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Comunicação e Sociedade

versão impressa ISSN 1645-2089versão On-line ISSN 2183-3575

Comunicação e Sociedade vol.31  Braga jun. 2017

https://doi.org/10.17231/comsoc.31(2017).2620 

ARTIGOS TEMÁTICOS

Entre música e tecnologia: condições de existência e funcionamento da indústria fonográfica brasileira no século XXI

 

Between music and technology: existence and functioning conditions of the Brazilian phonographic industry in the 21st century

 

 

Daniel Ferreira Wainer*

*Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil.

danielfwainer@gmail.com

 

 

RESUMO

Este artigo se propõe a discutir, por meio de material bibliográfico, documental e empírico – este último baseado em trabalho de campo e entrevistas pessoais realizadas entre julho de 2014 e junho de 2015 –, o processo de digitalização da indústria fonográfica brasileira. Para cumprir este objetivo, busca-se: observar as condições que marcam o advento da era digital; analisar a história de desenvolvimento das mídias, dispositivos e equipamentos que teriam levado a essa inflexão do mercado de discos; investigar as possibilidades de produção e distribuição musical no contexto brasileiro; percorrer os circuitos locais da pirataria, os caminhos independentes, as formas de distribuição digital e a questão dos direitos autorais. A hipótese que emerge ao final dessa empreitada é a de que a existência e o funcionamento da indústria fonográfica atual se encontram em uma trilha permeada por rupturas e continuidades. Espera-se, enfim, que esta pesquisa possa trazer novos olhares sobre as relações entre música, cultura, comunicação e tecnologia no Brasil contemporâneo. Em particular, com base numa investigação empírica, o autor reflete sobre os efeitos, as ruturas e as continuidades observados no contexto atual de digitalização.

Palavras-chave: Digitalização; direitos autorais; indústria fonográfica; pirataria; produção musical.

 

ABSTRACT

This paper discusses the digitalization process of the Brazilian music industry through bibliographical, documental and empirical sources – the latter based on fieldwork and personal interviews conducted from July 2014 to June 2015. To achieve this goal, I intend to: highlight the conditions that lead to the emergence of the digital age; analyze the development of medias, devices and equipment which may have led to this turning point; investigate the possibilities of music production and distribution in the Brazilian context; cross the local circuits of piracy and the independent ways of commercialization, including digital distribution and the copyright issue. The hypothesis raised at the end of this research is that the existence and functioning of the current phonographic industry is pervaded by ruptures and continuities. Finally, I hope that this paper may bring new perspectives about the relationship between music, culture, communication and technology in the Brazilian contemporary context. Particularly, based on empirical research, I reflect upon the effects, ruptures and continuities observed in the current context of digitalization.

Keywords: Copyrights; digitalization; musical production; phonographic industry; piracy.

 

 

Introdução

Este trabalho pretende apresentar certas características de funcionamento da indústria fonográfica brasileira dos anos de 1980 até hoje, mostrando, de forma crítica, como as transformações sofridas por este segmento estão relacionadas com um processo de crescente digitalização da vida cultural e artística. Para contemplar esta proposta, em um momento inicial, considero as condições que marcam o advento da era digital, seguindo as pistas de alguns autores (Campanelli, 2012; Noronha e Sousa, Zagalo & Martins, 2012; Piñeiro-Otero & Ribeiro, 2015). Na sequência, avalio o processo histórico de desenvolvimento das mídias, dispositivos e equipamentos que teriam levado a essa inflexão do mercado musical, o que tende a colocar a tecnicalidade da indústria como trajetória e suas transformações técnicas como percurso, retomando um movimento analítico já feito anteriormente por mim (Wainer, 2016a).

O objetivo desse traçado argumentativo é oferecer as bases para um exame do campo que compreende a indústria fonográfica brasileira na virada do século, o que sugere uma revisão das possibilidades de produção e distribuição musical neste país. Serão levados em conta, ainda, os circuitos da pirataria, os caminhos independentes, as formas de distribuição digital e os direitos autorais, a partir de um enfoque metodológico que se fundamenta na análise de material bibliográfico e documental. Este artigo também apresenta, por fim, material empírico decorrente de trabalho de campo e entrevistas realizadas no Rio de Janeiro, entre julho de 2014 e junho de 2015, com músicos, produtores, arranjadores e empresários ligados ao mercado musical nacional.

Mídias, dispositivos e equipamentos na digitalização do mercado musical O contexto digital

Segundo Campanelli (2012), a arte deixa de ser apenas um objeto, no contexto contemporâneo do digital, para se tornar uma verdadeira rede de relações. A ideia de intervenção, neste sentido, adquire importância na mesma via que a prática do do it yourself ou, como prefere o autor, remix it yourself. Tais ponderações partem da seguinte pergunta: em que medida as tecnologias permitem novas existências criativas por parte das pessoas? No eixo de análise proposto, o contexto digital é o contexto da bricolagem, do fluxo, da quebra de resistências e fronteiras, do hibridismo e do fim de algumas distinções entre esferas eminentemente amadoras ou profissionais. Talvez por isso as práticas do dia-a-dia passem a remeter à capacidade das pessoas manusearem a enorme quantidade de informações acessíveis a partir das ferramentas mais precisas.

Em via similar, Amaral (2012) assim como Noronha e Sousa, Zagalo e Martins (2012) mostram que as práticas comunicativas estão em transformação, especialmente no que tange à relação entre produtores e consumidores do universo midiático. Com efeito, a democratização das mídias digitais e sua conexão em rede têm feito com que o público interaja de forma ativa, produzindo interpretações, apropriações e se tornando, nos termos dos últimos autores, “um agente de propagação de histórias” (Noronha e Sousa et al., 2012, p. 167). Quais são, afinal, as potencialidades participativas que as tecnologias digitais têm oferecido? Como se transforma a natureza das narrativas e a relação entre produtores e consumidores na era digital?

