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Comunicação e Sociedade

versão impressa ISSN 1645-2089versão On-line ISSN 2183-3575

Comunicação e Sociedade vol.27  Braga jun. 2015

https://doi.org/10.17231/comsoc.27(2015).2113 

LEITURAS

Zagalo, N. (2013). Videojogos em Portugal: História, Tecnologia e Arte. Lisboa: FCA Editora de Informática.

Zagalo, N. (2013). Videojogos em Portugal: História, Tecnologia e Arte. Lisboa: FCA Editora de Informática.

 

Artur Coelho*

*Agrupamento de Escolas Venda do Pinheiro.

f575@aevp.net

 

Introdução

Dei por mim muito atarefado a conquistar território aos mouros. Depois de perceber que precisava de quintas com servos para as cultivar, e mercadores para transportar cereais até aos mercados para gerar riqueza, dediquei-me a treinar um exército invencível. A mistura de besteiros, espadachins e cavaleiros foi reforçada com templários a pé e cavalo. Padres asseguravam a moral elevada das tropas e à laia de artilharia uma força de poderosas catapultas deixava em escombros as defesas do inimigo. Pus-me em campo, passando a moirama a fio de espada. Só soçobrei no alcácer, quando percebi que o esforço para o derrotar me consumiria mais um bom par de horas. Tens que fazer, tens tanto mais que fazer, pensei. Mas como resistir ao impulso de retro-gaming de Soure 1111, jogo português desenvolvido em 2004 que, emulando a jogabilidade de RPGs como Age of Empires ou World of Warcraft nos leva ao nascimento da nação portuguesa? Este é um dos muitos exemplos que Nelson Zagalo nos leva a descobrir na sua interessantíssima história dos jogos de computador em Portugal. Sabia que existiram, e existem, jogos desenvolvidos por criadores nacionais que têm ao longo de décadas acumulado talento, experiência e sucessos internacionais? Confesso que tirando algumas exceções contemporâneas, nem desconfiava que tal fosse possível. Este livro que traça, com minúcia, a história do desenvolvimento de jogos de computador em Portugal é uma enorme surpresa, cativando pela abrangência, visão crítica, e trazer para a memória contemporânea elementos de uma história surpreendente.

Antes de traçar o retrato historiográfico subjacente ao livro, Nelson Zagalo leva-nos aos primórdios dos jogos de computador, centrando desde logo o conceito de jogo de computador não como brinquedo mecânico, mas dispositivo tecnológico que permita interatividade. Fala-nos das primeiras experiências, surgidas como artefactos académicos destinados a despertar a curiosidade nas possibilidades dos computadores, e daí ao surgir dos primeiros jogos comerciais em arcade e consolas. Olha com especial atenção para o caso britânico dos computadores Sinclair, criados a partir de uma iniciativa pedagógica da BBC que se destinava a incentivar a aprendizagem da programação e gerou um mercado para computadores baratos que potenciaram uma cultura assente em revistas e ouros fóruns que partilharam código, incentivando uma geração de criadores a criar de raiz o que se veio a tornar uma cultura fértil de criação de jogos. Algo que contrasta fortemente com a evolução nos EUA, onde o desenvolvimento de jogos foi desde cedo direcionado como produto de consumo.

O olhar para o nosso país traz-nos desde cedo grandes surpresas. Começamos por, na era pré-IBM PC, ter existido um projeto concretizado e comercializado de computador pessoal desenvolvido em Portugal, o ENER-1000. Outro facto da história da tecnologia que desconhecia e Zagalo refere é a fabricação pela Timex Portugal dos lendários ZX Spectrum, a máquina-faísca que despertou toda uma geração para a computação. Não imaginava que foi na Caparica que se construíam os computadores para venda por cá e para o mercado americano. Estas máquinas de relativo baixo custo deram a faísca para uma dinâmica cultura de computação com reflexos no campo dos jogos. As possibilidades de programação dos Spectrum inspiraram toda uma geração, e daqui saíram as primeiras experiências de jogos por cá criadas. Algumas rudimentares e sem outro seguimento, outras complexas e já a entrar dentro dos domínios da IA, contando com sucessos nacionais a penetrar no também incipiente mas já mais vigoroso mercado internacional de videojogos. Zagalo partilha capturas de ecrã destes jogos, detalhando a sua conceção e jogabilidade. Destes, do meu ponto de vista de professor do ensino básico ligado ao ensino de TIC, o artefacto mais interessante está na reprodução dos esquemas e diagramas manuscritos da programação dos jogos criados por José Oliveira, criador do primeiro jogo nacional, uma possível implementação no Spectrum do jogo do galo. É um artefacto interessante que solidifica o que está por detrás do processo mental de programação. Através deste retrato minucioso Zagalo estabelece as bases de uma cultura de programação de jogos profícua, tendo em conta as dimensões das comunidades de prática e do país, conseguindo-se até o fazer chegar projetos portugueses a mercados externos.

