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Cadernos do Arquivo Municipal

versão On-line ISSN 2183-3176

Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.12 Lisboa dez. 2019

 

RECENSÃO

HESPANHA, António Manuel – Uma monarquia tradicional: imagens e mecanismos da política no Portugal seiscentista. [S.l.]: Edição do Autor; Kindle-Amazon, 2019 e HESPANHA, António Manuel – Uma monarquia constitucional: a Constituição monárquica oitocentista. [S.l.]: Edição do Autor; Kindle-Amazon, 2019.

José Subtil*

*José Manuel Louzada Lopes Subtil, UAL – Universidade Autónoma de Lisboa, 1169-023 Lisboa, Portugal. josemsubtil@gmail.com

 

 

Alguns meses antes da sua morte (1 de julho de 2019), António Manuel Hespanha (AMH) publicava dois livros sobre os mecanismos de poder da monarquia corporativa e constitucional durante os séculos XVI, XVII e XIX, deixando o século XVIII para uma posterior abordagem que não chegou, infelizmente, a poder concretizar, muito embora a sua obra esteja repleta de análises sobre o reformismo iluminista pombalino e pós-pombalino.

No primeiro livro, AMH recapitula muito do que publicou sobre a organização política e social da época moderna, mas acrescenta e revigora outras interpretações, particularmente sobre o governo ultramarino, as crises da união ibérica e da restauração e a questão constitucional da época moderna, incontestavelmente inovadoras e, de certo modo, novas na sua bibliografia, pelo menos com o caráter de síntese que emprestou a estes textos.

Os aspetos mais nucleares do modelo político desta sociedade, o governo e as formas de governar que AMH distinguiu como polissinodais, plurais e corporativas, ao arrepio, portanto, de qualquer centralidade ou “absolutismo” régio como foi, e ainda é, sugerido por grande parte da historiografia sobre o período referente ao Antigo Regime (séculos XVI a XVIII) são, de novo, passadas em revista. As áreas estruturantes de governo como a justiça, graça, economia e política, ao lado do inventário das tecnologias e dispositivos de poder e da relação e comunicação política do centro (a Corte) com a periferia (concelhos e comunidades) merecem um destaque especial nesta obra. É reconhecido, mais uma vez, o efeito contrário à hipotética arbitrariedade do poder da “graça” do monarca, ou seja, da dispensa da lei, quando AMH realça que o monarca, mesmo dando o que não é obrigado a dar, tem que o fazer regulado e constrangido por determinados princípios e regras “constitucionais” que limitam a sua vontade. Podendo, todavia, não dar o que poderia dar se a isso não fosse obrigado. Esta foi, aliás, uma das mais originais interpretações do António Manuel Hespanha sobre a economia da graça, sobretudo na sua dimensão de capital simbólico do poder régio que, neste livro, retoma em forma de síntese, mas, também, de complemento político substantivo.

Outro detalhe abordado no livro tem a ver com o sentido da reforma manuelina dos forais que, ao contrário de uma leitura centralista e centralizadora da Coroa, terá contribuído, segundo AMH, para o reforço das autonomias locais e do autogoverno das comunidades e concelhos como, aliás, se viria a provar, muito mais tarde, na altura da reforma liberal de Mouzinho da Silveira (1832-1834), tal foi a forma e a intensidade com que os concelhos se opuseram à nova tentativa de usurpação das suas autonomias.

Fixando-se, de forma surpreendente e inovadora, sobre o período da Casa dos Áustria, AMH estuda a reação das Cortes de 1641 ao processo de Restauração que esteve longe da euforia mítica de uma apoteose patriótica e nacionalista como foi sugerido pelo imaginário dos historiadores românticos e estadualistas do período liberal, uma representação política que continua, ainda, a alimentar o ’orgulho’ do processo da independência contra a usurpação do trono de Portugal por reis estrangeiros e logo castelhanos.

De igual modo, o fez, também, para o período colonial ao enfocar no mesmo modelo de interpretação a imagem de um “império” controlado pelo Reino e pela Corte de Lisboa numa pretensa unidade política, administrativa e jurisdicional, quando a realidade dos factos aponta para a reprodução do pluralismo político que vigorava no Reino com níveis de acentuada autonomia e grande intensidade de governança própria.

Neste capítulo, AMH traça um novo modelo de interpretação política sobre o império de que foi, aliás, um percussor de referência, acabando por influenciar, de forma seminal, uma certa historiografia brasileira que, desde então, tem adotado outro entendimento da relação entre a metrópole e o Brasil e, num sentido mais amplo, com o restante império. Abordando o direito colonial como uma pluralidade de direitos, desconstruiu o mito da “correia de transmissão” do poder régio através dos lugares ocupados pela nobreza no governo geral e dos oficiais régios das capitanias e sedes das principais câmaras que assegurariam a vontade régia e consumariam, deste modo, a centralização do mando. Essa desconstrução foi pensada nas fragilidades das condições existentes para o exercício do poder, da autoridade política e da incapacidade de apropriação e captura dos poderes periféricos pelos eventuais guardiões e donos da vontade do monarca. E foi, igualmente, fundamentada na abordagem da doutrina jurídica sobre os poderes dos vice-reis, a autonomia dos donatários e governadores das capitanias, o deslaçamento hierárquico entre os magistrados letrados, a proliferação de câmaras com juízes ordinários eleitos pelas partes (quase todas), a diminuição política dos tribunais superiores e a falta de qualidade dos oficiais régios no processamento administrativo e na manutenção burocrática. Tudo apontando, portanto, para que deste modelo de entendimento decorram efeitos e consequências quanto ao conceito de “exploração” e “coerção” durante o processo de colonização.

Contra as obstinações da historiografia de cariz estadualista, AMH socorreu-se da sua competência de jurista para abordar os meandros da dogmática jurídica, tanto para nos conduzir no mundo das ideias conformadoras do pensamento da época, com consequências políticas e sociais, como para nos apresentar as variáveis e variantes da visão do mundo modernista e as suas representações mais significativas, realçando, mais uma vez, que as mesmas não equivaliam somente à cultura da época, tinham continuidades medievais. Faziam, além do mais, parte do quadro “constitucional” da forma de governar, ou seja, a dogmática condicionaria, por esta via, a tomada de decisões políticas e regulava o processo judicial que, por sua vez, se alocava ao processo administrativo. Aqui e ali, AMH sempre se aproximará ao século XVIII, sobretudo à segunda metade, para nos chamar a atenção que este novo modelo estará em disseminação, a favor do cálculo político das oportunidades e dispensando molduras constitucionais como demonstram as reformas iluministas e regalistas da “Boa Razão” e da política do “bem comum”, acima das vontades particulares e corporativas.

Um dos tratamentos mais emblemáticos e detalhados da proposta metodológica de AMH tem a ver com o conceito alargado de “constitucionalismo moderno”, onde engloba as leis fundamentais, os capítulos das Cortes, os regimentos sobre privilégios, o direito dos tribunais, os costumes, a tradição e o direito canónico. A “Constituição” da época moderna estava, portanto, longe da ideia de depender da vontade dos membros do corpo político escolhidos com representantes dos representados de acordo com a matriz do mandato, porque os corpos representativos da sociedade, incluindo o rei, eram o próprio Reino “em virtude de uma relação necessária, que não passava nem por qualquer teoria do contrato social, nem pela teoria do mandato representativo que moldou a teoria política desde o século XIX” (p. 77).

Uma outra novidade temática deste volume diz respeito à rutura ’constitucional’ decorrente da política de Olivares e da monarquia da Casa dos Áustria, sobretudo os aspetos decorrentes da relação do rei com as Cortes, o Reino e a justiça. A este propósito, AMH passa em revista a historiografia portuguesa sobre os reinados filipinos e as reações tanto à união (1580) como à Restauração (1640).

A obra contém, ainda, outros capítulos de grande interesse como os das estruturas financeiras, a gestão dos tributos, as rendas, os próprios da Coroa, as alfândegas, a evolução das rendas da Coroa, a organização militar e a importância da guerra na cultura da disciplina e da ética individual.

No segundo livro, AMH acentua as premissas de uma história não formalista da constituição, mesmo após as revoluções liberais, no caso português, a revolução de 1820, recusando-se a ver nas “alterações políticas revolucionárias algo que se reduza apenas aos mecanismos do direito oficial e do Estado, abrangendo, pelo contrário, a consideração de outros níveis do poder – como a igreja, a família, a burocracia, a ciência – e de mecanismos de condicionamento social diferentes dos mecanismos jurídico-institucionais, como a opinião pública” (p. 7). A função constitucional no apoio ao sufrágio universal, as mudanças na legislação eleitoral e a ficção da representação política levaram AMH a colocar em confronto o papel do parlamento, a valorização do soberano, a cedência da “ortodoxia ideológica” à “viabilidade das soluções”.

Os temas abordados neste livro dizem respeito à configuração do território, estrutura constitucional, sistema eleitoral, direitos fundamentais, administração, organização judicial, organização militar, cultura constitucional, organização eclesiástica, sistema educativo, finanças e legislação económica e social. Todos são tratados de forma diferente e em comparação para cada secção cronológica. A primeira sobre o legado do Antigo Regime, a segunda sobre a fase de implantação do liberalismo (1822-1850) e a terceira fase referente à estabilização e queda (1851-1910). Uma das partes mais justificadas por AMH, do ponto de vista analítico, foi a problemática da Carta Constitucional e os Atos Adicionais, a Nova Reforma Judicial (1836-37) e a Novíssima Reforma Judiciária (1841), as suas relações com as justiças eletivas, a organização da justiça e a sua territorialização e o papel desempenhado pelos tribunais superiores.

Como foi sempre costume nas suas obras, também estes dois livros apresentam uma assinalável quantidade de notas de rodapé que suportam detalhes sobre o texto principal e são de uma grande utilidade. O mesmo se passa com as extensas e oportunas referências bibliográficas que orientam o leitor para escolhas temáticas e aprofundamentos de outras.

Em conclusão, as obras que acabamos de examinar e recensear de forma sumária, com uma ou outra chamada singular, constituem dois contributos de António Manuel Hespanha para sinalizar e consolidar a rutura epistemológica e metodológica que operou na historiografia política e institucional há cerca de 30 anos e que, até à sua morte, continuou a revelar novos objetos de estudo, diferenças nas visões da ordem jurídica, política e social, contribuindo, deste modo, para a qualificação da atual historiografia do poder e sobre o poder, tanto a nível nacional como internacional. Em especial, a sua vitalidade para convocar para a teoria e as interpretações, a capacidade empírica, quer arquivística como bibliográfica, insistindo em corrigir ’evidências’ historiográficas clássicas e subordinar as pré-compreensões ao conhecimento de cada época tão diferente da que hoje temos, desviando-nos de “clichés e de ideias feitas (…) [e insistindo] muito nos factos, sobretudo em factos massivos cuja lógica de conjunto normalmente escapa a abordagens impressionistas ou dirigidas por ideias prévias” (p. 3).

O leitor mais atento à sua obra e especializado na época moderna encontrará, nestas duas obras, material inusitado e de relevante interesse para a história do pensamento político, da construção do Estado, da nacionalidade e da formação das comunidades políticas.

Por outro lado, o leitor menos familiarizado com estas questões poderá prosseguir o aprofundamento e a análise das suas implicações na vida dos contemporâneos do passado como do tempo presente, mais capazes de lidarem com dispositivos ficcionais, imaginários culto-mentais e poderes invisíveis que, ao lado das formas de organização proto-estadualistas e estadualistas, organizaram a vida em sociedade.

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