O trabalho de Piñeiro-Otero e Ribeiro (2015) responde a parte dessas perguntas ao esmiuçar processos de inclusão das rádios espanholas e portuguesas em ambientes digitais e online, ou seja, ao explicitar a questão da mobilidade na era digital contemporânea. Nesta pesquisa, analisa-se a transposição dos meios de comunicação tradicionais para plataformas de difusão móveis, o que amplia as possibilidades comunicativas. Os aplicativos que fazem este tipo de interface têm produzido, por exemplo, novas formas de se relacionar com audiências e uma convergência de conteúdos interativos entre ouvintes-utilizadores. Neste processo, tanto os smartphones quanto outros dispositivos portáteis acabam por transformar a atividade radiofônica em algo mais dinâmico, sobretudo em função da mobilidade das plataformas.

O tema da mobilidade também aparece em Ganguin e Hoblitz (2012), autoras que visam identificar formas criativas de utilização dos telefones celulares a partir de uma comparação entre usuários que jogam e não jogam games por meio desses aparelhos. Existiria uma correlação entre formas inovadoras de comunicação e usuários que jogam mais ou menos? No artigo citado estão colocadas as diferenças entre os smartphones e os telefones celulares, a possibilidade de convergência das mídias e a utilização dos aplicativos. O telefone celular parece, enfim, despontar como principal símbolo da mobilidade e metáfora da ubiquidade contemporânea, o que vai ao encontro das investigações de Herschmann (2010) sobre as transformações da indústria musical contemporânea, que, cada vez mais, atua por e em meio a esses aparelhos.

As pesquisas supracitadas trazem elementos para que sejam pensadas as condições de existência e o funcionamento de um amplo universo. Noronha e Sousa et al. (2012) chegam a abordar de forma mais detida a categoria “digital” em si, utilizando como base outros autores que se debruçam sobre o tema. Para melhor compreender as relações que se estabelecem entre a digitalização e o contexto mais específico da indústria musical, no entanto, apoio-me nas considerações de Vicente (1996) sobre o impacto de determinadas transformações técnicas nas formas do mundo ocidental produzir e veicular música. Ao fazer isso, posiciono o plano de uma forma de produção artística no terreno movediço das tecnologias e do funcionamento mais amplo de um sistema capitalista que busca constantemente o aperfeiçoamento técnico.

Os meios técnicos e a produção musical

Segundo Vicente (1996, p. 2), os desenvolvimentos tecnológicos da produção e distribuição de música popular no Ocidente podem ser agrupados em quatro fases principais, a saber, a mecânica, a elétrica, a eletrônica e a digital. Autores como Abreu (2009), em contrapartida, estabelecem que a revolução industrial nas tecnologias de comunicação começa, de fato, ainda em meados do século XIX, com a invenção e o desenvolvimento do telégrafo. É como consequência da aplicação desta tecnologia que teriam se multiplicado, amplamente, o número e a velocidade das comunicações, de modo que novas pesquisas pudessem ser iniciadas com o intuito de se registrar e reproduzir o som.

Para iluminar de forma mais detida o processo de digitalização da indústria fonográfica, perseguindo esses rastros, é necessário percorrer uma realidade sociotécnica composta por hardwares e softwares eletrônicos, o que já foi, rigorosamente, feito por Vicente (1996). Como formalizar, todavia, uma distinção entre o contexto digital e a realidade precedente, baseada em uma concepção de produção que utiliza aparelhos analógicos? A fim de explicitar tal diferença lembro que o som, seguindo a definição do dicionário Aurélio, é um “fenômeno acústico que consiste na propagação de ondas sonoras produzidas por um corpo que vibra em meio material elástico”, especialmente o ar. Como consequência, os “processos analógicos de gravação são aqueles nos quais as características de uma onda sonora são representadas, por analogia, através das flutuações em um campo eletromagnético” (Vicente, 1996, p. 31).

A título de exemplo, podem ser citadas as vibrações provocadas no ar pela voz de um cantor, “convertidas através de um microfone, em variações de um potencial elétrico e armazenadas, desse modo, em uma fita magnética” (Vicente, 1996, p. 31). Para reproduzir o som, “a fita é tocada e seus sinais são amplificados e endereçados a um alto falante, no qual são transformados em vibrações de um cone de papelão” (Vicente, 1996, p. 32). A propagação dessas vibrações pelo ar, enfim, reproduz o som, o que se diferencia significativamente do procedimento que caracteriza um sistema digital de produção de áudio. Neste, “a onda sonora é subdividida em fatias (amostras) e cada uma delas tem sua localização matematicamente determinada no tempo e no espaço da onda” (Vicente, 1996, p. 32). Como na projeção de um filme, a sensação de movimento é dada pela frequência com que as amostras são transmitidas e é esta distinção, em síntese, que permite compreender, formal e minimamente, o funcionamento desses universos.

Com efeito, o processo de digitalização da música vai se desenhando ao longo do século XX com o aparecimento, desenvolvimento e utilização de equipamentos, aparelhos, dispositivos, programas e protocolos – hardwares e softwares – que, em última instância, virtualizam a produção musical de forma mais geral. Tais equipamentos se caracterizam, sobretudo, por permitir uma ampla manipulação das características do som obtido; em especial, da altura, do volume, do timbre e da forma das ondas sonoras.

Destacam-se, assim, novidades como os samplers, os sintetizadores, as baterias eletrônicas (drum machines), os sequencers, os módulos multi-timbrais, os gravadores digitais, os módulos de efeitos, os softwares arranjadores e as digital audio workstations (DAWs), hardwares e softwares que passam cada vez mais a proliferar nos estúdios de música a partir dos anos 1980. Para uma melhor compreensão acerca do surgimento desses aparelhos, faz-se necessário um retorno às transformações técnicas que se desenrolam ainda em fins do século XIX. Em virtude disso, remonto, especificamente, à história que leva ao desenvolvimento dos sintetizadores e, também, dos transistores, elementos fundamentais para uma compreensão mais ampla da fase investigada.

Segundo a literatura específica sobre o assunto, “o primeiro gerador de sons sintetizados de que se tem notícia foi inventado pelo norte-americano Thadeus Cahill e teve sua patente registrada ainda em 1897” (Vicente, 1996, p. 34). Isso significa, portanto, que o aparelho foi criado menos de dez anos após o início da comercialização do fonógrafo de Edison, concebido em 1877 e comprado pela North American Company em 1888. De acordo com Vicente (1996, p. 34), as três primeiras décadas do século XX mostram uma série de desenvolvimentos tecnológicos responsáveis pela produção de outros equipamentos nessa mesma linha, ou seja, aparelhos capazes de sintetizar sons, como o Thérémin ou Aetherophone – inventado por Leo Théremin em 1924 –, o Sphärophon e o Dynaphone – em 1927 –, o Ondes Musicales – ou Ondes Martenot, em 1928 – e o Trautonium – em 1930.

Tais equipamentos ainda eram monofônicos, o que significa dizer que reproduziam apenas um som de cada vez e, a partir de controles manuais, eram capazes de alterar a frequência, o volume e o timbre do áudio produzido. Além desses, a criação do órgão polifônico Givelet, em 1929, rebatizado em 1935 como Hammond; do Wurlitzer, na mesma década; e da guitarra elétrica, assim como o desenvolvimento do primeiro piano elétrico, o Harold Rhodes, em 1943, atestam que os sintetizadores de sons, fundamentais na era de produção de música digital, já existiam há bastante tempo.

É com o desenvolvimento dos transistores, entretanto, que os sintetizadores são aprimorados, passando a atuar cada vez mais através de recursos de programação. De forma bem sintética, vale destacar que estes equipamentos funcionavam a partir de osciladores utilizados para gerar ondas sonoras, componentes que eram também capazes de alterar as características da onda gerada (Vicente, 1996, p. 35). Com efeito, os sintetizadores vão sendo cada vez mais largamente utilizados pela indústria musical a partir de meados dos anos 1960, embora não possam ser considerados, ainda, neste momento, aparelhos realmente digitais.

A prática de produção fonográfica se caracteriza, então, pela seguinte dinâmica: os músicos são separados por biombos dentro da sala de gravação e utilizam fones de ouvido para acompanhar as performances uns dos outros. A gravação é realizada em estúdios acusticamente secos e são utilizados numerosos microfones isolados como forma de maximizar a separação entre os instrumentistas durante a gravação. O engenheiro participa ativamente no ajuste do balanço musical, incluindo a escolha dos volumes e o posicionamento de cada instrumento no espectro do estéreo – os dois canais de saída de som. Ademais, busca-se controlar o nível de reverberação artificial utilizado na gravação e se torna fundamental realizar uma cuidadosa seleção, colocação e balanceamento dos microfones (Théberge, 1989).

A rotina de trabalho descrita já pode ser vista em uma fase muito específica da produção de música popular, denominada por Vicente (1996, p. 3) de eletrônica. Nesse momento, observa-se um aprimoramento das técnicas de high fidelity, bem como um desenvolvimento dos gravadores, o que leva ao surgimento dos estúdios multicanais. Os transistores, como já colocado, são outro elemento basilar de consolidação desta fase, na medida em que atuam como componentes eletrônicos responsáveis por amplificar ou interromper sinais elétricos. Em termos práticos, este desenvolvimento da técnica dentro do estúdio faz com que se radicalize a separação dos participantes da performance musical dentro desses espaços, de modo que cada um, a partir daí, grava sua parte depois de ouvir o registro da performance do músico que o antecedeu. Há, neste sentido, uma sobreposição das performances instrumentais, as quais se tornam, assim, objeto de uma maior racionalização e planejamento (Théberge, 1989; Vicente, 1996, 2002).

Voltando aos sintetizadores, cabe destacar que, até o fim dos anos 1970, esses aparelhos ainda eram analógicos, uma vez que podiam reproduzir somente sons que já existiam, sintetizando suas ondas sonoras analogamente. Os futuros sintetizadores digitais, em contrapartida, seriam capazes de produzir seus próprios sons a partir de amostras digitalizadas de sons reais, o que significa dizer, em outras palavras, que diferentemente dos sintetizadores analógicos, poderiam assumir o lugar de vários instrumentos na sessão de gravação, não estando, como os anteriores, limitados à posição de geradores de novos sons (Vicente, 1996, p. 36).

Como não tenho a pretensão de elencar cada um dos equipamentos fundamentais para a produção de música de forma digital, limito-me apenas a mais algumas considerações acerca das importantes transformações que ocorrem no campo fonográfico a partir de meados dos anos 1980, quando a forma de produzir música nos estúdios já se caracteriza largamente pela utilização de ferramentas digitais. De fato, nessa década podem ser acompanhados os desenvolvimentos que culminam na elaboração de equipamentos de gravação e reprodução de áudio como os compact discs (CD's) e as placas de multimídia, bem como a constituição do protocolo musical instrument digital interface (MIDI).

Quanto ao CD, acredito ser suficiente dizer que é um suporte digital de reprodução feito em alumínio, menor e mais leve do que um disco de 45 r.p.m. e do que um long play (LP), e que pode comportar aproximadamente 70 minutos de música. Já em relação ao MIDI, vale explicitar que é a partir do desenvolvimento e da comercialização de samplers digitais que se produz esta nova interface, voltada exclusivamente para instrumentos também digitais. Com este protocolo surge ainda toda uma gama de hardwares e softwares e, em boa medida, virtualiza-se a maior parte das atividades de produção musical (Vicente, 1996, p. 3).

Na passagem dos anos 1980 para 1990, o computador começa a desempenhar um papel fundamental no funcionamento da indústria, especialmente nos anos 1990, quando aparecem no mercado os primeiros gravadores digitais de múltiplas pistas dirigidos aos consumidores não profissionais e equipados com dispositivos de edição de áudio. As melhorias no hardware e no software dos sistemas computacionais também fazem com que os personal computers (PC's) passem a funcionar como digital audio workstations (DAW's), espécies de estúdios virtuais capazes de gravar, editar e reproduzir o som. É neste sentido que essas máquinas se transformam em gravadores digitais ou, mais amplamente, em verdadeiros estúdios, funcionando de forma articulada com outros dispositivos graças ao protocolo MIDI (Abreu, 2009).

Nessa conjuntura, verifica-se ainda uma terceirização da produção e da tecnologia, o que ficará mais explícito nas próximas páginas. Surgirão na mesma década arquivos digitais cujo principal objetivo é facilitar a troca de informações em nível de rede. Aparecem neste momento tanto o MPEG 1 Layer-3, abreviado como MP3 e criado pelo moving picture experts group (MPEG), em 1995 – um arquivo compacto capaz de transferir dados –, quanto o Napster, em 1999, um software de compartilhamento de arquivos em rede. O comércio de música pelo mundo se expande por meios virtuais a partir de mecanismos como o protocolo peer-to-peer (P2P), capaz de fazer com que o consumo, ainda que não regulamentado, seja realizado diretamente online. A gravação sonora passa a ser, então, uma informação transferível através de suportes digitais, fazendo com que o formato físico dos fonogramas se torne mais um símbolo cultural do que uma necessidade objetiva.

Indústria fonográfica brasileira na virada do século Condições de produção e distribuição

As considerações acima são importantes para uma melhor compreensão do funcionamento do mercado de discos no Brasil a partir de meados dos anos 1990, afinal, é nesse momento que o setor fonográfico mergulha de vez no universo analisado. A estratégia das grandes empresas multinacionais, até então, baseava-se não somente no oferecimento unilateral decorrente do mecanismo top-down de comunicação de massas, mas também no fato de que as mesmas praticamente possuíam o monopólio dos recursos necessários para a produção musical massiva. Noronha e Sousa et al. (2012) lembram, nesta via, que o paradigma tradicional da comunicação sempre tendeu a colocar os públicos em uma posição de caráter mais passivo, embora suas vontades também influenciem as escolhas das grandes empresas, haja vista os estudos de audiência.

Com a digitalização, no entanto, o cenário fonográfico vai ganhando novos contornos. A década de 1980 foi, de fato, bastante difícil para a indústria de discos no mundo (Dias, 1997), de modo que o mercado brasileiro passa a apresentar sinais de melhora apenas no ano de 1989, quando os índices de vendas atingem um recorde histórico. Mesmo com essa virada em vista, a década de 1990 começa da mesma forma que se iniciou a anterior, em meio a uma grande retração da economia do país. O Brasil é dominado pela instabilidade política e financeira relacionadas ao governo Fernando Collor de Mello (1990-1992) e a algumas de suas práticas econômicas, como o confisco da poupança – o qual afetou o poder de compra da população. A queda nas vendas gera um conservadorismo na gestão das grandes companhias fonográficas, as quais se caracterizam pela redução dos custos e das despesas (Vicente, 2002, p. 143).

Em meio a esses processos, em 1990, surge a MTV Brasil, concessão adquirida pelo Grupo Abril. Com essa novidade é dado um grande impulso à produção de videoclipes nacionais, o que possibilita a utilização de novas formas de divulgação dos artistas. Ainda em relação à divulgação de material, é fundamental destacar algumas novidades no segmento de radiodifusão. A década de 1990 presencia o aparecimento de inúmeras rádios comunitárias e piratas, bem como uma nova forma de transmissão por parte de empresas de rádio AM e FM: a transmissão via satélite. Antes disso, as emissoras AM eram capazes de estabelecer redes nacionais com emissoras coligadas por meio da transmissão de seu sinal de telefone; entretanto, por necessitarem de um áudio de melhor qualidade, as FM's não podiam fazer o mesmo. É a primeira vez, portanto, que as corporações desse segmento conseguem atuar com abrangência nacional, o que contribuiu significativamente para a expansão do mercado musical no país (Vicente, 2002, p. 152).

Ainda em relação ao funcionamento do mercado, vale destacar que o ritmo de crescimento das companhias ligadas ao setor de produção de discos será retomado somente a partir de 1993, sendo mantido até 1997. Neste último ano, as vendas desses suportes materiais ultrapassam a marca das 100 milhões de unidades, até nova queda em 1998, decorrente da desvalorização cambial. O que se verifica nessa década, sobretudo, é a conclusão do processo de concentração econômica e desnacionalização da indústria iniciado ainda nos anos de 1960 e desenrolado nas décadas posteriores, responsável, entre outras coisas, pelo surgimento de algumas brechas no mercado fonográfico. Muitos profissionais acabam, por exemplo, saindo de grandes empresas e criando suas próprias companhias, enquanto algumas das grandes firmas nacionais são, enfim, compradas pelas multinacionais do disco, as quais também passam, entre elas próprias, por processos de fusão (Dias, 2010, p. 3; Vicente, 2002, p. 272).

Com relação aos principais gêneros veiculados, o movimento é de continuidade e consolidação, observadas na expansão de um mercado mais popular, especialmente através da música sertaneja. Dias (1997) lembra quão raros são os artistas que têm o privilégio de viabilizar suas ideias em uma transnacional nos anos 1990, em virtude do predomínio da padronização e da estandardização. Assim, em contrapartida, despontam uma série de circuitos autônomos, como o de rock alternativo, o mangue beat, o hip-hop, o funk carioca, o axé music e o forró eletrificado de Fortaleza, os quais contribuem para a constatação de que, apesar do movimento de continuidade, surge neste momento “um grande grupo de artistas independentes” em todo o país, os quais “têm promovido uma extraordinária diversificação da música aqui produzida” (Vicente, 2002, p. 278).

Em termos de racionalização das atividades, acelera-se a terceirização: a prensagem de discos, de um modo geral, passa a ser feita somente por três grandes fábricas e distribuidoras ligadas às multinacionais. Ao mesmo tempo, essas gravadoras começam a se retirar das atividades de produção musical. Um exemplo que vai nesta direção é dado pela empresa EMI, a qual vende seus estúdios[1] no Rio de Janeiro e chega a declarar que essa área havia deixado de ser “o business da companhia” (Vicente, 2002, p. 144). Afinal, parece se consolidar no Brasil um sistema aberto de produção similar ao que se desenvolve nos países centrais: as gravadoras transnacionais se associam aos selos independentes colaborando com a divulgação e a distribuição de suas produções (Dias, 2010; Vicente, 2002).

A indústria fonográfica brasileira, neste eixo de análise, adquire um status mundializado em consonância com a estratégia de abertura assinalada e o fenômeno da globalização. Vicente (2002, p. 154) evoca uma reportagem da revista Backstage, de 1994, que explicita claramente a mudança na forma de produção da indústria.

Terceirização é a palavra-chave quando falamos em estúdios e gravadoras. Há vinte anos atrás este quadro poderia ser loucura, com os altos preços dos equipamentos. Mas os preços baixaram, multiplicaram-se os estúdios e, com isso, as chances de acesso a gravação. O fechamento dos estúdios das grandes gravadoras começou com a diretiva das matrizes no exterior. A Warner Music, há cerca de 15 anos no Brasil, não chegou nem a ter o próprio estúdio. A EMI brasileira já teve três estúdios de primeira qualidade, mas agora optou pela terceirização. A BMG-Ariola encontrou uma solução diferente para seus três estúdios: eles foram repassados aos técnicos, que fazem prestação de serviços para a BMG quando necessário. Restaram apenas os grandes estúdios das gravadoras em Londres, Los Angeles e Nova York... que dividem o mercado com diversos estúdios particulares e caseiros. Vicente (2002, p. 154)

Se a produção musical independente já era uma realidade nacional na passagem dos anos 1970 para 1980, é somente na década de 1990 que ela se incorpora à grande indústria “nas tarefas de prospecção, formação e gravação de novos artistas” (Vicente, 2002, p. 155). De fato, este tipo de produção possui agora uma qualidade muito maior do que 15 anos antes, quando a palavra independente era quase um sinônimo de artesanal. O relacionamento das indies com as majors[2] se torna mais do que comum, até porque, como a década anterior já demonstrara (Fenerick, 2004), o problema maior para as indies sempre fora o da distribuição, o que podia ser finalmente superado pela atuação em conjunto com as majors.

Nos anos de 1990, portanto, é formada uma nova “ecologia de mercado”, na qual o modo de produção independente complementa a ação das majors através da criação e da produção de novos artistas e da atuação em nichos mais especializados, os quais respondem por segmentos não atendidos pelas grandes gravadoras (Vicente, 2002). Naturalmente, este fenômeno não ocorreu apenas em função de fatores tecnológicos, mas também devido às diversas transformações do mercado fonográfico ao longo dos anos anteriores – vale destacar a ampliação dos procedimentos de segmentação, padronização e racionalização das produções, cada vez mais pasteurizadas em consonância com o mercado mundial. Afinal, as crises da indústria nos anos 1980 e início dos anos 1990 fizeram com que continuassem a ser privilegiados gêneros como o sertanejo e o popular-romântico, em detrimento de outros como o rock e a música popular Bbrasileira (MPB), desprestigiados pelas grandes gravadoras.

Pirataria, circuitos independentes, streaming[3] e direitos autorais

No fim da década de 1990, uma crise sem precedentes havia se instaurado na indústria fonográfica brasileira. A proliferação da pirataria de CDs, o compartilhamento de arquivos de MP3, a inadimplência e a saturação de segmentos populares como o axé e o pagode são apenas alguns dos fatores responsáveis por esse abalo sofrido (Vicente, 2002, p. 195). De acordo com Dias (2010, p. 7), a grande indústria não conseguiu usar os piratas a seu favor, preferindo lutar contra os mesmos do que utilizá-los em prol de seus interesses. Com efeito, nesse período, a reprodutibilidade dos fonogramas atinge pela primeira vez uma escala global na esteira da mesma digitalização que passa a contribuir para o crescimento e a expansão da pirataria, sobretudo através dos CDs. A cantora Viviane Godoi, por exemplo, entrevistada por mim, chegaria a lembrar que:

o LP era um produto que não dava pra você clonar. Também não tinha coisa pra você ficar gravando DVD, CD, nada existia. Existia fita cassete (...). Você até podia ter um cassete em casa, mas assim... Pra você clonar era muito complicado (...). Não tinha aparelho que gravava de aparelho pra aparelho. (Entrevista a Viviane Godoi)

Segundo ela, “a própria Sony foi a empresa que fez o gravador que copiava outra. Ela deu um tiro no pé”. O movimento de “tirar o LP pra botar o CD”, Godoi relembra, “também já era. O meu carro veio sem CD, só tem pendrive”. A conclusão, de fato, é de que a “vendagem de disco, em geral, caiu muito”, pois estamos, sem dúvida, diante de outro momento: “você liga o rádio... Não tem mais aquela história de ligar o rádio e escutar todo mundo (...). Deixou de ser um veículo pra vender disco porque disco não vende mais”. A fim de melhor situar a nova configuração do mercado na passagem do século, destaco o emblemático caso de uma banda que, em meados dos anos de 1990, ganha notoriedade vindo de fora do circuito de produção fonográfica mainstream: o grupo Calypso[4].

Oriundo da cidade de Belém, no estado do Pará, o conjunto esteve, desde sua formação, às margens do mercado fonográfico do grande eixo centro-sul do Brasil. Assim, embora o perfil musical da banda pudesse tranquilamente ser incorporado na linha das produções de marketing das grandes gravadoras, a Calypso não atraiu, em um primeiro momento, a atenção do circuito mainstream. Toda a estrutura empresarial que a mantinha foi construída em torno de uma movimentação cultural que se utilizava das tecnologias digitais em um circuito econômico completamente autônomo, distribuído entre a produção caseira de CDs, as festas, bailes e shows típicos da região Norte e Nordeste do país e a venda de roupas, alimentos, bebidas, entre outros[5] (Dias, 2010, p. 14).

É possível dizer, nesse sentido, que quase todo o circuito destacado é produzido no “fundo do quintal”, por meio da organização de mercados laterais. Com efeito, apesar de estar distante geograficamente de um suposto mainstream fonográfico, a cidade de Belém estabeleceu uma relação muito específica com a tecnologia, o que contribuiu para o surgimento do tecnobrega e do bregapop como fenômenos de origem digital, independentes de gravadoras e grandes estúdios:

o atravessador do pirata passa de casa em casa apanhando os MP3 que o camelô vai vender. Se a música ficar popular no camelô, será tocada no baile e renderá mais shows para o artista. Na festa, ele manda abraço para a galera do bairro, o show é gravado na hora e na saída já está à venda. O cara compra porque foi citado. (Gannan citado em Dias, 2010, p. 14)

Grupos como o Calypso colocam em jogo diversas práticas que envolvem apresentações ao vivo e venda de discos produzidos em um circuito alternativo, o que está diretamente relacionado com formas específicas de produção e divulgação cultural. Neste cenário de “independência ou morte”, os shows passam a desfrutar de um lugar central no repertório cultural na medida em que tangibilizam o trabalho dos músicos, especialmente quando a tendência de perda da centralidade do disco e da mídia física dentro do processo de produção da indústria fonográfica parece se tornar irreversível (Dias, 2010, p. 16).

O compositor Luiz Guilherme, outro músico entrevistado por mim em trabalho de campo, faz questão de enfatizar que “a indústria cultural foi construída em cima de mitos que vieram muito nos anos 50, nos anos 60”. Fundador – ao lado de Paulinho Moska e Luiz Nicolau – da banda de rock Inimigos do Rei[6], que explodiu no cenário fonográfico da década de 1980, ele afirma: “é isso que está morrendo (...) e se transformando”. Afinal, na sua visão, não é possível comparar, por exemplo, as gravadoras atuais com as que havia antigamente, o que vai ao encontro das palavras de Roberto Menescal, músico e produtor com quem também tive a oportunidade de dialogar: “está acabando (...), não dá pra pagar mais (...). É um processo em decadência: mais três, quatro anos e acabou o que era uma gravadora. O que vem eu não sei”.

As observações dos personagens supracitados assinalam a existência de mudanças na forma de atuação das grandes companhias, o que não invalida sua força significativa dentro do mercado. Menescal continua: “não vou dizer que a Som Livre esteja falindo porque aproveita a coisa da [Rede] Globo[7], mas está difícil (...). Está debruçado em discos religiosos e, como se diz, em discos sertanejos, gospel, porque a cara do Brasil é isso”. Autores como Dias (2010) e Herschmann (2010) poderiam certamente complementar essas considerações, afinal, sinalizam que o desenvolvimento dos aparelhos celulares e o deslanchar de suas vendas possuem especial relevância para a produção musical do século XXI, na medida em que oferecem novas possibilidades de consumo de música.

Já Gabriela Hermanny – publicitária entrevistada por mim cuja carreira está ligada a empresas do setor fonográfico[8] –, por sua vez, observa uma grande distensão no meio da música, pois, ao mesmo tempo em que subsistem as vendas de mídias físicas, como CD's e LP's, cresce a comercialização virtual de produtos piratas, bem como os downloads oficiais grátis disponibilizados pelas companhias de distribuição digital. Esta interlocutora indica que as grandes empresas estão se reorganizando a fim de obter ganhos com um novo tipo de comércio: o mercado passa a perceber, enfim, que as “vendas físicas estão caindo” e que o “mercado digital está crescendo 30% em média”[9], de modo concomitante à pirataria, a qual veio “quando começou a surgir a música digital”.

Para Hermanny, de fato, “as pessoas só começaram a consumir quando os players [empresas] se estruturaram”, pois, até então, os piratas haviam arrasado as grandes empresas e as músicas eram ouvidas de forma gratuita por meio da troca de arquivos digitais e da internet. Assim, a referida estruturação tem a ver, sobretudo, com a percepção, por parte da indústria, de que se deve buscar uma forma de obrigar as pessoas a pagarem pelo conteúdo musical ouvido de forma digital. Em outras palavras, a reorganização do mercado fonográfico tem ido, basicamente, na direção de tentar impedir que a música possa ser consumida gratuitamente, como já demonstrei em ocasião anterior (Wainer, 2016a).

É neste contexto que aparecem diversas plataformas oferecendo serviços de streaming, os quais, cada vez mais populares, têm contribuído significativamente para a diminuição da pirataria na medida em que proporcionam um decréscimo no número de downloads ilegais. Os serviços totalmente gratuitos, entretanto, prejudicam a venda de produtos digitais, gerando muita reclamação por parte das grandes empresas fonográficas, as maiores beneficiárias das vendas[10], e também de artistas – os quais acabam ficando sem os direitos autorais advindos da execução de suas músicas. Nos Estados Unidos, por exemplo, personagens como Joanna Newsom – cantora, compositora, harpista e pianista – se posicionam contra o streaming gratuito, explicitando que o mesmo dificulta a possibilidade de um retorno financeiro por meio de royalties – direitos autorais –, tal como a indústria sempre fizera[11].

Outros artistas, no entanto, relativizam a opinião expressa acima, ao enfatizar que talvez tanto o comércio pirata quanto as vendas digitais, tal como as vendas de discos de antigamente, nunca tenham dado um retorno tão grande diretamente para eles, como pode parecer a um olhar descuidado. A venda de registros fonográficos, efetivamente, tende a funcionar muito mais em termos de divulgação dos trabalhos dos mesmos, do que propriamente em termos de uma contrapartida financeira. É o que colocam tanto Dias (2010) quanto diversos artistas entrevistados por mim, os quais afirmam que, na realidade, sua classe costuma ganhar dinheiro sobretudo nos shows realizados.

A título de exemplo, relembro aqui a fala de mais um de meus interlocutores em trabalho de campo, o trombonista Fabiano Segalote. Quando perguntei a ele se o retorno financeiro vem, para a maioria dos músicos, através dos shows ou da venda de CDs, obtive a seguinte resposta: “hoje em dia o artista não ganha mais dinheiro com venda de disco. A pirataria está aí, né? Há quanto tempo você não compra um CD?”. Na mesma linha, a cantora Viviane Godoi, já mencionada anteriormente, colocaria da seguinte forma: “acredito que os artistas mais antigos tinham um contrato maior com a gravadora e um percentual da vendagem dos discos. Royalties (...), que eram pouca coisa”. Nas palavras dela:

o próprio [Gilberto] Gil, Caetano [Veloso], esse pessoal todo não ganhava dinheiro com disco. Quando o Gil gravou [o disco] Realce, na década de 80, ele ganhava muito dinheiro com show, porque o percentual que a gravadora dava era muito pequeno. E esses mais antigos, lá pra Orlando Silva, Cartola, esse pessoal então não ganhava nada. (Entrevista a Viviane Godoi)

A cantora pode afirmar isso com segurança, pois trabalhou com Gil durante a época de lançamento do álbum supracitado. Ela sugeriria ainda que “eles ganhavam tipo 2% do valor da vendagem do disco”, o que se relaciona com a fala de outro de meus “nativos”, o baixista Keko Calazans. Para ele, “na verdade, quem ganhava dinheiro com disco, mesmo, era a gravadora”, o que significa dizer que “o artista mais top que existe ganha 10% das vendas. Um Roberto Carlos, por exemplo”. Ele relembrou uma situação pessoal como forma de exemplificar suas palavras:

quando a gente foi para o SuperStar[12], as bandas – 40 bandas! – assinaram contrato com a Som Livre. A gente era contratado da Som Livre e eles tinham um ano para exercer o contrato [...]. Não podia aparecer na Record [emissora de televisão], não podia aparecer na TV sem avisar. No contrato a gente recebia 7% de cada disco. (Entrevista a Keko Calazans)

Todas essas observações acerca da retribuição financeira recebida pelos músicos de variadas épocas mostram a complexidade de uma situação de mercado na qual grandes companhias investiam muito dinheiro – Viviane Godoi lembra que “as gravadoras gastavam 500, um milhão de reais pra botar um disco na rua” – em seus artistas esperando receber um retorno não garantido em troca; afinal, não se sabia se aquele lançamento iria fazer o sucesso esperado ou não. Talvez em virtude disso se justifique a baixa porcentagem oferecida aos músicos pelas suas gravações, bem como o fato de o retorno financeiro vir para eles, principalmente, a partir dos shows feitos – se é que a realidade de todos era e continua sendo assim.

A título de conclusão: rupturas e continuidades

O processo de digitalização de muitos equipamentos e mídias tem alterado significativamente o funcionamento do mercado fonográfico. Este movimento tem se associado, nos últimos anos, ao deslanchar da pirataria e ao desenvolvimento da internet, o que afeta fortemente as relações de poder que se estabeleceram na indústria de discos brasileira ao longo do século passado. Antigos players – as principais empresas do ramo – buscam se adaptar e passam a lidar com uma realidade na qual os caminhos independentes se tornam possíveis e passíveis de dar certo, como bem exemplificam o caso da banda Calypso e outros, cada vez menos raros. Tais considerações colocam o desenvolvimento da pirataria, do comércio digital e o imbricamento das esferas de produção e distribuição independente/mainstream como importantes marcos de ruptura no contexto artístico-musical das últimas décadas.

Embora esta recomposição de um mercado estreitamente conectado com a tecnologia e as práticas comunicativas se alinhe com a nova era interativa e participativa de que falam tanto Amaral (2012) quanto Noronha e Sousa, Zagalo e Martins (2012), não se pode esquecer, também, de algumas continuidades. Basta recordar, por exemplo, que a manutenção das estratégias adotadas pelas grandes gravadoras desde os anos 1980 – racionalização, segmentação, padronização e pasteurização das produções – e a permanência de alguns estilos como campeões de vendas no contexto brasileiro – entre os quais, o sertanejo e o popular-romântico, mencionados por variadas fontes – ainda são realidade. Soma-se a isso a controvérsia em torno da questão dos direitos autorais e da remuneração recebida pelos artistas, algo que parece distante de ser solucionado pelos agentes ligados à indústria da música.

Se, por um lado, as transformações mencionadas produzem oportunidades de mudanças substanciais, por outro, provocam a necessidade de ajustes pontuais, sobretudo em relação a essa última questão. O mercado fonográfico deve ser regulamentado pela lei, tendo em vista o processo de digitalização da cultura? A quem uma regulamentação dos direitos autorais mais beneficiaria: grandes companhias, artistas já consagrados ou artistas em início de carreira? Como fazer da indústria fonográfica um meio mais igualitário para os distintos atores que nela trabalham? O que pode ambicionar, nos próximos anos, um mercado artístico que está sempre se transformando com fenômenos como os da “cultura de convergência” ou “convergência de mídias”, observados por tantos pesquisadores (Ganguin & Hoblitz, 2012; Noronha e Sousa et al., 2012; Piñeiro-Otero & Ribeiro, 2015)?

Espera-se que este trabalho tenha respondido ou tentado iluminar algumas dessas questões e possa, assim, contribuir para um melhor posicionamento das pessoas que se interessam por este debate ou, quem sabe até, para o esclarecimento das futuras ações concretas dos agentes que fazem parte do campo musical.

 

Referências bibliográficas

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Nota biográfica

Daniel Ferreira Wainer é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS/ MN/UFRJ) e Mestre em Antropologia Social pela mesma instituição. Graduou-se em Ciências Sociais pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ). É também músico, tendo participado de algumas bandas e gravado o álbum Associação Livre com o grupo Sararás Livres. Desde 2014 seus interesses de pesquisa vêm se concentrando nas transformações técnicas da indústria fonográfica brasileira e, de modo mais geral, em uma Antropologia da Música.

E-mail: danielfwainer@gmail.com

Rua Almirante Saddock de Sá, 40/303, Ipanema, 22411-040 Rio de Janeiro / RJ, Brasil

 

* Submetido: 15-10-2016

* Aceite: 23-01-2017

 

 

Agradecimentos

Este artigo se baseia em material original de minha dissertação de mestrado Trajetórias da digitalização: músicos e materiais nas redes sociotécnicas da indústria fonográfica brasileira. Agradeço ao apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes, Ministério da Educação), concedido em 2014 e 2015, sem o qual essa pesquisa não poderia ter sido realizada.

 

 

Notas

[1] Segundo o empresário Miguel Barcelar, interlocutor com quem conversei em trabalho de campo feito para minha dissertação de mestrado, “antigamente as gravadoras tinham estúdios próprios, mas os músicos não tinham estúdio em casa (...). Hoje em dia não, qualquer pessoa no quarto monta um negócio com excelente qualidade”. Afinal, “agora as gravadoras todas são meras distribuidoras, como no cinema”. Nesta mesma direção, o músico e produtor Marcos Valle – outro entrevistado por mim – colocaria que, atualmente, ainda grava em grandes estúdios, como o da Companhia dos Técnicos, localizada no bairro de Copacabana, Rio de Janeiro, embora, nas palavras dele, “não existam mais aqueles imensos” de antigamente (Wainer, 2016a).

[2] Alguns dos autores que estudam as relações entre gravadoras independentes e majors são Christiansen (1995), Dias (2000), Hesmondhalgh (1996), Paiano (1994) e Vicente (2002, 2008).

[3] O streaming, também chamado de fluxo de mídia, é uma forma de transmissão de dados via internet. O Youtube e o Spotify são dois dos principais sites que funcionam por meio deste método de reprodução.

[4] Para mais informações sobre a trajetória deste grupo e sobre o circuito musical de onde ele se origina, consultar http://www.bregapop.com/sequencias?catid=52&id=52:tecnobrega-a-musica-paralela-hermano-vianna

[5] O baterista Uirá Bueno, mais um de meus interlocutores em trabalho de campo, lembraria ainda de outros “artistas mais do mainstream (...) que começaram esse processo pioneiro de vender o próprio CD”, como o cantor Agnaldo Timóteo. Segundo Bueno, Timóteo “começou a botar uma barraca dele lá na Rua da Carioca [no centro da cidade do Rio de Janeiro], vendendo por um preço justo”.

[6] Analiso a trajetória desta banda sob o ponto de vista de seus membros em Wainer (2016a, 2016b).

[7] A Som Livre é o braço fonográfico da Rede Globo, principal emissora de televisão brasileira.

[8] Hermanny foi funcionária do Departamento de Marketing da Som Livre e, atualmente, trabalha na Vevo, joint venture onde é responsável pela produção de vídeos musicais e outras formas de entretenimento digital. Hermanny trabalha na área de distribuição digital da empresa.

[9] Diversas matérias publicadas na mídia corroboram a fala acima. Um exemplo pode ser consultado em http://epoca-negocios.globo.com/Informacao/Resultados/noticia/2015/04/vendas-mundiais-de-musica-digital-alcancam-fisicas-pela-primeira-vez.html

[10] Informações retiradas de http://canaltech.com.br/noticia/musica/streaming-de-musica-diminui-pirataria-mas-tambem-reduz-vendas-digitais-51819/

[11] Retirado de http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2015/10/spotify-e-uma-cabala-vil-de-grandes-gravadoras-diz-joanna-newson.html

[12] Programa de televisão, transmitido pela Rede Globo, cuja estreia se deu em 2014. Assemelha-se a antigos e importantes festivais brasileiros de música dos anos de 1960, pois se baseia em apresentações de bandas ao vivo e em avaliações por parte de um corpo de jurados. Atualmente, contudo, o público vota por meio de um aplicativo de smartphone nas suas bandas favoritas, concomitantemente às apresentações.

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