SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.ser2 número13As cidades na história: sociedade: atas índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Cadernos do Arquivo Municipal

versão On-line ISSN 2183-3176

Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.13 Lisboa jun. 2020

 

RECENSÃO

 

TORRES, Eduardo Cintra – A greve geral de 1903 no Porto: um estudo de história, comunicação e sociologia. Porto: Afrontamento, 2018.

 

Paulo E. Guimarães*

*Paulo Eduardo Marques da Costa Guimarães, CICP – Centro de Investigação em Ciência Política, Universidade de Évora, 7000-554 Évora, Portugal. peg@uevora.pt

 

 

Eduardo Cintra Torres (ECT) oferece-nos um estudo aprofundado da greve dos tecelões do Porto a partir de um inquérito original que cruza duas perspetivas analíticas: a da história social e a da comunicação social. Estamos perante um estudo de fôlego, desenvolvido ao longo de duas décadas, em torno de um conflito operário que ficou na memória duma geração de sindicalistas portuenses. A abordagem é essencialmente historicista, visando estabelecer factos históricos a partir da análise das fontes disponíveis: a imprensa diária, sindicalista e socialista, complementada e cotejada com documentação relevante que consultou nos arquivos e bibliotecas de Lisboa e do Porto. Os eixos temáticos devem muito à sua formação e aos estudos anteriores de comunicação social, em torno das multidões, da imagem e da opinião pública. Estamos, pois, perante um estudo marginal às análises extensivas e comparativas no estudo das greves, servindo de exemplo os estudos de caso editados por Sjaak van der Velden e outros em Strikes around the world: 1968-2005 (Amsterdam: Arksant, 2007). Em Portugal, como resultado de reuniões académicas patrocinadas pelo Instituto de História Contemporânea (IHC-NOVA FCSH), refira-se a obra coordenada por Raquel Varela e outros, Greves e conflitos sociais em Portugal no século XX (Lisboa: Colibri, 2012) ou ainda De pé sobre a terra: estudos sobre a indústria, o trabalho e o movimento operário em Portugal [Em linha], coordenada por Bruno Monteiro e Joana Dias Pereira (Lisboa: Instituto de História Contemporânea, 2013). Não são abordagens que o autor desconheça, como atesta a extensa bibliografia utilizada na discussão teórica que vai suscitando ao longo dos vários capítulos. Tratou-se de uma opção deliberada. Neste caso, ECT descreve analiticamente a greve operária que envolveu os tecelões da cidade do Porto, entre abril e agosto de 1903, contou com a solidariedade de outras “classes” profissionais, mobilizou a imprensa diária, diferentes grupos sociais e os poderes públicos. No meio da profusão de estudos sobre o movimento operário publicados no último meio século, faltava-nos um estudo pormenorizado de um desses conflitos marcantes da vida social nas primeiras duas décadas do século XX, conflitos que foram pautados por condutas e valores distintos das greves disciplinadas pelos partidos marxistas na Europa Ocidental no último quartel deste século. Foram, além disso, greves que, na época, deixariam traços na própria literatura portuguesa. Tem, por isso, alguma razão o autor quando nota criticamente na Introdução que a historiografia ligada à social-democracia (a que chama de extrema-esquerda) “tem ignorado a greve, apesar do impulso que deu ou pretende dar ao estudo dos conflitos laborais em Portugal” (p. 18). Ora, mais do que ignorar as greves que, de facto, aparecem frequentemente identificadas em narrativas mais amplas, como aconteceu com esta, parece-nos que tem sido a leitura ideologicamente enviesada sobre a prática do sindicalismo revolucionário e do anarquismo que têm feito carreira. É, pois, a narrativa em torno das “insuficiências estratégicas” do sindicalismo livre do passado que o autor acaba por contrariar ao tratar a greve operária como movimento social, estabelecendo a sua estratégia de investigação multidisciplinar e “factual” (p. 19). Percebe-se o fascínio do investigador que descobre que a greve operária era então outra coisa, um evento excecional que ficava gravado naqueles que a viviam (veja-se por exemplo o relato dessa experiência no filme How green was my valey, de John Ford, de 1941): uma luta desigual em que os operários sofriam quase sempre com a fome e repressão e que duraria até que uma das partes capitulasse. Por isso mesmo, interessou recuperar a memória de um conflito-marco que nos abre uma porta para o universo operário deste período.

No primeiro capítulo, ECT apresenta-nos um quadro impressionista da cidade e da sua população, da estrutura e geografia industrial têxtil (dividida em sistema fabril e doméstico), das condições de trabalho, salários e custo de vida. Aí refere a difícil situação económica da indústria têxtil do Porto a braços com o excesso de produção. As políticas protecionistas promovidas pelos sucessivos governos tinham feito prosperar os industriais sem que as condições de vida da população trabalhadora melhorassem. O capítulo realça a diversidade da condição operária, o binómio trabalhador(a) fabril – trabalhador(a) doméstico(a), o trabalhador da cidade e o dos arrabaldes (a população urbana flutuante). A concorrência das “mulheres do campo”, a indústria rural, deprimia ainda mais os magros salários dos operários fabris. A narrativa assenta nos relatos da imprensa operária e das inquirições industriais da época. Assim, por exemplo, a fábrica é o “grande cárcere industrial” onde, em alguns casos, as crianças trabalhavam 16 horas por dia a 70 e 80 réis. Em nenhuma se trabalhava menos de 11 horas por dia. O “operariado têxtil era muito jovem (…) Segundo uma organização operária, três quartos da população operária têxtil do Norte eram menores e crianças” (p. 49). Etc. Estas fontes permitem-lhe ultrapassar análises habituais, mais rigorosas, centradas nos salários, mas que ignoram a distribuição do poder no seio das organizações. Ora, a exploração, decorrente do poder desigual entre mulheres e patrões, passava também pelo assédio sexual (p. 53). A mobilização das mulheres na greve é desde logo destacada. Outras duas dimensões são ainda referidas em cores vivas: a habitação popular coletiva (“as ilhas”) e a sociabilidade.

No segundo capítulo, ECT analisa a atuação do governo de Hintze Ribeiro e das forças repressivas durante o conflito, no qual o governador civil, Adolfo Pimentel, teve um papel central. A greve foi objeto de intervenções de deputados no parlamento face a um governo que se coloca acima dos conflitos particulares mas que, na prática, intervém contra os operários em nome da “ordem pública”. Ficamos sem perceber em que consistia a tolerância das autoridades (p. 82-83), visto que as greves e o incitamento à greve eram crimes puníveis com prisão, prerrogativa que as autoridades não deixaram de exercer. A legislação que criou as associações de classe proibia que estas fossem usadas para promover greves, como o autor reconhece (p. 90). Face ao impasse e dimensão da greve, é o próprio Hintze Ribeiro que dá instruções duras ao governador do Porto para que proibisse as esmolas, garantisse a abertura das fábricas e proibisse as reuniões numa altura em que a maioria das pessoas tinha compaixão pelos famintos que invadiram o centro burguês do Porto. (A geografia das ilhas pareceu-nos que merecia maior atenção). Ora, sabemos que a mediação dos poderes públicos é reclamada pelo Conselho Central da União Nacional das Artes Têxteis de Portugal (Diário da Câmara dos Deputados, 8.6.1903, p. 812) mas que os sindicalistas a rejeitaram. Tal como noutros conflitos, os poderes instituídos não sabiam como lidar com “a questão social”. Republicanos e católicos nacionalistas surgiram neste contexto a especular politicamente sobre uma greve geral que contou com a oposição dos socialistas.

Depois o autor descreve detalhadamente o comportamento da polícia civil, da guarda municipal, da guarda-fiscal, da polícia secreta e dos agentes do Juízo de Instrução Criminal, dando-nos uma visão da dimensão das forças repressivas à ordem das autoridades. O governo mobilizou ainda dois navios de guerra que serviram de prisão. Foram presas centenas de pessoas sem processo nem julgamento durante os meses que durou a greve porque a lei assim o permitia. Da outra parte, os grevistas responderam com a estratégia da “não-violência”, a qual não deixava de envolver ações de persuasão e até de coação face a outros trabalhadores (p. 140-141).

No capítulo seguinte, ECT trata do papel central das greves operárias nos êxitos do movimento operário no Porto, uma tendência partilhada igualmente pela ação sindicalista noutros contextos europeus (p. 144). ECT defende que a experiência adquirida pelos tecelões do Porto na greve de 1895, em que as lideranças socialistas acabaram por trair os tecelões, explicam a adesão à estratégia de inspiração libertária. Uma estratégia que, por vezes, parece não compreender (p. 151-152). Ora, precisamente por os anarquistas serem contra o Estado é que as greves sob sua influência acabariam por se mostrar mais aguerridas na defesa de medidas concretas que aliviassem ou melhorassem a condição operária. A crítica ácida que fazem aos socialistas por assumirem comportamentos colaboracionistas ou possibilistas acaba por ser documentado neste caso quando ECT trata das divisões ideológicas e estratégias no meio operário (p. 162-209). Também os sindicatos operários “não foram legalizados em 1891 com o nome de associações de classe” (p. 155), visto que até aí eram permitidas por alvará ou tinham funções assumidas pelos montepios operários (v. por ex. PORTARIA de 27 de Fevereiro de 1888. D.G., 47 (1888-02-28). O decreto de 9 de Maio de 1891: [D.G., 106 (1891-05-14)] foi uma tentativa do regime constitucional para disciplinar a atividade das “associações de classe” fossem elas patronais, de empregados, de operários e trabalhadores ou mistas, tal como era já manifesto na Portaria de 20 de fevereiro desse ano (D.G., 40, 1891-02-21). Também os governos recearam que os fundos das mutualidades operárias servissem para apoiar grevistas.

A parte mais rica e interessante deste capítulo consistiu em mostrar como se comportavam, na prática, os socialistas (intermediários disponíveis para negociar compromissos, sacrificando para tal as aspirações da classe que representariam) e os anarquistas (divididos em várias correntes) que, desde a década de 1880, eram ativos no Porto (p. 179). A greve de 1903 assinala a entrada destes últimos no meio sindical, sem que deixassem de criticar por isso mesmo a vida medíocre de muitos sindicatos operários submetidos às orientações partidárias (p. 178). Face às classes dominantes, ECT nota diferentes atitudes: “os anarquistas representavam a insolência (…) e os socialistas representavam o respeito, a herança das antigas corporações mas também o resultado do orgulho de classe. (…) Os insolentes não respeitam nada” (sic). Apesar de reconhecer as diferenças de fundo face aos socialistas marxistas, o autor mostra dificuldades em conciliar a defesa acrata da ação direta com a sua “opção pela não-violência” (sic), bem como o sentido do seu apoliticismo que identifica com falta de cultura política ou despolitização (p. 192-194). Ora, se reconhecemos princípios anarquistas no repertório do conflito, a dimensão do seu envolvimento ficou por estabelecer. No final, o autor acaba por confessar que “os indícios mais concretos da presença anarquista na greve são escassos” pois eles “não são identificados nem singularizados como líderes” (p. 203). Em contrapartida, a influência do anarquismo no meio académico é notável, chegando a constituir-se um Comité Académico-Operário. A parte final do capítulo é destinada aos nacionalistas católicos e ao seu projeto cultural colaboracionista, apresentando com maior detalhe a ação do Círculo Católico dos Operários do Porto. Também eles se opuseram à greve, não deixando, porém, de socorrer os famintos.

O capítulo 4 descreve e analisa a greve enquanto movimento, identificando cinco fases entre 28 de abril e 12 de agosto. Sem surpresa, mostra-se o papel relativamente secundário das associações de classe, a natureza clandestina da greve (devido às perseguições policiais), as formas de decisão democrática (“a soberania do colectivo”), de coação e a resposta à violência emergente a partir de baixo (a “violência”), enfim, o papel importante que teve a solidariedade dos trabalhadores das diferentes fábricas e de outras classes para resistir aos meses de fome. O autor destaca a ação desenvolvida por grupos de operários junto dos fura-greves e dos “traidores da classe”, entre outras ações que classifica como “táctica não-violenta” (p. 268). Esta passava também pela conquista dos corações (expressão nossa), por estratégias de comunicação destinadas a captar a compaixão pública, pela exibição pública da miséria acusatória, pela mendicidade no centro da cidade, pela resistência passiva à autoridade. Refere ainda a cozinha económica, a distribuição dos filhos dos grevistas por outras classes e algum apoio internacional. Pouca informação temos, porém, sobre as reivindicações salariais de uma classe dividida entre operários têxtis mecânicos (fabris) e manuais, entre grupos etários e sexuais, ofícios e tarefas.

Os três capítulos finais, mais curtos, são destinados à análise dos diferentes tipos de “multidão na greve geral”, da imprensa portuense (“um quarto poder inesperado”) e do “impacto da greve na literatura”. ECT mostra-nos a importância do espaço público: os grevistas saíam das ilhas-gueto para ocupar os espaços urbanos centrais, exibindo a miséria coletiva. Essa “estratégia” captaria a simpatia do público e da imprensa para a sua causa, a qual teria um papel importante no desenrolar dos acontecimentos. A ação hesitante das autoridades passou, pois, pela repressão das multidões. A independência do jornalista e da imprensa popular são destacadas num país onde “a liberdade de imprensa era quase total” (p. 346). Os acontecimentos eram então “descritos com detalhes a que o leitor contemporâneo já não está habituado” (p. 360). Entramos aqui no universo profissional da informação popular diária que vive um período áureo. O último capítulo é quase um apontamento, onde, a par dos poemas alusivos à greve, ECT se detém na descrição d' Os famintos de João Grave (1872 – 1934), obra publicada como folhetim no jornal da classe têxtil.

Nas conclusões finais, o autor acaba por identificar nesta greve o que podemos apontar como comunalidades no reportório de ação coletiva das greves operárias até ao final do primeiro terço do século XX. Em primeiro lugar, o de se transformarem em movimento capaz de evoluir devido à sua duração, dureza (fome) e à resposta repressiva do poder político. Depois, distinguem-se pela autonomia dos grupos atuantes face às direções sindicais, pela sua democraticidade interna, pelas formas de solidariedade que se geraram, pelas simpatias que foram capazes de gerar junto do público e da imprensa diária. Finalmente, na linha do que nós próprios mostrámos há muito para o sindicalismo mineiro alentejano durante a República, estamos perante conflitos industriais modernos.

A obra apresenta-se profusamente ilustrada com fotografias, desenhos (caricaturas), postais e documentos fac- -similados inéditos que ora ilustram o texto, ora fundamentam as ideias do autor ou nos remetem para o universo mediático e simbólico do período. A par destas imagens, o autor insere no texto “caixas” com notas informativas e documentais (transcrições) complementares. O resultado é esteticamente apelativo e a obra certamente interessa, pela sua atualidade, a um público mais vasto que o académico. Não cabe aqui fazer uma análise crítica a um trabalho extenso bem documentado que permite ao leitor reconstruir sentidos e interpretações, abrindo pistas ao investigador. No conjunto, estamos perante uma das contribuições mais interessantes e valiosas produzidas nos últimos anos para compreendermos a ação sindicalista e o universo operário dos princípios do século XX em Portugal bem como as propostas emergentes, por parte dos grupos dominantes, para resolver “a questão social”.

Pinhal Novo, 8-10 de abril de 2020

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons