SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.ser2 número14José Joaquim Vieira Godinho (1728-1804): um natural das Minas Gerais na Universidade de Coimbra. Contributos para uma biografiaJunta de Inspecção de Providências Contra a Peste: contributos para o estudo da administração da Saúde nas comarcas portuguesas no início do século XIX índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Cadernos do Arquivo Municipal

versão On-line ISSN 2183-3176

Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.14 Lisboa dez. 2020

 

DOSSIER TEMÁTICO

Dos “bons tempos” à “última era dos mártires”: as petições de Alexandre Herculano em favor dos frades e das freiras

From “good times” to “the last age of martyrs”: Alexandre Herculano’s petitions for friars and nuns

Eduardo Soczek Mendes*

*Eduardo Soczek Mendes, Departamento de Letras da UNICENTRO – Universidade Estadual do Centro-Oeste (Santa Cruz), CEP: 85015-450, Guarapuava, Paraná, Brasil. edu.soczek@gmail.com.

 

 

RESUMO

O processo de instalação do Liberalismo em Portugal foi paulatino e complexo, sendo que uma das mais importantes acções do Governo Liberal foi a extinção, em 1834, das ordens religiosas e confisco dos bens dos regulares. Mesmo tendo tomado partido pelo novo regime, Alexandre Herculano (1810-1877) redigiu dois opúsculos intercedendo pelos frades, “Os Egressos” (1842), e pelas monjas, “As freiras de Lorvão” (1853). São esses dois textos que escolhemos para a nossa análise neste estudo, sempre pensando no conjunto da obra de Herculano e em seu contexto. Para tanto, o diálogo com as propostas de Carlos Eduardo da Cruz (2010), Eduardo Lourenço (1992), Luís Machado de Abreu (2004), Manuel Clemente (1994) e Rute Rodrigues (2017) nos conduzirão, a fim de compreendermos o lugar de Herculano na conjuntura oitocentista em Portugal.

 

PALAVRAS-CHAVE

Alexandre Herculano / Anticlericalismo / Religiosos

 

ABSTRACT

The process of installing Liberalism in Portugal was slow and complex, and one of the most important actions of the Liberal government was the extinction, in 1834, of religious orders and the confiscation of the assets of the regular clergy. Even though he took sides with the new regime, Alexandre Herculano (1810--1877) wrote two pamphlets appealing to the friars, “Os Egressos” (1842), and to the nuns, “As freiras de Lorvão” (1853). It is these two texts that we chose for our analysis in this study, always thinking about the whole of Herculano’s work and its context. Therefore, the dialogue with the proposals of Carlos Eduardo da Cruz (2010), Eduardo Lourenço (1992), Luís Machado de Abreu (2004), Manuel Clemente (1994) and Rute Rodrigues (2017) will lead us, in order to understand Herculano’s place in the 19th century conjuncture in Portugal.

 

KEYWORDS

Alexandre Herculano / Anticlericalism / Religious

 

 

INTRODUÇÃO

Tratar das relações de Alexandre Herculano com o clero é uma seara vastíssima. Se levarmos em consideração a totalidade da obra de Herculano produzida em diferentes momentos – cartas, romances, narrativas de outros géneros, poemas, produção historiográfica, opúsculos – estaremos diante de um caudaloso rio, profundo e torrencial, por vezes mais largo e, em outros percursos, mais afunilado de referências diretas e indiretas ao clero. Em algumas rotas, esse rio também se abrirá em estrondosas quedas e enxurradas ruidosas de polémicas. E vejamos que estamos nos referindo a apenas um dos aspetos relacionados ao Catolicismo abordado na produção de Herculano: o clero. Se fôssemos verificar os tantos outros elementos de temática religiosa que compõem a escrita do autor, como, por exemplo, as menções aos ritos, as críticas aos dogmas e a intertextualidade com os textos bíblicos, estaríamos diante de um oceano de diversidades e pontos de vista. Exatamente por isso, ater-nos-emos mais especificamente a duas petições de Herculano pelos religiosos em Portugal após o decreto de Extinção das Ordens Religiosas (1834), que se deu no bojo da vitória dos Liberais sobre os Absolutistas: “Os Egressos: petição humilíssima a favor de uma classe desgraçada”, de 1842, e “As freiras de Lorvão”, esta última endereçada a António de Serpa Pimentel (1825-1900), em 1853. Para tanto, levaremos em consideração não apenas o material textual, mas também o contexto em que ambas as petições foram redigidas, já que distam, uma de outra, mais de uma década e, em 1850, Herculano se envolveria numa polémica com setores do clero.

Por outro lado, não podemos nos olvidar que o autor faz parte de um conjunto de intelectuais de um período. Em Portugal, por exemplo, Almeida Garrett (1799-1854), Camilo Castelo Branco (1825-1890), Eça de Queirós (1845-1900) e Guerra Junqueiro (1850-1923), cada um a seu modo, se aprofundaram em assuntos anticlericais. Em França, Denis Diderot (1713-1784) e Victor Hugo (1802-1885) e, no Brasil, a título de curiosidade, Manuel Antônio de Almeida (1830-1861) também tematizaram o anticlericalismo em suas obras. Alexandre Herculano é, certamente, um pensador de seu tempo, em que a discussão anticlerical estava na ordem do dia e, conforme averiguaremos, não é espantoso que, de facto, estivesse.

Para melhor analisarmos os dois textos – que não são de lavra ficcional-literária –, abordaremos, na próxima secção, o contexto da implementação do sistema liberal em Portugal, que foi complexo e nem sempre seguiu uma linearidade ideológica. Obviamente, não pretendemos esgotar, em poucas linhas, um acontecimento tão cheio de nuances, mas o nosso objetivo primeiro é o de pavimentar o caminho para as análises que devem seguir em outra secção deste estudo. Para tanto, as propostas, sobretudo, de Carlos Eduardo da Cruz (2010), Eduardo Lourenço (1992), Luís Machado de Abreu (2004), Manuel Clemente (1994) e Rute Massano Rodrigues (2017) hão de nos auxiliar para entendermos o período em que Alexandre Herculano se insere e sobre o que produz. Por isso, dialogaremos, ainda que en passant, com outras obras do autor, a fim de procurar inter-relações e articulações entre os seus textos.

 

SOB O SIGNO DAS REVOLUÇÕES

PORTUGAL, ALEXANDRE HERCULANO E O ANTICLERICALISMO

Assertivamente, Carlos Eduardo da Cruz assim propõe:

Quando alguém se debruça sobre o período liberal em Portugal, […] fica um pouco confuso com a postura de certas figuras daquela época, que uma hora parecem inclinar-se para um lado, para pouco depois assumir posição diversa. Afinal, a primeira metade do século XIX em Portugal foi profusa em revoltas, revoluções, golpes e pronunciamentos, numa constante batalha entre a sociedade antiga, absolutista, e a liberal, constitucional, na qual também concorriam doutrinas e ideias diversas sobre qual seria a melhor forma de liberdade para o país1.

De facto, é preciso recordar que “Portugal é, de 1808 a 1820, um país invadido, emigrado ou subalternizado pela presença militar ostensiva do Estrangeiro”2, já que a Corte portuguesa fora, em 1807, refugiar-se na maior de suas colónias de então, o Brasil, devido às invasões forçadas por Napoleão Bonaparte (1769-1821) na metrópole. Esse acontecimento não é isolado, pois faz parte de um bojo de transformações, iniciadas, sobretudo, pela Revolução Francesa (1789), e que marcaria profundamente a política em Portugal por muitas décadas, alterando a fisionomia política do país.

É sabido que a Revolução Francesa, ainda nos fins do período setecentista, visava, sobretudo, destituir o poder absoluto do soberano em França e, estribada sobre conceitos formulados por muitos pensadores iluministas, como Locke (1632-1704), Montesquieu (1689-1755) e Voltaire (1694-1778), também investiria contra os poderes eclesiásticos, pois, “A religião fornecia estabilidade social para as monarquias e aristocracias, e de fato para todos os que se encontravam no alto da pirâmide. […] a Igreja era o mais forte amparo do trono”3. Em Portugal, dentro de suas especificidades, também houve as investidas anticlericais. Mas, recordemos, primeiramente, que “A implementação do Liberalismo em Portugal foi lenta e muito complexa, marcada na primeira metade de Oitocentos, por convulsões sociais e formas de guerra civil”4. Faz-se indispensável memorar que, no interim de ausência da realeza, as forças de França e, posteriormente, as de Inglaterra tomaram o território lusitano. Obviamente, isso facilitou a penetração das ideias iluministas num país com uma monarquia absoluta, embora, certamente, não foram os exércitos de Bonaparte ou o britânico que as estrearam com ineditismo em Portugal, dada a circulação de ideias e intelectuais entre os países europeus. Em 1820, gestada por algum período, ainda com a Corte sediada no Brasil, tem início, em Portugal, a primeira revolução liberal, embasada em ideais iluministas, que ficará conhecida como Vintismo, de sentimento nacional, o que é muito bem explicado pela instabilidade gerada pela ausência da Corte e pelo domínio estrangeiro, tanto que uma das exigências mais notórias da revolução de que rememoramos o bicentenário, neste ano de 2020, é o do retorno imediato de D. João VI (1767-1826) e da Corte para Portugal.

Nesse período vintista, Alexandre Herculano era uma criança, visto que nascera em 1810. A instabilidade política continuou em Portugal, levando à Guerra Civil (1828-1834), numa disputa entre liberais, liderados por D. Pedro (1798-1834), que abdicara do trono do Brasil (1831), e absolutistas, que defendiam a causa do irmão mais novo, D. Miguel (1801-1866). Portanto, levemos em consideração que a Guerra Civil não fora um mero conflito entre irmãos pela sucessão no trono, mas uma pugna por dois modelos profundamente distintos de governo: os primeiros, inspirados por alguns ideais iluministas e que exigiam, grosso modo, uma Carta Constitucional e a criação de meios para limitar o poder do monarca; enquanto os segundos lutavam pela conservação da centralidade do poder nas mãos régias e tinham a simpatia da maior parte de sectores eclesiásticos em Portugal.

Por outro lado, retomando o excerto de Cruz, transcrito no início desta secção, que trata da complexidade do período e se levarmos em consideração que tratamos “de um tempo repleto de transformações políticas, económicas, sociais e culturais, com características muito particulares […]. Um tempo muito ‘controverso’”5, também reconheceremos que:

não foram, de facto, lineares nem simples as atitudes e convicções dos eclesiásticos portugueses em relação ao novo regime. Houve reacção, certamente, como a houve na generalidade das classes e grupos. […] / Mas é nas fileiras do mesmo clero – regular ou secular – que também não é difícil encontrar paladinos confessos e consequentes do sistema constitucional. E logo no topo da hierarquia católica: se o cardeal-patriarca de Lisboa, D. Carlos da Cunha, é exilado por rejeitar algumas disposições das Bases do que seria a Constituição de 1822 […], o beneditino Frei Francisco de S. Luís Saraiva acompanhou o movimento liberal desde o início e seria bispo de Coimbra durante o vintismo e cardeal-patriarca no cabralismo6.

Ou seja: mesmo entre os membros dos cleros regular e secular, como bem recorda Manuel Clemente, não havia uma unanimidade pela causa absolutista, embora, certamente, fossem minoritários os religiosos que apoiavam a causa liberal. Já nesse período, Herculano tomou partido pelos constitucionais, mesmo em meio ao domínio absolutista, o que o levaria ao exílio:

ainda em 1831 (em Fevereiro e em Agosto) ocorrem significativas rebeliões, que, embora frustradas, são um importante sinal da fragilidade política do governo miguelista, apesar de estar rodeado de um aparelho de repressão verdadeiramente tentacular e de se ter desenvolvido na sociedade portuguesa um importante culto popular que mitificou a figura de D. Miguel7.

A rebelião de agosto de 1831, da Infantaria 4, citada por Isabel Nobre Vargues e Luís Reis Torgal, teve a participação de Herculano e, de acordo com Vitorino Nemésio, seria a causa do exílio do escritor: “Infelizmente, desconhecem-se as circunstâncias da viagem de Herculano para a Inglaterra após o desastre da revolta de Infantaria 4”8. Ainda assim, o que tentamos demonstrar com este preâmbulo é a complexidade da implementação do sistema liberal em Portugal: nem todos os religiosos, por exemplo, foram pela causa de D. Miguel, conforme já explicitamos, e não pensemos que Herculano tenha aderido a todas as políticas do Liberalismo ou que não tenha sido crítico a muitas delas, mesmo sofrendo por protestar contra o Absolutismo na juventude e tendo apoiado D. Pedro. A figura de Herculano é tão complexa quanto o seu período histórico: são notórias as suas críticas, a título de curiosidade, ao celibato clerical, sobretudo nos romances históricos Eurico, o presbítero (1844) e O monge de Cistér (1848), reunidos sob um mesmo “guarda-chuva” temático que o escritor nomeou como Monasticon. Também são patentes as críticas aos pensadores iluministas, normalmente nomeados pelo autor como filósofos, em textos como “Do Christianismo” (1839-1843)9, na narrativa “O pároco da Aldeia (1825)”, coligida em Lendas e narrativas (1851) e mesmo em História da origem e estabelecimento da inquisição em Portugal (1854-1859). Deixamos claro, ainda, que muitos textos de Herculano disparam farpas, mesmo que indiretamente, às ações do clero e, igualmente, aos seduzidos pelas ideias iluministas, o que torna dificultoso, neste artigo, tecermos uma lista definitiva e quantitativa de todas as vezes ou de todas as produções em que o autor censurou o comportamento clerical e dos que se queriam arautos do progresso, vociferando, inclusive, contra os religiosos, por acreditarem que eles eram os grandes empecilhos do desenvolvimento em Portugal.

Como já referimos, com o ideário de alguns setores de que era a religião uma das grandes responsáveis pela manutenção do Antigo Regime, um dos principais ataques revolucionários se daria contra alguns setores da Igreja Católica, não só em Portugal, mas o que também renderia uma posterior reação da instituição eclesiástica10:

A laicização da sociedade portuguesa acentuou-se significativamente a partir da década de 20 dos oitocentos […]. As ordens e congregações religiosas passaram a ser vistas como perturbadoras da ordem e, de acordo com os padrões liberais, esvaziadas de sentido social. Não controladas pela autoridade episcopal nacional, para além de poderem ser encaradas como um Estado dentro do Estado, não eram produtivas e estimulavam a atitude de esmoler [sic] – o que constituía mau exemplo em relação ao trabalho tornado valor do homem livre – viviam o celibato – atitude contrária à família e realização natural do indivíduo – e a obediência era tida como um voto religioso – o ideal liberal transferia a natureza das relações sociais da dimensão de súbdito para a de cidadão, indivíduo parte da nação11.

Como descreve Rute Rodrigues, o sentimento anticlerical ganha força, principalmente, porque algumas características das ordens regulares atentavam contra as crenças liberais, como elencou a autora: em suma, as práticas celibatárias eram tidas como ultrajes à individualidade, princípio tão caro ao Liberalismo Clássico e à formação familiar, instituição eminente na sociedade burguesa. Da mesma maneira, a produtividade e o trabalho são valores norteadores da burguesia, enquanto alguns religiosos eram sustentados por privilégios ou donativos, mesmo que saibamos que muitas casas conventuais participassem ativamente da economia ao administrarem bens ou produzirem meios para a própria subsistência.

Julgamos necessário um esclarecimento acerca do termo anticlericalismo. Tal deve-se, principalmente, por envolver a temática central deste estudo na apresentação das petições de Herculano pelos frades e freiras, mas também para termos uma ideia da complexidade que envolve esta terminologia. Para tanto, é importante levarmos em consideração as declarações de Luís Machado de Abreu:

os afloramentos da atitude anticlerical existem desde sempre na tradição cultural portuguesa. Desde as cantigas medievais […], essas manifestações apresentam-se com notória publicidade literária […]. Finalmente, o apogeu da visibilidade expressiva e sintomática do fenómeno anticlerical corresponde ao período compreendido entre meados do século XIX e as duas primeiras décadas do século XX. / Dir-se-á, por isso, que as manifestações de anticlericalismo são perenes, geradoras de abundante expressão escrita e, na sua forma intensa e militante, relativamente breves12.

Abreu expressa que numa cultura de Catolicismo tão arraigado e, por conseguinte, com a presença tão marcante de seus membros institucionais, as manifestações anticlericais perduram, com alguns picos de exacerbação – e estamos tratando exatamente de um desses períodos. Outras dúvidas sobre o vocábulo devem ainda ser sanadas antes de prosseguirmos: embora “o termo só tenha sido cunhado pelo livre-pensamento burguês do século XIX”13, as atitudes anticlericais podem ser identificadas em cantigas medievais, na dramaturgia de Gil Vicente (1465-1536) e até mesmo em sermões de padre António Vieira (1608-1697), como o de Santo António aos peixes (1654). Ora, se pensarmos então sobre a diversidade de períodos e as diversidades autorais, podemos inferir que também o que chamamos de anticlericalismo designa algo muito variegado:

Se existem assuntos que induzem naturalmente uma perspectiva simplificadora da complexidade das coisas, esse é precisamente o caso do tema anticlerical. A carga negativa transportada pelo prefixo “anti” […] oculta a riquíssima diversidade de elementos positivos que ele igualmente contém, nomeadamente como agente de mudança e promotor de programas de renovação da existência civil e da vida eclesial14.

Portanto, não seria erróneo se referíssemos como anticlericalismos, dada a pluralidade do tema. Para rapidamente exemplificar, poderíamos pensar nas semelhanças e diferenças entre os anticlericalismos que são figurados em Eurico, o presbítero, de Herculano, e em O crime do padre Amaro (1875), de Eça de Queirós (1845-1900), sendo que mesmo os escritores pertencendo a duas estéticas distintas, não viveram tão afastados temporalmente. E para que realizamos essa discussão acerca da diversidade que exprime o termo? Exatamente, para pensarmos as situações que descreveremos a seguir e para auxiliar as nossas considerações nas análises dos opúsculos.

Regressando ao contexto da implementação do Liberalismo em Portugal, uma das ações de grande impacto foi a promulgação do decreto de Extinção das Ordens Religiosas, após a vitória dos Constitucionais na Guerra Civil, da qual personagens como Garrett e Herculano participaram15. É facto que, desde 1822, houve alguma redução de casas conventuais em Portugal, entretanto, “Depois de uma primeira experiência durante o Vintismo, em 1834, com a extinção das Ordens Religiosas, os conventos conheceram aquele que foi um verdadeiro processo de ‘desmantelamento’ que se arrastou, em alguns casos, até às primeiras décadas do século XX”16. Não foi algo exclusivo do país, mas os liberais se sentiam “inspirados essencialmente em medidas da França revolucionária”17, porém movimentos semelhantes ocorreram, a título de curiosidade, na Bélgica, Suíça, nos Países Baixos, na Áustria e em Espanha. Em Portugal, o decreto promulgado por Joaquim António de Aguiar (1792-1884), “conhecido pelo apelido de ‘Mata-Frades’”18, então ministro dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça, “declarava extintos todos os conventos, mosteiros, colégios, hospícios, e quaisquer outras casas das ordens religiosas regulares, sendo os seus bens secularizados e incorporados à Fazenda Nacional”19. É facto que não foi algo tão simples o esvaziamento dos mosteiros: os conventos masculinos, por exemplo, deveriam deixar de existir imediatamente e os seus membros receberiam pensões vitalícias; já as casas femininas poderiam continuar a existir até a morte da última religiosa, mas sem receber noviças. Por outro lado, temos de ter em mente que o decreto de Aguiar foi uma investida contra as ordens regulares, mas o sistema político continuava a se afirmar católico – “o catolicismo foi religião de Estado até 1910”20 – e “O regime liberal não largou nenhuma das prerrogativas da monarquia absoluta no respeitante ao controlo da Igreja. Pelo contrário, reforçou-as, chamando a si a provisão exclusiva de todo o quadro eclesiástico e paroquial”21. Em suma: o esvaziamento dos conventos era também uma maneira de controlo do clero, pois os membros eclesiásticos que permaneceriam seriam os ligados às dioceses – os seculares – que, comumente, cuidavam de igrejas paroquiais, sem superiores fora do país e unidos diretamente à autoridade do bispo local, sendo que "todos os bispos eram indicados pelo Estado e este encarava a religião oficial como um meio de “moralização” e estabilização da vida nacional: para tal propunha à Santa Sé nomes que não lhe levantassem objecções políticas e não arriscava protagonismos imprevisíveis"22.

Após essa apresentação panorâmica do momento em que Alexandre Herculano viveu, passemos, na próxima secção, às relações do autor com o clero e aos textos que selecionamos para este estudo.

 

ALEXANDRE HERCULANO E O CLERO ENTRE AS PETIÇÕES E POLÉMICAS

As duas já referidas petições do escritor em favor dos religiosos foram coligidas em Opúsculos I: questões públicas. Tais opúsculos são textos de Herculano, dos mais variados, que anteriormente foram veiculados, sobretudo, em periódicos, e que passaram por reedições em tomos já na década de 70 do século XIX, com o autor retirado da vida pública em Vale de Lobos23.

Sob diversos tomos intitulados como Opúsculos, Herculano republicou muitos textos pregressos: alguns sobre educação, outros sobre literatura e estudo da história; também manifestos políticos, como A voz do profeta, de 1837, que fazia o autor debutar no cenário das letras. Todavia, a maior polémica pública de Alexandre Herculano com setores religiosos inicia-se em 1846 – percebamos que já após a vitória dos liberais e depois da veiculação de “Os Egressos” – quando o historiador publicou o primeiro volume da História de Portugal, um estudo que versava sobre a origem da monarquia e a fundação do reino e se alongava até o período de dom Afonso III (1210--1279). Ainda nesse mesmo ano, esse primeiro volume – de outros três que o seguiriam posteriormente – foi reeditado. Tal obra foi a responsável pelo descontentamento de uma parte do clero português com Herculano e foi esse aborrecimento que fez o autor remeter uma carta, intitulada Eu e o clero, datada de 30 de junho de 1850, ao então cardeal-patriarca de Lisboa, dom Guilherme Henriques de Carvalho (1793-1857)24. Posteriormente, tal carta foi anexada aos Opúsculos, bem como outras réplicas e tréplicas públicas de Herculano acerca do ocorrido.

A querela do autor com setores do clero, nesta ocasião, se iniciou devido à omissão – proposital e justificada por Alexandre Herculano em uma advertência inicial à História de Portugal, desde a primeira edição – do mito do aparecimento de Cristo a Afonso Henriques (1109-1185) na Batalha de Ourique (25 de julho de 1139)25, conflito entre cristãos e mouros, muitas vezes tido como fundante da nacionalidade. O autor fez, então, em sua advertência ao primeiro volume, a opção pela ciência no que designou como a “primeira tentativa de uma historia critica de Portugal”26. A complexidade dos escritos de Herculano faz-nos pensar que o intelectual queria um país reconstruído, mas, ao mesmo tempo, não aceitaria perder tudo o que constitui a herança cultural lusitana: “Se Herculano se descobre e inventa romancista pseudo-medievalizante e historiador, não é por amor do passado enquanto tal, por mais glorioso, mas como prospecção do tempo perdido de Portugal […] num presente enevoado e oscilante”27. Portanto, as revisitações ao passado português, em Herculano, parecem estar muito mais ligadas às suas dúvidas contemporâneas de qual seria o futuro de Portugal.

O mesmo autor que afirmava em Eu e o clero a ignorância dos setores eclesiásticos, em “Os Egressos: petição humilissima a favor de uma classe desgraçada” denunciou a situação miserável de alguns dos religiosos após a extinção das Ordens. Talvez seja exactamente por isso que na missiva ao cardeal-patriarca, Herculano tenha assim referido:

Tem o clero a combater em mim um inveterado e perigoso inimigo? […] Ha quinze annos que trabalho na imprensa […]. De roda de mim jaziam os fragmentos da sociedade que fôra, e no meio delles o clero, disperso, empobrecido, coberto de affrontas, experimentava as consequencias do predominio de um partido adverso e irritado. A situação da igreja portugueza nessa epocha, e sobretudo a situação dos regulares, sabemos todos qual era. […] Nem uma voz amiga se alevantava nesta terra de Portugal a favor da igreja batida pela tempestade. […]. Na imprensa liberal, revolucionaria, impia, como quizerem chamar-lhe, eu, só eu, tive por muito tempo palavras de affeição e consolo para a desgraça: só eu tive animo para accusar os homens do meu partido d’espoliadores e d’insensatos; […]. A voz que do campo do progresso saudava o templo enlutado e deserto era debil, mas sincera: a mão que se estendia para amparar o sacerdote curvado sob o peso da agonia era bem pouco robusta, mas era bem leal!28

De facto, assim como a crítica aos erros do clero é recorrente na obra de Herculano, também a temática do esvaziamento dos mosteiros se manifesta como um topus: nas críticas, podemos, rapidamente, mencionar a glutonaria de fr. Hilarião, personagem do romance histórico, de 1843, O bobo (1128), que morre vítima de indigestão ou ainda o manipulador e injusto abade de Alcobaça, D. João d’Ornelas, em O monge de Cistér, para ficarmos apenas na produção ficcional. Já no prólogo a Eurico, o presbítero, o autor menciona que procurou por crónicas de amarguras amorosas dos religiosos “pelos mosteiros, quando eles desabavam no meio das nossas transformações políticas”29, numa nítida referência à extinção das ordens regulares, bem como em seus poemas, encontraremos O mosteiro deserto30, de novo, numa alusão ao esvaziamento dos conventos. Então, não é de todo espantoso, sobretudo, se considerarmos o que já mencionamos sobre a profusão de significados do termo anticlericalismo, que Herculano, cheio de polémicas com o clero, tenha também apelado pelos religiosos.

A própria determinação de supressão das ordens religiosas, sob a regência de D. Pedro IV, previa o pagamento de pensões para que os professos pudessem se manter após o encerramento dos conventos. Entretanto, o escritor observa que muitos frades e monges caíram na penúria. O autor inicia tratando de sua imaginação em meio aos estudos:

Não sei se todos aquelles que passam os largos serões do inverno, não nos theatros, nem nos banquetes profusos, nem nos bailes esplendidos, mas em aposento de poucas varas em quadro, rodeiados de alguns livros e a sós com o seu pensar silencioso; não sei, digo, se a todos esses acontece o mesmo que a mim, quando o som do chuveiro subito, o silvo do vento, e o bramido do mar, quebrando lá ao longe nos rochedos da marinha, lhes vem toldar a serenidade do tão suave calar nocturno e as imagens que transitam lentas no kaleidoscopio da imaginação. […] / Foi numa d’estas noites procellosas, emquanto eu buscava a verdade do passado, que a imaginação insoffrida, como que a furto, me transportou das realidades que foram para uma triste realidade que é. / Approximava-se a meia-noite. Tinha acabado de ler uma das bullas do violento Innocencio III contra o não menos violento Sancho I de Portugal, inserida nos registros d’aquelle digno successor de Gregori VI, volumosos registros, onde ha muito que aprender ácerca da vida social de nossos maiores e das obscuras luctas da liberdade burguesa, tronco antigo das modernas revoluções populares, que tambem tem as suas arvores de costado, como a aristocracia de berço31.

O autor refere, primeiramente, os grandes encontros sociais, como os teatros e bailes, e faz menção a eles de maneira negativa. Também não nos parece que a remissão a Inocêncio III (1160-1216) e a D. Sancho I (1154- -1211) tenha sido insignificante neste preâmbulo, já que, normalmente, Herculano refere a Idade Média como um período extremamente violento e Inocêncio III é considerado um dos papas mais poderosos na História da Igreja – nisso podemos estabelecer uma conexão com o Ultramontanismo da conjuntura do escritor – e as históricas disputas com Sancho I podem dialogar com as querelas entre a instituição eclesiástica e o poder régio, que já estava sob o regime liberal. Ainda no excerto transcrito, encontramos menções às pugnas da classe burguesa, que irrompeu no Medievo, e a defesa do historiador pelo conhecimento do passado para a assimilação do presente. Prossegue, então, com a costumeira riqueza em descrições e pormenores, pensando em um dos efeitos concretos da ideologia liberal no território lusitano, a partir de uma narrativa, fruto de sua imaginação:

Era, pois, já bem tarde. Subitamente a chuva fustigou as vidraças: / […] o meu espírito caiu no mundo presente, presente na sua mais rigorosa data, uma noite pessima do mez de novembro do anno do Senhor de 1842. / […] Pareceu-me, porém, que um vulto distante vinha pela estrada do lado do outeiro: era um vulto humano, que ora se encobria na sombra de nuvem negra que passava chuvosa, ora se desenhava na claridade transitoria do céu. Approximou-se vagarosamente, e chegou ao pé de mim: passando, os seus vestidos roçaram-me por uma das mãos: eram frios e molhados. […] O seus passos eram arrastados e tremulos, vergado o corpo, a fronte nua e calva. E eu olhava para elle fito. A chuva começou de novo a cair cerrada e escura. O vulto encostou-se então a um dos robles da estrada, como buscando abrigar-se; e na cerração da saraiva que sobreveio, ouvi-lhe um gemido. / […] “E’ mentira: – dizia comigo, tentando quebrar o feitiço d’aquelle pesadello de homem acordado. / E quebrei-o: – e era mentira. / […] como o leitor facilmente acreditará, estava no meu gabinete, com um tinteiro e algumas folhas de papel deante de mim, / […] a chuva caía, mas era lá fora. Eu estava enxuto e secco, […] estava bem, agasalhado, commodamente. / […] Numa porta fronteira, que dava para outro aposento desalumiado, estava o vulto que vira no meu desvaneio de homem acordado […]. / Era um ancião veneravel: tinha a fronte suave e pallida sulcada profundamente d’essas rugas horisontaes […]: o seu olhar era esse olhar manso, agasalhador, indulgente, que em certos velhos nos fascina e subjuga, e que nos faz dizer a nós os moços: – Quem me dera ser teu filho!” Nas faces cavadas aninhava-se-lhe a fome a penitencia… / “E’ a fome! – bradei eu, pondo-me em pé; porque correndo a vista ao longo da barba branca do ancião, vi que esta lhe caía sobre o escapulario negro de monge benedictino. / Mas a visão desapparecera de novo: e apenas me pareceu ouvir soar ao longe uma voz cava e debil, como a que sai do peito consumido por febre pulmonar, que recitava estas palavras do Psalmista: / Judica me Deus, et discerne causam meam, et a gente non sancta et ab homine iniquo et doloso erue me32.

O autor situa claramente o tempo de sua visão: a contemporaneidade de Portugal. O beneditino que vagueia, passando fome, pela madrugada procelosa de inverno também é retratado de um modo muito peculiar: em “Os Egressos”, Herculano descreve o olhar do religioso – manso, agasalhador e indulgente. Não é, portanto, qualquer clérigo, mas sim um monge muito singular, membro de uma Ordem extinta em Portugal e que fora proeminente ao longo da História do país. O religioso é também dotado daquilo que o autor mais valoriza como positivo em uma figura eclesiástica: permeado pela essência do Cristianismo, que vive, de facto, mergulhado na vivência do Evangelho e menos afeito aos preceitos da instituição eclesial. Tais modelos de religiosos são os que convencem pela maneira como vivem e não pelos sermões prolixos.

Há, entretanto, uma oposição entre o monge e o autor. Usamos o termo autor e não narrador, porque estamos diante de um escrito em que Herculano se utiliza da narrativa para, na verdade, estribar as suas opiniões sobre o que se passava em Portugal. No texto, o autor está no conforto de seu gabinete, enquanto o beneditino perambula, pois já não há mais mosteiros, de modo que o religioso passa fome e o autor, em sua visão imaginativa, afirma sentir o hábito molhado do monge quando ele se aproxima. O velho que deambulava pela noite chuvosa é um espectro que some e reaparece: é como se tal situação da mendicância de eclesiásticos – mais do que o monge, propriamente – assombrasse o escritor que lutou pelos liberais na Guerra Civil. O ancião, entretanto, desaparece recitando o início do Salmo 43, que é, na verdade, uma oração na qual se pede o auxílio a Deus diante de uma nação infiel e de homens iníquos, mas trata-se de uma das orações iniciais da Missa de Pio V33. Não nos parece sem razão que tal trecho do Salmo seja recitado por um monge caído na miséria: o pedido de proteção contra a suposta nação infiel faria sentido aos religiosos no contexto de Herculano em Portugal. E é a partir da figuração do monge, que se estabelece, no texto, uma conexão com os possíveis factos da pós-extinção das ordens regulares:

O meu circulo vicioso não existia. Caíra das idealidades do passado no mundo real, e ahi, numa das realidades mais torpes, mais ignominiosas, mais brutaes, mais estupida e covardemente crueis do seculo presente, que deante de Deus, que o vê e o condemna, ousa gabar-se de grande e generoso e forte; mas em cuja campa o christianismo e philosophia escreverão algum dia unicamente este letreiro: / – Aqui jaz a ultima era dos martyres. – / E pus-me a scismar. / – O Senhor te resgatará, pobre monge; porque não tarda a bater a hora em que durmas tranquillo na terra fria e humida, fria e humida como a estamenha que te cobre. Queiras tu de lá perdoar-nos! / E lançando os olhos em volta, perguntava a mim mesmo: – Porque possuo eu os commodos da vida, o pão do espirito, e porque perdeu elle tudo isso? Que bem tenho eu feito ao mundo? Que mal lhe havia elle feito? / A’ fé, que a minha consciencia não achou uma unica resposta cabal a tão simplices perguntas. / A lembrança do frade velho atormentou-me toda a noite. A imaginação não m’o pintava já na passagem escura, onde surgira pela segunda vez: vi-o na idéa, e ahi, encostado ao roble, procurando conchegar os membros inteiriçados na cogulla encharcagada, e resguardar a cabeça calva ao abrigo do robusto madeiro. / […] De quantos anciãos veneraveis será a historia, a historia do meu benedictino? / “Mas elles teem pão: os socorros publicos…” Olé, homens grandes, silencio! / […] Mentistes; porque a somma de que falaes existe apenas em palavras mais torpemente hypocritas que as da serpente tentadora de nossa primeira mãe, as que se escrevem nas painas de um orçamento. / E a realidade? A realidade é a minha visão; é que o monge, o sacerdote, se converteu em mendigo. / Silencio, outra vez, homens grandes!34

O autor afirma que a sua imaginação é mais real, naquela conjuntura, do que os socorros públicos e pagamentos prometidos pelo Estado aos religiosos desalojados, mas que parecem ser contabilizados apenas em teoria. Herculano também questiona quantos não seriam os monges caídos na mendicância e quais seriam os crimes que haviam cometido para viverem em tal situação: por isso, a menção à última era dos mártires, expressão que compõe o título deste trabalho. Refere também não encontrar respostas para as suas indagações, como também o porquê ele, como escritor e liberal, vivia confortavelmente, enquanto os religiosos estavam, muitas vezes, em situações de vulnerabilidade, após a instauração do governo liberal. O consolo do monge, nas palavras do escritor, é o repouso na terra fria e úmida – a morte, portanto – que é comparado ao seu hábito – ou estamenha – também com a cógula úmida por vaguear pelas noites de tempestade em pleno inverno.

Duas vezes o autor interpela os que chama de homens grandes – isto é, os que detinham o poder –, mas também os manda calar. É como se estivesse lhes expondo algo e, antes mesmo de ser contestado, os fizesse silenciar, porque o argumento que lhes apresenta era realmente mais forte e concreto. Herculano sugere, então, no trecho que segue, não uma defesa da vida religiosa em si, mas o que parece ser uma reflexão sobre os problemas gerados pelo esvaziamento dos conventos:

E se nós, geração do progresso e da philosophia, nos envergonhamos de ser deshonestos, e dissermos: – “Dê-se uma fatia de pão ao que morre de fome!” Mais; se dissermos: – “Pague-se um juro modico dos valores que nos apropriámos? / […] O homem não vive só de pão. Di-lo um livro que vós nunca lestes, mas que nem por isso tem deixado de ser por dezoito seculos o abrigo, a doutrina, a crença, a consolação de innumeraveis milhões de individuos. / Calculastes jámais quanto é insolente, atroz, diabolico, chegar a um velho, tomar-lhe nas mãos todas as suas affeições, todos os seus habitos de largos annos, todas as esperanças mais queridas, e depedaçá-las e calcá-las aos pés, e dizer-lhe depois: – “Dar-te-hei um bocado de pão?” Prometter pão aos sessenta annos! […] Que nome, porém, se dará aos que nem essa promessa cumpriram?35

Nem mesmo a mínima promessa de sustento aos religiosos, segundo Herculano, estavam sendo cumpridas. Mas há, ainda, para o autor, uma questão que parece ser mais profunda: ele faz uma paráfrase bíblica (Mt 4,4) para discorrer sobre as pessoas – neste caso, os membros do clero regular – necessitarem muito mais do que um simples sustento. Há a lembrança das mais variadas afeições desses anciãos que estão desalojados, como as suas estamenhas, as suas sandálias, o crucifixo do oratório, a enxerga onde descansavam, as próprias celas, dentre outros objetos e lugares que lhes eram quotidianos e de estima36. Por fim, o autor indaga ao que chama de homens grandes: “Porque lhe despedaçastes tudo isto? Quanto vos renderam a enxerga, as sandalias, a lagea do sepulchro e o crucifixo?”37. Para Herculano, o decreto não só retirou os bens dos regulares, mas também reduziu inúmeras vidas de anciãos à simples busca pelo sustento – que mesmo assim lhes era negado – devido à falta de concretização das medidas aprovadas para minorar as consequências sociais da extinção imediata das ordens religiosas masculinas. Por isso, na perspetiva do autor, a promessa de pão na velhice era tão insolente, perversa e desumana, pois não destruía apenas categorias de clérigos, mas trazia, em seu bojo, a condenação de muitas vidas já vulneráveis pela idade.

Ainda em “Os Egressos”, Herculano propõe outro relato, não mais fruto da sua imaginação, mas narrando o que afirma ter se passado no Mosteiro de Santa Cruz, em Coimbra, que pertencia à Ordem dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, quando, segundo o autor, se deu o seu esvaziamento no cumprimento do decreto:

Quando em 1834 se extinguiu o antigo e celebre cenobio de Sancta Cruz de Coimbra, aconteceu ahi um facto que póde, até certo ponto, dar uma idéa das primeiras scenas do negro drama que ha oito annos começou a passar ante os olhos d’aquelles que ainda não abnegaram de todo a humanidade e o pudor. Expulsos os cenobitas, e inventariados os bens do mosteiro pelos commissarios d’esta obra brutal, quasi por toda parte brutalmente executada, ainda uma cella d’aquelle vasto edificio ficava occupada por um dos seus antigos habitadores. Era um velho de oitenta annos, a quem o tropego, o quasi morto dos membros embargavam o caminhar, e que por isso não podia seguir seus irmãos. Entrando no aposento, encontraram o cenobita deitado no seu catre humilde, em cujo topo pendia o crucifixo que, talvez por sessenta annos, tinha visto a seus pés consumir-se na meditação, nas preces e na penitencia aquella dilatada vida. Estava só o ancião, e o silencio que o rodeiava apenas era interrompido pelos gorgeios de uma avesinha, que pulava contente ao sol numa gaiola pendurada da abobada. […] / As passadas dos que entravam moveram-no a volver os olhos: […] / Disseram-lhe então que era necessario saír d’alli. / “Porque? – perguntou o cenobita. / “Porque os frades acabaram: – replicou o mais eloquente e discreto dos verdugos, como se exprimisse a idéa mais simples e trivial d’este mundo. / “Porque os frades… repetiu em voz baixa o velho, sem concluir38.

No trecho, há a preocupação do autor em representar os pormenores da cena, como os movimentos corporais do cenobita – religioso que vive em uma comunidade com outros religiosos –, como se o próprio escritor tivesse presenciado o episódio. Numa publicação de apelo, como é “Os Egressos”, esse é um recurso discursivo que reforça os argumentos do autor, pois demonstra a total vulnerabilidade do octogenário frade, impedido de caminhar, e retrata a grande insensibilidade dos representantes do Estado Liberal – denominados como verdugos, ou seja, os executores de uma pena. Tal vocábulo é também recorrente nas narrativas populares da Paixão de Cristo ou dos martírios dos santos católicos para designar os que torturam e matam, relacionando o excerto supratranscrito com a expressão já também mencionada: a última era dos mártires. Portanto, a economia do texto de Herculano é magistralmente construída com referenciais interiores e exteriores à obra. A censura aos executores, contudo, vem logo a seguir, nas descrições do escritor:

Um sorriso estupido passou pelas faces estupidas de alguns circunstantes. No gesto espantado do cenobita liam elles a grandeza do esforço com que associavam o proprio nome á obra prima do seculo. / E com razão. O triturar assim um coração de oitenta annos era feito que excedia em heroicidade todos os que haviam practicado dous cavalleiros portugueses, que, lá em baixo na egreja, continuavam a dormir nos seus leitos de pedra um somno de muitos seculos, e que se chamavam Affonso Henriques e Sancho Adefonsíades. / Os olhos do ancião ficaram enxutos. Só accrescentou: – Mas para onde hei de eu ir?” / “Para casa dos vossos parentes: – acudiu o philosopho. / O cenobita correu a mão pela fronte calva, e respondeu: – Já não tenho parentes na terra: todos me esperam no céu”. / “Então ireis para algum amigo.” / “O unico amigo meu que ainda vive é aquelle!” E apontava para a avesinha. / “O frade irá pois morar na gaiola do pintasilgo: – rosnou por entre os dentes um dos algozes, que tinha fama de gracioso. […] / Alguem, que estudava ahi perto essa scena de progresso moral, não pôde, todavia, continuar os seus graves e terríveis estudos. Precisava de ar, de luz, de vêr o céu. Atravessou ligeiro o longo dormitorio, e desceu a quatro e quatro os degraus das extensas escadarias. As lagrymas rebentavam-lhe como punho. / A’ portaria de Santa Cruz as primeiras palavras que ouviu foram, que a municipalidade acabava de fazer um calvario no fundo de uma petição, escripta em vasconço por certo doutor affamado, na qual pedia ao governo lhe atirasse aquelle osso do mosteiro de sete seculos, para roer até os fundamentos, e construir no sitio d’elle, não me lembra ao certo se um espogeiro, se uma sentina. / Era o estudo do progresso artistico após o estudo do progresso moral.39

Nesse excerto, o escritor, muito irônico, retrata os representantes do pensamento liberal frente a um vulnerável frade no declínio da vida. O autor afirma que alguém estava presente e não conseguiu assistir à deplorável cena até o fim: a personagem não nominada pode ser o próprio Herculano. Obviamente, não é possível afirmar com certeza se a cena é factual e, muito menos, se é o escritor que participa dela, mas, certamente, cogitar-se testemunha ocular de um facto como esse propicia uma autoridade para discorrer sobre as consequências da extinção das ordens religiosas.

Há também, na narrativa, duas outras recorrências encontradas em outros escritos do mesmo autor40: a questão do chamado filósofo influenciado pelo pensamento iluminista, cuja ação é ironicamente comparada pelo escritor aos feitos dos dois primeiros reis-guerreiros, que pelejaram em batalhas para a formação do reino e estão sepultados na igreja do mosteiro, e também o caso da não preservação dos patrimónios histórico- -arquitetónicos portugueses. Herculano é igualmente muito sagaz ao afirmar que o progresso estava chegando a Portugal, pois já havia petições para a demolição do antigo cenóbio, datado do século XII, para a construção de um cercado ou de uma latrina em seu lugar. O relato feito pelo autor pode não ser verídico, porém parece-nos verossímil, pois “O complexo e burocrático aparelho do Estado, assente sobre instáveis bases decorrentes do ainda sobressaltado período que se vivia, dificultava sobremaneira o desenvolvimento de uma política contínua de defesa do património”41. Tais referências funcionam, principalmente, para embasar as argumentações do escritor, hesitantes entre os avanços e as preservações a serem feitas em terras portuguesas:

Quantos d’estes factos dolorosos se passaram naquella epocha por todos os angulos de Portugal! Poderia contar-vos mil, e cada um d’elles fora uma nova scena de agonia. Os martyres primitivos morriam nos eculeos, nas garras das feras, nos leitos de fogo; não eram, porém condemnados a assentar-se em cima das ruinas de todos os seu afectos […] / Fizestes uma cousa absurda e impossivel: deixastes na terra cadaveres vivos, e assassinastes os espiritos. / Ao menos que esse cadaveres não sintam traspassá-los o vento que sibila nas sarças, a chuva que alaga as campinas, o frio que entorpece as plantas e os membros dos animaes. / Pão para a velhice desgraçada! Pão para metade dos nossos sabios, dos nossos homens virtuosos, do nosso sacerdocio! Pão para os que foram victimas das crenças, minhas, vossas, do seculo, e que morrem de fome e de frio! / Cumpri ao menos a vossa brutal promessa. […] / Senão, que os pobres monges inclinem resignados a fronte na cruz do seu martyrio, e alevantem uma oração fervorosa ao Senhor para que perdoe aos algozes, que nella os pregaram. E’ este o exemplo que na terra lhes deixou o Nazareno. / Mas que se lembrem os poderosos do mundo de que a oração de Jesus na hora suprema da agonia foi desattendida do Eterno. E comtudo, Jesus era o seu Christo42.

O autor utiliza-se de uma temática muito cara ao Catolicismo ao recordar os mártires e ao comparar os religiosos desalojados a eles, com um agravante sobre o clero regular porque, segundo Herculano, os representantes do governo liberal os transformaram em mortos-vivos, ou seja, não se lhes retirou a vida, mas se lhes arrancou o sentido de vida. Conforme abordaremos ainda, algo semelhante está relatado em “As freiras de Lorvão”.

Ao solicitar que o governo ao menos cumpra com os seus compromissos para com o clero regular, o autor retoma o Evangelho quando se refere ao perdão dado por Cristo crucificado aos que o crucificavam (Lc 23,34) e afirma que esse era o exemplo que os religiosos seguiriam. No entanto, nem por isso deveriam morrer à míngua, já que nem Cristo fora atendido em prece (Lc 22,42). Novamente, Herculano se reporta à religiosidade de essência, nitidamente muito mais significativa para ele do que a religião dogmática institucional, que se firmou com o passar dos séculos.

Pensando acerca do que lemos neste trabalho, estamos diante de uma petição posterior a 1834, data do decreto de esvaziamento das casas religiosas, mas anterior à polémica de Herculano, em 1850, com os setores do clero, após a publicação do primeiro volume da História de Portugal. Poderíamos, então, pensar que a petição pelos monges só aconteceu porque o historiador se não tinha ainda envolvido em uma grande polémica religiosa. Contudo, em 1853, Herculano redige a António de Serpa Pimentel uma missiva, também coligida em Opúsculos I: questões públicas, intitulada “As freiras de Lorvão”, em que discute a situação dos religiosos em Portugal, com especial foco dado à vida monástica feminina. Pimentel já, à época da carta, se destacava com uma carreira política e intelectual, além de colaborar com a Revista Universal Lisbonense, para a qual também Herculano contribuía, dentre outros periódicos.

Porém, a preocupação de Herculano em relação à vida religiosa feminina é também bastante plural. O historiador relata em História da origem e estabelecimento da inquisição em Portugal, por exemplo, os abusos cometidos, no século XVI, no Mosteiro de Lorvão, pertencente às Bernardas, ramo feminino Cisterciense, onde monjas pariam filhos e os criavam, sem pudor algum, nos claustros do mosteiro, tendo, inclusive, a aprovação das superioras que, de acordo com o escritor, faziam o mesmo43. Resguardando as proporções e a distância temporal, é interessante como o mesmo historiador que relata tal evento em Lorvão, baseado em muitas pesquisas, dirige uma missiva a Pimentel, seguindo uma linha apelativa, em favor das religiosas caídas na miséria, não inocentando os cistercienses de suas dilapidações patrimoniais. Ou seja: Herculano não era um mero militante contra as monjas, mas, pelo contrário, sabia ponderar acerca da necessidade humanitária de freiras que nada tinham a ver com as corrupções de tempos pregressos.

O autor inicia a missiva relatando as suas pesquisas no Mosteiro de Lorvão e, como testemunha ocular, lança um apelo em favor das monjas:

Escrevo-lhe do fundo do estreito valle de Lorvão, defronte do mosteiro onde repousam as filhas de Sancho I; […] penetrei no claustro por ordem da auctoridade ecclesiastica. Lá dentro, nesses corredores humidos e sombrios, vi passar ao pé de mim muitos vultos, cujas faces eram pallidas, cujos cabellos eram brancos. […] Quasi todas essas faces tem-nas empallidecido a fome. Morrem aqui lentamente umas poucas mulheres, fechadas numa tumba de pedra e ferro. […] No mosteiro sumptuoso, vasto, alvejante, com um aspecto exterior quasi indicando opulencia, é que não ha pão, mas só lagrymas. Lorvão é peior do que um carneiro onde se houvessem mettido vinte esquifes de catalepticos, sellando-se para sempre a lagea da entrada. O cataleptico, fechado no seu caixão, ouve, sente, tem a consciencia de que foi sepultado vivo. Nas trevas e na immobilidade, o terror, a desesperação, a falta de ar matam-no em breve: a sua agonia é tremenda, mas não é longa. Aqui é outra cousa: aqui vê-se, por entre as grades de ferro, a luz do céu, a arvore que dá os fructos, a seara que dá o pão, e tudo isto vê-se para se ter mais fome. Todos os dias uma esperança duvidosa e fugitiva atravessa aquellas grades de envolta com os primeiros raios do sol: todos os dias essa esperança fica sumida debaixo das trevas que á tarde se precipitam sobre Lorvão das ladeiras do poente. Depois as noites de insomnia; depois o choro; depois, sabe Deus se a blasphemia!44

Os relatos se assemelham ao que verificamos em “Os Egressos”, até mesmo na comparação do sepulcro de viventes que os mosteiros haviam se tornado depois de 1834. Há, portanto, uma insistência de Herculano de que os liberais não mataram os religiosos, mas, muito pior do que isso, retiraram deles o sentido de viver e, no caso específico das Bernardas, houve o “sepultamento” dessas religiosas, que passaram a viver uma longa agonia, a qual, segundo ele, era muito pior e mais demorada do que a de um cataléptico encerrado vivo. Há, no excerto supracitado, a recorrência de indicações a respeito do declínio do património histórico: o mosteiro sumptuoso que abriga o túmulo das infantas Teresa (1175/76?-1250) e Sancha (1180-1229), filhas do rei Sancho I e oficialmente reconhecidas como beatas pela Igreja45, igualmente asila algumas monjas privadas dos meios de necessidade básica, como a alimentação. O escritor, assim como em “Os Egressos”, retoma também as intempéries naturais para estribar os seus argumentos em favor das freiras:

Imagine, meu amigo, uma noite de inverno […]: imagine dezoito ou vinte mulheres idosas, mettidas entre quatro paredes humidas e regeladas, sem agasalho, sem lume para se aquecerem, sem pão para se alimentarem, sem energia na alma, e sem forças no corpo, comparando o passado, sentindo o presente antevendo o futuro. Imagine o vento que ruge, a chuva ou a neve fustigando as poucas vidraças que ainda restam no edificio; […] Imagine tudo isto, e sentirá accender-se-lhe no animo uma indignação reconcentrada e inflexivel. / Ha poucos dias passou-se em Lorvão uma scena tremenda. Num accesso de desesperação, parte d’estas desgraçadas queriam tumultuariamente romper a clausura; queriam ir pedir pão pelas cercanias. Custou muito contê-las. Tinha-se apoderado d’ellas uma grande ambição; aspiravam á felicidade do mendigo, que póde appellar para a compaixão humana; que póde fazer--se escutar de porta em porta46.

Se em “Os Egressos” a situação do monge beneditino, que caíra na mendicância, já era deplorável, o cenário das monjas em Lorvão é bem pior: elas não podem sair da clausura para esmolar e, por isso, ambicionam, nas palavras de Herculano, a vida de mendigo. Recordemos que, enquanto as casas das ordens regulares masculinas foram esvaziadas no ato do decreto e os bens foram inventariados, nos conventos femininos, as religiosas puderam ficar até a última freira morrer, mas sem receber noviças. O autor, portanto, dedica um olhar diferenciado, mas não menos preocupado, para as duas situações. Contudo, no costumeiro tom crítico e irónico, Herculano não deixa de distribuir farpas aos representantes do governo liberal que, sob a sua pena, estavam alheios a tais acontecimentos:

Gemidos, brados, prantos, nada d’isso chega aos ouvidos dos homens que exercem o poder nesta terra […]. Entretanto, se eu falasse com elles, dar-lhes-ia um conselho. Talvez o ouvissem, porque a minha voz é um pouco mais forte que a das velhas freiras. Era o de enviarem aqui sessenta soldados, formarem as monjas de Lorvão em linha no adro da egreja e mandarem-lhes dar tres descargas cerradas. […] resolvia-se affirmativamente um problema […] / Sim, isto era util, porque era atroz […]. Mas não infame, não era covarde; não era o assassinio lento, obscuro, atraiçoado, feito com a mordaça na bocca das victimas. Corria o sangue durante alguns minutos: não corria o suor da agonia durante annos. Era uma scena de delirio revolucionario; mas não era um capitulo inedito para ajunctar aos annaes do sancto officio. / […] Ha um ou dois annos, o governo deu-lhes a esmola de um subsidio: este subsidio, porém, cessou. Ignora--se o motivo. Por ventura alguma secretaria de estado precisava de novos estofos nas suas commodas poltronas, ou os felpudos tapetes das salas ministeriaes tinham perdido o brilho das suas côres variegadas, e cumpria renová-los. São despezas inevitaveis47.

A ironia de Herculano é perceptível quando ele defende o bárbaro e rápido extermínio das velhas cistercienses: cena que o autor menciona como menos covarde, pois, segundo ele, as monjas idosas definhavam e nada por elas era realizado pelo governo que, insensível, não propiciava, ao menos, o mínimo para se manterem com dignidade. O fuzilamento das monjas, nas palavras do autor, poderia ser mais um espetáculo de horrores a se juntar aos da Inquisição: isto é, os mesmos liberais que criticavam o Tribunal do Santo Ofício, estavam, de alguma maneira, realizando atentados contra a humanidade e as individualidades. Aliás, o tom irónico segue quando o escritor sugere quais eram as grandes necessidades do governo: a troca de estofos dos confortáveis assentos dos gabinetes de alguma Secretaria de Estado ou o renovar dos tapetes dessas salas opulentas. Contudo, em “As freiras de Lorvão”, Herculano não isenta os crimes da Inquisição – isso está presente na própria comparação feita no texto – e nem deixa de responsabilizar os chamados monges brancos, referência à coloração do hábito da Ordem de Cister, que administravam as finanças do mosteiro das Bernardas, como verificaremos no trecho que segue:

Os bens acumulados naquelle cenobio durante dez seculos tinham-o tornado demasiadamente rico. […] Como mosteiro cisterciense, Lorvão dependia dos monges brancos. Cem freiras de que se compunha a communidade, e que viviam opulentamente, gastavam muito, mas não gastavam tudo. Cinco frades bernardos, aposentados num palacete contiguo ao mosteiro, consumiam o resto. Eram elles que administravam as grossas rendas da casa. Os banquetes e as festas succediam-se ali sem interrupção. Os hospedes eram continuos. O manto da religião cobria todos os excessos de opulencia. […] / Até aqui nada ha extranho. Mas os frades entenderam que deveriam comer a renda e o capital das cenobitas laurbanenses. […] Veio o anno de 1833. Desappareceram-se os dizimos, principal rendimento do mosteiro. Os direitos senhoriaes desappareceram tambem. Os frades, enxotados do seu feudo de Lorvão, sairam d’alli, mandando primeiramente derribar todas as arvores que povoavam aquellas encostas e vendendo as madeiras. […] Passado, porém, apenas um anno, o fisco arrebatou-lhes quasi tudo pela divida […] e os credores particulares levaram-les depois os demais bens48.

O autor relata o que lhe parece reprovável: os ditos bons tempos que se passaram e a opulência das casas religiosas, bem como o esbanjar dos bens realizado pelos responsáveis pelo Mosteiro de Lorvão e que levaram as freiras laurbanenses – adjetivo referente à localidade – à miséria após o fim dos rendimentos. É possível entrever ainda as referências de Herculano aos acontecimentos oriundos da implementação do sistema liberal em Portugal: a extinção dos dízimos e dos direitos senhoriais. Entretanto, o autor se demonstra muito mais preocupado com a situação lastimável das monjas do que com o modo como as religiosas viviam no passado, pois a situação delas parece bem mais urgente do que os erros anteriores e, por isso, prossegue a missiva a Pimentel apelando para a imaginação do seu interlocutor com relação à oposição existente entre o conforto dos homens do governo e a penúria das monjas:

Alta noite, durante o inverno, vinte mulheres curvadas pela inedia e pela velhice pódem dirigir-se ao coro, calcando quasi descalças as lageas humidas e frias d’estes claustros solitarios; mas as botas envernizadas de suas excellencias devem ranger mollemente sobre um pavimento suave, e as suas cabeças, afogueiadas pelas profundas cogitações, reclinarem-se em fofos espaldares. […] Quando a ultima freira de Lorvão expirar de miseria, ou debaixo de alguma d’essas paredes interiores do mosteiro que ameaçam desabar, os ministros soffrerão com animo paternal que mãos piedosas vão lançar o cadaver da pobre monja no ossuario de sete seculos, onde repousam as cinzas de milhares de suas irmãs. Depois venderão o edificio e a cerca a algum d’estes judeus do seculo XIX, a que chamamos agiotas, se algum houver a quem passe pelo espirito ter uma casa de campo em Lorvão. […] / Mas porque o importuno com esta larga historia? Não é, meu amigo, só para desabafo: é para lhe pedir um favor. Supponha que viu, como eu vi, as faces enrugadas e pallidas das monjas de Lorvão, por onde as lagrymas se penduravam quatro a quatro […]: Que fazia? Com o seu coração, com os seus principios, e redactor de um jornal que tem largas sympatias, sentia-se grande e forte pondo a sua penna eloquente ao serviço da desgraça e da fraqueza. Faça-o, meu amigo; faça-o! Peça esmola para as freiras de Lorvão, que foram ricas e felizes na mocidade, e que na velhice tem fome. A velhice é sancta! […] Ao governo não peça nem diga nada; deixe esses homens ao seu destino; deixe-os estofar poltronas e dormir nellas. Deus e os vindouros hão julgar-nos todos49.

O excerto se inicia com uma comparação entre a carência das monjas e o conforto dos administradores públicos: enquanto as religiosas estão quase descalças ao enfrentar o frio, os políticos calçam faustosas botas e se reclinam em almofadados espaldares. Comparações semelhantes, em Herculano, encontraremos em “O Pároco da Aldeia (1825)”: enquanto o filósofo se banqueteia e embriaga, o velho padre prior sai, enfrentando as intempéries da madrugada, a fim de levar o conforto sacramental a um moribundo50. Por isso, é difícil pensar em Herculano como um reacionário clericalista ou, ao contrário, entrever em sua produção uma defesa da aniquilação total de setores eclesiásticos.

Percebe-se também em “As freiras de Lorvão” o recorrente tema da decadência dos patrimónios histórico- -arquitetónicos de Portugal e o comércio de tais prédios para pessoas que não tinham interesses em preservá--los, a quem o escritor denomina como agiotas ou judeus do século XIX: uma menção que remonta à prática da usura e da especulação financeira, das quais os judeus eram acusados. A petição fica evidente no trecho supratranscrito, já que Herculano afirma textualmente não ser mero desabafo e pede o auxílio ao seu interlocutor. Em outros trechos da missiva a Pimentel, o autor também discorre sobre a incompetência administrativa do governo, pois, havia mosteiros que recebiam fartos subsídios, enquanto outros ficavam à míngua51. Ademais, com termos acentuados, o escritor revela uma possível fraude que as bernardas poderiam ter sofrido, tanto dos cistercienses quanto do governo, pois os representantes públicos deveriam executar as dívidas apenas com os monges administradores e não, novamente, com as freiras:

Os frades de Alcobaça roubaram 25:000$000 réis a Lorvão. Eram responsáveis por elles. […] As decimas de Lorvão deviam ir buscar-se aos bens de Alcobaça, logo que se provasse que Alcobaça espoliara fraudulentamente Lorvão. Averiguou-se o facto? Não. O fisco executou as freiras, e recebeu duas vezes a mesma divida52.

A denúncia de Herculano na correspondência a Pimentel vem ainda calcada sobre informações graves contra o governo liberal: os valores duas vezes reclamados e as cifras nunca restituídas às monjas que padeciam. Portanto, a argumentação do autor não é mero apelo ao emocional, pois, além de descrever como testemunha ocular a desgraça em Lorvão, o escritor referencia as causas da miséria com dados, buscando provar o caso.

 

CONCLUSÃO

Comemoramos, neste ano de 2020, o bicentenário da Revolução Liberal em Portugal: estamos já afastados temporalmente desse acontecimento, o que nem sempre nos dá, à primeira vista, a proporção da sua complexidade. O sistema liberal não foi instalado de maneira rápida e, ainda hoje, somos tributários de muitas das transformações que ele gerou, como, por exemplo, as tentativas de laicização do Estado, mesmo dentro de uma cultura desbordante de Catolicismo institucional e popular.

Por outro lado, estamos já distantes o suficiente para mirar esses movimentos revolucionários e averiguar como influem em nossa estrutura social: passaram-se 200 anos e a partir do Vintismo se desdobraram outros conflitos e outras institucionalizações, das quais muitos homens e mulheres foram partícipes, reclamando pelos seus direitos individuais e conclamando para o que, em seu período, acreditavam ser o melhor, mesmo com erros que foram cometidos, num processo que se compreende extremamente humano.

O que demonstramos neste estudo é que um dos maiores vultos portugueses do século XIX, Alexandre Herculano, esteve atento ao que se passava: aderindo embora ao ideário liberal, ponderou, apelou, denunciou e apontou para caminhos possíveis sempre que considerou haver injustiças e erros. Estudar, portanto, a complexidade do pensamento de Herculano, infelizmente nem sempre recordado na atual conjuntura, é pensar a complexidade da sociedade oitocentista em Portugal e é também um exercício para refletir sobre a atividade humana, que nem sempre se equaciona em fronteiras tão definidas.

Os apelos de um liberal anticlerical por frades e freiras caídos em miséria não são contraditórios com os posicionamentos em outras produções: ao contrário, reforçam a coragem de Herculano em chamar a atenção contra os atentados à dignidade e à individualidade de seres humanos, num período de intensa militância contra os membros da clerezia. As denúncias do escritor, como tivemos a oportunidade de averiguar, não foram realizadas de qualquer forma: Herculano se esmerou na lavra estética de seus textos, com frequentes narrativas exemplificadoras, que apelam aos sentidos em “Os Egressos” e em “As freiras de Lorvão”, mas também com informações verificáveis que invocam a racionalidade dos seus interlocutores.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FONTES

IMPRESSAS

Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2011.

HERCULANO, Alexandre – Cartas ao muito reverendo em Christo padre Francisco Recreio, Solemnia Verba: Lisboa: Typ. de Castro&Irmão, 1850.

HERCULANO, Alexandre – Composições várias. Lisboa: Bertrand, [19--].

HERCULANO, Alexandre – Considerações pacificas sobre o opusculo eu e o clero: carta ao redactor do periodico: A Nação. Lisboa: Imprensa Nacional, 1860.

HERCULANO, Alexandre – Eu e o clero: carta ao Em.º Cardeal-Patriarcha. Lisboa: Imprensa Nacional, 1850.

HERCULANO, Alexandre – Eurico, o presbítero. Lisboa: Bertrand, [19--].

HERCULANO, Alexandre – História da origem e estabelecimento da inquisição em Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional, 1859.

HERCULANO, Alexandre – Lendas e narrativas. Lisboa: Bertrand, [19--].

HERCULANO, Alexandre – Opúsculos I: questões públicas. Lisboa: Bertrand, [19--].

HERCULANO, Alexandre – Poesias. Lisboa: Bertrand, [19--].

MISSALE ROMANUM. Tours: Typis Mame: Sanctae Sedis Apostolicae et Sacrae Rituum Congregationis Typographorum, 1935.

 

ESTUDOS

ABREU, Luís Machado de – Ensaios anticlericais. Lisboa: Roma Editora, 2004.

BUESCU, Ana Isabel – Alexandre Herculano e a polémica de Ourique: anticlericalismo e iconoclastia. In MARINHO, Maria de Fátima; AMARAL, Luís Carlos; TAVARES, Pedro Vilas-Boas, coord. – Revisitando Herculano no bicentenário do seu nascimento. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2013. p. 37-57.

CLEMENTE, Manuel – Alexandre Herculano e o clero ou o clero de Alexandre Herculano no 2º centenário do nascimento do escritor. In MARINHO, Maria de Fátima; AMARAL, Luís Carlos; TAVARES, Pedro Vilas-Boas, coord. – Revisitando Herculano no bicentenário do seu nascimento. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2013. p. 107-114.

CLEMENTE, Manuel – Igreja e sociedade portuguesa do Liberalismo à República. Revista Didaskalia. Lisboa: Universidade Católica Portuguesa. Nº XXIV (1994), p. 119-129.

CRUZ, Carlos Eduardo da – Do exílio ao exílio: Alexandre Herculano no Liberalismo português. Revista Garrafa. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro. V. 8 Nº 22 (2010).

HOBSBAWM, Eric – A era das revoluções (1789-1848). Rio de Janeiro: Paz&Terra, 2015.

LOURENÇO, Eduardo – Labirinto da saudade: psicanálise mítica do destino português. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1992.

MATTOSO, José; SOUSA, Armindo de – Dois séculos de vicissitudes políticas (1096-1325). In MATTOSO, José, coord. – História de Portugal. Lisboa: Editorial Estampa, 1993. vol. 2 – A monarquia feudal (1096-1480).

MENDES, Eduardo Soczek – Alexandre Herculano, entre o presbítero e o monge: o (anti)clericalismo e as personagens religiosas em Monasticon (Eurico, o presbítero e O monge de Cister). Curitiba: [s.n.], 2017. Dissertação de mestrado em Letras, apresentada à Universidade Federal do Paraná.

NEMÉSIO, Vitorino – A mocidade de Herculano (1810-1832). Amadora: Bertrand, 1979. vol. 2.

RODRIGUES, Rute Massano – Entre a salvaguarda e a destruição: a extinção das ordens religiosas em Portugal e as suas consequências para o património artístico dos conventos (1834-1868). Lisboa: [s.n.], 2017. Tese de doutoramento em História, apresentada à Universidade de Lisboa.

VARGUES, Isabel Nobre; TORGAL, Luís Reis – Da revolução à contra-revolução: vintismo, cartismo, absolutismo: o exílio político. In MATTOSO, José, dir. – História de Portugal. Lisboa: Editorial Estampa, 1993. vol. 5 – O Liberalismo (1807-1890).

 

 

Submissão/submission: 30/06/2020

Aceitação/approval: 18/08/2020

 

 

NOTAS

1 CRUZ, Carlos Eduardo da – Do exílio ao exílio: Alexandre Herculano no Liberalismo português. Revista Garrafa. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro. V. 8 Nº 22 (2010), p. 1. Optamos nas transcrições textuais por manter a grafia conforme as edições que consultámos.

2 LOURENÇO, Eduardo – Labirinto da saudade: psicanálise mítica do destino português. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1992. p. 85.

3 HOBSBAWM, Eric – A era das revoluções (1789-1848). Rio de Janeiro: Paz&Terra, 2015. p. 358.

4 RODRIGUES, Rute Massano – Entre a salvaguarda e a destruição: a extinção das ordens religiosas em Portugal e as suas consequências para o património artístico dos conventos (1834-1868). Lisboa: [s.n.], 2017. Tese de doutoramento em História, apresentada à Universidade de Lisboa. p. 25.

5 Idem, p. 25.

6 CLEMENTE, Manuel – Alexandre Herculano e o clero ou o clero de Alexandre Herculano no 2º centenário do nascimento do escritor. In MARINHO, Maria de Fátima; AMARAL, Luís Carlos; TAVARES, Pedro Vilas-Boas, coord. – Revisitando Herculano no bicentenário do seu nascimento. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2013. p. 107.

7 VARGUES, Isabel Nobre; TORGAL, Luís Reis – Da revolução à contra-revolução: vintismo, cartismo, absolutismo: o exílio político. In MATTOSO, José, dir. – História de Portugal. Lisboa: Editorial Estampa, 1993. vol. 5 – O Liberalismo (1807-1890). p. 75-76.

8 NEMÉSIO, Vitorino – A mocidade de Herculano (1810-1832). Amadora: Bertrand, 1979. vol. 2, p. 77.

9 HERCULANO, Alexandre – Composições várias. Lisboa: Bertrand, [19--]. p. 175-241.

10 Uma das principais reacções católica, no período de que tratamos, foi o Ultramontanismo: “o termo se refere a um movimento que, em suma, tentou, após a laicização promovida pelas ideias Liberais e pela Revolução Francesa, retomar o poder papal como referência na Igreja em matéria dogmática, disciplinar e de fé. A expressão ultramontano é uma alusão à Roma que, na perspectiva do norte da Europa, está para além dos montes – os Alpes” Cf. MENDES, Eduardo Soczek – Alexandre Herculano, entre o presbítero e o monge: o (anti)clericalismo e as personagens religiosas em Monasticon (Eurico, o presbítero e O monge de Cister).Curitiba: [s.n.], 2017. Dissertação de mestrado em Letras, apresentada à Universidade Federal do Paraná. p. 24.

11 RODRIGUES, Rute Massano – Op. cit., p. 63.

12 ABREU, Luís Machado de – Ensaios anticlericais. Lisboa: Roma Editora, 2004. p. 35.

13 Idem, p. 22.

14 Idem, p. 13.

15 De acordo com CRUZ, Carlos Eduardo da – Do exílio ao exílio: Alexandre Herculano no Liberalismo português. Revista Garrafa. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro. V. 8 Nº 22 (2010), p. 5. “Herculano fora um dos ‘Voluntários da Rainha’ no regimento que tomou o Porto e fora dispensado por D. Pedro em fevereiro de 1833, para trabalhar de bibliotecário na Nova Biblioteca Pública do Porto”.

16 RODRIGUES, Rute Massano – Op. cit., p. 25.

17 Idem, p. 42.

18 CRUZ, Carlos Eduardo da – Op. cit., p. 2.

19 Idem, p. 5.

20 CLEMENTE, Manuel – Igreja e sociedade portuguesa do Liberalismo à República. Revista Didaskalia. Lisboa: Universidade Católica Portuguesa. Nº XXIV (1994), p. 119.

21 Ibidem.

22 Idem, p. 125.

23 Segundo CRUZ, Carlos Eduardo da – Do exílio ao exílio: Alexandre Herculano no Liberalismo português. Revista Garrafa. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro. V. 8 Nº 22 (2010), p. 21. Herculano “comprou uma quinta em Vale de Lobos em 1859, e mudou-se definitivamente para lá em 1866, onde veio a falecer. Lá em Santarém, ele tentou afastar-se da vida pública, escrevendo menos, dedicando-se […] a revisar sua obra para publicação em volumes”.

24 ABREU, Luís Machado de – Ensaios anticlericais. Lisboa: Roma Editora, 2004. Assim sintetiza as missivas de Alexandre Herculano e a polémica do autor com o clero: “O ano de 1850 viu rebentar, com considerável fragor, a polémica entre a Igreja e Alexandre Herculano. Na sua origem estão os resultados da investigação histórica a que Herculano se vinha dedicando […]. Publica, em 1850, Eu e o clero: carta ao Emº Cardeal-Patriarca. Perante as reacções que não se fizeram esperar, Herculano publicará ainda, nesse mesmo ano sobre a mesma matéria, Cartas ao muito reverendo em Christo padre Francisco Recreio, Solemnia Verba, e Considerações pacificas sobre o opusculo eu e o clero: carta ao redactor do periodico: A Nação (p. 42). Para além das cartas, em 1854, o historiador inicia a publicação de História da origem e estabelecimento da inquisição em Portugal, como espécie de contestação ao clero.

25 José Mattoso e Armindo de Sousa, em Dois séculos de vicissitudes políticas (1096-1325). In MATTOSO, José, coord. – História de Portugal. Lisboa: Editorial Estampa, 1993. vol. 2 – A monarquia feudal (1096-1480), referem da seguinte maneira a construção mítica de Ourique como elemento fundacional de Portugal e da dinastia lusitana: “A coincidência da data da batalha com o dia de S. Tiago, patrono dos cristãos em luta com os Mouros, acentua o simbolismo da admirável vitória […]. / O certo é que a importância atribuída a Ourique não cessou de crescer desde o momento da batalha, e que se foram tecendo em torno dela uma série de relatos maravilhosos, destinados a conferir-lhe um significado simbólico. Esta propensão para mitificar o acontecimento resulta, sem dúvida, de se pretender ligá-lo à fundação da nacionalidade, por se associar à aclamação de Afonso Henriques como rei. […] A associação dos dois factos veio, portanto, a suscitar a necessidadede imaginar uma intervenção divina que demonstrasse o seu sentido transcendente e que sublimasse a função de Afonso Henriques como enviado de Deus para esmagar os inimigos da fé.” (p. 70). Não era com Herculano, porém, a primeira vez que o mito de Ourique fora questionado. Conforme propõe Ana Isabel Buescu em Alexandre Herculano e a polémica de Ourique: anticlericalismo e iconoclastia. In MARINHO, Maria de Fátima; AMARAL, Luís Carlos; TAVARES, Pedro Vilas-Boas, coord. – Revisitando Herculano no bicentenário do seu nascimento. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2013. p. 37-57. “No século XVIII encontramos, é certo, a posição crítica de um Luís António Verney, que no Verdadeiro método de estudar, publicado em 1746, em que o autor põe em causa a veracidade da aparição e a pertinência da tradição de Ourique, assim como casos, embora raros, em que é possível entrever as reservas que o episódio suscitava, para lá de sua legitimação oficial. Por exemplo, a Verdade das historias por questões problematicas (1701) da autoria de Luís Nunes Tinoco, contador do Tribunal dos Contos do Reino, obra manuscrita de carácter sincrético que inventaria e discorre sobre mais de cem questões objecto de controvérsia entre vários autores, inclui entre elas a aparição de Cristo a Afonso Henriques.” (p. 50-51).

26LOURENÇO, Eduardo – Op. cit., p. 24.

27 Idem, p. 82-83.

28 HERCULANO, Alexandre – Eu e o clero: carta ao Emº Cardeal-Patriarca Lisboa: Imprensa Nacional, 1850. p. 18-19.

29 HERCULANO, Alexandre – Eurico, o presbítero. Lisboa: Bertrand, [19--]. p. VI.

30 HERCULANO, Alexandre – Poesias. Lisboa: Bertrand, [19--]. p. 189-204.

31 HERCULANO, Alexandre – Opúsculos I: questões públicas. Lisboa: Bertrand, [19--]. p. 133-135.

32 Idem, p. 135-139.

33 Pio V (1504-1572), antes de ser Papa, foi um religioso da Ordem dos Pregadores (Dominicanos) e empreendeu uma reforma litúrgica, padronizando o Rito Romano na Igreja Latina, durante o período da Contrarreforma (séc. XVI). À página 211 do livro do rito – Missale Romanum – da Missa de Pio V ou Missa Tridentina (rito amplamente vigente na Igreja até a revisão realizada pelo Concílio Vaticano II, de 1962 à 1965), encontramos o referido trecho do Salmo em Latim. (MISSALE ROMANUM, 1935).

34 HERCULANO, Alexandre – Opúsculos I: questões públicas. Lisboa: Bertrand, [19--]. p. 139-141.

35 Idem, p. 142-143.

36 Idem, p. 143.

37 Ibidem.

38 Idem, p. 145-146.

39 Idem, p. 146-148.

40 Referimo-nos, a título de curiosidade, ao prefácio à História da origem e estabelecimento da inquisição em Portugal, à narrativa “O pároco da aldeia (1825)”, bem como ao texto “Do christianismo”.

41</> RODRIGUES, Rute Massano – Op. cit., p. 26.

42 HERCULANO, Alexandre – Opúsculos I: questões públicas. Lisboa: Bertrand, [19--]. p. 148-149.

43 HERCULANO, Alexandre – História da origem e estabelecimento da inquisição em Portugal. 2ª ed. Lisboa: Imprensa Nacional, 1859. p. 37-38.

44 HERCULANO, Alexandre – Opúsculos I: questões públicas. Lisboa: Bertrand, [19--]. p. 191-193.

45 É bastante interessante a breve referência que Herculano faz às filhas de D. Sancho I, que “repousam” no Mosteiro de Lorvão. No entanto, não parece que seja uma alusão ingênua, pois as duas infantas foram muito representativas, por exemplo, como benfeitoras dos mosteiros de Santa Maria de Celas (Coimbra), Santa Maria de Lorvão (Penacova), além da terceira irmã, Mafalda (1195?1196?-1256), que se estabeleceu e foi sepultada no Mosteiro de Arouca. Todas as três, ao fim da vida, passaram a viver em comunidades monásticas. Ora, o autor, ao comentar a presença dos restos mortais de duas delas em Lorvão, entusiastas da vida religiosa, também parece reforçar a sua petição em nome da situação deplorável das cistercienses, que se abrigam sob o mesmo prédio.

46 HERCULANO, Alexandre – Opúsculos I: questões públicas. Lisboa: Bertrand, [19--]. p. 193-194.

47 Idem, p. 194-195 e p. 197.

48 Idem, p. 195-197.

49 Idem, p. 197-198 e p. 200-201.

50 HERCULANO, Alexandre – Lendas e narrativas. Lisboa: Bertrand,[19--]. p. 135-143.

51 HERCULANO, Alexandre – Opúsculos I: questões públicas. Lisboa: Bertrand,[19--]. p. 199.

52 Idem, p. 199-200.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons