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Comunicação e Sociedade

versão impressa ISSN 1645-2089versão On-line ISSN 2183-3575

Comunicação e Sociedade vol.27  Braga jun. 2015

https://doi.org/10.17231/comsoc.27(2015).2097 

COMUNICAÇÃO, TEORIA DOS VIDEOJOGOS E DIÁLOGOS (INTER)MEDIÁTICOS

A experiência espacial dos games e outros medias: notas a partir de um modelo teórico analítico das representações do espaço

The spatial experience of games and other media: notes from a theoretical-analytical model of representations of space

 

Suely Fragoso*

*Departamento de Design e Expressão Gráfica, Faculdade de Arquitetura, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

suelyfragoso@ufrgs.br

 

RESUMO

O artigo aborda a experiência espacial dos games, relacionando-a à de outros produtos mediáticos. Uma breve revisão de alguns clássicos da literatura sobre o tema encaminha uma discussão das experiências espaciais da literatura, desenho, fotografia, cinema e televisão. Uma estrutura teórica composta por três ‘tipos de espaço’ é utilizada para analisar uma situação hipotética e simplificada de jogo. Conclui-se que a experiência espacial dos games é uma composição dinâmica que atravessa diferentes níveis de materialidade e significação. A viabilidade dessa prática interpretativa advém, entre outros fatores, da capacidade ficcional, uma construção cultural, desenvolvida ao longo de séculos de interação com as representações mediáticas.

Palavras-chave: Representações espaciais; medias visuais.

 

ABSTRACT

This article discusses spatial experience in games, in relation to other media. A brief review of some classic works on spatial experience in literature, photography, cinema and television is presented. A theoretical framework composed of three ‘types of space’ is used for an analysis of a hypothetical simplified gameplay. As a result, the spatial experience of games is understood as a dynamic composition across different levels of materiality and meaning. This practice is made possible, amongst other factors, by fictional capacity, a cultural construction developed over centuries of interaction with media representations.

Keywords: Spatial representations; visual media.

 

Introdução

Reconhecer os games como produtos mediáticos permite situá-los em relação a outros medias, identificando suas semelhanças e diferenças. Não se trata de forçar encaixes para entender os games conforme aqueles medias, mas de admitir que são parte do mesmo cenário cultural, comercial e político que eles. Todos compartilham também algumas formas de representação, razão pela qual os games podem contar com algumas habilidades interpretativas instituídas ao longo da história dos medias. Assim, é relevante recuperar o conhecimento sobre a experiência espacial da literatura, da pintura, da fotografia, do cinema e da televisão para discutir a espacialidade dos games.

Entre os autores que realizaram movimentos na mesma direção, encontra-se, por exemplo, Wolf, cujo livro de 2001 atentava tanto para o caráter mediático dos games quanto para as questões relativas à sua espacialidade. Também é relevante mencionar a coletânea organizada por Borries, Walz e Böttger (2007), especialmente o texto de Lange sobre as ambientações do gameplay e o de Boron, sobre as representações do espaço nos games. O antecedente mais significativo para este texto, entretanto, seria o livro autoral de Nitsche (2008), que abordou diferentes aspectos da representação e experiência espacial dos games, inclusive os paralelos e as diferenças entre os espaços dos games e do cinema.

Um dos problemas de relacionar entre os games a outros meios é a facilidade com que a discussão se encaminha para questões da ordem da narrativa e se fecha nelas. Entretanto, não é desejável restringir a discussão a essa abordagem, mesmo porque a narrativa não é sempre o ponto central dos produtos mediáticos. Outro risco é o da discussão concentrar-se sobre as semelhanças entre os games e outros produtos mediáticos e deixar de lado as diferenças. Para evitar isso, o texto inicia com a demarcação da interatividade e, mais precisamente, da agência, como ponto de entrada para o diferencial dos games.

Interatividade e agência

Apesar do desgaste da palavra, a interatividade não é apenas uma questão técnica, nem só uma mera estratégia mercadológica. A interatividade é uma possibilidade fundamental dos meios digitais, responsável por muitas, senão todas, as novas possibilidades que eles oferecem. Por trás dessa afirmação encontra-se uma diferenciação entre tipos de interação que é preciso deixar clara.

A interatividade pode ser definida como a possibilidade de alterar os elementos que compõem as representações mediáticas: por exemplo, mover um objeto de lugar no mundo de um jogo. Isso é diferente de interagir com aparelhos, por exemplo, alterando o equilíbrio de cores de uma tela, o que já era possível com outros medias. Também não é o mesmo que a interação social, que é aquela que se dá entre atores ou grupos sociais. Por definição, todas as medias são tecnologias de comunicação e, portanto, são tecnologias de interação social. A interatividade é um pré-requisito para a agência. A definição mais disseminada de agência vem do contexto das narrativas interativas, onde agência é entendida como a possibilidade de interferir com os acontecimentos de uma estória. No entanto, a agência não é necessariamente um atributo das narrativas Wardrip-Fruin et al. (2009) identificaram uma polaridade nas abordagens da agência nos games, que pode ser caracterizada da seguinte maneira: a primeira vertente situa a agência no lado do jogador, a quem cabe o poder de ação e de decisão e é quem experimenta a satisfação de exercer a agência. Na segunda abordagem, a agência é definida pelo game design, mais especificamente, pelo equilíbrio de fatores internos ao jogo. Os autores discutem as fragilidades dessa polaridade e propõem que a agência envolve tanto o jogo quanto o jogador, pois depende de que as ações que os jogadores desejam realizar “estejam entre aquelas que eles podem fazer (e vice-versa), conforme o modelo computacional” (Wardrip-Fruin et al., 2009: 1).

A definição de agência adotada neste artigo acrescenta outros elementos a essa formulação, os quais advêm dos paralelos entre os games e outros produtos mediáticos. Essas adições incluem, por exemplo, as configurações tecnológicas dos instrumentos com os quais se joga, os gêneros, as estéticas e os conteúdos dos games. Além disso, o objetivo de discutir a experiência espacial que se constitui na relação entre o jogador e o jogo obriga a levar em conta também as condições materiais.

Assim, a agência é aqui definida como um processo contínuo de negociação entre o jogador e o jogo, em que o jogador interage simultaneamente com os conteúdos e a estrutura do jogo; com as representações que enunciam aqueles conteúdos e estrutura; com os dispositivos tecnológicos que os viabilizam e com os elementos de seu entorno material.

Espaço e percepção espacial

Séculos de construção cultural dão sustentação à tendência de pensar o envolvimento com representações mediáticas como uma experiência de imersão. Nos meios analógicos, o desejo de imersão poderia ser equiparado à vontade de, ao invés de estar diante da imagem, estar diante do objeto nela representado. Outro nível de desejo, mais profundo, está implícito na metáfora da pintura como uma janela através da qual se pode ver outra realidade: é o desejo de “ultrapassar os limites da representação e conquistar o real” (Bolter e Grusin, 1999: 53). Murray recupera a metáfora da imersão na água e considera que o uso metafórico do termo busca designar uma experiência de obliteração da percepção da realidade. A ideia não é exclusiva dos meios digitais, nem depende do uso de tecnologias inovadoras e sofisticadas. Wertheim descreve a experiência imersiva do texto literário com o exemplo da Divina Comédia, de Dante Alighieri:

Avançando pelas valas fétidas do Malebolge ou escalando os terraços íngremes do Purgatório, você se sente como se estivesse realmente ali. Você quase sente o fedor da sujeira no Inferno, ouve o coro dos anjos no Paraíso. Essa pode ser uma jornada da alma, mas poucos trabalhos literários evocam os sentidos físicos tão fortemente. É possível ouvir, sentir, cheirar o mundo que Dante retrata (Wertheim, 1999: 51).

A referência à Divina Comédia como uma “jornada da alma” aponta para a falha mais fundamental da ideia de imersão, que é a pressuposição de que é possível separar o corpo da mente. A ideia costuma ser atribuída a Descartes, que, partindo da estratégia de duvidar da existência de tudo o que pudesse não existir, concluiu que só não era possível duvidar de uma coisa: de que há algo que duvida. Este é o sentido de sua famosa frase “Penso, logo existo”, cujo sujeito se define pela imaterialidade do pensamento: seu corpo foi descartado. Essa separação entre mente e corpo foi hegemônica na cultura ocidental até o século XIX. De lá para cá, vem sendo desconstruída por várias correntes teóricas, na maioria das áreas de conhecimento (ou talvez em todas elas).

Entre os autores que questionaram essa divisão no contexto de uma discussão sobre a espacialidade, destaca-se, neste texto, o trabalho de Merleau-Ponty. Nas palavras do autor:

Nós nos acostumamos, devido à influência da tradição Cartesiana, a desengajar do objeto: (...) Existem dois significados, e apenas dois, para a palavra ‘existir’: alguém existe como uma coisa [o corpo] ou então alguém existe como consciência (Merleau-Ponty, 2002: 230).

Na vida cotidiana, é quase óbvio que ninguém é apenas consciência ou apenas corpo. A inseparabilidade entre o corpo e a mente está presente o tempo todo: quando o corpo está ferido, a pessoa toda está ferida e, por isso, tem dificuldade para concentrar-se, fica irritadiça ou talvez tristonha. Uma pessoa não está em seu corpo, ela é o seu corpo tanto quanto sua mente. Assim como o sujeito não é apenas sua mente nem apenas seu corpo, mas ambos, inseparavelmente; também não é possível separar as experiências material e imaterial do espaço, ou seja, o espaço que o corpo experiencia do espaço experienciado pela mente. A ideia de imersão não é a única falácia entre as tentativas de interpretação do envolvimento com os produtos mediáticos, mas é a que presume de modo mais explícito a separação entre o pensamento e a corporeidade.

O arcabouço teórico que dá sustentação a este artigo tem como base uma compreensão de sujeito e de experiência espacial inspirada na fenomenologia de Merleau-Ponty. Entretanto, a amplitude e alto grau de abstração desse referencial dificultam sua aplicação a questões mais específicas. Para viabilizar o movimento proposto neste trabalho, a próxima seção apresenta um modelo teórico de menor escala e voltado especificamente para a espacialidade nas medias.

Tipos de espaço

Reflexões sobre a experiência espacial dos medias costumam obedecer ao desejo de imediação, uma construção cultural que dirige o desenvolvimento das técnicas e tecnologias de representação em busca de estratégias para reduzir a interferência da mediação (Bolter e Grusin, 1999). Para manter a coerência com essa ideia, a presença daquilo que se interpõe entre o mundo real e o ficcional não pode ser levada em conta. O modelo teórico utilizado nas análises apresentadas neste texto vai em outra direção: entende-se que espaços ficcionais são acessíveis apenas quando mediados. Ou seja, espaços ficcionais só existem na imaginação e portanto só podem ser compartilhados através de linguagens, ou seja, através de signos.

Todo signo possui um grau de imaterialidade e um grau de materialidade. Isso pode ser compreendido através dos conceitos de significado (aquilo que o signo representa) e significante (aquilo que permite que o signo seja apreendido) (Saussure, 1961). Essa não é uma separação Cartesiana entre o que é material e o que é imaterial. O significante não é um existente físico, algo que pode ser pego com as mãos, como o papel fotográfico no qual uma imagem está gravada. Em Saussure, o significante é “a impressão que ele [o signo] causa em nossos sentidos” (Saussure, 1961: 66). Neste texto, a ideia de significante é utilizada como uma referência que apoia a identificação de mais um nível intermediário de materialidade entre o papel e a impressão que a imagem causa em nossos sentidos, ou seja, entre o objeto físico e o significante. Trata-se da representação propriamente dita, a enunciação. A espacialidade é mais evidente nas representações visuais do que nas sonoras. Imagens são distribuídas no espaço, por exemplo, na superfície bidimensional de uma tela. Sons, por sua vez, se desenvolvem ao longo do tempo. Isso não significa que as imagens não tenham sua própria temporalidade ou que os sons não participem da experiência espacial. Mesmo quando olha para uma única imagem, o observador vê seus elementos em sequência, um após o outro (Fragoso, 2005: 68). Do mesmo modo, a percepção de sons originados em diferentes pontos do espaço é espacial.

Sinteticamente, pode-se dizer que a estrutura do modelo teórico analítico obedece à seguinte lógica: um espaço ficcional só pode ser conhecido se e quando ele é representado por signos. Esses signos se materializam em algum tipo de suporte físico, de modo que a relação com os medias envolve três instâncias espaciais, ou ‘tipos de espaço’: o ‘espaço imaginado’, o ‘espaço da enunciação’ e o ‘espaço material’.

Espaço imaginado

O ‘espaço imaginado’ é o espaço ficcional, um espaço imaterial. Embora o espaço imaginado de um game não seja necessariamente um espaço narrativo, a ideia é muito próxima do conceito de “universo diegético” de Genette. Na versão revisada de seu livro Narrative Discourse, Genette esclareceu que o foco do conceito de diégèse em sua obra é o espaço, não a estória, de modo que “a diégèse é portanto não a estória mas o universo em que a estória acontece” (Genette, 1989: 17-18).

Espaço da enunciação

O ‘espaço da enunciação’ corresponde ao espaço da representação propriamente dita: não propriamente o suporte físico, tecnológico, como o objeto ‘tela’, por exemplo, mas o espaço do significante, os elementos visuais que compõem a imagem.

Espaço material

O ‘espaço material’ é aquele onde se encontram as coisas físicas: o corpo do jogador, os aparelhos que ele utiliza para jogar, os objetos que estão à sua volta, etc. A impressão de que esta categoria tem menos importância ou complexidade que as anteriores é decorrente da vitalidade da herança cartesiana, que faz com que toda atenção à materialidade pareça ingênua, reduzindo os existentes do mundo às aparências e superficialidades. No entanto, dada a inseparabilidade entre o corpo e a consciência, algumas das principais chaves para entender a experiência espacial dos games se encontram no espaço material.

A experiência espacial das medias analógicas

A ideia da imersão não nasceu com os games e nem mesmo com os medias visuais. Uma das mais famosas expressões associadas a esse tipo de experiência espacial vem da literatura, mais especificamente, da poesia. Trata-se da frase “suspensão voluntária de descrença”, criada por Coleridge no início do século XIX. Coleridge referia-se à capacidade do escritor de criar uma “aparência de verdade” como uma condição para o envolvimento do público com a narrativa ficcional. Atualmente, essa colocação é comumente entendida como uma defesa da suspensão da capacidade crítica do leitor e associada a um tipo de experiência espacial bastante próximo da imersão. Os signos da linguagem visual escrita (letras, tipos) são visuais e sua distribuição na página é espacial: um espaço de enunciação. Já a folha de papel pertence ao espaço material. Uma experiência imersiva da leitura requereria que esses dois níveis de mediação sejam ignorados e apenas o espaço imaginado, imaterial, seja levado em conta.

O espaço tridimensional pode ser representado em duas dimensões de muitas maneiras diferentes, mas apenas uma, a perspectiva, tem sido aceita como a melhor técnica para criar imagens realistas desde o Renascimento. Isso conduziu à hegemonia do modelo de visão no qual ela é baseada: a camera obscura. Crary (1992) destaca a diferença entre essa forma de representação e outras, que eram mais populares antes do século XVI, e relaciona sua prevalência com um tipo específico de subjetividade. Por um lado, a camera obscura realiza uma operação de “individuação” em que o observador, isolado e autônomo, é separado do mundo que observa. Por outro, “Ao mesmo tempo, outra função correlata e igualmente decisiva da camera obscura foi a de separar o ato de ver do corpo físico do observador, descorporificar a visão” (Crary, 1992: 45). Reside aí a forte relação entre a subjetividade Cartesiana, fundante da ideia de imersão, e as representações em perspectiva e, a partir delas, em outras imagens técnicas como a fotografia, o cinema e a televisão.

Um dos elementos mais importantes da construção espacial da perspectiva é o ponto de vista. É em função dele que os elementos do espaço imaginado são organizados e, portanto, ele é a chave para compreender a representação. O observador dentro da camera obscura está isolado da cena que vê, mas ele, a camera e o que ele vê fazem parte do mesmo universo. Ou seja, apesar de estar fora da cena, o ponto de vista habita o mesmo espaço imaginado que as coisas representadas no espaço da enunciação. Ao emparelhar seu olhar com o ponto de vista da perspectiva, o observador se coloca, simbolicamente, na mesma realidade que a cena que ele observa. Por isso, quanto maior a capacidade de identificação com o ponto de vista, mais intensa seria a impressão de presença no espaço imaginado.

Embora a perspectiva já estivesse legitimada como a forma correta e confiável de representação do espaço em superfícies bidimensionais desde o século XVI, até o final do século XIX a camera obscura foi utilizada principalmente para finalidades científicas. Naquele momento histórico, marcado pela emergência de uma profusão de tecnologias de representação, outros usos da camera obscura ganharam destaque, sobretudo através da fotografia. Além da atribuição de realismo aos códigos da perspectiva, então já amplamente conhecidos, a fotografia também tirou partido da intensificação da impressão de imediação inerente à automatização do processo de produção de imagens. A ausência de um artista que cria as imagens intensifica a ilusão de transparência da mediação, o vínculo entre a imagem fotográfica e a realidade pela interferência da luz e a invisibilidade do processo técnico que, escondido numa caixa preta, sugerem que, na fotografia, não há codificação.

No cinema, os códigos encobertos da imagem fotográfica se aliaram ao tempo e, através da ilusão de movimento. Filmes e documentos dos primeiros anos do cinema indicam que não foi muito difícil lidar com a liberdade dos componentes da representação, que passaram a se mover no espaço da enunciação. O grande desafio foi a possibilidade, com o tempo, a necessidade, de mover também o próprio ponto de vista. Isso alterou as condições da identificação, e, com elas, a experiência espacial, que se diferenciou daquela das imagens estáticas. Black (1987) esquematizou as abordagens desenvolvidas para lidar com as demandas das imagens em movimento em duas grandes vertentes. A primeira tenta transpor para o cinema a experiência espaço-temporal não mediada com a máxima fidelidade, através de construções que “empurraram os limites físicos da representação até os limites da realidade: uma tomada longa, uma câmera em movimento, ou extrema profundidade de campo” (Black, 1987: 40). A ideia reflete a convicção no realismo da imagem fotográfica e busca tirar partido do tempo e do movimento para intensificar a ‘experiência imersiva’, aumentando a similaridade entre o espaço da enunciação e a experiência espacial da vida cotidiana. A outra estratégia não procura garantir o realismo do ‘espaço da enunciação’, mas o do ‘espaço imaginado’. Para isso, as sequências de imagens são fragmentadas de modos que não condizem com a experiência cotidiana: por exemplo, a imagem de um objeto desde certo ponto de vista é imediatamente seguida por uma imagem do mesmo objeto de outro ponto de vista, em local radicalmente diferente do anterior. Apesar de contraintuitiva, essa segunda forma de realismo é, por longe, a que alcançou maior popularidade (Black, 1987). Isso sugere que a transparência do espaço da enunciação é menos importante que a coerência interna do espaço imaginado. Essa constatação será importante para explicar porque o comprometimento da transparência do espaço de enunciação não fragiliza o envolvimento do jogador com o mundo do jogo.

Para Metz (1982), a predisposição do espectador para desconsiderar a representação propriamente dita, aderindo ao seu significado, é parte da tendência a

perceber como verdadeiros e exteriores os eventos e heróis que pertencem à ficção ao invés das imagens e sons que pertencem puramente ao processo de projeção (que é, entretanto, a única agência real); uma tendência, em suma, de perceber como real o representado e não o representante (o meio tecnológico de representação) (...). Se o filme mostra um cavalo galopando, temos a impressão de ver um cavalo galopando e não os pontos de luz se movendo na tela que evocam um cavalo galopando (Metz, 1982: 115-116).

Essa formulação aponta para uma questão menos abordada nos estudos da representação espacial nos medias, que é a dos aspectos físicos das imagens e dos sons: na citação, a luz que forma a imagem e, por implicação, a tela sobre a qual ela é projetada. O desejo de imediação requer que a luz e a tela que dão suporte ao espaço da enunciação sejam ignoradas. Como a luz e a tela são elementos do espaço material, para ignorar a interferência do espaço da enunciação, é preciso ignorar o espaço material.

Para caracterizar as condições que induzem à condição de recepção que ele denomina “situação fílmica”, ou “estado fílmico”, Metz destaca também a importância da ambientação da sala de cinema: a escuridão, o silêncio, a relativa imobilidade, que ajudam a apagar o entorno e inibir a percepção do próprio corpo (Metz, 1982: 116-119). O envolvimento com a ficção dependeria das condições de recepção do cinema, em um ambiente que aproxima a experiência do filme à do sonho.

A recepção da televisão é uma experiência muito diferente. Na televisão comercial tradicional, a coerência do espaço imaginado é desafiada repetidamente pelas interrupções da narrativa para entradas publicitárias. Os enquadramentos tendem a ser mais fechados e a edição mais fragmentada que no cinema. A própria constituição da imagem é diferente: no cinema, olha-se para o reflexo da luz na tela, na televisão, olha-se para a luz emitida pela tela. As distinções mais impactantes para este texto, entretanto, são as que dizem respeito ao espaço material. Na ambientação típica da recepção televisiva, o tamanho da tela, a posição do corpo do espectador em relação a ela e a configuração do entorno desafiam as crenças sobre a experiência espacial das medias. Embora algumas pessoas prefiram assistir televisão com a luz apagada, essa não é a norma. Atualmente, os aparelhos com telas grandes fazem sucesso, mas também é comum encontrar pessoas assistindo episódios de séries criadas para televisão, por exemplo, na tela de um tablet ou smartphone. Novelas, debates políticos, telejornais e até a publicidade são comentados imediatamente nas redes sociais: as pessoas assistem TV, digitam e leem ao mesmo tempo. Não é preciso buscar cenários tecnologicamente sofisticados para encontrar exemplos desses modos difusos de recepção televisiva: no Brasil, é comum encontrar pequenos televisores na cozinha, muitas vezes em posições desfavoráveis em relação ao espectador (por exemplo em cima da geladeira). As pessoas cozinham ou jantam enquanto assistem televisão, e isso não parece comprometer seu envolvimento. Esse regime de envolvimento com as medias foi chamado de “situação televisiva” (Fragoso, 2000). Apesar da alusão à “situação fílmica” de Metz, assistir televisão claramente não é uma experiência de “quase-sonho” como a que Metz propôs para o cinema: as imagens da televisão são brilhantes, frequentemente vistas em telas pequenas e a edição é fragmentada. O espaço da enunciação é muito evidente para ser ignorado. Além disso, a recepção televisiva não supõe a redução da percepção do ambiente material, nem que a pessoa permaneça parada. Esses fatores sugerem que um novo nível de refinamento da “capacidade ficcional” (Metz, 1982) foi atingido, e que a televisão pode ter tido um papel importante no desenvolvimento de habilidades cognitivas requeridasnpara a relação com um media mais complexo: os games.

A experiência espacial dos games

As possibilidades interativas dos medias digitais parecem estar por trás da retomada da ideia de imersão, que alcançou novos graus de popularidade com os games. Nos estudos de games, as críticas a essa ideia são acompanhadas da busca por conceitos mais apropriados para explicar a experiência espacial do jogo. Duas propostas muito conhecidas são a da “dupla consciência” (Salen e Zimmerman, 2004) e a do “fluxo” (Csikszentmihalyi, 2009).

Salen e Zimmerman (2004) remeteram a ideia de dupla consciência à formulação de Bateson (1990), para quem o ato de jogar constitui uma prática de metacomunicação, pois o jogo envolve dois níveis de informação, nos quais as ações e eventos que têm lugar durante o jogo são ao mesmo tempo ditas e sabidas reais e não reais. Bateson desenvolveu essa ideia observando, inicialmente, brincadeiras entre animais, de modo que sua visão do jogo como metacomunicação não depende de mediação técnica. A dupla consciência, por sua vez, foi pensada no contexto mais específico dos games, o que evidencia o paralelo entre com a dupla lógica da remediação (Bolter e Grusin, 1999). Entendida conforme a lógica da remediação, a experiência dos games é uma combinação do desejo de imediação, que Salen e Zimmerman relacionam à experiência sensorial, com a hipermediação das técnicas e tecnologias necessárias para jogar. Ao situar a importância da imediação para a experiência de jogo, os autores deixam claro que sua crítica da “falácia da imediação” não constitui uma completa rejeição à ideia de imersão, mas ao modo como ela é “superenfatizada”, encobrindo a importância “da diversidade da paleta de experiências que os games oferecem” (Salen e Zimmerman, 2004: 452-453). Essa diversidade será o foco da próxima seção deste artigo.

Douglas e Hargadon (2004) entenderam a imersão como um entre muitos modos de envolvimento com games ou outros medias. Para eles, a experiência imersiva corresponde a uma completa absorção pela narrativa[1], diferente do engajamento, que seria um posicionamento externo ao jogo, característico de situações que envolvem desafios e esforço cognitivo. Para Brown e Cairns (2004), por outro lado, engajamento seria o primeiro e mais baixo nível da imersão. O investimento cognitivo no jogo conduziria a um segundo estágio, em que o jogo passa a afetar diretamente as emoções do jogador. Os autores consideram esse segundo estágio, que denominam absorção (engrossment), o ponto de inflexão em direção à suspensão de descrença e ao estágio de ‘total imersão’. Neste último estágio, o jogador está tão envolvido com o jogo que a realidade deixa de importar. Csikszentmihalyi descreveu um envolvimento semelhante como “estado de fluxo”, a sensação de estar intensamente engajado em uma atividade por ela mesma. Durante o fluxo, a passagem do tempo parece desaparecer devido ao profundo foco na atividade e a percepção do tempo fica distorcida (Csikszentmihalyi, 2009: 71). A ideia de fluxo não foi desenvolvida para tratar especificamente das medias, mas de atividades nas quais o envolvimento do corpo é mais explícito, como práticas esportivas. Apesar dessa vantagem inicial, as premissas são Cartesianas[2]. Isso se soma à circularidade dos argumentos apresentados por Csikszentmihalyi, fragilizando a proposta. O estado de fluxo é um insight poderoso, suficientemente rico para ser desenvolvido em um conceito mais sólido. Entretanto, a velocidade e generalidade com que ele tem sido adotado levantam dúvidas se, ao invés disso, a ideia não degenerará de volta ao paradigma da imersão. Calleja (2011) propôs um novo sentido para o termo “incorporação”, com o qual busca superar os paradoxos da imersão sem cair na oposição entre o “o mundo real e o virtual”, ou seja, o espaço material e o imaginado.

Podemos conceber a incorporação como a absorção de um ambiente virtual na consciência, produzindo uma ideia de habitação, que é embasada pela sistemática reiteração da corporificação do jogador em um único local, pela via de sua representação pelo avatar (Calleja, 2011: 169).

Essa noção de corporificação do jogador no avatar é bastante próxima da identificação com o ponto de vista da perspectiva. Entretanto, ao contrário deste, a existência do avatar é explícita: boa parte das vezes, sua imagem pode ser vista no espaço da enunciação, o que chama a atenção para sua função de mediação. Além disso, a ideia de incorporação inverte a direção do vetor da imersão: ao invés de a consciência do jogador entrar no espaço imaginado, é o espaço imaginado que é absorvido pela consciência do jogador. Novamente a ideia destaca o espaço da enunciação, pois o espaço ficcional só pode ser ‘absorvido’ pela consciência se for expresso através de texto, imagem ou som. Essa noção de incorporação desloca o foco da relação do jogador com o espaço representado, como na ideia imersão, para a relação entre o jogador e o espaço da enunciação.

Interfaces

Na década de 1980, Laurel considerou que a “interatividade existe em um continuum que poderia ser caracterizado por três variáveis: frequência (quando você pode interagir), alcance (quantas escolhas estão disponíveis) e relevância (quanto suas escolhas realmente afetam as coisas)” (Laurel, 1993: 20). Na década seguinte, ela reconsiderou:

Otimizar a frequência, alcance e relevância das escolhas humanas permanecerá inadequado enquanto nós concebermos o humano sentado do outro lado de alguma barreira, cutucando a representação com um joystick ou um mouse ou uma mão virtual. Você pode demonstrar o paradoxo de Zeno no lado do ‘usuário’ da barreira até ficar com a cara azul, mas só quando você a atravessa é que as coisas ficam ‘reais’ (Laurel, 1993: 29-30).

Essa colocação expressa com inusitada clareza o ponto mais frágil da ideia de imersão. Para que as coisas ficassem ‘reais’, seria preciso que o jogador fosse capaz de agir diretamente no mundo do jogo, dispensando a interferência das interfaces. Para isso, os jogadores precisariam ser capazes de, estando no espaço material, alcançar o espaço imaginado, que é imaterial. Essa façanha corresponde a atravessar as fronteiras entre espaços ontologicamente distintos e, por isso, não é possível sem a intervenção das interfaces, cujo papel é justamente transformar ações realizadas no espaço material em eventos no espaço imaginado. Esses efeitos são conhecidos pelos jogadores graças à intervenção de outras interfaces, que operam na direção contrária, representando o estado do mundo do jogo através de palavras, imagens e sons. Assim, as interfaces podem ser pensadas como elementos tradutores que viabilizam atravessamentos entre os três tipos de espaço.

Interfaces de hardware

As interfaces de hardware incluem os instrumentos de entrada de dados (input) e os de enunciação (output). Interfaces de input (mouse e teclado, controles de consoles e detectores de movimento, por exemplo) traduzem os movimentos do corpo do jogador, no espaço material, em dados compatíveis com o processador, que realiza as mudanças no espaço imaginado[3]. Essas alterações no espaço imaginado são traduzidas para o jogador sob a forma de sons e imagens, por exemplo. Esses sons e imagens formam o espaço da enunciação, que depende de um suporte físico, a interface de output, por exemplo uma tela, para alcançar o espaço material, que é o único dos três tipos de espaço que o aparelho sensóreo do jogador é capaz de perceber.

A interação com as interfaces de harware de games é diferente daquela que é estabelecida com o hardware de outros medias, como o cinema e a televisão. Os jogadores têm que agir sobre as interfaces de hardware, o que altera as condições para o ‘desaparecimento’ da materialidade do equipamento. Por isso, as diferenças entre o espaço material e o espaço imaginado são mais evidentes nos games: o movimento de um dedo no controlador derruba uma montanha no mundo do jogo. A descrição, imagens e sons da montanha vindo abaixo formam o espaço da enunciação, que é instância das interfaces de software.

Interfaces de software

Para jogar, é preciso mais do que a representação do conteúdo do mundo do jogo no espaço da enunciação. O exercício da agência requer que o jogador seja continuamente informado não apenas dos efeitos de suas ações, mas das possibilidades de ação e da situação do mundo do jogo. Também é preciso informar ao processador para quais elementos suas ações se dirige. Pistas da lógica, mecânica e estrutura do mundo do jogo são necessárias para que o jogador saiba o que deve e pode fazer. Além disso, o espaço da enunciação também deve conter instrumentos que permitam que o jogador informe quais ações deseja realizar, quando e onde no espaço imaginado elas devem acontecer. Esses papéis são realizados pelas interfaces de software, que compartilham o espaço da enunciação com os signos (sons, imagens) do espaço imaginado.

As interfaces de software podem aparecer sobrepostas ao mundo do jogo ou integradas a ele, em graus variáveis. Em ambos os casos, o espaço da enunciação é compartilhado pelos significantes de dois conjuntos de signos: um representando o espaço imaginado e o outro, a interface de software.

Interações e atravessamentos

Nas seções anteriores, a relação entre jogadores e games foi abordada predominantemente como interatividade. Isso permitiu identificar algumas diferenças entre a experiência espacial dos games e a de outros medias e alguns elementos do que foi denominado ‘sistema de jogo’ no início do artigo. Esta seção avança com base em um modelo simplificado que reduz a experiência de jogo a trocas de informação entre jogador e jogo. Entretanto, é preciso permanecer atento, para não perder de vista a diferença entre esse esquema e a agência, que é um processo em que a experiência espacial dos games emerge de contínuas trocas de signos e interpretações entre o jogador e o jogo, não de uma sequência de sinais que vai de um para o outro.

Para clareza, a apresentação inicia com um modelo simplificado de interatividade: um fluxo linear de informação que vai do jogador ao jogo e retorna. Nos termos do modelo analítico de tipos de espaço previamente apresentado, esse fluxo de informação vai do espaço material (EM) para o espaço imaginado (EI) e de lá para o espaço da enunciação (EE), conforme representado na Figura 1 (no alto). Esse modelo corresponde ao da imersão, em que o jogador ‘passa’ diretamente para o espaço imaginado. Como já foi discutido, a experiência espacial do público com os medias deve ser descrita de modo diferente. O público do cinema e da televisão, por exemplo, existe no espaço material (EM) e, de lá, através de seu sistema sensorial, experiencia os signos (textos, imagens, sons) do espaço da enunciação (EE). Este último, por sua vez, é constantemente atualizado para refletir as mudanças no espaço imaginado (EI). Essa relação está representada na Figura 1, ao centro, onde (em) é a pessoa que acompanha o jogo como observador.

 

 

As especificidades dos games demandam que o espaço da enunciação seja compartilhado pela representação do mundo do jogo (espaço imaginado) e a interface de software. Para representar essa divisão, a partir deste ponto a sigla para o espaço da enunciação dos games será dividida em EEEI e EEis, onde EEEI corresponde à parcela do espaço de enunciação ocupada pela representação do espaço imaginado e EEis à parte ocupada pela interface de software. Sabe-se que EEEI e EEis se entrelaçam de várias maneiras e com vários níveis de intensidade. Para os fins deste artigo, não é necessário levar em conta as sutilezas do entrelaçamento dessas duas camadas do espaço da enunciação[4]: representá-las como uma combinação simples, como EEEI/EEis, é suficiente para retratar a diferença fundamental entre a relação dos jogadores com o espaço de enunciação dos jogos e a do público com os espaços de enunciação de outros meios. O diagrama na base da Figura 1 ilustra essa diferença, com dois tipos de relação com o espaço da enunciação dos games: a de uma pessoa que está assistindo ao jogo de outra (em) e a de uma pessoa que está jogando (EM). Para interagir com os elementos da interface de software e com o espaço imaginado, o jogador utiliza as interfaces de hardware. Estas são elementos do espaço material e estão representadas por ih (associadas ao jogador, por isso EMih).

Mesmo quando se dispensam muitos elementos do processo comunicacional que constitui o ato de jogar, transformando-o em uma mera troca de sinais, esta não se restringe a um input do jogador seguido por uma resposta do jogo. O mundo do jogo e os elementos da interface de software podem obedecer a temporalidades variadas em relação à ação do jogador, ou mesmo independente dele. Isso cria loops internos, como os representados na Figura 2.

 

 

A configuração do espaço material é essencial para a experiência espacial do jogador. Limites físicos, como paredes, mobiliário e outros objetos afetam a relação corporal entre o jogador e seu entorno e, portanto, sua experiência do espaço físico e, com ela, a experiência espacial do game. A ambientação da situação de jogo costuma ser mais parecida com a da televisão que com a do cinema. Sons e imagens do ambiente interferem na relação entre o jogador e o game. Outras pessoas também podem estar presentes no mesmo local, movimentando-se e comunicando-se umas com as outras ou com o jogador, atraindo sua atenção para o espaço material. A Figura 3 representa essa perturbação da experiência do espaço material.

 

 

Várias pessoas podem jogar o mesmo jogo, no mesmo local ou online. Em um mesmo local, elas podem usar interfaces de hardware de input individuais (um controlador cada uma) e compartilhar a interface de hardware de output (a tela, por exemplo). A Figura 4 retrata essa situação, ainda mantendo um único ciclo de interação para cada um dos jogadores. Os vários ciclos partem de um mesmo lugar no espaço material, mas as interações com o jogo são individuais e a experiência de cada jogador será diferente. Todos os ciclos convergem para o mesmo espaço imaginado, onde as ações de um jogador podem interferir com o mundo do jogo e com outros jogadores. Nessa situação, representações específicas dos jogadores (avatares) não apenas intensificam a relação entre os jogadores e o espaço da enunciação, como destaca a definição de incorporação proposta por Calleja (2011), mas também informam cada jogador sobre os demais, no contexto do mundo do jogo. Finalmente, jogadores presentes em um mesmo espaço físico costumam interagir diretamente, sem mediação do mundo do jogo.

 

 

Nos jogos multiplayer online (Figura 5), os jogadores estão em espaços materiais diferentes, e não podem compartilhar as interfaces de output[5]. Todos os ciclos de interação convergem para o mesmo espaço imaginado, mas os espaços de enunciação se multiplicam, existe agora um em cada local de jogo. O ponto de vista do mundo do jogo pode ser adaptado para cada jogador e cada um pode ter acesso a informações diferentes. Assim como nos jogos presenciais, os jogadores não interagem apenas através seus avatares, mas também utilizam suas identidades externas ao jogo, através de canais internos ou externos ao espaço imaginado.

 

 

Apesar de sua aparente complexidade, todos os diagramas representam um único ciclo de interação. Uma situação real de jogo é mais elaborada que isso: como foi dito, a agência é um processo dinâmico de negociação, composto de vários ciclos e loops de interação e interpretação entre o jogador e o sistema de jogo. Não se trata de uma série linear de ações e reações, uma após a outra, ou mesmo de eventos em paralelo. A agência é um processo fluido, no qual o jogador se relaciona com o espaço material, o espaço imaginado e o espaço da enunciação em arranjos complexos e em permanente mutação. A atenção converge para o espaço da enunciação, mas o fluxo através dos três tipos de espaço viabilizado pelas interfaces de hardware e software faz com que as fronteiras entre eles pareçam menos definidas do que realmente são.

Finalmente, é importante destacar que esses diagramas simplificados representam situações de jogo isoladas de um modo impossível. No mundo real, a experiência do game é afetada por muitas outras variáveis. Fatores cognitivos, culturais, geográficos e econômicos, por exemplo, alteram as relações de cada jogador com o jogo, definem seu repertório de experiências espaciais com outros medias e mesmo sua percepção espacial cotidiana. Entretanto, essa discussão está além do escopo deste texto.

Conclusão

Neste artigo, a experiência espacial do jogo foi analisada conforme um modelo teórico constituído por três categorias analíticas, ou tipos de espaço: ‘espaço imaginado’, que é o universo ficcional; o ‘espaço da enunciação’, que corresponde à representação em texto, imagem ou som, e o ‘espaço material’. A análise foi contextualizada em relação à experiência espacial dos outros medias, o que permitiu compreender a espacialidade dos games em termos de sua função mediática.

Para designar o diferencial dos games, recorreu-se ao entendimento da agência como um processo dinâmico e contínuo de trocas simbólicas entre o jogador e o sistema de jogo, sendo este composto pelo conjunto dos conteúdos e estrutura do mundo do jogo, suas representações em som, imagem e texto, os dispositivos tecnológicos utilizados para a interação e pelo corpo do jogador outros elementos do espaço material.

Uma breve revisão das características da representação perspectivada revelou semelhanças e diferenças entre os medias visuais que afetam a experiência espacial de cada um deles. As ideias de suspensão de descrença e de imersão revelaram-se mais refinadas que o sentido ingênuo que adquiriram em sua popularização, que é o da descorporificação do sujeito que atravessa os limites da representação para vivenciar o espaço imaginado desde dentro. Foram também discutidas outras propostas para entender a experiência espacial, voltadas especificamente para os games. Apesar de formulada para rejeitar a falácia da imersão, a “dupla consciência” termina por acomodá-la em uma concepção em que a experiência espacial do jogador oscila entre o espaço imaginado e o espaço material, desconsiderando o espaço da enunciação. Apesar de sua ampla adoção, a ideia de “fluxo” mostrou-se incipiente e inadequada, devido às suas bases Cartesianas. Uma específica noção de incorporação, anteriormente proposta na literatura dos estudos de games, reconhece a relevância do espaço da enunciação na interação do jogador com o espaço imaginado. Entretanto, como as demais, essa proposta não abarca as questões relativas à capacidade ficcional que, instituída ao longo de séculos, fornece a base interpretativa para as estratégias de representação dos medias, inclusive dos games.

Para analisar a experiência espacial dos games, um modelo teórico composto por três tipos de espaço foi aplicado a uma situação hipotética de jogo extremamente simplificada, representada por um esquema de troca de informações composto por um único ciclo de interatividade, iniciada pelo jogador. A multiplicidade de elementos que compõem o sistema de jogo revelou uma espacialidade composta de múltiplos ciclos de interações materiais e simbólicas fortemente entrelaçados, que é complexificada pelo caráter dinâmico e não linear da agência. Os trânsitos entre jogador e sistema de jogo percorrem e atravessam continuamente a materialidade, a imaginação e a representação. A experiência espacial do jogador resulta da composição complexa, dinâmica e fluida desses atravessamentos das fronteiras entre o espaço material, o espaço imaginado e o espaço da enunciação.

 

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Nota biográfica

Suely Fragoso é Ph.D. em Comunicação (The University of Leeds, Reino Unido, 1998), Mestre em Comunicação e Semiótica (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil, 1992), Arquiteta (Universidade de São Paulo, Brasil, 1987). Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), atua nos cursos de Pós-Graduação em Comunicação e Informação (PPGCom) e em Design (PGDesign) e no Curso de Graduação em Design Visual. Pesquisadora do Conselho Nacional para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq.

E-mail: suelyfragoso@ufrgs.br

Departamento de Design e Expressão Gráfica, Faculdade de Arquitetura, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Rua Sarmento Leite, 320, CEP 90-050-170, Porto Alegre, RS, Brasil

 

Financiamentos

Este trabalho apresenta resultados parciais de pesquisa apoiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq, com Bolsa de Produtividade em Pesquisa Nível 1D, Processo número 309023/2013-0.

 

* Submetido: 30-11-2014

* Aceite: 15-3-2015

 

Notas

[1]Os autores falam em “esquema narrativo”, entendendo por esquema “um pano e fundo que determina o que nós sabemos a respeito do mundo, dos objetos que ele contém, das tarefas que realizamos nele mesmo do que vemos” (Douglas e Hargadon, 2004: 194)

[2]O Cartesianismo é explícito, por exemplo, quando Csikszentmihalyi diz “evidentemente meu próprio self existe apenas em minha consciência” (Csikszentmihalyi, 2008: 34).

[3]Portanto é o processador, e não a interface, que realmente realiza a tradução entre os diferentes tipos de espaço. Entretanto, as traduções realizadas no nível do processador não são perceptíveis para o jogador e portanto só têm impacto na sua experiência espacial depois de serem traduzidas pelas interfaces. No que diz respeito à experiência do jogador, que é o tema deste texto, tudo se passa como se fossem as interfaces as tradutoras entre os três tipos de espaço.

[4]Não há consenso se (ou quanto) o nível de integração entre os elementos da interface e o mundo do jogo interfere na experiência do jogador (Wilson, 2006; Llanos & Jørgensen, 2011; Fragoso, 2014).

[5]Os fatores acrescentados à situação inicial evocam os cinco cinco planos propostos por Nitsche (2008) para a análise dos espaços dos games. As semelhanças refletem a abordagem fenomenológica, que é comum aos dois trabalhos. Já as diferenças resultam das distinções entre os objetivos que orientam os dois textos.

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