SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.27Comunicação nos videojogos: nota editorialUm advergame para browser como catalisador da comunicação: tipos de comunicação em jogos de vídeo índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Comunicação e Sociedade

versão impressa ISSN 1645-2089versão On-line ISSN 2183-3575

Comunicação e Sociedade vol.27  Braga jun. 2015

https://doi.org/10.17231/comsoc.27(2015).2086 

COMUNICAÇÃO, TEORIA DOS VIDEOJOGOS E DIÁLOGOS (INTER)MEDIÁTICOS

Isto é um jogo de vídeo: jogos de vídeo, autoridade e metacomunicação

This is video game play: video games, authority and metacommunication

 

Riccardo Fassone*

*Universidade de Torino - Itália

riccardo.fassone@unito.it

 

RESUMO

Gregory Bateson defende que todos os atos do jogo devem ser compreendidos sobretudo como sendo metacomunicativos. Por outras palavras, jogar um jogo pressupõe ser capaz de transmitir e de receber a metamensagem “isto é um jogo”, que define um enquadramento psicológico entre os jogadores. Neste trabalho, proponho uma leitura radical da teoria de Bateson no contexto dos jogos de vídeo. Em particular, procuro analisar as características, as especificidades e as implicações da mensagem “isto é um jogo de vídeo”. Irei argumentar que a linguagem específica através da qual os jogos de vídeo veiculam esta mensagem é a das suas regras, as limitações inevitáveis colocadas pela sua natureza computacional e digital. Por outras palavras, jogar um jogo de vídeo é sempre, pelo menos até determinado nível, jogar um jogo de metacomunicação com, contra e em termos das regras predefinidas do jogo de vídeo. Finalmente, proponho uma leitura atenta do jogo Papers, Please para argumentar que o trabalho de Pope se imbui de uma leitura significativa da reflexividade inerente dos jogos de vídeo, retratando intencionalmente a sua natureza oficial e o seu potencial comunicativo.

Palavras-chave: Bateson; autoridade; processualidade; regras; metacomunicação.

 

ABSTRACT

Gregory Bateson claims that all play acts should be primarily understood as meta-communicative. In other words, playing a game implies being able to transmit and receive the meta-message ‘this is play’, which establishes a psychological frame among the players. I will propose a radical reading of Bateson’s theory in the context of video games; specifically, I will attempt at analysing the characteristics, specificities and implications of the message ‘this is video game play’. I will contend that the specific language through which video games convey this message is that of their rules, the inescapable limitations posed by their computational and digital nature. In other words, playing a video game is always, at least to a degree, playing a game of metacommunication with, against and around a video game’s hard-coded rules. Finally, I will propose a close reading of the game Papers, Please and contend that Pope’s work engages in a significant reading of the inherent reflexivity of video games, deliberately portraying their authoritative nature and communicative potential.

Keywords: Bateson; authority; procedurality; rules; metacommunication.

 

Isto é um jogo

Entre dezembro de 1952 e abril de 1954, Gregory Bateson realizou um estudo sobre o comportamento das lontras no Fleishacker Zoo, em San Francisco, Califórnia. A sua investigação foi documentada em duas publicações (Bateson, 1956; Bateson, 1972) que descreveram a teoria de Bateson da brincadeira e do jogo como metacomunicação. Ao observar as lontras, Bateson concluiu que, para poderem brincar umas com as outras com o papel que colocou na jaula, os animais tinham de ser capazes de metacomunicação, ou seja, de trocar e processar a mensagem “isto é brincadeira”. Para as lontras compreenderem a diferença entre uma mordidela brincalhona e uma mordidela agressiva, uma metamensagem tem de integrar cada uma das ações. Estas mensagens pertencem à classe daquilo que Bateson descreve como mensagens metacomunicativas. Segundo Bateson

a comunicação verbal humana pode funcionar e funciona sempre em muitos níveis contrastantes de abstração. Estes níveis oscilam em duas direções a partir do aparentemente simples nível denotativo (“The cat is on the mat”). Uma gama ou conjunto destes níveis mais abstratos inclui as mensagens explícitas ou implícitas cujo tema do discurso é a língua. A estes níveis chamaremos metalinguísticos (por exemplo, “O som verbal “cat” representa qualquer membro de tal e tal classe de objetos”, ou “A palavra “cat” não tem pelo e não pode arranhar”). Ao outro conjunto de níveis de abstração chamaremos metacomunicativo (por exemplo, “O facto de eu dizer onde estava o gato foi simpático” ou “Isto é um jogo”). Nestes, o tema do discurso é a relação entre os falantes (Bateson, 1972: 177-178).

As mensagens metacomunicativas estabelecem uma forma de comunicação bastante sofisticada que cria um enquadramento psicológico temporário no âmbito do qual se inscrevem todas as mensagens subsequentes. Nesta perspetiva, a mordidela brincalhona das lontras, quando inscrita no enquadramento “isto é jogo” “denota a mordidela, mas não denota o que seria denotado pela mordidela” quando executado fora desse enquadramento. A mordidela brincalhona representa a mordidela, alude a ela, mas, no entanto, ao ser inscrita no quadro estabelecido pela mensagem particular “isto é jogo”, não denota agressão. A ideia de jogo de Bateson, estando cercada por um enquadramento preciso que reorienta temporariamente todas as mensagens trocadas entre jogadores, parece estar em sintonia com a noção amplamente discutida de círculo mágico apresentada por Huizinga (1955) e adotada por estudos de jogos e de jogo como um dos pontos centrais de debate da área (Salen & Zimmerman, 2003; Juul, 2008; Consalvo, 2009; Zimmerman, 2012). Apesar de aparentemente convergente, a noção de círculo mágico de Huizinga e o enquadramento de Bateson referem-se a duas compreensões radicalmente diferentes do ato de jogar. Ao apresentar a sua teoria relativamente à separação do jogo, Huizinga afirma:

A arena, a mesa de jogos, o círculo mágico, o templo, o palco, o ecrã, o court de ténis, o tribunal, etc., são todas recreios, em forma e em função; ou seja, locais proibidos, isolados, condicionados, santificados, no qual se aplicam regras especiais. Todos eles são mundos temporários dentro do mundo comum, dedicados à representação de um ato separado (Huizinga, 1955: 10).

O círculo mágico de Huizinga é definido por uma delineação de uma área consagrada — “materialmente ou idealmente” (Huizinga, 1955: 10) — ao ato de jogar. Na teoria de Huizinga, o jogo é um ato encapsulado num mundo ad-hoc, talhado a partir da vida comum. Note-se que o círculo mágico de Huzinga “retrata um quadro social” (Schrank, 2014: 63), ou, mais radicalmente, compreende o jogo como um dos lados de uma dualidade socialmente construída entre a recreação e a vida produtiva, o trabalho e o lazer. A proposta teórica de Bateson, por outro lado, perspetiva o jogo como estando inscrito num quadro predominantemente psicológico e, por conseguinte, comunicativo. Para Bateson, jogar não significa esculpir um círculo sagrado a partir da vida “comum”, mas antes comprometer-se com uma forma específica de metacomunicação na qual a mensagem “isto é jogo” influencia e informa uma série de outras mensagens, reconfigurando o seu estado denotativo.

