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Comunicação e Sociedade

versión impresa ISSN 1645-2089versión On-line ISSN 2183-3575

Comunicação e Sociedade vol.29  Braga jun. 2016

https://doi.org/10.17231/comsoc.29(2016).2430 

LEITURAS

Vicente, F. L. (Org.) (2014). O Império da Visão: Fotografia no Contexto Colonial Português (1860-1960). Lisboa: Edições 70.         [ Links ]

 

Drew Thompson*

*Bard College, Annandale-On-Hudson, Nova Iorque, EUA.

drew.a.thompson@gmail.com

 

O volume O Império da Visão: Fotografia no Contexto Colonial Português (1860-1960) resultou de um projeto de investigação intitulado “Conhecimento e Visão: Fotografia no Arquivo e no Museu Colonial Português”, coordenado por Filipa Lowndes Vicente. O trabalho de pesquisa desenvolvido pelos investigadores concentrou-se sobre o papel da fotografia nas exposições coloniais e sobre a forma como esta última participou da criação duma cultural visual particular durante o período em causa. Este projeto editorial assentou sobre a exploração e classificação de coleções em museus e arquivos públicos no Porto e em Lisboa, resultando em estudos sobre uma série de documentos escritos, visuais e orais. Os autores do livro propõem-se examinar as ligações entre a fotografia e o colonialismo português, as instituições e os atores envolvidos na documentação (e desenvolvimento inevitável) da colonização portuguesa e a política de representação desta história, tanto no passado como no presente. Uma parte significativa dos académicos envolvidos interroga os momentos históricos que influenciaram as suas próprias formações disciplinares e a forma como estas determinaram a sua compreensão da história colonial e pós-colonial portuguesa. Neste sentido, o livro aqui discutido parece-nos pertinente e interessante não só para os investigadores que se interessam pelo mundo lusófono, mas também para um público mais alargado de antropólogos, historiadores de arte, historiadores, teóricos da cultura e curadores de museu.

O livro em questão inclui artigos apenas em português, o que constitui um obstáculo para os leitores não lusófonos. A barreira da língua impediu, no passado, a consideração de estudos académicos portugueses sobre o colonialismo, movimentos nacionalistas e histórias da fotografia tanto no interior do mundo lusófono, como para além dele. Por exemplo, em Moçambique, uma iniciativa do estado procurou, entre 1975 e 1986, escrever uma história da independência do país a partir da perspectiva dos (ex-) colonizados e não dos colonizadores. Esse esforço para produzir uma história social na Universidade de Eduardo Mondlane conduziu à classificação dos arquivos portugueses como sendo representativos da perspectiva do colonizador. Estas suspeitas determinaram ainda os esforços de tradução moçambicanos, que se concentraram sobre a produção académica norte-americana, do antigo Bloco de Leste e, mais recentemente, sul-africana. Um dos méritos deste livro é o de se apoiar sobre teorias da fotografia desenvolvidas por pensadores anglófonos e francófonos, como Ariella Azoulay, Susan Sontag, Christopher Pinney, Georges Didi-Huberman e Elizabeth Edwards. No que diz respeito à metodologia adoptada, O Império da Visão inova ao traçar um amplo panorama sobre as diferentes práticas, usos e circulação material da fotografia, bem como sobre a forma como esta última determinou as percepções populares do colonialismo no mundo lusófono.

A primeira seção do livro, “Classificação/Missão,” discute as diferentes fases e estados do colonialismo no mundo lusófono. Os autores reunidos nessa seção documentam a forma como arqueólogos e antropólogos - tais como António Mendes Correia (Patrícia Ferraz de Matos) e Elmano Cunha e Costa (Cláudia Castelo e Catarina Mateus) - e instituições - como a Companhia de Moçambique (Bárbara Direito), a Missão Antropológica e Etnológica da Guiné (Ana Cristina Martins) e a Missão Antropológica de Moçambique (Ana Cristina Roque) - produziram, usaram e olharam para a fotografia quotidianamente. Estes atores individuais e institucionais questionaram e redefiniram o que Portugal considerava como as suas colónias. Nalguns casos, os fotógrafos e as suas imagens fotográficas viajaram diretamente entre Angola e Moçambique, desafiando e redefinindo assim a dicotomia entre a metrópole e as colónias. Também as ilhas-nação, como São Tomé e Príncipe, se revelaram importantes para as práticas fotográficas e visuais adoptadas pelos administradores portugueses. Baseados nas análises desenvolvidas na primeira seção do livro, os autores sugerem que o Estado português circunscreveu e definiu os seus territórios ultramarinos não através das atividades dos seus oficiais, mas de indivíduos e de instituições não-governamentais, que conceberam e geriram por vezes vastas infraestruturas de edifícios, tecnologias fotográficas e empregados. Bárbara Direito, por exemplo, escreve sobre a produção de álbuns fotográficos de José dos Santos Rufino, defendendo que clichés habitualmente relegados para a categoria de retratos se revelaram, na verdade, decisivos para a formulação oficial de categorias raciais e de classe. Essas hierarquias determinaram o contexto no qual emergiram as dificuldades económicas e sociais que o estado português teve de enfrentar durante anos 1950 e 1960. Estas fotografias, utilizadas pelos burocratas portugueses em finais do século XIX e XX para consolidar o seu poder e legitimidade, revelam as vidas complexas dos seus autores para além da tradicional dicotomia “colonizadores-colonizados”. Em última análise, esta secção sugere a necessidade de afinar as definições do colonialismo português através da consideração da forma como um indivíduo relata e compreende a crónica da história colonial portuguesa.

Entre os temas explorados na segunda secção do livro, “Conhecimento/Circulação,” contam-se as questões da desinformação, da representação visual e do papel da imaginação como intermediário. O foco é aqui a forma como a fotografia contribuiu para a formação do conhecimento sobre ambientes tropicais, plantas e populações humanas. Os autores em questão consideram ainda como os indivíduos e as instituições arquivaram as experiencias históricas ao tirarem, colecionarem e publicarem fotografias. Estas análises mostram como o conhecimento reunido nas colónias chegou a Portugal, moldando a criação e a gestão de importantes instituições administrativas e de pesquisa, tais como a Sociedade da Geografia, que coordenaram e conduziram a colonização Portuguesa em África e na Ásia a partir de finais do século XIX. Um dos artigos discute assim as metodologias adoptadas pelos naturalistas para identificar plantas e como algumas foram mal identificadas devido à utilização de fotografias reenquadradas. Por seu lado, Teresa Mendes Flores sugere que a prática da medicina na Angola colonial se constituiu em torno da oposição entre imagens fotográficas de modernos hospitais e clínicas e de fotografias de pacientes africanos deformados. Os artigos de Nunes Borges de Araújo, António Carmo Gouveia e Paulo Jorge Fernandes introduzem o imaginário como um espaço crítico onde tanto as populações colonizadoras como as colonizadas produziram determinadas relações sociais e políticas com o projeto colonial. Aqui, o adjetivo “colonial” não remete para uma realidade, mas para uma visão do mundo que caracteriza os finais do século XIX e começos do século XX. Ao ler os textos desta secção, ficamos a saber como os portugueses utilizaram fotografias de trabalhadores africanos não só para apoiarem os seus projetos económicos e turísticos, mas também para justificar a construção de infraestruturas que ocupam o espaço físico (isto é, os vazios documentados por Santos Rufino e outros, analisados na primeira secção do livro). Mário Machaqueiro estuda os jornais que incluem fotografias das populações muçulmanas africanas e a forma como os portugueses utilizaram estas imagens para exibirem a sua própria influência, incluindo o papel de oficiais como intermediários e facilitadores. Machaqueiro defende que as legendas e outros qualificativos textuais não representam necessariamente as práticas culturais e as nacionalidades dos sujeitos fotografados, que as agências governamentais classificam antes em função da sua religião, etnia, ou cor de pele. Quando analisadas ao longo do período colonial, estas fotografias e os textos que as acompanham revelam as diferentes prioridades do estado português, que valorizou por vezes e em função dos tempos a religião face à etnia ou a cor da pele face à nacionalidade.

Cartazes, atlas, postais, livros e álbuns fotográficos foram o pano de fundo do processo de colonização português. Ao percorrer a terceira seção do volume, intitulada “Exibição/Reprodução,” o leitor é facilmente interpelado pelas fotografias que representam oficiais portugueses fotografados olhando para ou diante de outras fotografias. Essas imagens sugerem que os oficiais administrativos se relacionaram com as colónias em boa medida através das fotografias – atos de olhar – e outros materiais visuais expostos nas inúmeras exposições organizadas pelo Estado português ou contando com a sua participação, tanto na Europa como nas suas colónias africanas e asiáticas. Mas o que o público via nas exposições em Portugal não era necessariamente o mesmo que viam os públicos das exposições organizadas nas colónias, tal como observa. Filipa Lowndes Vicente no seu artigo sobre a exposição de Goa e dos Goenses através do Império português. As exposições do mundo colonial português introduziram complicados espaços sociais, económicos e diplomáticos que os oficiais portugueses se sentiram sempre obrigados a definir, defender ou questionar em função das circunstâncias. Atlas e álbuns fotográficos documentaram as viagens das populações portuguesas através de vastos espaços geográficos na África e na Ásia, funcionando em tandem. Através das suas capacidades de incarnarem uma forma de cartografia, os atlas e os álbuns fotográficos permitiram ao estado português, mais uma vez por via do imaginário, encurtar distâncias e separações que desafiavam os seus projetos económicos e sociais. É significativo que estas imagens, como observa Vicente, mostrem por vezes os Goenses e outras populações segurando máquinas fotográficas e olhando para os funcionários coloniais através da câmara. A evocação, por Maria do Carmo Piçarra, da história do cinema nas colónias introduz temas relacionados com a censura e a recepção das imagens, em particular a forma como os públicos reagiram a determinadas imagens e as controvérsias que rodearam certas formas de representação visual. Ao que parece, a censura portuguesa estava particularmente atenta aos filmes, acabando os oficiais portugueses por adoptar a fotografia como modo preferido de representação.

Na introdução do livro, o historiador James R. Ryan realiza duas operações importantes. Em primeiro lugar, Ryan inscreve as histórias da fotografia no mundo lusófono num panorama mais vasto sobre as histórias coloniais da fotografia, onde os mundos anglófono e francófono são ainda dominantes. Este enquadramento permite ao leitor identificar algumas semelhanças e distinções em termos da apropriação e utilização da fotografia nos esforços coloniais globais. Em segundo lugar, e em resposta à descoberta de novos materiais fotográficos e visuais facilitada pelas plataformas digitais, Ryan deixa um aviso aos investigadores: as suas pesquisas e análises não podem ser separadas do seu contexto. O historiador propõe assim uma atenção redobrada aos processos contemporâneos de produção do conhecimento, bem como a necessidade de os contextualizar. A ultima seção do livro, intitulada “Resistência/Memoria,” responde aos pontos assinalados por Ryan, desenvolvendo aspectos evocados anteriormente, como as redes de pessoas criadas pela prática, utilização e consumo da fotografia ou o impacto da fotografia no esforço colonial português – em particular, em termos de mobilização da opinião pública em prol das actividades coloniais. Os autores reunidos nesta seção exploram a forma como a fotografia determina e estrutura o “relato” da história. O estudo das imagens fotográficas documentando as atrocidades no Congo de autoria de Miguel Bandeira Jerónimo sugere que as fotografias são inerentemente parciais devido à forma como obrigam os seus públicos a confrontarem e a definirem o que entendem por “sofrimento”. No seu artigo sobre a guerra colonial e de libertação na Guiné-Bissau, baseado em entrevistas com antigos combatentes africanos, Catarina Laranjeiro mostra como os soldados não guardaram as fotografias do tempo colonial por receio de represálias e de humilhação pública. Neste contexto, é particularmente interessante notar como o visual, aqui fazendo referência tanto às imagens fotográficas como à recordação dessas fotografias, influenciou as experiências e memórias dos combatentes sobre o colonialismo e a guerra. Afonso Ramos analisa a forma como os oficiais portugueses em Lisboa encenaram uma meticulosa apresentação e circulação das fotografias das vítimas civis dos ataques de 15 de março de 1961 em Angola de forma a mobilizar a opinião pública contra os movimentos de libertação africanos. É impressionante como a experiência dos guineenses face às fotografias não parece muito diferente da dos civis que viviam em Portugal durante a guerra de libertação – sendo ambas as experiências marcadas pelo medo derivado do que as fotografias e os fotógrafos pareciam então ilustrar.

Ao inscrever a história da fotografia do mundo lusófono num contexto mais amplo, O Império da Visão apresenta novas metodologias e conceitos para o estudo da fotografia, implicando assim uma reconsideração das perguntas centrais que têm até agora determinado os estudo da fotografia e do colonialismo. Enquanto recurso enciclopédico, o livro oferece um guia essencial para navegar algumas coleções e arquivos complexos, sobretudo em Portugal. Em termos conceptuais, esta coleção de ensaios recorda ao leitor a necessidade de adoptar uma definição ais alargada da fotografia, definição que vai para além da simples realização de imagens. Finalmente, o livro chama a atenção para a dimensão política da escrita da história da fotografia no contexto dos espaços geográficos, históricos e imaginativos do Império Português e do Portugal contemporâneo.

 

Referências bibliográficas

Vicente, F. L. (Org.) (2014). O Império da Visão: Fotografia no Contexto Colonial Português (1860-1960). Lisboa: Edições 70.

 

Nota Biográfica

Drew Thompson é doutorado em História pela University of Minnesota e é atualmente Professor Assistente de Estudos Históricos e Africanos no Bard College, onde ensina e escreve sobre história visual, as lutas de libertação africanas, teorias pós-coloniais e histórias da tecnologia. Co-editou, com Paolo Israel e Rui Assubuji, um número especial da revista com revisão por pares Kronos, intitulada “The Liberation Script in Mozambican History” e encontra-se presentemente a trabalhar numa monografia cujo título provisório é ““Photography’s Bureaucracy: Constructing Colony and Nation in Mozambique, 1960 to Recent Times”.

E-mail: drew.a.thompson@gmail.com

Bard College, Annandale-On-Hudson, NY, USA

 

*Submetido: 15-03-2016

*Aceite: 31-03-2016

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