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Cadernos do Arquivo Municipal

versão On-line ISSN 2183-3176

Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.12 Lisboa dez. 2019

 

Introdução

Bairros de Lisboa: perspetivas da história e desafios futuros

Raquel Henriques da Silva*

Margarida Elias**

*Raquel Henriques da Silva, Departamento de História da Arte, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas/Universidade NOVA de Lisboa, 1069-061 Lisboa, Portugal. raquelhs10@gmail.com

**Margarida Elias, IHA-Instituto de História da Arte, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas/Universidade NOVA de Lisboa, 1069-061 Lisboa, Portugal. elias.margarida@gmail.com

 

«Um bairro urbano, na sua definição mais simples, é uma área de carácter homogéneo, reconhecida por indicações que são contínuas dentro desta área e descontínuas num outro local».

Kevin Lynch - A imagem da cidade. Lisboa: Edições 70, 1982. p. 116.

 

É um lugar-comum falar-se sobre Lisboa como uma “cidade de Bairros”, designação usada mesmo em documentos técnicos como, por exemplo, na Carta Estratégica de Lisboa 2010-2024, realizada em 2009. O tema foi ganhando tradição na historiografia olisiponense e alguns bairros têm sido objeto de estudos e publicações, com maior ou menor profundidade; à cabeça, há que citar o Bairro Alto, objeto da estreia olisipógrafa de Júlio de Castilho, ainda no século XIX, mas a lista é significativa, vindo do centro histórico para as extensões da cidade: Bica, Alfama, Avenidas Novas, Alvalade, Chelas ou Olivais. Mais recentemente, em 2013, foi publicado um dossiê temático resultante do projeto «Bairros em Lisboa», realizado numa parceria entre as universidades Autónoma e Nova de Lisboa e o IHRU (Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana). Nessa altura, foram escolhidos seis casos de estudo (Graça, Ajuda, Galinheiras, Campo de Ourique, Alvalade e Telheiras).

Porém, ainda há muito a aprofundar sobre esta temática que inscreve a olisipografia em diversos domínios científicos das Ciências Sociais e das Humanidades, desde a História e História da Arte, passando pela Arquitetura, Geografia, Urbanismo, Antropologia e Sociologia, além dos territórios de articulação, próprios das Ciências da Informação e Comunicação. Por isso, apesar dos trabalhos anteriormente desenvolvidos, o assunto está longe de estar esgotado, mesmo em termos académicos. Foi com o intuito de dar um novo contributo ao estudo desta temática que propusemos à direção editorial dos Cadernos do Arquivo Municipal da Câmara Municipal de Lisboa o número que agora se apresenta.

Aberto o Call for Papers foram recebidas várias propostas, das quais se publicam sete que foram submetidas a revisão científica, de acordo com as normas desta revista. Para além dos artigos do Dossiê Científico, o volume abre com um artigo da antropóloga Marluci Menezes, especialmente convidada, que propõe uma abordagem teórica sobre a questão problematizada: “Bairro: reverberações de uma ideia numa Lisboa em movimento”. O seu artigo trabalha a noção de ’bairro’ como recurso simbólico da construção do imaginário de Lisboa, mas sobre um chão físico determinante porque “nem a cidade persiste sem os seus bairros, nem tão pouco estes existem sem Lisboa”. Citando bibliografia internacional recente (por exemplo, Donzelot e Authier, Asher e Godard) mas também nacional (Gato e Ramalheira), aborda “alguns dos significados de bairro no âmbito de uma literatura mais vocacionada para as ciências sociais” que, na nossa opinião, enquadra e densifica a complexidade do tema. Vale a pena citá-la para estimular a indispensável leitura de todo o artigo:

“Mas vários outros significados e associações se manifestam, inundando o contentor de bairro com um sortido de significações, como por exemplo: aldeia urbana, micro sociedade, comunidade de vizinhos, espaço vivido em comunidade, área técnico-administrativa de gestão da cidade, território de sociabilidade e conviabilidade, parcela individualizada do espaço urbano, unidade territorial de vida coletiva, lugar urbano, escala apreciada para uma abordagem participativa e uma gestão de proximidade, território de democracia participativa, lugar entre a casa, a rua e a cidade. O contentor de ideias de bairro aglutina ainda um conjunto de qualificações, politizadas, popularizadas e mediatizadas, tais como: sensível, vulnerável, crítico, formal, informal, social, cultural, étnico, operário, popular, histórico, tradicional, degradado, bairro em dificuldade (…).”

Confessamos que teríamos gostado que este tipo de abordagem, partindo da “plasticidade” que cada bairro constitui na cidade, fosse uma linha condutora do Dossiê Científico. Mas as propostas que nos foram submetidas (e as selecionadas têm qualidade e novidade) situam-se quase exclusivamente no domínio da investigação histórica. Fica o repto para o desenvolvimento deste trabalho, talvez a partir de um conjunto de seminários interdisciplinares.

Avancemos então para o conjunto de artigos que compõem o Dossiê Científico. Demonstrando as origens recuadas dos bairros de Lisboa, temos o artigo de Miguel Monteiro de Barros, “São José em"Lisboa: um bairro tridentino”, que analisa o aparecimento de um bairro então excêntrico ao coração da cidade, em profunda articulação com a Contrarreforma, ainda no final do século XVI.

Outro testemunho da origem remota dos bairros de Lisboa, ligados à determinante gestão do território por parte de comunidades religiosas, é o artigo de Tiago Lourenço, Hélia Silva, Edite Alberto e Ana Megre, “…e por cauza do grande terremoto que houve nesta Corte."O Bairro das Trinas, evolução urbanística e arquitetónica”. Dando continuidade aos estudos pioneiros do saudoso José Sarmento de Matos, os autores compulsam novas fontes e aprofundam outras, com uma tónica de sistematicidade assinalável, confirmando que o Bairro das Trinas tem origem no Convento para religiosas professas na Ordem da Santíssima Trindade e na utilização, por parte das freiras, dos terrenos da cerca conventual para a edificação após o Terramoto de 1755. Nascia assim o que se pode designar por “uma nova Lisboa”, num caso que manifesta com clareza quanto o nascimento dos bairros renova a própria cidade, numa rede interligada em que as causas são também consequências.

O mesmo Bairro das Trinas é abordado, já sob outro ponto de vista, no artigo de Joana Mourão, sobre as “Características e exigências sociotécnicas em confronto num bairro de origem pré-industrial: notas sobre o "Bairro das Trinas”. Neste texto, caracteriza-se o conjunto edificado de origem setecentista, cujas características lhe conferem integridade e eficiência construtiva, habitacional e urbanística.

Passamos depois para outro tipo de abordagem sobre os bairros de Lisboa, através dos que se desenvolveram sobretudo no século XIX, com a industrialização. É o caso de “Para onde a indústria os levou: crescimento urbano de"Marvila e Beato a partir de 1835”, de Margarida Reis e Silva. Nesse artigo exemplifica-se quanto as profundas transformações técnicas e industriais da nova centúria se imprimem nos territórios fora de portas de Marvila e do Beato. Eram zonas agrícolas, na fronteira oriental de Lisboa, e tornaram-se complexos industriais onde proliferou a habitação operária, legando à cidade contemporânea os desafios de fazer a sua gestão em tempos de pós-industrialização.

No âmbito de uma centralidade excêntrica ao eixo central de Lisboa, definido pela Avenida da Liberdade, o artigo de Tiago Lourenço aborda “Entre" o "Desterro" e Arroios. O desenvolvimento urbanístico dos bairros do primeiro troço da Avenida Almirante Reis (Avenida dos Anjos)”, com base em documentação original sobre o nascimento dos bairros Andrade, Castelinhos, Braz Simões (ou Inglaterra) e Colónias. Há aqui duas questões interessantes que importa referir: o modo como estes bairros traduzem as dinâmicas edificatórias de Lisboa no final do século XIX, a partir da abertura (ainda que lentíssima e acidentada) da Avenida Almirante Reis; por outro lado, deixa-se em discussão de que modo estes quatro “bairros” o são de facto, definidos quase exclusivamente pelo seu território e respetivas fronteiras, recentes e urbanas.

Para os bairros do século XX, ficam dois artigos. Um deles, “Restelo como"um laboratório"urbanístico e arquitetónico“, de Patrícia Bento d’Almeida e Teresa Marat-Mendes. Este estudo mostra como o Bairro do Restelo funcionou como um “tubo de ensaio” de experiências arquitetónicas e inacabadas intervenções urbanísticas, relacionadas com a investigação científica em Arquitetura e Urbanismo produzida, ao longo de várias décadas, na Divisão de Construção e Habitação do Laboratório Nacional de Engenharia Civil. O tema tem plena atualidade e insere-se na valorização do trabalho urbanístico e arquitetónico que ocorre em Lisboa durante o Estado Novo, mas cujas problemáticas têm importante contexto internacional. Os técnicos portugueses destes setores não estavam isolados e defendem projetos que nada devem ao «português suave» ou a visões nostálgicas da retórica arquitetónica.

O outro texto trata “A modernidade complexa dos bairros dos Olivais” e é de Tiago Cardoso de Oliveira. São bairros que se desenvolveram a partir da década de 1960, considerados como a primeira afirmação plena e programática dos princípios da Carta de Atenas em Portugal. O artigo aborda as circunstâncias que presidiram à conceção do Bairro, destacando diferenças entre os planos de Olivais Norte e de Olivais Sul.

Para a Varia, fica o artigo de Ana Brites, Ana Loureiro, Filipa Ferreira e Vitória Pinheiro, tratando do projeto “Explorar a cidade: passo a passo pelos bairros de Lisboa”, da Equipa de Serviço Educativo do Arquivo Municipal de Lisboa. Tem como objetivo valorizar o papel dos serviços educativos na divulgação do património histórico e cultural junto dos diversos públicos.

A secção Documenta apresenta um conjunto notável de fotografias sobre o “Bairro Social do Arco do Cego: imagens de uma utopia”, antecedido por uma introdução de Nuno Martins. Estas fotografias mostram a evolução deste bairro do centro de Lisboa, cuja construção se iniciou em 1919, testemunhando o crescimento ao longo dos anos, que lhe permitiu tornar-se uma “ilha residencial que contrasta com o bulício de uma cidade capital contemporânea”. Uma questão que fica aqui aberta, e a suscitar trabalho de investigação, é a caracterização social de um bairro que nasceu como bairro económico e se tornou, nos nossos dias, um bairro de elite.

Para o fim fica a Recensão de José Subtil sobre os dois derradeiros livros do historiador António Manuel Hespanha. Para nós, é uma honra podermos assim associarmo-nos à celebração desse notável historiador, no ano do seu falecimento. José Subtil valoriza criteriosamente a novidade, atualidade e prospetiva de um historiador heterodoxo que recentra temas fundamentais da História de Portugal.

Temos de agradecer a excelência do trabalho realizado pela equipa do Arquivo Municipal de Lisboa, cujo Conselho Editorial é brilhantemente coordenado por Marta Gomes, não esquecendo os restantes membros: Nuno Campos, Nuno Martins e Sandra Cunha Pires, bem como o apoio à edição de Denise Santos e Fernando Matos, o design gráfico de Joana Pinheiro e, por fim, a comunicação de Pedro Cordeiro e Susana Santareno. Agradecemos também o empenho dos autores e a generosidade dos vários revisores científicos.

Lisboa, 5 de Dezembro de 2019

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