Embora a ideia de jogo de Huizinga, em consistência com o ethos moderno subjacente ao Homo Ludens, descreva uma demarcação bem delineada entre o jogo e o trabalho, o pensamento de Bateson sobre o jogo é, nas palavras do próprio homem, “uma trapalhada” (1972: 19). Bateson qualifica a sua teoria como sendo paradoxal, uma vez que o pressuposto no qual assenta para definir a metamensagem trocada com os jogadores – “Estas ações, com as quais agora nos comprometemos, não denotam aquilo que seria denotado pelas ações que estas ações denotam” (1972: 180) — possui uma falácia lógica: o verbo “denotar” é utilizado duas vezes em dois graus de abstração, mas as suas utilizações são tratadas como sendo sinónimas. Embora neste artigo não possa aprofundar as complexidades lógicas do paradoxo (ver Jayemanne, 2005 e Engler & Gardiner, 2012 para uma análise aprofundada da questão), deverá ter-se em conta que, realçando a natureza paradoxal da sua teoria, Bateson qualifica-a conscientemente como não taxionómica. Aquilo que Bateson propõe não é uma definição sólida e rígida de jogo, mas uma tentativa de construir o jogo como um tipo particular de enquadramento comunicativo, mais do que um fenómeno reconhecível, e, simultaneamente, uma aceitação da natureza autorreferencial, paradoxal [1] desse enquadramento. Nas palavras de Nachmanovitch, um dos comentadores mais críticos de Bateson:

O jogo é fácil de reconhecer, mas impossível de definir. Podemos tentar defini-lo, mas as nossas definições serão desajeitadas, inadequadas e circulares. Isto porque o jogo é sobre definição. É meta para as atividades “comuns” como agredir ou beijar, mas, sobretudo, é meta para a atividade de definir. Ao jogar, alteramos fluidamente as definições das coisas: o pedaço de borracha é uma espada, a espada é um pénis, e assim sucessivamente (2009: 15).

Nachmanovitch realça uma das mais úteis e inovadoras características da leitura do jogo de Bateson: ao constituir-se como uma metamensagem trocada entre jogadores — humanos ou animais —, reformula automaticamente todas as outras mensagens e sinais. Um pedaço de borracha pode tornar-se uma espada exatamente porque o enquadramento do jogo permite uma alteração da denotação: neste enquadramento, todas as mensagens (por exemplo, “isto é um pedaço de borracha”) são complementadas por uma metamensagem (“isto é jogo”) que transforma o seu estado denotativo (“isto é um pedaço de borracha que representa uma espada”).

Neste artigo, irei tentar analisar a mensagem “isto é jogo de vídeo”, discutindo o enquadramento específico que cria em torno da prática de interagir processualmente com outros softwares. Em consonância com o trabalho de Bateson sobre o jogo, não concluirei com uma definição de brincadeira de jogo de vídeo; antes, tentarei propor uma hipótese sobre aquilo em que consiste a brincadeira do jogo de vídeo.

Jogo aberto e fechado

As teorias de jogo do século XX são particularmente dispersas e idiossincráticas; é possível encontrar abordagens críticas ao jogo humano no trabalho de filósofos (Fink, 1988; Gadamer, 2004), antropólogos (Geertz, 1973), sociólogos (Caillois, 2001) psicólogos (Piaget, 1999; Vygotsky, 1966) e outros proeminentes estudiosos interdisciplinares. Apesar da diversidade de abordagens e ferramentas teóricas adotadas no estudo do jogo, para efeitos deste artigo as teorias do jogo e os jogos podem ser divididos genericamente em duas grandes famílias. Por um lado, as teorias que defendem o “jogo aberto” perspetivam a atividade lúdica como sendo libertadora, criativa e espontânea. Bernie DeKoven (2002), por exemplo, chega a uma destas conclusões no seu trabalho com o New Games Movement (Flugelman, 1976), um coletivo artístico que surgiu da cena contracultural da costa ocidental americana que tinha como objetivo contrastar o paradigma dominante do jogo no desporto profissional e os jogos competitivos de forma livre, jogos paradoxais que destacavam a natureza criativa e irredutível do jogo. Estas teorias — cujos exemplos podem ser encontrados no trabalho de psicólogos como Winnicott (2005), bem como em textos imbuídos de ethos religioso pós-moderno, como o Finite and Infinite Games, de Carse (1986) — defendem que os jogos constituem uma reificação mais ou menos legítima do jogo, mais do que um habitat natural. Por outro lado, a retórica do “jogo fechado” perspetiva os jogos – considerados sobretudo como sendo regulados por atividades autotélicas ou paratélicas (Waern, 2012) — como suporte material do jogo. Segundo Suits (1978), por exemplo, o jogo consiste em procurar atingir um objetivo através de meios ineficientes: uma teleologia definitiva e uma referência precisa aos meios e às regras que confrontam abertamente a retórica do jogo aberto. Mais radicalmente, Gadamer (2004) descreve o jogo como um ato de submissão a um conjunto de regras, condensadas na entidade oficial designada jogo. Segundo Gadamer:

Isto sugere uma caraterística geral da natureza do jogo que se reflete ao jogar: todo o jogo implica ser jogado. A atração de um jogo, o fascínio que exerce, reside precisamente no facto de o jogo dominar os jogadores. […] O verdadeiro sujeito do jogo (tal é demonstrado precisamente nas experiências em que existe um único jogador) não é o jogador, mas sim o próprio jogo. Aquilo que prende o jogador no seu feitiço, que o atrai para o jogo, e que o mantém no próprio jogo (2004: 106).

Ao escrever sobre jogos, e não sobre jogo, Bateson parece sugerir um terceiro posicionamento, recorrendo mais uma vez à autorreferencialidade do ato de jogar. Na gravação de um simpósio publicada pouco depois da sua experiência com lontras, Bateson (1956) parece insinuar que o jogo livre — conforme observado com as lontras, com crianças pequenas ou mesmo na sua relação com os seus pacientes psiquiátricos — pressupõe a utilização de duas linguagens em simultâneo: a da comunicação denotativa (integrada nos atos de jogar) e a da metacomunicação (uma metadiscussão contínua acerca das fronteiras e das limitações do enquadramento do jogo). O jogo regulado — como o dos jogadores de xadrez adultos —, por outro lado, dissocia os dois, pelo que a metacomunicação acerca das regras do jogo (como devem ser supostamente deslocados os peões? O que é que significa xeque-mate? Vamos jogar com handicap?) decorre num momento diferente. Defendo que, devido à natureza exclusiva das regras existentes nos ambientes digitais, ao jogar um jogo de vídeo entra em funcionamento uma forma específica de metacomunicação. Antes de passar à análise deste conjunto de metamensagens é pertinente discutir o tipo de diálogo que é estabelecido entre o jogador e o computador.

Os jogos de vídeo precisam de computadores

Uma primeira definição, introdutória, daquilo que entendemos por jogos de vídeo e qual o seu posicionamento comparativamente a outros jogos não computorizados poderia ser: os jogos de vídeo constituem uma categoria particular de jogos que necessitam de um computador para serem executados e jogados [2]. Apesar de admitidamente simplificada, esta definição pode ajudar-nos a clarificar algumas das especificidades do meio, respondendo a uma série de questões acerca daquilo que constituem os jogos de vídeo, e que são o tipo de relação que mantêm com o jogador. Os jogos de vídeo são jogos mantidos por uma máquina, que cria um ciclo cibernético repetitivo com aquela que com ela interage. A máquina está incumbida de estabelecer e de executar as regras do jogo, que se inscrevem no código nela alojado e que ela executa. Este ciclo comunicativo repetitivo entre um sujeito de interação humano e uma máquina é, muitas vezes, definido como interativo. Esta definição foi questionada diversas vezes por estudos de jogos por ser demasiado abrangente e pouco específica (Aarseth 1997; Moulthrop 2004); porém, a noção de computação interativa pode ser útil para realçar o tipo de mensagens trocadas entre o jogador e a máquina. Paul Dourish (2001) propõe uma cronologia de interação que lhe permite esclarecer de que modo a história da computação pessoal moldou a forma como os utilizadores interagem com as máquinas, e de que modo diferentes estilos de interação têm informado a conceção dos meios computacionais. Segundo Dourish, esta história de 60 anos de interação pode ser dividida em quatro fases: elétrica, simbólica, textual e gráfica. Discutindo a fase textual da interação humano-computador, Dourish afirma:

Esta é, sem dúvida, a origem da computação “interativa”, uma vez que as interfaces textuais também ditaram o aparecimento do “loop interativo”, no qual a interação se tornou um vaivém interminável de instruções e respostas entre o utilizador e o sistema. […] A outra característica significativa do paradigma da interface textual é que trouxe para a discussão a ideia de “interação”. A interação textual assentou na linguagem mais explicitamente do que nunca, acompanhada, simultaneamente, por uma transição para um novo modelo de computação, no qual um utilizador passaria realmente a sentar-se em frente a um terminal de computador a introduzir comandos e a ler respostas. Com esta combinação de utilização da linguagem e interação direta, seria natural ver o resultado como uma “conversa” ou “diálogo” (Dourish, 2001: 10).

Ao caracterizar este modelo de interação como conversa ou diálogo, Dourish parece referir-se ao processo de limitação do ciclo de comando/resposta que envolve o utilizador e o computador. Enquanto antes da interação textual todos os comandos tinham de ser dados previamente à máquina, esta nova configuração tornou o diálogo comando/ resposta imediato. Por outras palavras, com o advento da interação textual, os utilizadores começaram a tratar mais radicalmente e mais profundamente o funcionamento cibernético dos computadores, tornando-se uma parte ativa num loop de retorno iterativo.

A possibilidade de os jogos de vídeo produzirem um loop cibernético em tempo real com os seus sujeitos de interação representa, também, um desafio para a semiótica. Que tipo de consistência e de estabilidade textual poderemos encontrar nos jogos de vídeo? Em que medida é que o jogo está ligado à interpretação e à hermenêutica? Em 1997, Espen Aarseth introduziu a noção de cibertexto; os cibertextos de Aarseth são uma categoria de textos — baseados sobretudo em meios digitais — que necessitam de ser pelo menos parcialmente atualizados pelo utilizador, que interage com o texto e, por sua vez, recebe retorno sobre o mesmo. O estudioso norueguês utiliza o I Ching, um texto do oráculo chinês, e o Calligrammes, de Apollinaire, como exemplos dos primeiros cibertextos analógicos, discutindo de seguida uma série de jogos de computador, como Adventure (William Crowther, 1976) e Lemmings (DMA Design, 1991), admitindo implicitamente que o ambiente de computador é inerentemente mais adequado à produção e consumo desse tipo de textos [3]. Aarseth descreve, depois, o tipo de relação estabelecida entre um cibertexto e o seu utilizador como sendo ergódica; Aarseth define o conceito do seguinte modo: “na literatura ergódica, é necessário um esforço não trivial para permitir ao leitor atravessar o texto” (Aarseth, 1997: 1, meu destaque). Ao definir o esforço do leitor como não trivial, Aarseth consegue separar um tipo de interação específico de uma compreensão mais genérica do termo. Para Aarseth, embora todos os textos exijam um esforço para serem atravessados, para que um texto seja considerado ergódico este esforço deve ser não trivial. Embora o ensaio de Aarseth seja, predominantemente, de natureza formalista e utilize categorias e taxonomias bem definidas, a sua noção de não trivialidade é, certamente, mais moderada e mais vaga. Segundo Aarseth:

[E]nquanto alguns sistemas de significação, com retratos pintados e livros impressos, existem apenas num nível material (isto é, o nível da tinta e da tela, ou da tinta e do papel), outros existem em dois ou mais níveis, como é o caso de um livro lido em voz alta (tinta-papel e as ondas sonoras da voz) ou da projeção de uma imagem móvel (a película e a imagem no grande ecrã). Nestes casos, a relação entre os dois níveis pode ser designada trivial, uma vez que a transformação de um nível para o outro (aquilo que poderíamos designar produção de signo secundário) será sempre, se não determinista, então pelo menos dominada pela autoridade material do primeiro nível (1997: 40).

Aqui Aarseth propõe uma separação entre o texto enquanto objeto existente em si mesmo (por exemplo, tinta e papel) e o texto como uma experiência atualizada (por exemplo, um romance lido em voz alta). Enquanto a leitura de um livro em voz alta constitui uma forma de interação trivial com um texto, a realização de um jogo de aventuras gráfico exige ao utilizador que concorra ativamente contra o texto, posicionando-se a si mesmo como abertamente relutante. A ideia de Aarseth de interação não trivial permite-nos definir aquilo que transforma os mecanismos computacionais em jogos mediados por computador. A interação lúdica com um computador, por outras palavras, constitui um tipo de prática na qual o jogador joga contra o seu parceiro computorizado, que funciona como uma entidade relutante. Ao interagir com um jogo de vídeo, o jogador necessita de realizar uma série de atos cognitivos simultâneos. Como referido por Arsenault e Perron (2009), jogar jogos de vídeo comporta uma leitura hermenêutica do jogo, executada com o intuito de descodificar os seus estímulos semióticos e uma explicação heurística que exige ao jogador que se contraponha ativamente ao antagonismo do jogo.

As leis dos jogos de vídeo

A definição operacional de jogo de vídeo que propus levou-me a concluir que um entendimento muito primitivo de jogar jogos de vídeo poderia ser o seguinte: jogar um jogo de vídeo significa interagir com um sistema processual computorizado que exerce uma força antagonista sobre o utilizador. Para abordar a questão do enquadramento específico estabelecido pela metamensagem “Isto é um jogo de vídeo” é necessário discutir a natureza e a dimensão do antagonismo exercido pelo jogo sobre o jogador. Como referi anteriormente, as regras dos jogos de vídeo estão integradas no código executado pela máquina anfitriã; por outras palavras: “la machine s’occupe du respect des règles, des calculs nécessaires et assure ainsi une forme d’objectivité ou de neutralité du terrain de jeu. […] L’univers du jeu prend corps à travers la logique de la machine” (Triclot, 2011: 33). Estas regras predefinidas regulam, quer os traços sistémicos, como é o caso da física que se encontra no ambiente artificial proporcionado ao jogador ou o modo como a luz se reflete nas diferentes superfícies, quer as estatísticas específicas do jogo, como a resistência de um determinado personagem ou a sucessão de vez num jogo de estratégia na vida real. Cada um dos aspetos do funcionamento interno do jogo é comandado pelas regras inscritas no código do jogo, o que leva estudiosos como Liebe (2008) a defender que os jogos de vídeo não possuem regras no sentido tradicional, uma vez que aquilo que poderia ser considerado uma regra num jogo analógico é meramente um subconjunto de um conjunto mais vasto de operações da máquina na lógica computacional dos jogos de vídeo. Segundo Liebe

No jogo de computador, todas as ações possíveis são implementadas no código de programação (formal). Consequentemente, a natureza restritiva das regras não se aplica aos jogos de computador, nesse sentido; como as possibilidades de ação têm de ser primeiro fornecidas pelo programa do jogo de computador para poderem ser executadas.

Enquanto nos jogos tradicionais os jogadores podem improvisar espontaneamente utilizando o material do jogo e, potencialmente, fazer muito mais do que as regras do jogo permitiriam, nos jogos de computador o jogador não pode fazer absolutamente nada se as regras e o espaço do jogo não tiverem sido definidas no software (2008: 337).

Nos jogos de vídeo, as regras são definitivas e inalteráveis. Ou, como diria Bateson, não estão sujeitas a qualquer operação metalinguística; os jogadores não possuem forma de discutir as regras fora dos espaços configurativos permitidos pelo código. Num jogo de vídeo como o FIFA 14 (Electronic Arts, 2013), os jogadores podem configurar uma vasta série de opções — desde as condições meteorológicas até ao rigor do árbitro —, mas podem fazê-lo apenas no contexto da meta-regra representada pelo código do jogo. Os jogadores não poderão substituir os postes da baliza por uma pilha de t-shirts — como se poderia fazer num jogo de futebol entre amigos num parque — porque essa opção não existe no código. Do mesmo modo, nem mesmo o jogador mais transgressivo conseguirá colocar a Lara Croft a atravessar o limiar de um palácio veneziano no Tomb Raider 2 (Core Design, 1997). Com base nestes pressupostos, DeLeon afirma que as “[r]egras dos jogos de computador são mais como uma espécie de leis da física, enquanto as regras dos jogos que não são de computador são mais como uma espécie de regras da sociedade” (2013: 1), sugerindo que as regras predefinidas de um jogo de vídeo não podem ser discutidas no âmbito do jogo (embora possam ser alteradas modificando o código), enquanto as regras nos jogos que não são de computador possuem o potencial de alterações iterativas.

Caraterizar as regras dos jogos de vídeo como sendo definitivas e vinculativas – a ponto de se questionar a sua natureza como regras e de recorrer à ideia de leis — constitui uma das principais demonstrações daquilo que se poderia designar uma teoria perturbadora de jogos de vídeo. Por outras palavras, a situação na qual os seres humanos jogam com (ou contra) máquinas computorizadas produz um tipo específico de assimetria: um dos dois jogadores — a máquina — é responsável por manter e executar todas as regras do jogo, enquanto o outro — o jogador — é sujeitado a estas regras e não pode executar quaisquer operações metalinguísticas relativamente à linguagem do jogo[4]. O caráter excecional desta situação comparativamente ao “jogo tradicional” foi suscitado, entre outros, por estudiosos associados à escola teórica do processualismo. Segundo os processualistas, os processos de construção de significado estimulados pela interação com os jogos de vídeo resultam do confronto entre as regras e os limites predefinidos do jogo e a compreensão subjetiva dessas regras pelo jogador. Por outras palavras, os processualistas reconhecem a assimetria inerente aos jogos de vídeo e localizam o potencial expressivo proporcionado pelos jogos de vídeo ao designer e a agência hermenêutica concedida aos jogadores no âmbito da própria desigualdade que é imposta ao jogar com base em regras inalteráveis. O trabalho de Ian Bogost (2006; 2007) afasta-se deste pressuposto, de modo a compreender de que modo os jogos de vídeo podem veicular sentido através de regras e procedimentos. Bogost define configuração como as operações que o jogador executa no âmbito do ambiente processual de um jogo de vídeo. Por outras palavras, segundo Bogost defrontar-se com um meio processual significa escolher quais os procedimentos que é necessário atualizar regularmente, ou, recorrendo à terminologia de N. Katherine Hayles (1999), identificar um padrão subjetivo na aleatoriedade. Ao evocar a subjetividade como traço distintivo de jogar, Bogost refere-se ao facto de que jogar um jogo de vídeo significa aproximar-se “da miríade de configurações que o jogador pode construir para ver os modos de funcionamento dos processos inscritos no sistema” (2007: 42). Uma leitura mais radical desta assimetria comunicativa é proposta pelo estudioso dos media alemão Claus Pias (2011), que defende que “[um] programa de jogo constitui, assim, não só um conjunto de instruções, um tipo de código jurídico aplicável ao mundo do jogo específico, que tenho obrigação de observar quando me encontrar na companhia de computadores, mas, simultaneamente, um agente policial que monitoriza precisamente as minhas ações” (Pias, 2011: 179). Para Pias, não existe algo como um jogo de computador “aberto”, uma vez que, ao nível material do código, não é possível executar determinadas ações no ambiente fornecido pela máquina. O que é interessante é que o discurso de Pias transfere a localização da proximidade inerente dos jogos de computador da sua natureza processual para a sua natureza computacional. Os jogos de computador são fechados, não porque as suas regras são vinculativas e definitivas, mas antes, e de forma mais radical, porque a plataforma que as executa mantém inflexivelmente as operações de um código, o material por excelência do qual são feitos os jogos de computador. Por outras palavras, “[o]s jogos de computador são um apelo a favor da intransigência material do betão dos ‘jogos’” (Pias 2011: 181). Embora não seja processualista por qualquer esforço de imaginação, Pias valida indiretamente a teoria segundo a qual o ato de jogar um jogo de vídeo deveria ler-se como um ato de jogar com e contra um conjunto inflexível de regras, em vez de apesar delas.

Isto é um jogo de vídeo

O relato de Bateson da dissociação do jogo e da metacomunicação nos jogos regulados parece aludir a um processo de empobrecimento de que a rigidez das regras age sobre o enquadramento do jogo. Por outras palavras, quanto mais o jogo for constringido num jogo institucional, menos relevante e eficaz se torna o enquadramento metacomunicativo. As lontras a jogar com um pedaço de papel precisam de renegociar constantemente as fronteiras e os limites do enquadramento psicológico definidas pela mensagem “isto é um jogo”, enquanto os jogadores de xadrez agem num enquadramento rígido que exige pouca negociação. Esta interpretação do posicionamento de Bateson sobre jogos e o jogo pode levar-nos a concluir que os jogos de vídeo não possuem qualquer jogo, uma vez que as suas regras não são negociáveis e a potencial construção de um enquadramento psicológico suportado pelo jogador humano poderiam ser anulados pela rigidez do seu antagonista digital. No entanto, defendo que uma metamensagem como “isto é um jogo de vídeo” é criada, não apesar, mas devido à natureza particular das regras do jogo de vídeo. Mais especificamente, defendo, com Nachmanovitch, que, uma vez que jogar é sempre “meta de” (Nachmanovitch, 2009: 15) algo, jogar um jogo de vídeo é meta de, ou sobre, autoridade e burocracia. Por outras palavras, embora a rigidez das regras do jogo de vídeo pareça anular a possibilidade de um enquadramento psicológico semelhante ao do jogo livre, no âmbito do qual a denotação flutua constantemente, argumento que a mesma rigidez é objeto de um metadiscurso contínuo sobre autoridade na qual os jogos de vídeo estão enredados. A mensagem “isto é um jogo de vídeo” pode significar apenas “agora estamos a jogar com autoridade”.

Nos seus livros Persuasive Games, Ian Bogost (2007: 5-7) apresenta um caso no qual a natureza vinculativa dos processos computacionais é evidente. Bogost oferece o caso de alguém que compra um leitor de DVD e que o devolve à loja depois de terminar o período de garantia. Embora numa loja os funcionários humanos possam decidir prolongar arbitrariamente o período de garantia de modo a evitar confusões ou com a intenção de oferecer um serviço melhor, um agente computorizado — por exemplo o sistema de devolução e reembolso de um vendedor online — aplicará os seus procedimentos computorizados e recusará o reembolso do produto. Bogost afirma que os sistemas computorizados funcionam como burocratas impassíveis que aplicam aquilo que Weber definiu como a “jaula de ferro” (Weber, 1930: 181) da burocracia, uma máquina mecanizada racionalista que exerce o seu poder através de procedimentos. Bogost conclui o seu relato sobre os procedimentos vinculativos argumentando que é possível aplicar formas de design centradas no ser humano de modo a alargar o jugo da burocracia digital. A título de exemplo, Bogost especula que

o sistema computorizado também pode aceder às compras anteriores do cliente, abdicando da política de corte no caso de clientes frequentes. Poderia, inclusivamente, considerar as futuras compras do cliente com base num modelo previsível de hábitos de compra futuros de clientes semelhantes. Pensamos nos computadores como sendo frustrantes, limitativos e simplistas, não porque executam processos, mas porque são frequentemente programados para executar processos simplistas. (Bogost, 2007: 7).

A utilização do conceito Weberiano de jaula de ferro por Bogost é central, uma vez que implica a natureza fechada dos sistemas processuais. O sistema de reembolso e de devolução do vendedor online pode ser alargado, de modo a incluir mais procedimentos centrados no ser humano, mas a sua natureza fechada de garante e de executor de regras mantém-se. A jaula de ferro ficará, apenas, ligeiramente maior. Nas palavras de Weber, a mudança está “na intensidade da administração” (Weber, 1946: 212), não na sua natureza. Embora o argumento de Bogost de que um design mais moderado dos processos computacionais associados às tarefas mundanas tornaria a nossa relação com a tecnologia menos irritante seja, é claro, válido, dever-se-ia perguntar se é precisamente a sua natureza vinculativa que torna os jogos de vídeo objetos jogáveis. Ou, mais uma vez com Weber, é possível especular que jogar jogos de vídeo decorre da tomada de consciência de um confronto assimétrico, no qual “[a] estrutura burocrática se encontra aliada à concentração dos meios de gestão materiais nas mãos do senhor” (Weber, 1946: 221).

Os jogadores de jogos de vídeo desempenham atividades divertidas com e em sistemas processuais. Conforme referido por Murray (1997) e Bogost (2006), a processualidade não é exclusiva dos jogos de computador; a maioria dos meios computacionais pedem aos sujeitos da interação para iniciarem ou responderem a diferentes processos. A navegação num caixa multibanco ou num website de comércio eletrónico faz-se seguindo uma sucessão de procedimentos, com base em regras precisas. Aquilo que os jogos de vídeo fazem é reposicionar estes processos como divertidos ou, para sermos consistentes com a terminologia de Aarseth, como não triviais. Embora, nas palavras de Pias (2011) e de outros teóricos dos media esta afinidade entre os artefactos computacionais do dia a dia e os jogos de vídeo sejam retratados como uma ferramenta destinada a construir um jogador totalmente subserviente, que cumpre a sua obrigação, defendo que interagir criticamente através do jogo com os mesmos processos que comandam grande parte das nossas vidas é uma atividade complexa e heuristicamente relevante, que pode, de facto, constituir aquilo em que consiste jogar jogos de vídeo. Se o jogo for sempre sobre algo, ou, antes, for parte de um enquadramento psicológico que o torna meta para outras atividades, poderíamos argumentar que utilizar de forma divertida os jogos digitais significa construir um enquadramento em torno da jaula de ferro da burocracia digital. Se a mordidela brincalhona denota a mordidela, então a subserviência divertida aos processos computacionais denota a — e, simultaneamente, refere-se à — interação quotidiana com a autoridade burocrática das máquinas compucationais. Nesta perspetiva, o jogador de um jogo de vídeo, possivelmente mais do que o teórico, é ele próprio um crítico processual, que percorre e interpreta conjuntos de regras arbitrárias mantidas por um sistema computacional que age, muitas vezes, por oposição às suas ações. Embora a maioria dos jogos de vídeo procure naturalizar esta interação, construindo mundos abertos, aparentemente desligados, em última instância os jogadores irão defrontar-se — acidental ou intencionalmente — com as limitações desses mundos, exprienciando a autoridade do código do jogo. Ser um jogador de jogos de vídeo não consiste em explorar um espaço de possibilidades, conforme defendido por alguns daqueles que propuseram uma teoria de jogo aberto, mas antes em explorar as impossibilidades de um sistema desenhado, com as suas fronteiras e os seus limites, com as idiossincrasias das suas regras, de modo a jogar com — e sobre — a autoridade. É exatamente esta autoridade que os jogadores dos jogos de vídeo — possivelmente os verdadeiros ludologistas — optam conscientemente por defrontar.

Jogos de vídeo mais recentes como o Every Day The Same Dream (Molleindustria, 2009) e Papers, Please (Lucas Pope, 2013), apresentando ambientes altamente burocratizados para os jogadores percorrerem e com eles interagirem, parecem representar comentários acerca do papel do jogador como sujeito de interação de uma máquina autoritária. No parágrafo que se segue, proponho uma leitura do jogo de Pope que realça a sua auto-reflexividade e que a carateriza, não só como uma reflexão crítica sobre a violência inerente à burocracia, mas, mais especificamente, como um comentário sobre o próprio ato de jogar um jogo de vídeo.

Papers, please: um meta-jogo

Papers, Please é um jogo de vídeo independente para Windows e Mac OS desenhado por Lucas Pope e lançado em agosto de 2013. O jogo coloca o jogador no papel de um agente alfandegário responsável por proteger uma das fronteiras da república ficcional de Arstotzka. Papers, Please encontra-se dividido em duas partes: a parte central do jogo consiste em analisar e verificar documentos apresentados por potenciais imigrantes ao atravessarem a fronteira. Esta atividade é executada pelo jogador durante o dia útil, uma secção temporizada do jogo que termina abruptamente no final do turno do jogador. Após cada dia útil, é exigida ao jogador a gestão das suas finanças. O jogador recebe cinco créditos por cada imigrante que consiga processar com êxito, podendo, depois, utilizar a moeda para concretizar uma série de tarefas triviais: comprar comida e medicamentos para a família, pagar a renda e outras contas e melhorar o seu gabinete. O jogador também pode recolher créditos através da prática de subornos e outras fontes de lucro ilícitas. O jogo foi programado com um estilo artístico cru bastante pixelizado e possui poucas pistas auditivas: uma marcha, em forma de hino, e uma série de murmúrios impercetíveis que representam frases concisas como “tenha os seus documentos à mão”, “viva Arstotzka!” e o epónimo “documentos, por favor” (“papers, please!”) que o jogador pede a cada potencial imigrante.

Segundo uma recensão ao jogo, “Papers, Please é sobre liberdade” (Edge, 2013). Mais especificamente, é sobre liberdade no contexto de uma sociedade altamente burocratizada, na qual o jogador funciona como uma pequena peça de um mecanismo implacavelmente burocrático. Se concordarmos com este argumento, a caraterização estética que Pope faz do jogo adquire uma relevância extrema: a república de Arstotzka é retratada inequivocamente como estando sujeita a um regime comunista. Da insígnia marcial ao hino bastante sombrio, do nome com sonoridade russa Arstotzka aos países vizinhos, passando pelos uniformes dos agentes alfandegários, os pormenores estéticos e contextuais parecem indicar que Pope posiciona Arstotzka por detrás da cortina de ferro. Embora a construção do jogo como uma crítica política da violência burocratizada dos regimes opressivos não seja injustificada, poderíamos contrapor que a falta de fatores contextuais históricos e a relativa simplicidade dos procedimentos simulados dão origem a uma orientação política bastante fraca. Quando entrevistado pela revista libertária “Reason”, o próprio Pope parece sugerir uma leitura diferente do seu jogo:

Sou um americano a viver no Japão e passo pela alfândega de aeroportos internacionais várias vezes por ano. Depois de o fazer algumas vezes, passei a prestar mais atenção àquilo que o inspetor da alfândega estava a fazer. A troca de papéis e a correlação de documentos/ecrã do computador pareceu-me interessante e pensei que isto poderia dar um jogo interessante. Pensando melhor, fiquei empolgado com a ideia de abordar este tema numa perspetiva não tradicional. Nos media populares, tínhamos sempre o herói a espiar os pontos de controlo, mas não seria fantástico interpretar o papel do tipo do lado de lá? Em vez de deixar o super-espião dar um passo em falso, pode ser aquele que o mete na cadeia (Shackford, 2013).

Pope refere-se a uma reversão de papéis: enquanto o herói comum dos jogos de vídeo está sozinho contra um exército de inimigos, o desinteressante funcionário administrativo de Papers, Please faz parte desse exército[5]. O jogo de Pope introduz aquilo que Foucault (1974) define como o processo de examen, a autoridade decorrente da monitorização, no âmbito da prática de jogar jogos de vídeo. Embora, normalmente, se peça aos jogadores para exercerem uma justiça mais ou menos arbitrária contra uma série de inimigos, o protagonista de Papers, Please gere um tipo de autoridade diferente: não o do castigo, mas o da monitorização. Enquanto os jogos de vídeo de ação dão, normalmente, poder ao jogador, com autoridade para punirem os seus inimigos (regra geral, matando-os), o jogo de Pope burocratiza o jogador, conferindo-lhe o poder de revistar os imigrantes. Assim, uma segunda abordagem hermenêutica, possivelmente mais interessante, ao jogo de Pope permite argumentar que Papers, Please é um reflexo do papel do herói nos jogos de vídeo e da sua relação com o poder e com o exercício de poder.

A ideia da reversão é central numa terceira hipótese interpretativa que, defendo, é a mais relevante para o trabalho de Pope. Papers, Please não é (ou não é apenas) um crítica às sociedades opressivas, altamente burocratizadas, nem uma reflexão sobre a agência do jogador, mas antes um jogo sobre jogar jogos de vídeo, que inverte o papel do jogador e da máquina. No jogo de Pope, tem de agir de forma tão precisa e eficiente quando possível. Quando os imigrantes abordam o seu gabinete e lhe entregam os seus documentos, o jogador tem de organizar os documentos na secretária de modo a permitir a comparação visual dos dados — possivelmente, o principal modo de interação em Papers, Please. Dia após dia, é pedido ao jogador para se conformar com as crescentes medidas de segurança que contribuem para uma multiplicação de documentos — bilhetes de identidade, passaportes, vistos de entrada, autorizações diplomáticas, etc. — que o obrigam a fazer malabarismos com papéis na sua secretária de modo a efetuar o processo de comparação. Um processo de desordem constante que se torna rapidamente uma das funções estéticas centrais do jogo. O jogador necessita de se adaptar rapidamente aos procedimentos em constante mutação e desenvolver modos de comparação que proporcionam respostas exatas e rápidas. Neste aspeto, o jogo parece conferir ao jogador dois conjuntos de operações distintos, que podem ser definidos, na terminologia de Wilden (1972), como analógicos e digitais. Depois de lhe serem entregues os documentos, o jogador pode executar uma série de ações analógicas, isto é, ações que não são inerentemente dualistas e discretas. O jogador pode optar por organizar a sua secretária de diversas formas, pode colocar o passaporte sob o carimbo de diversas formas, e pode devolver os documentos ao imigrante por qualquer ordem. O jogador também deve executar uma série de operações digitais, isto é, operações discretas que comportam as consequências de uma natureza dualista. Pode destacar uma discrepância, obrigar o imigrante a fornecer as suas impressões digitais, premindo um botão, e, finalmente, aprovar ou negar ao imigrante a entrada em Arstotzka. Embora as operações analógicas não provoquem quaisquer consequências relativamente ao estado do jogo (por exemplo, o jogador pode optar por carimbar a autorização de entrada em qualquer local do passaporte sem influenciar o resultado), as operações digitais são importantes para a progressão do jogo. O rendimento do jogador depende da avaliação correta da eligibilidade dos imigrantes e da correlação exata de dados constante dos seus documentos, através da função “analisar”, que permite ao jogador realçar excertos específicos de informações. Por outras palavras, o jogador parece operar no domínio analógico, mas é obrigado a tomar decisões digitais, inerentemente dualistas: aceitar ou rejeitar o pedido do imigrante, revistá-lo ou detê-lo. Por outro lado, os imigrantes controlados por computador apresentam uma vasta gama de comportamentos: alguns não apresentam quaisquer documentos, outros esquecer-se-ão de fornecer alguns deles, outros ainda tentarão subornar o jogador, enquanto outros tentarão traficar armas. Os personagens controlados por computador, normalmente definidos como personagens que não jogam, ou NPC, são paradoxalmente elencados como os jogadores do jogo da burocracia. A reversão de papéis referida por Pope parece ser ainda mais radical do que o autor admite. É atribuído ao jogador um papel que, não só é pouco habitual num jogo de vídeo, como também constitui o exato oposto do papel do jogador dos jogos de vídeo. Em Papers, Please, o jogador funciona como um computador, executando uma série de procedimentos simultâneos e integrados com base num conjunto de regras; é obrigado e agir digitalmente, exercendo uma forma de autoridade burocrática (ou seja, mantendo e aplicando um conjunto de regras) que anteriormente atribuímos aos procedimentos computacionais executados pelo computador. Por outro lado, os personagens computorizados simulam as peculiaridades e as idiossincrasias do comportamento humano, e agem contra ou em torno dessas mesmas regras. Podemos dizer, com Bateson, que, se um jogo de vídeo é sobre autoridade, Papers, Please é sobre a autoridade sobre a qual são os jogos de vídeo.

Conclusões

Neste artigo, propus uma aplicação da teoria de Bateson sobre o jogo à forma de jogo específica dos jogos de vídeo. Defendi que os jogos de vídeo exercem uma forma de autoridade específica sobre o jogador — a de uma burocracia digital sustentada por procedimentos computacionais — negando assim qualquer forma de diálogo metalinguístico. As regras, nos jogos de vídeo, não podem ser discutidas, negociadas ou alteradas na hora. Defendi que é precisamente esta rigidez que cria o jogo nos jogos de vídeo: jogar um jogo de vídeo significa confrontar, agir contra e refletir sobre a própria noção de autoridade, jogando assim com os sistemas e processos autoritários existentes na vida “real”. Finalmente, propus uma leitura do jogo de vídeo de Lucas Pope Papers, Please, que carateriza o jogo como meta-análise dos jogos de vídeo. Claramente, o jogo de Pope atribui ao jogador o papel de agente alfandegário que necessita de se adaptar à aprovação de novas leis, regras alfandegárias em constante mutação e alterações do cenário geopolítico. Representando procedimentos (em forma de um sistema burocrático paradoxalmente complexo), em vez de simplesmente os executar, Papers, Please externaliza o potencial crítico do papel do jogador nos jogos de vídeo. As metodologias e as ferramentas utilizadas neste artigo baseiam-se na tradição de processualidade, mas foram revistas à luz de uma compreensão dos jogos de vídeo como máquinas através das quais é possível jogar com, em torno e sobre a autoridade.

 

Referências

Aarseth, E. (1997) Cybertext. Perspectives on Ergodic Literature, Baltimore (MD): The Johns Hopkins University Press.

Anónimo (2013) “Papers, Please Review”, Edge , August 21, 2013, disponível em http://www.edge-online.com/reviews/papers-please-review/, data de acesso 25/04/2015.         [ Links ]

Arsenault, D., Perron, B. (2009) “In The Frame of The Magic Cycle: The Circle(s) of Gameplay” in Perron, B., Wolf, M.J.P. (eds.) (2009) The Video Game Theory Reader 2, New York (NY): Routledge, pp. 109-133.

Bateson, G. (1956) “The Message: ‘This is Play’’ in B. Schaffner (ed.) (1956) Group Processes; Transactions of the Second Conference, New York (NY): Josiah Macy, Jr.Foundation, pp. 145-242.

Bateson, G. (1972) [1955] Steps to an Ecology of Mind, San Francisco (CA): Chandler Publishing Co.

Bogost, I. (2006) Unit Operations. An Approach to Videogame Criticism, Cambridge (MA): The MIT Press.

Bogost, I. (2007) Persuasive Games. The Expressive Power of Videogames, Cambridge (MA): The MIT Press.

Caillois, R. (2001) [1958] Man, Play and Games, Chicago (IL): University of Illinois Press.

Carse, J.P. (1986) Finite and Infinite Games, New York (NY): Ballantine Books.

Consalvo, M. (2009) ‘There Is No Magic Circle’, Games and Culture, 4 (4): 408-417.         [ Links ]

DeLeon, C. (2013) “Rules in Computer Games Compared to Rules in Traditional Games” in Proceedings of DiGRA 2013: DeFragging Game Studies: 1-11.         [ Links ]

DeKoven, B. (2002) The Well-Played Game. A Playful Path to Wholeness, Bloomington (IN): iUniverse.

Dourish, P. (2001) Where the Action Is. The Foundations of Embodied Interaction, Cambridge (MA): The MIT Press.

Engler, S., Gardiner, M. (2012) “Re-Mapping Bateson’s Frame”, Journal of Ritual Studies, 26 (2): 7-20.         [ Links ]

Fink, E. (1988) “The Ontology of Play” in Meyer, K., Morgan, W. (eds.) (1988) Philosophic Inquiry in Sport, Champaign (IL): Human Kinetics, pp. 100-109.

Flugelman, A. (1976) The New Games Book, San Francisco (CA): The New Games Foundation.

Foucault, M. (1974) “A verdade e as formas juridicas”, Cadernos da P.U.C., 16: 5-133.         [ Links ]

Gadamer, H.G. (2004) [1960] Truth and Method, New York (NY): Continuum Press.

Geertz, C. (1973) The Interpretation of Cultures, New York (NY): Basic Books.

Hayles, N. K. (1999) How We Became Posthuman. Virtual Bodies in Cybernetics, Literature and Informatics, Chicago (IL): The University of Chicago Press.

Huizinga, J. (1955) [1938] Homo Ludens: A Study of The Play-Element in Culture, Boston (MA): Beacon Press.

Jayemanne, D. (2005) “The Nip and The Bite” in Proceedings of DiGRA 2005 Conference: Changing Views – Worlds in Play: 1-10.         [ Links ]

Juul, J. (2008) “The Magic Circle and The Puzzle Piece” in Günzel, S., Liebe, M., Mersch, D. (eds.) (2008) Conference Proceedings of the Philosophy of Computer Games 2008, Potsdam: University Press, pp. 56-67.         [ Links ]

Liebe, M. (2008) “There Is No Magic Circle. On The Difference Between Computer Games and Traditional Games” in Günzel, S., Liebe, M., Mersch, D. (eds.) (2008) Conference Proceedings of the Philosophy of Computer Games 2008, Potsdam: University Press, pp. 324-341.         [ Links ]

Moulthrop, S. (2004) “From Work to Play: Molecular Culture in The Time of Deadly Games” in Harrigan, P., Wardrip-Fruin, N. (eds.) (2004) First Person: New Media as Story, Performance and Game, Cambridge (MA): The MIT Press, pp. 56-71.

Murray, J. (1997) Hamlet on The Holodeck. The Future of Narrative in Cyberspace, Cambridge (MA): The MIT Press.

Nachmanovitch, S. (2009) “This Is Play”, New Literary History, 40(1): 1-24.         [ Links ]

Piaget, J. (1999) [1962] Play, Dreams and Imitation in Childhood, New York (NY): Routledge.

Pias, C. (2011) “The Game Player’s Duty: The User as Gestalt of the Ports” in Huhtamo, E., Parikka, J. (eds) (2011) Media Archeology. Approaches, Applications, and Implications, Los Angeles (CA): University of California Press, pp. 164-182.

Salen, K., Zimmerman, E. (2003) Rules of Play: Game Design Fundamentals, Cambridge (MA): The MIT Press.

Schrank, B. (2014) Avant-Garde Video Games: Playing with Technoculture, Cambridge (MA): The MIT Press.

Suits, B. (1978) The Grasshopper. Games, Life and Utopia, Toronto: University of Toronto Press.         [ Links ]

Triclot, M. (2011) Philosophie des Jeux Vidéo, Paris: Zones.         [ Links ]

Vial, S. (2013) L’être et l’écran: comment le numérique change la perception, Paris: Presses universitaires de France.         [ Links ]

Vygotsky, L. (1966) [1933] “Play and its Role in the Mental Development of the Child”, Voprosy psikhologii, 12(6): 62-76.         [ Links ]

Waern, A. (2012) “Framing Games”, Proceedings of DiGRA Nordic 2012 Conference: Local and Global – Games in Culture and Society: 1-14.         [ Links ]

Weber, M. (1930) [1905] The Protestant Ethic and The Spirit of Capitalism, London: Unwin Hyman.         [ Links ]

Weber, M. (1946) From Max Weber: Essays in Sociology, New York (NY): Oxford University Press.

Winnicott, D. 2006 [1971] Playing and Reality, New York (NY): Routledge.

Zimmerman, E. (2012) “Jerked Around by The Magic Circle. Clearing The Air Ten Years Later”, Gamasutra, 7 de fevereiro de 2012, disponível em http://www.gamasutra.com/view/feature/135063/jerked_around_by_the_magic_circle_.php, data de acesso 25/04/2015.         [ Links ]

 

Ludografia

Crowther, W. (1976), Adventure        [ Links ]

Molleindustria (2009), Every Day The Same Dream        [ Links ]

Electronic Arts (2013), FIFA 14 DMA Design (1991),         [ Links ] Lemmings Gualeni,         [ Links ] S. (2013), Necessary Evil Pope,         [ Links ] L. (2013), Papers, Please Core Design (1997),         [ Links ] Tomb Raider II        [ Links ]

 

Nota biográfica

O Doutor Riccardo Fassone é professor adjunto nas Universidades de Torino e Génova, em Itália. É um dos fundadores de G|A|M|E. Games as Art, Media, Entertainment. The Italian Journal of Game Studies. Os seus interesses de investigação incluem historiografia e história dos jogos, bem como as relações entre os jogos e outros media.

E-mail: riccardo.fassone@unito.it

Università degli Studi di Torino, Dipartimento di Studi Umanistici, Via Sant’Ottavio 20, 10124, Torino, Itália

 

* Submetido: 30-11-2014

* Aceite: 15-3-2015

 

Notas

[1] O próprio Bateson minimiza de forma divertida a qualidade paradoxal da sua teoria ao escrever que “tudo aquilo que aprendemos com essa crítica é que seria uma má história natural que os processos mentais e os hábitos comunicativos dos mamíferos fossem conformes ao ideal do lógico” (1972: 180).

[2] Aqui estou eu a utilizar o termo “computador” amplamente, referindo-me a uma série de máquinas controladas por um microprocessador, e, no caso dos primeiros jogos de arcada ou das consolas domésticas, máquinas baseadas em circuitos discretos.

[3] Stéphane Vial (2013) refere de forma elegante esta “afinidade” entre a cibertextualidade e os computadores como ludogénéité, ou seja, a adequação dos computadores para sustentar regras e procedimentos utilizados nos jogos.

[4] Note-se que esta teoria é aplicável sobretudo a jogos de um único jogador, uma vez que nos jogos de múltiplos jogadores são frequentemente observados os processos de negociação de sistemas emergentes de regras.

[5] Esta mesma abordagem ao design de jogos, que reverte o papel do jogador do herói conquistador idealizado para um inimigo desinteressante, encontra-se patente no jogo experimental de Stefano Gualeni, Espião Fora-de-Jogo (2013).

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons