

 

 

Na Figura 6, Jessica surge deitada, parcialmente nua, posta sobre a cama e apoiada sobre os braços. O elemento contextual remete para a intimidade e o posicionamento do corpo é evocativo de disponibilidade sexual. A boneca está deitada, sem que visualmente enfrente a camara, com a perna esquerda mais elevada do que a direita. A erotização da pose é reforçada pela nudez parcial e pelos elementos de vestuário: apenas lingerie e umas comummente designadas meias de ligas, transparentes.

A Figura 7 tem como plano central as nádegas da boneca, que é fotografada de costas. Fantasia veste uns calções reduzidos que permitem a exibição dos glúteos. Uma das mãos é colocada sobre uma das nádegas, o que sugere a voluntária exibição de si e a exposição erotizada do próprio corpo. Na imagem surge ainda um sapato de salto alto, que assume conotação erótica em articulação com os demais elementos da imagem. A imagem, centralizada nas nádegas, oculta o rosto, a parte superior do tronco e as pernas; tal fragmentação do corpo e respetiva supressão do rosto induzem a sua objetificação:

[a face], e de resto todo o corpo que não a zona envolvente das nádegas, são negadas pelo enquadramento [da fotografia]. No entanto, o observador está próximo destas partes do corpo, o que permite a sua melhor visualização. [O feminino retratado é] apenas nádegas, nádegas decoradas. (Mota-Ribeiro, 2005, p. 142)

O estereótipo da sedutora parece articular-se com outros perfis-tipo do feminino: o “belo sexo”, a cuidadora, o feminino fútil. Assim, indissociável da representação da sedutora surge um outro eixo, transversal na construção do feminino na CoverDoll: a beleza, a que se associam a moda e o consumo. A beleza surge, nas representações visuais e linguísticas da CoverDoll, como o grande capital do feminino. São múltiplas as alusões à moda, à beleza e ao consumo – tríptico que percorre muitas das breves notas biográficas. Algumas das construções identitárias passam pela apresentação destas figuras como manequins profissionais ou amadoras: “quando não está a desfilar, é uma botânica” (Fantasia, dezembro, 2012); “sou modelo fotográfica há sete anos e espero continuar por mais sete anos” (Misty, fevereiro, 2012). As ambições e os investimentos pessoais são, com frequência, construídas sobre o mesmo universo: moda, beleza, consumo. Veja-se, primeiramente, o padrão de respostas quando a motivação é inquirida: “ser manequim de alta costura” (Andrea Rose, janeiro, 2012); “ser manequim e aparecer em muitas capas de revistas” (Honor, junho, 2011); “tornar-me uma grande estrela no universo da moda” (Laura, abril, 2011). Em consonância, emerge um padrão de respostas produzidas face ao tópico do questionário “Eu adoro”: “compras! Comprar lingerie nova na internet” (Roselle, fevereiro, 2010); “roupas” (Alektra, dezembro, 2010); “transparências, luzes ténues, roupas, perfumes e Whiskey Macallan” (Honor, junho, 2011); “saltos altos, lingerie bonita, sentir-me sexy” (Lilica, outubro, 2012); “música para piano, moda e muffins” (Xiaoli, março, 2015).

Contudo, a celebração da beleza que parece emergir da publicação em análise não abriga uma aceção plural, passível de abarcar múltiplas formas e expressões corporais. Pelo contrário, verifica-se um retrato tendencialmente unidimensional do feminino, assente na juventude, no corpo magro e tonificado – de que são exemplo ilustrativo as Figuras 8 e 9. O imperativo da beleza é vertido num ideal estético padronizado, tendencialmente monolítico; a erotização dos corpos assenta na hiperbolização dos seios, das silhuetas, na predominância dos cabelos longos, na magreza e tonificação do corpo.

 

 

 

 

Na figura 8, Fantasia surge sobre o que parece ser uma toalha de praia, colocada sobre um fundo negro. Deitada, o chapéu que ostenta cobre-lhe parcialmente o rosto, permitindo apenas a visualização dos lábios e do queixo. A predominância gráfica da cor branca é evocativa da ideia de pureza e juventude, remetendo para uma certa ideia de aparência virginal. Tal ideia é reforçada também pelo posicionamento dos membros: os braços surgem simétricos, harmonizados, ao longo do tronco, e as mãos seguram a flor; a boneca surge como que fechada sobre si própria, o que sugere recolhimento ou timidez. O corpo é magro, torneado, e a cintura, no centro da imagem, é visivelmente delgada. A flor branca sobre a genitália contribui para o imaginário da juventude, da fragilidade e da inocência, tanto pela cor, conotada com pureza, como pelo simbolismo da flor: o que brota, floresce, irrompe no início de um ciclo ou estação.

Na figura 9, a boneca Crystal encontra-se sentada no que aparenta ser uma mesa; vestindo aquilo que parece ser um bikini, tem vários adereços: um colar, uma pulseira, vários anéis, um acessório brilhante no umbigo. O corpo é magro e tonificado. Há uma certa sugestão de fragilidade no posicionamento do corpo: ao invés de um firme e seguro posicionamento, a mão esquerda toca na superfície apenas com a ponta dos dedos, o que sugere hesitação ou insegurança – sugestão para que também contribui a ligeira inclinação da cabeça, que pode ser lida como expressão de submissão, subordinação ou apaziguamento (Goffman, 1976, p. 178). O rosto é maquilhado e de aparência jovem; o olhar direto sugere contacto visual, como se dirigido ao observador externo.

A ficcionada autoapreciação passa, por vezes, por referência à dimensão afetiva-relacional, relevando o estereótipo da cuidadora na edificação simbólica do feminino ficcionado. O alegado elogio de si passa, por vezes, pela capacidade de dádiva, cuidado e prazer proporcionado, como as respostas à interrogação sobre “a maior qualidade” testemunham: “o amor que eu dou ao meu marido” (Andrea Rose, janeiro, 2012); “estou sempre disponível para te agradar” (Sacha, novembro, 2012); “a minha intrínseca natureza gentil” (Chaiama, julho, 2012), “sou ótima a cuidar do meu companheiro, em todos os aspetos da vida” (Brigitte, março, 2014). A justificação dos seus predicados distintivos passa, de forma mais ou menos velada, pelo prazer que o feminino ficcionado é capaz de proporcionar: seja pelo cuidado que presta, pelo deleite que oferece, pela experiência sensorial e emocional que oferece ao outro. São múltiplas as expressões de devoção, fidelidade romântica e elogio do parceiro que atravessam os números analisados. O imaginário romântico surge padronizado em diversas descrições do serão perfeito: “um bom filme, dançar, olhar as estrelas sob a luz da lua e uma conversa estimulante” (Breanna, março, 2010); “agachada junto à porta da frente, a ouvi-lo chegar a casa (Miami, maio, 2012). As expressões de afeto e devoção surgem também com frequência nos questionários, a propósito do lugar favorito: “os braços do Charley [dono]!” (Ele, outubro, 2010); “junto ao mar e junto do meu parceiro” (Grace, julho, 2014); “exatamente onde estou agora, na casa do meu amor” (Andrea Rose, janeiro, 2012); “na casa do Alex, [dono] claro!” (Kayla, setembro, 2012).

Por último, pensamos detetar uma outra visão estereotipada do feminino, basilarmente condenatória: a frivolidade. A figura-tipo do feminino fútil emerge na recorrência das respostas obtidas na inquirição dos livros e autores prediletos. São múltiplas as expressões de recusa, repulsa ou sarcasmo, quando o tópico inquirido incide sobre as preferências literárias: “Playboy”, Yoshi (Yoshi, maio, 2010); “não leio muito, sou mais uma rapariga de ação” (Alektra, dezembro, 2010); “livros de culinária” (Anoukis, abril, 2013); “leio a Cosmopolitan, a Allure e outras revistas de moda” (Reyna Dayana, setembro, 2013); “não sou uma grande leitora mas gosto de olhar para fotografias bonitas” (Danielle, fevereiro, 2014). Denota-se, por vezes, um registo de infantilização nas respostas à mesma inquirição: “quem escreveu a internet?” (Lissa, dezembro, 2013); “Stephen King, Deane Koontz, ... Estórias de terror, mas não posso lê-las quando estou sozinha porque não consigo dormir” (Danielle, junho, 2010). O mesmo tom ressalta quando o objeto de interrogação se prende com as preferências artísticas: “o tipo que pintou a nossa cozinha e a sala de estar” (Mia Okinawa, dezembro, 2014); “oh, qual é aquele do Van Glock [sic]? Aquele que tem as flores” (Xiaoli, março, 2015).

Mesmo quando surge um aparente contraexemplo – Varvara (setembro, 2014), o perfil da intelectual –, este aparece de tal forma caricatural que não constitui, verdadeiramente, uma inflexão no retrato predominante. Primeiramente, a capa da CoverDoll a que dá tema introdu-la como “predadora intelectual”, o que induz a leitura de uma certa caricatura da intelectual, a par com a erotização de um papel social alegadamente alternativo da representação dominante na economia da revista. Ainda que na biografia seja apresentada como altamente escolarizada, tendo emigrado da Rússia, país de origem, para o Reino Unido, com o propósito de ensinar a língua nativa e história na academia inglesa, a eleição da sua qualidade maior reitera o reenvio para a esfera da corporalidade: “corpo magro com ligeira protuberância abdominal”. As respostas ficcionadas do questionário apresentam uma fórmula exaustivamente repetida: “ler Guerra e Paz na biblioteca” é resposta-padrão para interrogações tão diversas quanto o objeto de afeto, a ideia de serão perfeito, a conceção de divertimento, o afrodisíaco e aquilo que não imagina poder ter em excesso. O retrato simplista, cliché, da intelectual, parece redundar num esvaziamento da representação alternativa pela redução a personagem-tipo.

A construção imagética é igualmente expressiva. Na figura 10, Varvara surge fotograficamente retratada num contexto alusivo à academia, no que parece ser uma biblioteca: são observáveis estantes repletas de livros e uma secretária. Contudo, apesar do elemento contextual, Varvara é exposta em nu integral, com um colar no pescoço. Apesar do plano frontal do corpo nu, o rosto surge ligeiramente inclinado, e o posicionamento lateral sugere alheamento ou dispersão. A mão esquerda, colocada sobre o baixo-ventre, evoca o toque e o contato, contribuindo para a erotização da imagem. O elemento espacial retratado – a biblioteca – não compromete a erotização da imagem: pelo contrário, a transgressão da finalidade típica de utilização do espaço envolvente parece convergir no sentido da caricatura da intelectual.

 

 

Na Figura 11 Varvara é captada apenas parcialmente: o elemento central são as pernas, sobre as quais é visível um livro aberto, situado no colo da boneca e suportado pelas duas mãos. Varvara é retratada sentada sobre uma cadeira, de pernas cruzadas, meias transparentes e saltos altos – elementos que contribuem para a erotização, a par da ocultação do rosto e do tronco. Novamente, a fragmentação do corpo como estratégia de captação visual potencia a objetificação da figura feminina (Goldman, 1992, p. 121; Mota-Ribeiro, 2005).

 

 

Notas finais. Pigmalião digital: novas telas para velhos códigos?

Articulado com a antinomia que percorre o universo representacional da CoverDoll – aquele que olha e aquela que é olhada –, ressalta um outro par dicotómico: aquele que deseja e aquela que é desejada. A estrutura dualista pode, assim, sintetizar-se: o homem quer, deseja, ela sabe-se desejada, e é este ser desejada que lhe confere valor; o homem olha-a, ela sabe-se olhada, e é este olhar que lhe confere identidade. É na masculinidade que reside a agência: desejo e poder confundem-se, mesclam-se, alimentam-se. Tal matriz compreende a masculinidade como desejante, ativa e criadora. A representação do desejo no feminino surge sobretudo pela representação arquetípica da sedutora, na categorização estereotipada, figura-tipo da femme fatale. Alternativamente, verifica-se o reenvio do desejo no feminino para a ordem afetiva, plasmada na idealização romântica e, por vezes, na encenação discursiva da conjugalidade – ambos traduzindo um processo de “essencialização da heterossexualidade” (Pinto-Coelho e Mota-Ribeiro, 2012, p. 208), a sua fixação como dimensão fundamental do feminino projetado. As estereotipias do feminino permanecem, e o estatuto de alteridade parece ainda vivo – até reanimado – no palco virtual da publicação em análise. A simulação de uma subjetividade, assente no discurso ficcionado – presumivelmente criado pelo masculino e que o assume como destinatário – aproxima a expressão do feminino a um exercício literário de ventriloquismo.

A revista CoverDoll parece testemunhar a projeção e persistência de códigos convencionais, conceções arquetípicas e estereotipadas do corpo e do género. Tal testemunhode continuidade, apesar da disrupção tecnológica, parece contrariar as primeiras formulações do ciberfeminismo. Na publicação em análise, o corpo não está ausente do ciberespaço, e a sua representação traduz convencionais disciplinas do olhar e de valoração do feminino. A reintrodução do corpo no ciberespaço para que apontava Jessie Daniels, graças aos circuitos e plataformas de vídeo e imagem, parece plasmar-se no universo da CoverDoll. O ciberespaço, no caso da CoverDoll, abriga linhas de continuidade simbólica e arquetípica, disponibilizando novas telas para alguns velhos símbolos. Sobre a permanência dos modos de ver, apesar da descontinuidade das plataformas que suportam as representações pictóricas e imagéticas, escrevia Berger:

hoje em dia, as atitudes e os valores que informaram essa tradição são expressos através de outros meios mais difundidos – a publicidade, o jornalismo, a televisão. Mas o modo essencial de ver a mulher, a utilização essencial dessas imagens, não se modificou. As mulheres são descritas de um modo muito diferente dos homens, não porque o feminino é diferente do masculino, mas por se continuar a pressupor que o espectador ideal é masculino e a imagem da mulher se destina a lisonjeá-lo. (1987, pp. 67-68)

A produção fotográfica e a construção imagética na paisagem digital e o domínio da alta tecnologia não apontam, no caso empírico em estudo, para a representação do género como fluido. Pelo contrário, as imagens e discursos presentes na CoverDoll parecem testemunhar uma certa de forma de reiteração e reinvestimento de formas simbólico-culturais profundamente genderizadas e estereotipadas. As imagens que preenchem o portefólio da CoverDoll parecem testemunhar um processo de idealização do feminino que não apenas o empobrece, mas que, poderá dizer-se, o desumaniza – ainda que tal desumanização surja irmanada com a ilusão da vida que a contemporânea produção tecnológica parece impulsionar.

Finalmente, dado o fundo ficcional da revista em análise, poderá argumentar-se que tal jogo imaginativo, simulador e teatral, abre espaço a leituras do espaço discursivo da CoverDoll como caricatural, irónico e satírico. Nessa perspetiva, as representações expostas seriam em parte subvertidas pelo quadro teatralizante que o baliza. Contudo, ainda que tais leituras sejam legítimas, a hipotética corrosão pelo humor não impede a análise e a crítica do tecido representacional de tais ficções (tal imunizaria à crítica, ao escrutínio e à desmontagem a generalidade das produções fictícias). Considero, sobretudo, que o tom humorístico, transversal aos conteúdos analisados, converge com o diagnóstico de Gill, quando se refere à ironia como registo crescentemente usual de apresentação do sexismo – o que não apenas oferece um rápido escudo à crítica, como permite, ao invés, a rotulação da crítica feminista como ausência de humor (Gill, 2007, p. 82).

 

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Nota biográfica

Maria João Faustino é doutoranda na Universidade de Auckland. O seu projeto de investigação, centrado na violência sexual, incide nas mutações em curso nos repertórios heterossexuais e respetivas dinâmicas coercivas. Os interesses de investigações incluem, para além da violência sexual, os estudos feministas dos média, a tecnosexualidade e os estudos feministas da sexualidade.

E-mail: Mjcpfaustino@hotmail.com

The University of Auckland, Private Bag 92019, Auckland 1142, Nova Zelândia

 

* Submetido: 14-08-2017

* Aceite: 03-11-2017

 

Financiamento

Bolsa de Doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia: PD/ BD/105812/2014.

 

 

Notas

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