O avanço tecnológico trazido pelos computadores pessoais, com maior poder computacional e uso do CD-ROM como suporte de divulgação, armazenamento e partilha, permitiu uma maior ambição no desenvolvimento de jogos. Zagalo analisa as plataformas e software de authoring disponíveis à época, e debruça-se sobre as experiências portuguesas no género. Sublinha a elevada importância de concursos organizados por publicações do género para impulsionar e dar visibilidade aos criadores de jogos para PC, com consequências quer no volume de produção quer na qualidade dos jogos. As possibilidades trazidas pelo CD-ROM como suporte, que fizeram nascer uma espécie de mini-indústria nacional, desenvolvem-se na confluência de três vertentes. Demonstra-se a importância do apoio dado pela comissão descobrimentos à criação de software, que se irá traduzir num projeto de RPG pedagógico Viagem de Bartolomeu Dias, que inclui o motor de criação de jogos Prometeu disponibilizado de forma gratuita para professores. Experiência que numa época onde a penetração do computador nas escolas e entre os professores não era a suficiente para corresponder às enormes possibilidades. Como aparte, devo referir que para mim a ideia de haver um motor de jogo que permitia a qualquer professor criar os seus jogos educativos me parece um terrível desperdício. Poderíamos ter tido mais cedo as interessantes possibilidades pedagógicas que nos são trazidas hoje, salvaguardando as devidas distâncias, pelo uso do Scratch nas escolas. Há uma aposta semioficial nos jogos educativos com títulos pensados diretamente para o espaço pedagógico. É daqui que nasce a experiência ambiciosa, desenvolvida em colaboração entre a Universidade de Coimbra, a empresa Ciberbit e a câmara municipal de Soure para um jogo cuja estrutura similar ao Age of Empires recria a batalha de Soure, apontando o potencial de jogos de entretenimento criados quer a nível académico quer com ambições comerciais. Jogo esse que ainda hoje se mantém cativante, como se pode aferir pelos primeiros parágrafos desta recensão.

Fundamental para o desenvolvimento quer pessoal dos interessados quer de uma indústria como um todo está o conceito de comunidade. Como espaço de partilha, troca de experiências, e divulgação, possibilita a todos o que se querem iniciar neste mundo um precioso recurso de aprendizagem, especialmente pertinente numa era onde eram poucos, ou nenhuns, os cursos de aprendizagem formal. Divulgar experiências também aumenta o nível qualitativo. Quando se vê algo que intriga e inspira quer-se fazer mais e melhor. Nessa tónica, o desenvolvimento de comunidades nacionais virá a revelar-se um fortíssimo motor de desenvolvimento. Mas primeiro, Zagalo fala-nos da criação de motores de jogo nacionais, a tecnologia subjacentes ao desenvolvimento de experiências interativas. Detalha os motores por detrás de jogos clássicos e analisa diversos projetos nacionais que desenvolveram os seus próprios motores de jogo. Nesta análise mostra os seus potenciais e acompanhamento do state of the art á época, observando que boa parte dos criadores que desenvolveram estas aplicações foram mais tarde contratados por empresas de referência internacional na criação de jogos. São esforços importantes, que estabelecem as bases técnicas para o desenvolvimento criativo. Nas comunidades o destaque recai sobre a importância do estabelecimento da GameDev.pt, como comunidade de prática que facilitava a partilha de informação, dicas e aprendizagem por todos os interessados em aprender as diversas vertentes do desenvolvimento de jogos. Esta vertente de partilha foi expressa em fóruns, tutoriais e um pacote de aprendizagem, sendo um importante núcleo de formação dos criadores que virão a estar na génese da contemporânea indústria de jogos nacional. A GameDev apoiou ativamente o desenvolvimento de jogos totalmente nacionais de elevada qualidade, tornando-se geradora de massa crítica para estabelecer uma verdadeira comunidade de criadores. Zagalo ainda destaca a iniciativa falhada por expectativas elevadas da APROJE, e anota o crescimento do interesse académico na pesquisa desenvolvimento de jogos que se traduz num número crescente de eventos e conferências dedicadas.

O desenvolvimento de jogos para plataformas móveis, antes da consolidação trazida pelos sistemas operativos Android e iOS, foi um momento de elevadas potencialidades exploradas mas não atingidas por uma nascente indústria nacional. Zagalo regista um elevado número de criadores com sucessos internacionais em diferentes plataformas e a aposta bem concebida da Ydreams, que se dedicou a criar experiências de jogo avançadas para a tecnologia da época. Apesar do acumular de pequenos sucessos o grande sucesso é elusivo, tendo aquela que poderia ter-se tornado um grande motor de desenvolvimento de mobile gaming, com repercussões para a comunidade nacional, desistido do campo pouco antes do iOS surgir. Apesar de apontar alguns sucessos no domínio desta nova plataforma, o quadro que traça é o de uma oportunidade perdida com a saída da Ydreams, que possibilitaria uma rede de desenvolvimento ancorada no seu dinamismo por ela trazida.

Um dos grandes vetores de desenvolvimento da indústria dos jogos em Portugal tem sido a plataforma web. Para quem conheça mal ou desconheça este campo há aqui verdadeiras surpresas, jogos de sucesso a nível global desenvolvidos por cá. Para isso contribuiu a disponibilidade de tecnologias como o Flash ou o Unity, que facilitam a publicação na web de conteúdo interativo, muita criatividade e uma boa dose de sorte. É a pensar na produção nesta plataforma que se situa a maior parte das empresas nacionais que se dedica ao desenvolvimento de jogos, focalizadas na área dos portais de minijogos, MMOs, jogos casuais de puzzle, estratégia e RPG, ou tie-ins com conteúdos cinematográficos e televisivos.

É nas consolas que se começa a afirmar a visibilidade de uma indústria de jogos em Portugal, apesar de este ser de nicho, conquistando mercados com equipas pequenas mas criadoras de produtos de elevada qualidade. Não foi um processo fácil, pelo elevado nível de investimento necessário, tantas vezes fora da capacidade das equipes e pequenas empresas. Muitos são os exemplos apontados de promessas que mesmo após investimentos avultados ficaram por cumprir. Destaca-se a capacidade dos criadores de jogos nacionais se adaptarem às exigências do, como qualifica o autor, lado mais elitista da indústria, mostrando-se capazes de ultrapassar os desafios técnicos e, com poucos recursos, criarem produtos de qualidade reconhecida a nível mundial. Pelas dimensões e grandeza de investimentos são poucos os jogos nacionais a concretizarem-se em produtos disponíveis no mercado de consolas. Muitos ficaram para trás, mesmo tendo despertando a atenção da imprensa e indústria. Este processo sublinha a crescente profissionalização da indústria dos jogos, que começou como algo de amador e criado por interessados e evoluiu para processos profissionais, apesar da reduzida dimensão nacional e dificuldades de chegar a um mercado global. Algo que já foi salientado nos capítulos dedicados ao crescimento dos jogos de PC, plataformas móveis e web, mas que amadurece, talvez pelo prestígio da plataforma, no restrito mundo das consolas.

A democratização e abertura trazida pelas app stores, garantindo segurança, distribuição e fiabilidade têm sido bem aproveitadas pelos criadores de jogos. Segundo Zagalo, este ambiente adapta-se bem ao ecossistema empresarial português, com equipas flexíveis e de reduzida dimensão capazes de aproveitar nichos de mercado com rapidez. Isso tem-se verificado no mercado para Android, iOS e Windows Phone, com jogos portugueses a chegar aos tops de downloads, especialmente aqueles que seguem uma estratégia de transmedia marketing através parcerias com imagens de marca estabelecidas. É talvez aqui que resida o cerne da existência de uma indústria portuguesa de jogos, com títulos inovadores, de qualidade, atraentes a um público global mas fundamentalmente a explorar de forma criativa e flexível nichos de um mercado muito competitivo.

No final deste livro, continua a pergunta: haverá uma indústria dos jogos de computador em Portugal? Claramente existe, embora fortemente condicionada pela dimensão do país e pelas características ultracompetitivas do mercado dos jogos. Assinala-se que por cá há a capacidade de criar conteúdos de nível de topo a custos inferiores do mercado. A capacidade técnica e criatividade têm gerado sucessos independentes na web, appstores e mercados para PC e consola. Tem havido apostas coerentes no desenvolvimento de conteúdos, especialmente na utilização de propriedade intelectual transmedia apelativa. Existem equipas de desenvolvimento e investidores. Não será uma indústria ao nível do mais conhecido no ecossistema dos jogos, mas sobrevive com qualidade num campo hipercompetitivo. Ainda se assinala que muitos dos que por cá experimentaram o desenvolvimento independente quer de jogos quer de tecnologias subjacentes acabaram por ser captados pelas maiores empresas no mercado global. Fica-se com a sensação que ambicionamos mais, mas não estamos nada mal com o que temos, conseguido com muito empenho e criatividade.

A vasta diversidade de jogos, traçada numa listagem exaustiva que finaliza o livro, mostra bem esse dinamismo. Desde os tempos precursores de Laser e Paradise Café, a evolução da criação de jogos trouxe-nos títulos como Elifoot, jogo de gestão futebolística que ainda hoje conta com adeptos, a aposta internacionalizável de Gambys, o didatismo de Viagem de Bartolomeu Dias (com o motor de jogo Prometeu) e Soure 1111, as experiências da YDreams e outros no móvel, portais de jogos online, MMOs como Orion’s Belt, os pictogramas casuais de Picma, o trabalho com consolas de Miffy’s World, Pet Hospital e Under Siege, e a promessa nunca cumprida de Ugo Volt.

Os retratos de constante evolução, histórias de sucessos e listagens exaustivas podem poder fazer transparecer o desenvolvimento de jogos em Portugal e a criação de uma indústria criativa como algo que evoluiu naturalmente, construindo-se pedra a pedra. Zagalo sublinha que está longe de ser esse o nosso caso. A história descrita nesta crónica mostra um padrão de constantes arranques e paragens, feita de momentos promissores que causam explosões conceptuais que passado algum tempo se desvanecem, vítimas das pressões do mercado ou da evolução tecnológica. É aquilo a que se refere como a inconstância num meio que se se mostra capaz de criar ao mais elevado nível artístico e tecnológico, não o consegue fazer numa visão de longo prazo. O autor aponta três fatores estruturais que influenciam este estado de coisas. A educação, apesar do forte investimento nas últimas décadas, ainda não gerou um número suficientemente elevado de licenciados e técnicos capazes de gerar massa crítica criativa e tecnológica, fator a que a atenção dada ao multimédia e digital ser muito recente nos meios académicos contribui. A produção, uma vez que criar um jogo envolve custos elevados quer para desenvolvimento quer para marketing, e a existência em Portugal de poucos apoios institucionais dificulta a criação de algo que requer investimento avultado num mercado que localmente não garante retorno. Por fim, a distribuição, assinalando que num espaço globalizado a diversidade de escolhas é muito vasta e requer estratégias bem definidas e financiadas para destacar e despertar a atenção dos jogadores para produtos específicos no meio da enorme variedade de escolhas no mundo digital.

Destacaria ainda o aspeto de preservação da memória histórica do passado recente. Mergulhados como estamos num mundo de constantes novidades, depressa esquecemos hoje aquilo que ontem nos pareceu fresco, novo e importante. É talvez essa a maior surpresa deste livro. Não o ficar a conhecer a evolução histórica do desenvolvimento de jogos de computador, que nasceu das mãos de amadores e se tornou um espaço profissional, mas a miríade de detalhes esquecidos pela memória coletiva que Zagalo recupera torna fascinante esta leitura. Descobrir algumas das tecnologias e jogos abordados neste livro será, para muitos, uma completa surpresa. Suspeito que mesmo para os mais conhecedores do campo haverá aqui muito para redescobrir. E agora, se me permitirem, vou mais uma vez tentar arrasar aquele castelo dos Mouros. Felizmente, não possuo uma playstation, senão suspiraria com o sonho de poder jogar aquele jogo de ficção científica nas ruínas de uma Lisboa pós-apocalíptica que se ficou pelas demos de um Ugo Volt fazer crescer água na boca.

 

Nota biográfica

Artur Coelho é professor de TIC e Coordenador PTE do Agrupamento de Escolas da Venda do Pinheiro. Mestre em Ciências da Educação - Informática Educacional (UCP), trabalha com tecnologias de modelação 3D, VRML e impressão 3D com alunos do ensino básico. Apaixonado pela Ficção Científica, escreve sobre livros no seu blog pessoal e na página aCalopsia.

E-mail: f575@aevp.net

Agrupamento de Escolas Venda do Pinheiro Quinta do Mucharro, 2665-650 Venda do Pinheiro, Portugal

 

* Submetido: 30-11-2014

* Aceite: 15-3-2015

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