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Comunicação e Sociedade

versão impressa ISSN 1645-2089versão On-line ISSN 2183-3575

Comunicação e Sociedade vol.29  Braga jun. 2016

https://doi.org/10.17231/comsoc.29(2016).2420 

ARTIGOS TEMÁTICOS

Os jovens e o cinema português: a (des) colonização do imaginário?

Youth and portuguese cinema: the (de)colonisation of the imaginary?

 

Isabel Macedo*

*Universidade do Minho.

isabelmaced@gmail.com

 

RESUMO

As relações que se estabelecem entre a população autóctone portuguesa e os imigrantes e seus descendentes são profundamente influenciadas pelas narrativas construídas, e disseminadas ao longo de várias décadas, sobre o passado colonial. Os estereótipos veiculados estão enraizados na memória social dos portugueses, influenciando as relações interculturais. Tendo como objetivo a análise das perceções de jovens sobre as relações interculturais, desenvolvemos grupos focais com estudantes do ensino secundário, tendo procedido à visualização do filme Li Ké Terra (2010) e à posterior discussão em grupo. Neste artigo articulamos os resultados dos grupos focais com a narrativa do filme. Os resultados demonstram a persistência de determinados estereótipos negativos sobre as populações descendentes de imigrantes africanos, indicando que a memória sobre o passado colonial influencia significativamente o imaginário e a identidade social dos jovens, contribuindo ainda para que estes percecionem os jovens negros nascidos em Portugal como imigrantes. Argumentamos que o cinema documental e a literacia fílmica podem ter um papel central na transformação reflexiva e crítica das auto e hetero-representações dos jovens, contribuindo para a descolonização do imaginário nacional.

Palavras-chave: Cinema; memória social; (des)colonização; estereótipos; relações interculturais.

 

ABSTRACT

The narratives constructed and disseminated over various decades about the colonial past have profoundly influenced the relations established between the Portuguese population and ‘immigrants’. The stereotypes conveyed are deeply embedded in the social memory of the Portuguese, influencing intercultural relations. In order to analyse the perceptions of young people about intercultural relations, we conducted focus groups with secondary school students involving the viewing of the film Li ké Terra (2010) and subsequent group discussion. In this article we present the results of the focus groups in articulation with the narrative of the film. The results demonstrate the persistence of certain negative stereotypes concerning the populations descendent from African immigrants, indicating that the memory of the colonial past significantly influences the imaginary and social identity of young people, also contributing to this youth perceiving young black people born in Portugal as immigrants. We argue that documentary and film literacy can play a central role in the reflexive and critical transformation of auto- and hetero-representations of young people, contributing to the decolonisation of the national imaginary.

Keywords: Cinema; social memory; (de)colonisation; stereotypes; intercultural relations.

 

Introdução

O imaginário nacional foi construído tendo por base narrativas de um passado ‘glorioso’, em que a descoberta, a expansão e a colonização desempenharam um papel central. Como observa Eduardo Lourenço (1992), ao olharmos a nossa historiografia revela-se o irrealismo da imagem que os portugueses têm de si mesmos. As narrativas desse passado contribuíram para construir representações hegemónicas (Almeida, 2008; Santos, 2014), afetando as relações interculturais na atualidade.

A ênfase em narrativas hegemónicas sobre a história nacional e o passado colonial limita o acesso dos indivíduos a versões alternativas da história, dificultando assim o desenvolvimento de uma perspetiva crítica. No caso do colonialismo, as diferentes versões da história veiculadas influenciam o modo como os indivíduos interpretam o passado, o seu posicionamento presente e as estratégias para o futuro, definindo relações entre e dentro das nações num processo dinâmico (Cabecinhas & Feijó, 2010).

Refletir criticamente sobre as imagens do passado colonial difundidas pelos media, em particular pelo cinema português, revela-se central na desconstrução de narrativas hegemónicas sobre a história nacional. Documentários que retratam o quotidiano de imigrantes dos PALOP - Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa e dos seus descendentes (cf. Li Ké Terra, 2010, Ilha da Cova da Moura, 2010); documentários autobiográficos sobre experiências de deslocação e ambivalência identitária (cf. Dundo, Memória Colonial, 2009), ao explorarem outras versões sobre o passado colonial e as relações interculturais, permitem-nos questionar e discutir se essas imagens promovem a descolonização do imaginário ou se, pelo contrário, contribuem para perpetuar estereótipos sobre o passado colonial. Macedo, Cabecinhas e Abadia (2013) analisam o documentário Dundo, Memória Colonial (2009), de Diana Andringa, e concluem que este trabalho mostra a importância de se analisar as memórias de pessoas que viveram no período colonial. As memórias da realizadora referem pessoas, lugares, tempos, sentimentos, cheiros, sensações, que marcam decisivamente o caráter híbrido da sua identidade. Para além de considerarmos que a reflexão crítica em torno deste filme pode contribuir para a descolonização do imaginário, admitimos que este tipo de narrativa autobiográfica pode desempenhar um papel importante na auto e hetero compreensão das pessoas que viveram e vivem entre culturas.

Neste artigo questiona-se se os jovens olham criticamente os conteúdos mediáticos sobre as relações interculturais e o papel cinema português na (des)construção do imaginário sobre “nós” e sobre o “outro”.

De facto, as narrativas que se constroem em torno do passado colonial contribuem para o desenvolvimento da identidade social dos grupos envolvidos nesse conflito. Essas narrativas influenciam o modo como os grupos se relacionam no presente e orientam a sua ação face aos desafios atuais (Liu & Hilton, 2005). No caso português, as relações que se estabelecem entre a população autóctone e os imigrantes e os seus descendentes são influenciadas pelas narrativas construídas e disseminadas sobre o passado colonial. Os estereótipos veiculados durante o período colonial, e mesmo após a descolonização, estão enraizados na memória social dos portugueses, com impactos profundos nas relações interculturais (Cabecinhas & Feijó, 2010).

A literatura, o cinema e o ensino na escola têm um papel central na difusão de determinadas narrativas sobre o passado colonial português. Por exemplo, como refere Moutinho (2008), em grande parte da literatura portuguesa de ficção publicada após 1974 embora África não seja necessariamente o cenário principal ou o foco, está lá no fundo ou como parte da história pessoal de um personagem. Para além da preocupação com a Europa no discurso oficial português, observa-se uma presença recorrente de África na ficção contemporânea portuguesa, o que indica a influência que o passado colonial parece ter na (re)construção da identidade nacional. Também no contexto educativo, trabalhos de investigação sobre manuais de história recentes (Araújo & Maeso, 2013) indicam que persistem nos manuais portugueses discursos que naturalizam processos como o colonialismo e o racismo, contribuindo para perpetuar e reproduzir relações desiguais de poder. Na opinião de Araújo e Maeso (2013), a subtil expressão do racismo nos manuais escolares é ao mesmo tempo uma ilustração da existência de racismo e uma das formas pelas quais ele é reproduzido e mantido nas práticas quotidianas. A naturalização de certos processos, que ajudaram a constituir as relações de poder contemporâneas, conduziram à formação de quadros interpretativos ideológicos. Para as autoras, uma pedagogia e um ensino mais crítico da história (bem como de outras disciplinas) devem ir além da inclusão de outras perspetivas e versões da história. Devem promover a produção de interpretações históricas mais críticas e informadas.

Neste artigo pretende-se analisar o papel do documentário enquanto potenciador de interpretações alternativas do passado e estímulo à reflexão crítica, contribuindo para a (re)construção da memória social sobre as relações interculturais no passado e na atualidade. Através da visualização e discussão de um documentário (Li Ké Terra, 2010) sobre jovens descendentes de imigrantes em Portugal, procurou-se explorar o modo como os estudantes do ensino secundário interpretam o filme e (re)formulam as suas percepções sobre as relações interculturais.

Memória colonial e imaginário nacional: marcas de conflitos passados nas relações interculturais presentes

De acordo com Tajfel e Turner (1979), os indivíduos são motivados a adquirir ou a manter uma identidade social positiva, o que pode acontecer por comparação com outros grupos sociais. Neste processo de diferenciação positiva, o passado é central. O passado de um grupo pode ser usado para justificar ações e práticas presentes, influenciando as relações entre grupos. Segundo esta perspetiva, a reconstrução do passado revela-se central para a própria (re)construção da identidade social, permitindo que os eventos “esquecidos” encontrem um espaço na memória coletiva da sociedade maioritária.

Na opinião de Volpato e Licata (2010), o colonialismo deixou marcas nas relações internacionais, nas relações sociais dentro das nações, e nas ideologias e imaginários de grande parte da população mundial. Para os autores, a compreensão das dinâmicas e conflitos do mundo atual implica pensarmos o colonialismo e as suas consequências. O passado colonial moldou representações, modos de pensar e comportamentos daqueles que viveram as suas experiências. O reconhecimento do passado colonial como uma das fontes de racismo, xenofobia e intolerância para com africanos, tem vindo a ter considerado por vários autores (Sardar, 2008; Volpato & Licata, 2010). Para Sardar (2008), o racismo constitui “a base da Fortaleza Europa”, sendo evidente no ressurgimento da extrema direita em vários países europeus e no “discurso de refugiados, imigrantes, requerentes de asilo e na população muçulmana da Europa” (Sardar, 2008[1952], p. xix). Em Portugal persiste a discriminação de pessoas de origem africana, bem como estereótipos raciais e preconceitos paternalistas (Cabecinhas, 2007; Vala & Pereira, 2012). Vários estudos comparativos sobre memória social em diferentes países de língua oficial portuguesa - Angola, Brasil, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e Timor-Leste- (Cabecinhas, 2006; Cabecinhas & Feijó, 2010; Cabecinhas, Lima & Chaves, 2006; Cabecinhas & Nhaga, 2008; Mendes, Silva & Cabecinhas, 2010) confirmam a necessidade de uma boa gestão das memórias sobre a (des)colonização. Aquilo que é recordado e esquecido depende dos quadros sociais da memória em que os indivíduos se encontram envolvidos e nos quais foram socializados desde a infância. Embora a memória sobre a colonização esteja bastante presente nas narrativas de ambas as partes, de facto os significados que lhe são atribuídos são distintos. Por exemplo, do lado do ex-colonizador observa-se um esquecimento ou não reconhecimento dos efeitos mais violentos da expansão colonial, embora haja o reconhecimento de uma posição de “culpado” em relação a alguns aspetos do colonialismo. Da parte do ex-colonizado são os efeitos violentos da ação colonial que se tornam mais evidentes nas memórias analisadas, enfatizando os aspetos mais opressivos do colonialismo (escravidão, massacres). Estes resultados evidenciam a necessidade de considerarmos que “um passado comum” não tem o mesmo significado nem suscita as mesmas emoções em jovens que, embora não tenham tido qualquer experiência direta do período colonial, viveram e vivem em contextos marcados por narrativas que remetem para a construção de uma determinada representação sobre o passado.

A narrativa da experiência colonial portuguesa, especialmente em África, “influenciou as relações sociais e raciais nas ex-colónias, bem como as imagens, estereótipos e preconceitos raciais que, nessa longa duração, os portugueses foram construindo sobre os outros e sobre si próprios” (Machado, 2001, p. 55). Embora em vários discursos da atualidade se mobilize ainda a ideia da capacidade de adaptação dos portugueses a outras culturas, a miscigenação com outros povos, o facto de muitos ‘negros’ residentes no país serem cidadãos nacionais, ou que a maioria dos imigrantes africanos são provenientes das antigas colónias, como condições que contribuiriam para a especificidade do racismo em Portugal, não há uma especificidade do racismo em Portugal, sendo as suas expressões semelhantes à de outros países europeus (Marques, 2007; Vala, Brito & Lopes, 1999). Vários autores consideram que a ideia segundo a qual não existe racismo em Portugal ou que os portugueses não são racistas está ligada ao luso-tropicalismo (Alexandre, 1999; Vala, Brito & Lopes, 1999), que na aceção Gilberteriana (Freyre, 1959[1953]) nunca foi adotado como discurso oficial do Estado Novo, tendo sido apenas perfilhada uma versão simplista e profundamente nacionalista, que veiculava algumas ideias cuidadosamente manipuladas (Castelo, 1998), que teriam continuado com a mesma vitalidade após abril de 1974. Piçarra (2015, p. 115) acrescenta que estas ideias perduram no discurso político, no discurso dos média e, “em consequência, no discurso identitário nacional”.

Cabecinhas (2007) demonstra que, embora o racismo tenha sofrido uma metamorfose nas suas formas de expressão, não desapareceu. O que se observa é que as pessoas desenvolvem estratégias de proteção da sua imagem pública de adesão aos valores da igualdade, adotando modos mais subtis de discriminação racista. Como a autora refere:

O racismo atual manifesta-se essencialmente pela negação do reconhecimento da singularidade do outro. Na prática, isto significa que os membros das minorias não são tratados como ‘indivíduos’, mas simplesmente como ‘representantes’ de uma categoria homogénea. Este processo traduz-se num tratamento mais automático da informação sobre os membros das minorias raciais ou étnicas, isto é, menos personalizado e mais baseado nos estereótipos sociais. Assim, os membros das minorias tornam-se ‘invisíveis’ enquanto pessoas, mas extremamente ‘visíveis’ enquanto grupo. (Cabecinhas, 2007, p. 280)

A autora observa que os participantes na investigação prestam menos atenção às pessoas de grupos minoritários, adoptando um tratamento mais baseado em estereótipos sociais (Cabecinhas, 2007). Lages e colegas (2006, p. 364) consideram que as manifestações de racismo pela população portuguesa se tornam ainda mais significativas quando se “observa o exagero da diferença cultural percebida, particularmente no que toca a imigrantes de Leste e imigrantes africanos”. Os imigrantes de origem africana e os seus descendentes são objeto de um racismo discriminatório que, na perspetiva de Marques (2007), ainda tem muito a ver com o passado colonial do país e com as ideologias e preconceitos raciais herdados desse mesmo passado.

De facto, observa-se que em Portugal os membros dos grupos autóctones tendem a olhar para os próprios descendentes de imigrantes como cidadãos diferentes, mesmo que se trate de cidadãos formalmente possuidores de nacionalidade portuguesa. Ainda que estes cidadãos possuam direitos políticos formais e tenham passado por um processo de socialização nas escolas dos locais de destino, acabam, frequentemente, por ser excluídos em termos sociais e económicos (Malheiros et al., 2007).

Os média na (re)construção da memória social e da identidade nacional

As investigações sobre memória com vítimas de traumas coletivos, como o holocausto, a guerra ou o colonialismo, evidenciam formas narrativas complexas de construção e reconstrução mnemónica. Com efeito, o modelo tradicional de memória como lugar estático e estável de armazenamento, onde as perceções e experiências passadas são retidas e de onde elas podem ser recuperadas, mostrou-se cada vez mais inadequado e obsoleto. De acordo com Brockmeier (2010, p. 27) “as práticas de memória humanas estão envolvidas em ambientes, sistemas de significado, vidas e mundos históricos em ação e interação; são atividades dentro de ordens culturais, que são elas próprias sujeitas a mudanças históricas”. Uma parte importante dessas ordens culturais são os média, com os quais a lembrança humana esteve sempre intimamente ligada.

A discussão do modo como certas memórias coletivas se tornam hegemónicas ou, pelo contrário, como memórias até então marginalizadas ganham destaque na esfera pública, tem sido central nos estudos da memória. De acordo com Erll e Rigney (2009, p. 2), a dinâmica da memória cultural só pode ser plenamente compreendida se tivermos em conta, não apenas os factores sociais, mas também “os ‘quadros’ de lembrança mediáticos e especificamente os processos mediáticos através dos quais as memórias chegam à esfera pública e se tornam coletivas”. É na esfera pública que algumas memórias se transformam em versões mediáticas do passado, ao mesmo tempo que outras são ignoradas ou censuradas. Isto significa que a dinâmica da memória social tem de ser estudada no cruzamento de ambos os processos sociais e mediáticos.

