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Cadernos do Arquivo Municipal

On-line version ISSN 2183-3176

Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.13 Lisboa June 2020

 

Introdução

Indústria e trabalhadores no período contemporâneo

Magda de Avelar Pinheiro*

*Magda de Avelar Pinheiro, CIES – Centro de Investigação e Estudos de Sociologia,ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa, 1649-026 Lisboa, Portugal. magda.pinheiro@iscte-iul.pt

 

Este número dos Cadernos do Arquivo Municipal responde a um apelo de comunicações sobre a cidade industrial e os seus trabalhadores no período contemporâneo. No dealbar do século XIX, Lisboa já era a maior cidade portuguesa há muito tempo, e se o seu ritmo de crescimento não lhe permitiu seguir os ritmos Europeus, a sua supremacia em termos nacionais saiu reforçada. Os seus limites foram alargados nos anos oitenta do século XIX e precisados no início do século XX, quando a suburbanização já se afirmava. Em 2003 a metrópole, em gestação desde os anos setenta, traduziu-se numa nova entidade legal sem, porém, anular o poder dos municípios reafirmado após Vinte e Cinco de Abril de 1974. É sobre a história deste espaço que incide a maior parte dos artigos.

O estudo da cidade industrial e da sua complexidade social tem beneficiado do intenso florescimento da História Urbana que se verificou desde os anos oitenta do século XX, com um epicentro nitidamente situado no mundo anglo-saxónico onde os estudos urbanos se desenvolveram mais rapidamente1. Na tradição francesa, que Portugal seguiu de forma predominante até à integração europeia, a história urbana, e em particular a história das cidades no mundo contemporâneo, teve um desenvolvimento mais lento. No entanto, o atraso foi rapidamente ultrapassado sendo de salientar os contributos de Alain Faure, Jean-Luc Pinol e Annie Fourcaut2, esta última especializada no estudo das banlieues e do habitat operário.

A expansão da História Urbana afirmou-se em comunidades de historiadores cada vez mais interligadas através da participação em projetos e programas universitários comuns ou colóquios como os organizados em Lisboa por associações internacionais, como a Associação Europeia de História Urbana ou a Comissão Internacional para a História da Cidade3. As equipas tornaram-se também progressivamente mais interdisciplinares sendo de salientar neste domínio o projeto subjacente ao livro L'Aventure des mots de la ville a travers le temps, les langues, les sociétés, de Christian Topalov, Lorent Coudroy de Lille, Jean-Charles Depaule e Brigitte Martin com participação de historiadores, geógrafos, antropólogos e sociólogos incluindo portugueses e brasileiros4.

Para o progresso das problemáticas utilizadas pelos historiadores portugueses também contribuíram estudos mais precoces de geógrafos, sociólogos e antropólogos, de que salientarei em particular Teresa Barata Salgueiro, António Firmino da Costa, Luís Vicente Baptista e Graça Índias Cordeiro por os seus estudos serem relevantes para o tema aqui abordado5.

A própria História da Industrialização evoluiu significativamente enfatizando a importância do mercado e dos mercados urbanos no processo de industrialização6. Uma nova visão das relações entre o campo e a cidade, e entre esta e os mundos coloniais, emergiu7. Luminosos capítulos em livros como os da dupla Paul Hohemberg and Lyn Hollen Lees, The making of urban Europe e Cities and the making of Europe, ajudaram a uma mudança de paradigma que revalorizou não só o papel da pequena indústria e dos artesãos como também salientou a existência de deslocações periódicas de trabalhadores entre cidades ou entre a cidade e o campo8. A industrialização e desindustrialização apareceram como duas faces da mesma moeda considerando-se o carácter regional e a excecionalidade da concentração dos trabalhadores em grandes fábricas. As cidades portuárias também foram objeto de estudos que enfatizaram a importância e as especificidades das indústrias que lhes estão associadas9. O estudo das chamadas indústrias urbanas, que se expandiram em relação com o crescimento urbano fazendo face à modernização dos modos de vida de populações em crescimento, como as indústrias dos transportes urbanos, da produção e distribuição alimentar, da distribuição de água a domicílio, da produção e distribuição de eletricidade, gás e calor foram equacionados10.

A emergência do uso de imagens como fonte para a história, magistralmente estudada por Francis Haskel, foi particularmente frutuosa na História Urbana11. A importância da fotografia para a história das classes populares em Lisboa foi abordada por Nuno Pinheiro, tendo já sido alvo de ampla publicação por Maria Filomena Mónica e António Barreto12.

A primeira industrialização contemporânea de Lisboa foi objeto de estudo em teses de doutoramento de Valentim Alexandre, Nuno Luís Madureira, e de mestrado de Jorge Manuel Pedreira13. Francisco Santana publicou um precursor artigo sobre a introdução da máquina a vapor em Portugal na Revista Arqueologia e História, em 1984, estabelecendo a sua introdução na fábrica do Bom Sucesso em Lisboa nos anos vinte de Oitocentos14. Miriam Halpern Pereira, partindo da documentação das Cortes Constituintes, analisou as expectativas dos Negociantes, fabricantes e artesãos no primeiro liberalismo15. Já Maria de Fátima Bonifácio, em artigo publicado na revista Análise Social, comparou a industrialização de Lisboa e do Porto após o triunfo do Liberalismo16. A industrialização no século XIX foi estudada por David Justino no primeiro volume da sua tese de doutoramento17.

Ao mesmo tempo, os estudos sobre planeamento e arquitetura urbanos, centrados nos edifícios notáveis e na autoria, foram evoluindo procurando integrar as transferências internacionais de modelos, a história da construção e a dos edifícios comuns.

O acesso alargado a grandes massas de documentos que a informatização permite abriu a porta às novas tecnologias de tratamento das fontes. As novas metodologias de estudo do espaço proporcionadas pela georreferenciação e pelos SIGS também se afirmaram. Na Península Ibérica vários projetos incluíram investigadores portugueses que, em torno de Luís Espinha da Silveira no IHC-UNL, utilizaram esta nova metodologia.

A capacidade acrescida de deslocação a colóquios internacionais, a internacionalização das equipas de investigação e mesmo a realização, em Lisboa, no Porto e noutras cidades, de colóquios das associações internacionais de História Urbana proporcionaram um desenvolvimento muito substantivo da disciplina18. Este desenvolvimento abrangeu todos os períodos históricos incluindo os séculos XIX e XX.

Cadeiras de licenciatura, seminários de mestrado ou doutoramento, seminários interdisciplinares de investigadores abordaram os temas urbanos e as suas vertentes, sendo de salientar o conjunto de seminários publicado sob o título de De pé sobre a terra por Joana Dias Pereira e Bruno Monteiro.

O número 13 dos Cadernos do Arquivo Municipal dedicado à indústria e operários nos séculos XIX e XX reflete, sem dúvida, essa renovação.

Desde logo, o tema da habitação operária está presente em dois artigos deste número utilizando metodologias e fontes muito diversas. Ambos vêm atualizar e aumentar o nosso conhecimento sobre a habitação das classes trabalhadoras. Maria Clara Bracinha Vieira explora a documentação do Arquivo Municipal e o seu largo conhecimento presencial dos prédios de Lisboa, num estudo minucioso dos espaços habitados pelas classes trabalhadoras comparando-os com os espaços habitados pelas classes altas. O seu estudo enfatiza ainda a importância das circulações internacionais de pessoas e modelos neste processo. No seu artigo, as teorias e práticas do planeamento urbano são associadas ao nascimento de um zooning social.

Ambos os estudos referem a relevância das perceções das doenças, associadas às classes populares para a compreensão das mutações da habitação operária. Ana Alcântara estuda a localização da habitação operária utilizando a metodologia dos sistemas de informação geográfica para fazer mapas que mostram essa localização.

A problematização sofisticada na abordagem da ideologia e das práticas das organizações operárias caracteriza o estudo dos tabaqueiros que nos é aqui apresentado por Rui Brás. Este artigo foge a uma vulgata que reduz o movimento operário a uma genealogia dos movimentos marxistas e mesmo leninistas desvalorizando paralelamente uma parte das práticas e discursos oriundos do mundo operário. A atenção dada à importância das operárias nos movimentos reivindicativos é outro dos elementos a salientar neste estudo.

Beatriz Peralta Garcia traz-nos uma visão inovadora da cultura operária na segunda metade do século XIX, um mundo ainda muito pouco estudado na sua riqueza e pluralidade. Salienta a importância do teatro e das novelas que divulgaram a vida operária na sociedade portuguesa ultrapassando o nível lisboeta, mas dando-lhe relevo. Neste domínio muito fica ainda por estudar. Orfeões, sociedades filarmónicas e grupos de teatro foram fundamentais no nascimento de uma cultura através da qual as classes populares procuravam não só ultrapassar as carências do ensino e do acesso à cultura das elites como dar a conhecer a sua situação.

Introduzindo o aspeto comparativo, o artigo de Tiago Castaño de Moraes dá-nos a conhecer a importância dos emigrantes europeus para o desenvolvimento da indústria alimentar e seu progresso no Sul do Brasil. Fazendo uma larga panorâmica da importância da construção das vias férreas no desenvolvimento do mercado no sul do Brasil incide sobretudo na modernidade tecnológica da Cervejaria Catharinense, em Joinville, e na sua precoce utilização da energia elétrica. O autor também se debruça sobre o contexto operário e sua divisão em dois ramos, o dos luso descendentes e o dos descendentes de alemães, que dificultava a existência de um movimento social único. Refere ainda as greves no período da Primeira Guerra Mundial e a intervenção estatal do período de Gertúlio Vargas. Saúda que o fecho da fábrica após a fusão de várias empresas produtoras de cerveja brasileiras se tenha traduzido na classificação do edifício como património industrial.

A história da indústria e do operariado fabril em Lisboa não se pode reduzir a uma cidade cujos limites foram alargados em 1885 e, desde 2003, se constituiu como metrópole legal. Desde meados do século XIX que na Margem Sul floresceu a pequena e a grande indústria. Grandes conglomerados, como a CUF e os Estaleiros Navais presentes nas duas margens do Tejo, conheceram lutas operárias mesmo durante o Estado Novo. Assim aconteceu com a greve geral de 1943 para a qual as fontes fotográficas são particularmente relevantes19. Com a política de industrialização acelerada após a Segunda Guerra Mundial, a indústria pesada desenvolveu-se ainda mais na península de Setúbal assim como no eixo Lisboa-Vila Franca de Xira20. A instalação da Siderurgia Nacional em Paio Pires veio afirmar uma presença da grande indústria anteriormente representada sobretudo pelo complexo industrial da CUF no Barreiro. Nos finais dos anos sessenta (1966), os estaleiros da Lisnave em Margueira abriram e, beneficiando da crise dos transportes no Canal de Suez, tornaram-se um grande empregador. Paralelamente assistiu-se a um florescimento da cultura operária e, mais tarde, dos movimentos influenciados pelo anarco-sindicalismo, pelo socialismo e finalmente pelo marxismo-leninismo nas suas diferentes vertentes. Os estaleiros navais da Lisnave e da Setenave foram particularmente notáveis pelas lutas que, nalguns casos mesmo antes do 25 de Abril, aí se desenvolveram. Estudos precoces de sociólogos, como o de Vasco Pulido Valente, sobre os conserveiros de Setúbal ou de Marinús Pires de Lima, sobre a Lisnave, desbravaram o tema que, no presente número, se encontra representado pelo artigo de Jorge Filipe Figueiredo Fontes e Palmela Peres Cabreira sobre o movimento operário na empresa Setenave de Setúbal durante o chamado “verão quente” e no período que se lhe seguiu21. Este artigo não se limita a analisar o desenrolar do processo revolucionário na Setenave, mas também descreve as lutas pela autogestão e controlo operário das mulheres, na Sogantal, no distrito de Setúbal.

Este número sobre a indústria e os operários inclui ainda, na rubrica Documenta, com o título Luz e sombra: 100 imagens do mundo operário no limiar do século XX, um conjunto de imagens reunidas por Nuno Gomes Martins, que é também o autor do texto que as introduz. Nunca será demais salientar a importância do acervo fotográfico do Arquivo da Câmara Municipal de Lisboa para o estudo do operariado e da indústria. Este conjunto deve ser complementado com a pesquisa nos arquivos dos municípios da área metropolitana e nos seus museus. Não podemos também deixar de salientar a importância dos acervos sobre os trabalhadores industriais das empresas de serviços urbanos, da Central Tejo ou de transportes como a CP. Devemos, por fim, referir a importância dos trabalhadores das manufaturas e arsenais dos ministérios da Guerra e da Marinha no contexto lisboeta. Os arquivos de todas estas entidades têm numerosas fontes indispensáveis ao estudo dos movimentos sociais, desde a aurora do Liberalismo até ao Estado Novo.

 

 

NOTAS

1 RODGER, Richard – O futuro do passado urbano: novas direcções para a história urbana britânica?. Ler História. Nº48 (2005), p. 187-204. Número especial: Cidades e espaços urbanos.

2 FAURE, Alain – Les premiers banlieusards. Paris: Creaphis, 1991. p. 284; PINOL, Jean-Luc – Le monde des villes au XIX siècle. Paris: Hachette, 1991. p. 230; FOURCAUT, Annie – Bobigny banlieue rouge e FOURCAUT, Annie –La banlieue em Morceaux. Paris: Creaphis, 2000. p. 335.

3 Frédéric Vidal é um caso especial pois foi devido a um projeto europeu de ensino comum que este investigador veio estudar para Lisboa. VIDAL, Frédéric – Les habitants d'Alcântara: histoire sociale d'un quartier de Lisbonne au début du 20e siècle. Villeneuve d'Ascq: Presses Universitaires du Septentrion, 2006.

4 TOPALOV, Christian [et al.], dir. – L'aventure des mots de la ville a travers le temps, les langues, les sociétés. Paris: Laffont, 2010. p.1489.

5 SALGUEIRO, Teresa Barata – Uma geografia urbana. Porto: Afrontamento, 1992. p. 433; COSTA, António Firmino da – A sociedade de bairro. Oeiras: Celta, 1999. p. 539; BAPTISTA, Luís Vicente – Cidade e habitação social. Oeiras: Celta, 1999. p. 224. CORDEIRO, Graça Índias – Quotidiano, memória e representação no Bairro da Bica. Lisboa: Etnográfica, 1997.

6 MATHIAS, Peter; DAVIS, John A., ed. – The first industrial revolutions. Blackwell: Oxford, 1989. p. 175; VERLEY, Patrick – La Revolution Industrielle, 1760-1870.Paris: MA, 1985. p. 270.

7 A emergência do conceito de proto-industrialização foi também fundamental. KRIEDTE, Peter; MEDICK, Hans; SCHLUMBOHM, Jügen – Industrialization before industrialization. Cambridge: Cambridge University Press, 1981.

8 LEES, Andrew; LEES, Lyn Hollen – Cities and the making of Modern Europe, 1750-1914. Boston: Cambridge UP, 2007. p. 13-69 e 300.

99 International Commission for the History of Towns – Towns and communications, communication between torns. Lecce: Salento U.P., 2011. vol. II, p. 404.

10 MATOS, Ana Cardoso de; COSTA, Fernando – As imagens do gás, as companhias de gás e electricidade e a produção e distribuição de gás em Lisboa. Lisboa: Fundação EDP, 2005. p. 256.

11 HASKELL, Francis – History and its images: art and the interpretation of the past. Yale: Yale University Press, 1983.

12 BARRETO, António – Retrato da Lisboa popular, 1900. Lisboa: Presença, 1983. p. 173; PINHEIRO, Nuno – O teatro da sociedade, fotografia e representação social no espaço privado e no público. Lisboa: Centro de Estudos de História Contemporânea Portuguesa, 2006. p. 240.

13 ALEXANDRE, Manuel Valentim – Os sentidos do Império. Porto: Afrontamento, 1993. p. 837; MADUREIRA, Nuno Luís – Mercado e privilégios: a indústria portuguesa entre 1750 e 1834. Lisboa: Estampa, 1997. p. 514; PEDREIRA, Jorge Miguel – Industria e atraso económico. Lisboa: [s.n.], 1986. Dissertação de mestrado apresentada à Universidade Nova de Lisboa.

14 SANTANA, Francisco – A introdução da máquina a vapor em Portugal. Arqueologia e História. Série X Vol. I/II (1) (1984/88), p. 203-209.

15 PEREIRA, Miriam Halpern – Negociantes, fabricantes e artesãos: entre velhas e novas instituições. Lisboa: Sá da Costa, 1991. p. 530.

16 BONIFÁCIO, Maria de Fátima – Lisboa, bastião do proteccionismo (pautas, política e indústria nos anos 30-40 do século passado). Análise Social. Vol. XXVI Nº112-113 (3º 4º 1991), p. 515-535.

17 JUSTINO, David – A formação do espaço económico nacional. Lisboa: Vega, 1988. vol. I, p. 407.

18 Nomeadamente os colóquios da European Association for Urban History, em 2014, e da International Commission for the History of Towns, em 2015, Guimarães e as Cidades do Tempo, em 2017.

19 SILVA, José Miguel Leal da - 60 anos depois... as fotografias da greve de 1943. In 60º ANIVERSÁRIO DA GREVE DE 1943 NO BARREIRO, Barreiro, 2003 – Comunicações. Barreiro: Câmara Municipal, 2005.

20 PINHEIRO, Magda – The making of a metropolis in a developing country: Lisbon, 1950-2000. In NILSSON, Lars, ed. – The coming of the post-industrial city: challenges and responses in Western European Urban Development since 1950. Stockholm: Stads-Och Kommunhistoriska Institutet, 2011. p-135-147.

21 VALENTE, Vasco Pulido – Os conserveiros de Setúbal, uma elite operária. Análise Social. Vol. XIII Nº 67-68 (1981), p. 615-678; LIMA, Marinús Pires de e outros – A acção operária na Lisnave: análise da evolução dos temas reivindicativos. Análise Social. Vol. XIII Nº 52 (4º 1977), p. 829-899.

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