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Comunicação e Sociedade

versión impresa ISSN 1645-2089versión On-line ISSN 2183-3575

Comunicação e Sociedade vol.29  Braga jun. 2016

https://doi.org/10.17231/comsoc.29(2016).2432 

LEITURAS

Piçarra, M. do C. (2015). Azuis Ultramarinos. Propaganda Colonial e Censura no Cinema do Estado Novo. Lisboa: Edições 70.

 

Paulo Cunha*

*Universidade da Beira Interior e Escola Superior de Tecnologia de Abrantes.

paulomfcunha@gmail.com

 

Publicado em abril de 2015, Azuis Ultramarinos. Propaganda Colonial e Censura no Cinema do Estado Novo é o resultado do projeto de doutoramento de Maria do Carmo Piçarra, uma longa investigação desenvolvida entre 2008 e 2013. No entanto, o trabalho da autora sobre o cinema durante o Estado Novo remonta a 2005, à sua dissertação de mestrado sobre os jornais de atualidades que estaria na origem das publicações Salazar vai ao cinema. O Jornal Português de Actualidades Filmadas (2006, Almedina) e Salazar vai ao Cinema II. A Política do Espírito no Jornal Português (2011, DrellaDesign). Serve esta breve apresentação para alertar os mais distraídos que a autora deste volume tem um trabalho sistemático e consolidado nestas questões de representações e contra representações cinematográficas, de propaganda e de censura durante o Estado Novo, de projetos coloniais portugueses e europeus, de instrumentalização do cinema como agente político e ideológico, de construção da memória e da história, entre outros assuntos.

Apesar de tratar de uma questão cronologicamente situada em meados do século XX, o projeto de investigação de Maria do Carmo Piçarra assenta, como a própria afirma, de uma experiência humana e social vivida por si já neste século XXI. A questão central do seu projeto de doutoramento surgiu assim de uma experiência concreta, e de uma interrogação atual, claramente política, que continua a ser pertinente e necessária para se poder compreender melhor o presente: “como foi construída esta representação segundo a qual os portugueses não são racistas?” Para responder a esta questão, a autora pensou num dispositivo hegeliano que comunica e se relaciona:

um campo/fora de campo/contra campo rememorativo em que, às representações do colonialismo pelas atualidades de propaganda cinematográfica do Estado Novo, se contrapôs o olhar-consciência de autores censurados/ proibidos de filmes sobre as ex-colónias portuguesas para ir revelando – no fora de campo –, através de ‘imagens-clarão’, uma ética da memória (e do esquecimento). (p. 13)

Elaborada a partir das ciências da comunicação, este trabalho contribui, objetivamente, para o estado da arte de diferentes áreas científicas, expandindo consideravelmente um corpus documental e fílmico que consolida um espaço de reflexão e de ação em torno da herança colonial portuguesa e, também, europeia. Esta pesquisa inédita foi desenvolvida em vários fundos documentais da Torre do Tombo (nomeadamente o fundo do SNI - Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo) e em diversos acervos particulares, que permitiram resgatar ou valorizar uma série inestimável de dados e materiais inéditos (incluindo fotos de rodagem e até 11 minutos dos cortes de censura infligidos a Catembe!!), assim como a realização de diversas entrevistas que dão um outro olhar sobre a história tal como estava escrita e se convencionou, presa a vários constrangimentos que esta investigação expõe e denuncia.

O capítulo dedicado ao campo, o olhar do colonizador, naturalmente sintético, não deixa de ser exaustivo ao traçar um olhar panorâmico sobre o dispositivo de propaganda nacionalista e colonial, comparativamente a outros casos internacionais. Piçarra vai mais longe, nomeadamente nas questões que dizem respeito à projeção e percepção, introduzindo vários dados que ajudam a construir o seu argumento central, da construção e da promoção da representação de um colonialismo singular. Ao longo desse extenso capítulo, Piçarra relata um trabalho meticuloso de visionamento e estudo sobre os dois principais jornais de atualidades produzidos durante o Estado Novo, mas também dos filmes coloniais de ficção (Feitiço do Império e Chaimite) e todo o processo de doutrinação colonial vivida em Portugal nesse período.

No capítulo dedicado ao contra campo, o olhar disruptivo, a autora escreve uma história alternativa que a partir de agora deixa de o ser. A partir de três casos de estudo, Piçarra constrói uma narrativa complexa que fora abafada e escondida durante décadas e que agora permite rever e reler o processo de colonização português à luz de outros pressupostos. Pelo seu ineditismo, este é, sem dúvida, o ponto alto deste trabalho de investigação, constituindo uma parte fulcral da tese da autora, em concreto a leitura do caso Catembe. Apesar de vários dados novos revelados no capítulo anterior, é este contra campo que constitui uma nova narrativa, muito bem sustentada em diversa documentação e fontes inéditas, que permite reescrever uma parte significativa da história do cinema português na década de 1960, um período delicado no que a questões coloniais diz respeito.

Em fora de campo, capítulo mais reflexivo, é ensaiada uma proposta mais abrangente, de relacionar as imagens coloniais com o passado (Holocausto) e com a própria história do cinema (cinema direto), mas também sobre o processo de construção do seu próprio arquivo pessoal que lhe permitiu rever a história e memória coletiva. Estranhamente, fica a sensação que este capítulo poderia ter sido mais desenvolvido, explorando as diversas direções que vão sendo expostas nos dois capítulos anteriores. Apesar de uma bibliografia extensa, abrangente e adequada, usada ao longo da investigação, teria sido muito interessante convocar outras reflexões, pertinentes para este capítulo particular em, de Frantz Fanon (1967), Ella Shohat e Robert Stam (1994) ou Amílcar Cabral (1974), que permitiriam seguir algumas dessas outras direções.

Em suma, Azuis Ultramarinos é um livro obrigatório para qualquer biblioteca de ciências sociais e humanas, um trabalho que ultrapassa barreiras temáticas e propõe uma releitura de um momento da história portuguesa do século XX, que sai objetiva e claramente beneficiada. Mais do que encerrar uma visão alternativa, Piçarra deixa também elementos para que se possam construir outros olhares a partir dos materiais e fontes resgatados ao esquecimento. Parafraseando Hannah Arendt, e a citação concreta que inicia esta tese, todo o processo de pensamento é resultado de uma experiência pessoal, de um “repensar” com um ponto de vista. Esta será mesmo uma das grandes lições deixada por esta tese, que se afirma (e confirma) como um olhar político contra o esquecimento, que olha o passado a partir do presente, que desafia o arquivo e a memória, com um ponto de vista que é singular e subjetivo.

 

Referências bibliográficas

Cabral, A. (1974). National liberation and culture. Transition, 45, 12-17.         [ Links ]

Fanon, F. (1967). Black skin, white masks. Nova Iorque: Grove Press.         [ Links ]

Piçarra, M. C. (2006). Salazar vai ao cinema. O Jornal Português de actualidades filmadas. Coimbra: Almedina.         [ Links ]

Piçarra, M. C. (2011). Salazar vai ao cinema II. A política do espírito no Jornal Português. Lisboa: DrellaDesign.         [ Links ]

Piçarra, M. C. (2015). Azuis Ultramarinos. Propaganda Colonial e Censura no Cinema do Estado Novo. Lisboa: Edições 70.         [ Links ]

Shohat, E. & Stam, R. (1994). Unthinking eurocentrism: multiculturalism and the media. Brighton: Psychology Press.         [ Links ]

 

Nota biográfica

Paulo Cunha é Doutor em Estudos Contemporâneos pela Universidade de Coimbra. É professor auxiliar convidado na Universidade da Beira Interior e na Escola Superior de Tecnologia de Abrantes. É investigador do CEIS20 - Centro de Estudos Interdisciplinares do Séc. XX da Universidade de Coimbra. É co-coordenador do GT História do Cinema Português da AIM – Associação de Investigadores da Imagem em Movimento. É responsável pelo projecto editorial Nós por cá todos bem.

E-mail: paulomfcunha@gmail.com

Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX. Rua Augusto Filipe Simões 33, Coimbra, Portugal, Portugal

 

* Submetido: 02-02-2016

* Aceite: 15-03-2016

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