Certas ofertas mediáticas tornam-se marcantes na recordação coletiva e é, em seguida, através da reiteração intermediática dessas narrativas em diferentes plataformas na esfera pública (jornais, internet, rituais comemorativos, filmes) que o tema se enraíza numa determinada comunidade. Com efeito, os média são mais do que transportadores meramente passivos e transparentes de informação, desempenhando um papel ativo na formação da nossa compreensão do passado, na “mediação” entre nós (como leitores, telespectadores, ouvintes) e entre as experiências passadas, e, portanto, na definição da agenda para futuros atos de lembrança no seio da sociedade (Erll & Rigney de 2009, p. 3). A reiteração intermediática de determinadas narrativas sobre o passado e o presente influencia ainda a (re)construção da identidade social dos indivíduos a elas expostos. A identidade social é entendida como “aquela parcela do auto-conceito dum indivíduo que deriva do seu conhecimento da sua pertença a um grupo (ou grupos) social, juntamente com o significado emocional e de valor associado àquela pertença” (Tajfel, 1983[1981], p. 290). Trabalhos mais recentes consideram que a utilização do termo “identidade” deverá ser substituído pelo de “identidades” no plural, assumindo que este último reflete a ideia de que os indivíduos e grupos têm acesso a um repertório de escolhas socialmente disponíveis e que se trata de uma construção e um processo nunca terminado. A este propósito Hall (1993) refere que devemos pensar a identidade como um processo sempre incompleto, constituído no seio dos processos de representação. A identidade cultural não é uma essência fixa, mas é profundamente marcada pela história e pela cultura. O passado tem um papel central no processo de (re)construção identitária e recorre sempre à memória, à fantasia, a narrativas e mitos. Na opinião do autor, as identidades culturais são os pontos instáveis de identificação construídos no contexto da história e da cultura. Não são uma essência, mas um posicionamento (Hall, 1993). Outras perspetivas consideram que coexistem várias identidades dentro do mesmo indivíduo, que mudam e evoluem de acordo com as situações, interlocutores e contextos, que podem ser criadas, impostas, ordenadas, ou reprimidas por meio de instituições e interações sociais (De Finna, 2003).

A questão da mediação é, assim, fundamental para o modo como a memória social e a identidade social são concebidas e (re)construídas. De facto, como refere Sturken (2008, p. 75), “todos nós temos memórias ‘pessoais’ que nos chegam não da nossa experiência individual, mas a partir de nossa experiência mediada por fotografias, documentários e pela cultura popular”. Para Anderson (1991[1983]) tanto a nacionalidade (ou condição nacional) quanto o nacionalismo são produtos culturais específicos. Na opinião do autor, uma comunidade é sobretudo imaginada porque os seus indivíduos, mesmo nunca se conhecendo uns aos outros, compartilham signos e símbolos comuns, que os fazem reconhecer-se como pertencentes a um mesmo espaço imaginário.

Partindo desta ideia da memória social e identidade social como processos dinâmicos, cuja (re)construção é influenciada pelos média, procuramos analisar o modo como o cinema, em particular, possibilita a reflexão sobre o passado colonial português e as relações interculturais presentes. Importa ter em consideração que o imaginário nacional e as memórias dos portugueses foram construídos tendo por base a narrativa de um passado ‘glorioso’, em que os “descobrimentos”, o império e a colonização desempenharam um papel central. O facto destas narrativas se terem tornado hegemónicas (Almeida, 2008; Lourenço 1992; Santos, 2014) poderá auxiliar na compreensão dos resultados deste estudo, em particular na discussão sobre o modo como os descendentes de imigrantes cabo-verdianos são vistos pelos jovens portugueses na atualidade.

Metodologia

A utilização de vários métodos tem provado ser produtiva pois permite a observação do objeto de estudo de diferentes ângulos. Nesta linha de pensamento, o investigador deve desenvolver um sentido da multiplicidade de perspetivas que permeia qualquer ambiente social (Howarth, 2014). Tendo presente esta ideia de multiplicidade metodológica, procuramos articular a nossa reflexão sobre os resultados de grupos focais com estudantes do ensino secundário, com a análise da narrativa do filme que serviu de estímulo à discussão.

Desenvolvemos grupos focais com jovens que frequentam o ensino secundário no norte de Portugal, onde procedemos à visualização de um documentário previamente selecionado e posterior discussão em grupo. Este método revelou-se pertinente pelas suas potencialidades de desconstrução e análise das auto e hetero-representações. Optámos pelo ensino secundário por considerarmos que se trata de uma faixa etária em que as identidades se encontram num momento crítico de construção (Fivush, 2008) e se revela essencial a reflexão sobre o papel dos média na representação de determinadas realidades.

O filme discutido intitula-se Li Ké Terra (2010), que significa “Esta é a minha terra”. Venceu a competição portuguesa do DocLisboa em 2010, conta a história de dois jovens que vivem no Casal da Boba, na Amadora, Miguel Moreira e o Ruben Furtado, e foi realizado por Filipa Reis, João Miller Guerra e Nuno Baptista.

Para a seleção do filme definimos como critérios fundamentais a sua duração, uma vez que o tempo de que dispúnhamos era limitado; a ilustração de uma realidade com a qual os estudantes se identificassem (os jovens que participam no filme são da mesma faixa etária que os estudantes e são colocadas questões no filme relacionadas com a escola e as relações familiares) e, por fim, um filme que suscitasse a discussão em torno das relações interculturais. Também partimos do pressuposto de que um filme que fosse provocativo e causasse algum grau de envolvimento emocional constituiria um estímulo importante para a discussão.

Criámos 17 grupos focais, tendo participado nestes grupos 129 estudantes de ambos os sexos, com idades compreendidas entre 15 e 18 anos. As dinâmicas ocorreram em duas Escolas Secundárias, nas disciplinas de Filosofia e História, entre 31 de janeiro e 4 de abril 2013.

Os estudantes viram o filme, seguindo-se uma discussão sobre o mesmo em pequenos grupos. Esta discussão foi orientada por um conjunto de tópicos que pretendíamos ver abordados. Neste artigo iremos centrar-nos nas representações dos jovens sobre as populações ‘imigrantes’ e no papel por eles atribuído aos média, nomeadamente ao cinema, no processo de construção das suas opiniões sobre os outros e nas suas visões do mundo.

O filme Li ké Terra: nacionalidade, identidade e perspetivas futuras

A discussão em torno das dificuldades vivenciadas pelos protagonistas na obtenção da nacionalidade portuguesa, embora tenham nascido em Portugal e aí vivido até à atualidade, são centrais no filme. Essa constitui a principal preocupação de Ruben Furtado, um dos personagens principais do filme, que refere as impossibilidades quotidianas de quem não tem documentação.

É tudo, para mim os documentos é tudo! Agora, neste momento é tudo. É tudo o que eu preciso para poder trabalhar, para poder tirar um curso, continuar na escola. Várias coisas.

Para não estar a dizer que uma pessoa, mesmo, sem documentação não é nada! É a mesma coisa “botar” um, qualquer coisa assim no chão, deitado. Um zero à esquerda! É lixado! Isso digo-vos, quem não tem documentação é fodido! Não pode fazer nada! Não estuda, não trabalha, não tem ocupação... Coisas assim. São coisas que se calhar tivesse documentos não estaria assim. (Ruben Furtado, Li Ké Terra, 2010)

A história de vida dos dois personagens é narrada ao longo do filme, em especial a história de Miguel Moreira e dos acontecimentos que contribuíram para que não tivesse obtido na altura certa a documentação portuguesa. A avó realça as dificuldades sentidas, os inúmeros pedidos de documentos, documentos esses, muitas vezes, impossíveis de obter. Em outra sequência do filme é ainda realçada pelos jovens a questão financeira, ou as despesas subjacentes ao processo de recolha dos documentos para obtenção da nacionalidade.

A mãe entrou na vida de droga, o Miguel não era registado, o Miguel para ser registado fui eu que fui falar ali com uma doutora assistente social, a Dra. Susana. Lá conseguiu ajudar-me para o Miguel ser registado. O Miguel lá foi registado, o Miguel tinha cerca de 2 anos. Eu como não tinha tutela do miúdo, eu pensei que na altura que o Miguel era para ter documentos como ele sempre viveu comigo, viveu lá em casa, pensei que pronto, era fácil ter documentos para ele. Eu quando fui à embaixada a ver se conseguia fazer para ele os documentos, disseram, não, disseram que eu tinha que ter tutela dele que eu nunca tinha pedido tutela. Que eu não sabia como! Eu sou avó dele, ele nasceu lá em casa praticamente, viveu lá em casa, nunca conviveu com a mãe, eu pensei que na altura tirar a ele documento que não era preciso disto. Que era, assim, mais fácil. Então, cada dia que eu ia mandavam-me juntar uma coisa e ir para a embaixada, eu ia dizia que tinha que ser outra coisa, tinha que ser outra coisa! (...) Foi ver o documento da mãe e depois me disse que tinha que mandar buscar registo criminal da mãe em Cabo Verde. Em Cabo Verde e em S. Tomé, terra onde é que ela nasceu. Então, ela se não viveu em Cabo Verde, não conhece Cabo Verde, como que vou mandar buscar registo criminal dela em Cabo Verde?. (Avó do Miguel Moreira, Li Ké Terra, 2010)

A avó de Miguel Moreira, tendo vivido mais tempo em Portugal do que em Cabo Verde, identifica-se a si e aos seus, em grande parte, como portugueses. Por isso, deixa-a profundamente perplexa a complexidade inerente ao processo de obtenção de nacionalidade do seu neto.

Eu vejo os meus filhos e os meus netos como portugueses! Se eles nasceram cá, vejo eles como portugueses! Praticamente sinto como portuguesa, porque eles vivem mais em Portugal do que na minha terra. Eu saí de lá com os meus 24 anos, nunca fui, já tenho 60, já é uma vida!. (Avó do Miguel, Li Ké Terra, 2010)

O processo de construção identitária do Miguel Moreira, como podemos ver pelo excerto seguinte, é profundamente marcado pela história e cultura da sua família. O estudante assume assim um posicionamento e identifica-se culturalmente como cabo-verdiano. Para o jovem, a educação, a música, a gastronomia e mesmo o modo como expressa as suas emoções é cabo-verdiana. A identidade cultural do Miguel Moreira é assim profundamente marcada pela história e pela cultura do contexto no qual cresceu. O passado da sua família e as suas origens tem um papel central no processo de (re) construção identitária do jovem que, não tendo vivido em Cabo Verde, recorre à memória social, a narrativas e mitos sobre a cultura do país, na construção da “comunidade imaginada” à qual sente pertencer (Anderson, 1991[1983]; Hall, 1993).

Eu, eu quando ouço uma música, eh pá que vem de lá, ou que é mesmo tradicional, tipo morna, eh pah identifico-me logo! Não preciso ouvir a música toda para dizer “ya, gosto”! Identifico-me logo, mesmo. Tipo ya, mesmo do sangue. Tipo um funaná ou um ferro-gaita. Só ouvir aquela gaita tocar ou aquele ferro, fico com o resto da melodia que vem atrás, tás a ver? Mesmo da terra, é impossível me sentir português com essas coisas. Quando como aquela boa cachupa também sinto o mesmo sabor. Não sinto o sabor da comida, mas lembro-me que já estive lá em Cabo Verde, tipo, que já pisei aquele chão e o caraças. Por isso é que me sinto 100% cabo-verdiano. (Miguel Moreira, Li Ké Terra, 2010)

Vou comprar um país e vou ter a minha própria nacionalidade. Vou ser tibarense. É, vou ser tibarense. Vou comprar um país, vai-se chamar Tibre, é e vou ser tibarense. Até lá, antes de alcançar isso tudo vou ser português no B.I. Mas vou sempre me considerar cabo-verdiano. A educação que eu tive é tudo de lá, as teorias de vida eram de lá. A primeira vez que eu beijei foi em cabo-verdiano. Tudo, foi tudo em cabo-verdiano! Nunca foi em português. Isso que se chama um círculo vicioso, sabe? (Miguel Moreira, Li Ké Terra, 2010)

À semelhança do sucedido através de outros estudos (Macedo, Cabecinhas & Abadia, 2013) sobre as experiências de quem vive “dentro e entre-culturas”, verificamos que narrativas audiovisuais como o filme Li ké Terra (2010) permitem compreender a complexidade identitária de jovens como o Miguel Moreira, que vivem em países onde coexistem diferentes culturas, em que são chamados diariamente a desenvolver estratégias de negociação e (re)construção identitária. Como vimos pelos excertos apresentados, o jovem mobiliza referências culturais tradicionais cabo-verdianas para fundamentar a sua identidade social, mobilizando um imaginário nacional que não é português, mas cabo-verdiano. O Miguel Moreira acrescenta ainda que vai comprar o seu próprio país, indicando que não se sente ou não é visto como português e, em simultâneo, embora se identifique como cabo-verdiano, tem consciência que nunca esteve em Cabo Verde. O jovem parece considerar-se um apátrida, ou alguém que está constantemente em carência do seu próprio país. Esta sensação de “não pertença a lado algum” é também referida por outros indivíduos que viveram experiências de migração (Macedo, Cabecinhas & Abadia, 2013; Macedo & Cabecinhas, 2014).

As reflexões de Ruben Furtado, que apresentamos de seguida, em que este expõe as suas expectativas em relação ao futuro, são mencionadas nos grupos focais. Pudemos constatar que o seu testemunho possibilitou a reflexão por parte dos estudantes sobre os constrangimentos que os jovens descendentes de imigrantes vivem atualmente.

Às vezes, vou passear, dou uma volta, vejo uma coisa que gostava de comprar, ou assim...

Depois que é que eu fico a pensar? Um gajo não trabalha, como é que vai arranjar dinheiro para comprar as cenas que um gajo quer?

Qual é o caminho mais fácil? Se tu não tens documentação, não tens como trabalhar!? Qual é o caminho mais fácil? É roubar, ou fazer mal! Mas népia, na minha cabeça tá tudo controlado. Não é isso que eu quero para mim, então prefiro não poder comprar aquela cena que se calhar me apetecia comprar, podia roubar e comprar, não é? Mas, prefiro ficar na minha não compro a cena e fico como tou, sem dinheiro. Às vezes posso querer ter dinheiro, fico na minha, não vou fazer nada para ter dinheiro, fico na minha.

Se tivesse a minha ficha suja, aí é que nunca mais ia ter a documentação! Nunca mais!. (Ruben Furtado, Li Ké Terra, 2010)

Não é vida para mim. Não é a vida que eu quero para mim! Mais tarde posso ter filhos, qual é o exemplo que eles vão ter? Qual é a cena que eles vão ter? Tipo, estão na escola, os outros colegas a contar “ o meu pai faz isto faz aquilo, é arquiteto, é não sei quê, não sei que mais” chega à parte do meu “o meu pai era um ladrão, isto e aquilo” Foda-se, então? Tou muito jovem, tou muito novo. Há para aí agora bué de gajos da minha idade que morrem do nada! Matam-nos ou acontece qualquer merda. Um gajo pensa bué nisso, uma gajo bué da novo está-se a meter em merdas, pode acontecer qualquer cena de mal. Fica ele com 19 anos a entrar para uma prisão para ir cumprir 4, 5, 6 anos de prisão! 10, 15, foda-se! Há que pensar um bocado no futuro. (Ruben Furtado, Li Ké Terra, 2010)

A exploração e reflexão em torno de testemunhos como o de Ruben Furtado, pode auxiliar na desconstrução de estereótipos negativos sobre esta população, com os quais os jovens se confrontam diariamente e que são veiculados, por exemplo, através dos média (Ferin et al., 2004; Malheiros et al., 2007).

Os grupos focais: da identificação com o filme aos estereótipos sociais

Uma parte dos participantes nos grupos focais reconhece as dificuldades com que os jovens descendentes de imigrantes se debatem em Portugal. No caso do Miguel Moreira e do Ruben Furtado, as contrariedades que foram enfrentando relativas à obtenção de nacionalidade portuguesa, embora tenham nascido em Portugal, são referidas como questões que, até ao momento da discussão, a maioria dos participantes neste estudo desconhecia. O reconhecimento de que persiste discriminação desta população e mesmo das complexidades identitárias vividas pelos personagens do filme, permite aos estudantes refletirem e partilharem diferentes visões sobre o assunto.

Clara- Eu acho que há muita discriminação, nesses aspetos. Pode ser um bocadinho por eles terem os pais de outra nacionalidade, acho que os desloca um bocadinho da sociedade. Eles sentem isso.

Ana - Acho que eles se sentem assim... um bocado deslocados! Apesar de quererem ser portugueses, sentem que não são de cá, que são de outro sítio.

Mariana- Há sempre algumas coisas que os liga a Cabo Verde e isso sente-se na vida deles.

Ana - E as pessoas fazem questão de relembrá-los sempre disso...

Observou-se uma maior identificação com a realidade retratada e maior reflexividade por parte daqueles participantes cujas experiências de contacto intercultural estão mais presentes. Aqueles que têm amigos de outras nacionalidades, cujos familiares imigraram e referem conhecer as dificuldades que eles viveram nesse processo migratório, e aqueles que, à semelhança do Miguel e do Ruben, são descendentes de imigrantes cabo-verdianos, como a Joana, revelam uma postura mais crítica. O testemunho da Joana permite a discussão sobre a importância das relações estabelecidas na escola, no processo de construção da identidade social de crianças e jovens.

Joana - Eu vivo esse caso, os meus pais serem imigrantes, eu nasci cá, e quando eu era pequena via-se muito a diferença no modo como me tratavam e ao primeiro é muito mau e queremos ser como eles, eu lembro-me que a minha mãe me dizia que quando eu era pequena queria ser branca, porque muitas vezes gozavam comigo por ser de outra cor e diziam-me para ir para a minha terra e assim, mas agora é-me indiferente, porque também já não me chamam muito isso, mas mesmo que chamassem já não me afeta muito...

Embora não seja percetível no excerto, há no testemunho da Joana e na sua voz uma mágoa que é em simultâneo um desabafo, que deixa os outros participantes no grupo focal de algum modo surpresos, gerando-se um silêncio e, em alguns casos, observando-se alguma introspeção e reflexão sobre o que acabam de ouvir. Surge de seguida a intervenção de uma jovem que procura justificar as atitudes da população maioritária relativamente aos ‘imigrantes’, mas este testemunho é objeto de recriminação pelos colegas que olham a jovem com reprovação. Pudemos verificar que, face aos olhares de reprovação dos membros do seu grupo, a Marta vai alterando o seu discurso. Este caso evidencia a importância da confrontação de diferentes perspetivas de forma crítica e o modo como as perceções se podem reorganizar ou reformular no próprio processo de discussão em grupo.

Marta - Eu penso que por vezes há certas pessoas que vêm para Portugal porque pensam que aqui vão ter mais regalias e às vezes vêm só mesmo por causa disso, porque se virmos bem há muitas pessoas que estão por aí, não digo que não haja pessoas que não vêm para aqui à procura de trabalho e uma melhor vida, mas há outras que só veem para se aproveitar. Uma pequena minoria, porque eu não acredito que uma pessoa queira estar sempre dependente de uma pessoa ou isso... Mas penso que agora isso está a mudar e já não acontece tanto...

As representações negativas sobre os personagens do filme estão também muito presentes na discussão. A ideia de “despreocupação com a vida” constitui um estereótipo negativo atribuído aos negros em estudos sobre estereótipos sociais (Katz & Braly, 1933; Gilbert, 1951; Karlins et al., 1969). Estes estudos indicavam que eram atribuídos estereótipos negativos aos negros: o negro como preguiçoso, agressivo, religioso, musical e supersticioso. Madon et al. (2001) indica que prevalece a atribuição de estereótipos negativos aos negros: a imagem do negro como musical, barulhento e rude persiste na mentalidade de alguns jovens. No excerto seguinte, verificamos que o estereótipo do negro como despreocupado (happy-go-lucky) com a vida está presente na mente de alguns participantes.

Carlos – Estavam despreocupados com a vida (...) um deles estava há três anos sem fazer nada.

Jorge – Acho que o primeiro que não fazia nada ainda tinha a preocupação de procurar como se legalizar no país.

Pedro – Oh, mas esse tem mais tempo...

Jorge – Mas enquanto um se dava ao trabalho de tentar construir os papéis o outro não fazia nada.

Estes estereótipos são recorrentes nas narrativas dos jovens participantes neste estudo. Esta ideia de “despreocupação com a vida” associa aos jovens a responsabilidade pela sua situação de exclusão social. Como verificamos pelo excerto apresentado de seguida, para além do estereótipo associado à despreocupação, também são atribuídos estereótipos associados à suposta falta de escolaridade e à criminalidade.

João - Ao serem imigrantes os empregadores preferem contratar gente de nacionalidade mesmo portuguesa e eles nasceram em Portugal, só não têm nacionalidade mesmo efetiva.

Ana - Vão ter mais dificuldades em arranjar emprego, porque além de serem de outras nacionalidades, não têm muita escolaridade, comparando com pessoas que tiveram a sua formação na escola e são mesmo portugueses.

Patrícia - São postos às vezes um bocado à parte. São vistos como segundas pessoas, como se fosse um núcleo de pessoas que são ditas como pessoas normais e outras anormais! Acho que é um bocado a discórdia...

Jorge - Como eles são de cor negra, muitas vezes as pessoas dizem que eles são vândalos, que são daqueles que roubam e tratam-nos mal. Às vezes não é isso.

Embora tenha sido realçado que os dois jovens “personagens” nasceram em Portugal e que, por um conjunto de contrariedades, ainda não haviam obtido os documentos da nacionalidade, na narrativa dos participantes nos grupos focais persiste a ideia de que o Miguel Moreira e o Ruben Furtado são imigrantes e a cor da pele assume uma importância central nesta classificação. De facto, as auto e hetero-representações dos jovens participantes neste estudo são construídas com base na aceção de que um descendente de imigrantes negro, embora tenha nascido em Portugal, continua a ser visto como imigrante devido à cor da pele.

Observa-se ainda expressões do racismo, particularmente no que diz respeito a imigrantes de origem africana e de leste. Essas expressões ora enfatizam as diferenças culturais (Cabecinhas, 2012; Lages et al., 2006) ora se encontram fundamentadas em estereótipos sociais negativos sobre esta população.

Carlos - Mas, agora no caso de Portugal, o porquê de haver discriminação, por exemplo no racismo, eu sou tudo menos racista! Mas, vamos a ver, em 75% dos casos de assaltos na baixa de Lisboa são feitos por quem? São feitos por imigrantes de leste...

Jorge - Mas isso é consequência da entrada deles na sociedade portuguesa.

Carlos - Mas, uma coisa não justifica a outra.

Jorge - Ai não? Olha, e tu para sobreviver, não tens emprego... Paulo - Então tu estás a dizer que é legítimo roubar, nestes casos?

Jorge - Não, mas tu chegas a um extremo que tu não tens o que comer, tu não tens nada!

Paulo - Mas, de certa forma o Carlos tem razão, nós também temos que ser racionais. É assim, ninguém tem culpa que a sociedade portuguesa não integre e sermos nós assaltados.

Tânia - Há pessoas que são...

Filipe - Mesmo racistas, tipo têm aquele desprezo pelas pessoas que...

Tânia - Algumas foram educadas assim não têm culpa, não é “não têm culpa”, não conhecem melhor, mas há outras que deviam ser um bocadinho mais compreensivas e eles esforçam-se agora, acho que assim vão ter um futuro melhor do que aqueles que andam aí a roubar.

Estas representações têm consequências no percurso e futuro de jovens como os participantes no filme discutido. A visão de uma menor legitimidade face aos direitos por parte desta população, mesmo que se trate de cidadãos formalmente possuidores de nacionalidade portuguesa, podem levar à sua exclusão social e económica (Malheiros et al., 2007).

A persistência de estereótipos, a associação dos grupos minoritários aos problemas da criminalidade e violência urbanas, a generalização dos preconceitos, a discriminação sistemática nas várias áreas da vida social (Marques, 2007) são fenómenos inscritos no próprio funcionamento da sociedade e reconhecidos pelos participantes nos grupos focais. Para estes, os média têm um papel central no seu processo de aprendizagem, influenciando as suas representações sobre o mundo que os rodeia.

Carla – Vemos uma pessoa negra na rua e quase automaticamente a estamos a discriminar, mesmo que só mentalmente. Se vemos um francês ou um inglês temos a ideia de Inglaterra e França como bons países. Discriminamos mais ou menos dependendo daquilo que a televisão, as redes sociais e o nosso grupo nos ensinam”.

Sara - Eu concordo com a Carla. Ainda há uma hierarquização de países, temos aqueles países que consideramos superiores a nós e aqueles que consideramos inferiores a nós, tendo em conta a economia e a cultura do país. Isso ainda acontece.

Vários investigadores têm analisado o papel dos média na disseminação de imagens sobre imigrantes e minorias étnicas (Cádima & Figueiredo, 2003; Costa, 2010; Ferin et al., 2004; Malheiros et al., 2007; Marques, 2007). De facto, os média possuem um papel fundamental no processo de (re)construção da memória social sobre conflitos e na atribuição de estigmas a espaços e a populações que neles habitam. A televisão, bem como os órgãos de comunicação social participam na “co-construção dos conflitos e dos eventos violentos, amplificando-os e fornecendo uma visibilidade aos autores” (Malheiros et al. 2007, pp. 21-35).

Os resultados dos grupos focais indicam que os média, e o cinema em particular, têm um papel importante na construção das imagens dos participantes sobre os imigrantes e minorias étnicas. Importa explorar de modo mais aprofundado estes resultados, procurando articulá-los com os resultados de outros estudos sobre o papel dos média na (re)construção de representações sobre os ‘imigrantes’. Por exemplo, mobilizar o estudo de Matos (2006) que, para além do cinema, estuda o papel dos manuais escolares e das exposições na construção de uma imagem positiva do português, imagem esta que exclui do imaginário nacional os negros portugueses, contribuindo para a sua discriminação e exclusão social.

Reflexões finais

A articulação metodológica permite uma melhor compreensão de uma determinada realidade social, possibilitando o olhar a partir de diferentes ângulos. No caso do estudo apresentado, procurámos articular a análise da narrativa de um filme português – Li Ké Terra (2010) – com as perceções de jovens estudantes sobre as relações interculturais.

Nos grupos focais pudemos observar a existência de tensões e conflitos, provocados pela aderência, mas também pela contestação de representações hegemónicas. Esta coconstrução e reconstrução reflexiva de imagens e representações sobre as relações interculturais revela-se pertinente no processo de desenvolvimento de cidadãos críticos e atentos à pluralidade de narrativas sobre o passado e sobre o presente.

À semelhança dos resultados de outros estudos (Cabecinhas, 2007), verificamos que os membros das minorias são vistos pelos participantes neste estudo como ‘representativos’ de uma categoria homogénea e não na sua individualidade. Além disso, os jovens filhos de imigrantes, nascidos em Portugal, são ainda percebidos como imigrantes, ‘não são mesmo portugueses’, devido à cor da pele. Os estereótipos negativos associados a imigrantes e aos seus descendentes persistem na mente dos jovens, bem como expressões de racismo. Estes estereótipos estão estreitamente relacionados com as ideologias e preconceitos raciais veiculados durante o período colonial, que se tornaram parte das representações dos portugueses (Almeida, 2008; Lourenço, 1992; Santos, 2014), influenciando profundamente as relações interculturais na atualidade.

Tendo verificado que os grupos focais constituíram também um espaço de coconstrução e reconstrução de imagens e perceções sobre o grupo étnico e social retratado, importa considerarmos o papel dos produtos mediáticos, em especial, do cinema documental, no processo de aprendizagem e desenvolvimento dos jovens e na transformação reflexiva e crítica das suas auto e heterorepresentações.

No processo de visualização e análise de filmes no contexto escolar, o papel do professor é fundamental. A orientação e estímulo dos estudantes no sentido de compreenderem e interpretarem criticamente os conteúdos fílmicos – literacia fílmica – revela-se central para a construção de cidadãos reflexivos e atentos à pluralidade das narrativas sobre a realidade social passada e presente, contribuindo para a descolonização do imaginário da sociedade maioritária.

 

Filmografia

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Apoio

Projeto de doutoramento com a referência SFRH/BD/75765/2011, cofinanciado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e pelo Fundo Social Europeu (FSE) - Programa Operacional Potencial Humano (POPH), no âmbito do Quadro de Referência Estratégico Nacional (QREN) Portugal 2007-2013.

 

Nota Biográfica

Isabel Macedo é licenciada e mestre em Ciências da Educação pela Universidade do Minho. Atualmente desenvolve o doutoramento em Estudos Culturais, na área da Comunicação e Cultura. Os seus principais interesses de investigação conjugam as áreas dos media, da memória social, da identidade social, das relações interculturais e das representações sociais. É bolseira da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e investigadora do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS).

E-mail: isabelmaced@gmail.com

Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Universidade do Minho Campus de Gualtar, 4710-057 Braga - Portugal

 

* Submetido: 27-01-2016

* Aceite: 16-02-2016

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