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Cadernos do Arquivo Municipal

On-line version ISSN 2183-3176

Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.11 Lisboa June 2019

 

RECENSÃO

MONTALTO, Filipe Arquipatologia (tratados I-IX). Revisão científica Adelino Cardoso; José Morgado Pereira; Manuel Silvério Marques; trad. de Domingos Lucas Dias; Inês de Ornellas e Castro; Joana Mestre Costa. Lisboa: Edições Colibri, 2017. 408 p.

Nuno Fonseca*

* Nuno Fonseca, IFILNOVA — Instituto de Filosofia da Nova, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade NOVA de Lisboa, 1069-061 Lisboa, Portugal. nmfonseca@fcsh.unl.pt.

 

A publicação da primeira tradução portuguesa dos tratados sobre saúde mental do médico português Filipe Montalto (1567-1616) é um marco importante na divulgação do pensamento médico-filosófico e das práticas terapêuticas do final do Renascimento e início da Época Moderna. Trata-se, para já, da edição e tradução dos nove primeiros tratados da obra Archipathologia in qua internarum capitis affectionum essentia, causæ signa, praesagia, curatio accuratissima indagine edisseruntur, publicada originalmente em latim, pelo editor parisiense François Jacquin em 1614, integradas num projecto necessariamente interdisciplinar, “Arte médica e inteligibilidade científica na Archipathologia (1614) de Filipe Montalto”, coordenado por Adelino Cardoso, que prepara uma segunda edição, com a futura publicação dos restantes nove tratados num segundo volume.

Como o longo título descreve, o médico judeu (nascido “Rodrigues” numa família de cristãos-novos em Castelo-Branco, emigrando depois para Itália e estabelecendo-se finalmente em Paris, na Corte de Maria de Médicis) dedicou esses tratados às “afecções internas da cabeça”, numa investigação muito cuidadosa e detalhada — poder-se-ia dizer muito douta, crítica e informada, tanto pela revisão da literatura das tradições médicas e filosóficas grega, latina e árabe como pela experiência directa e indirecta de casos e diagnósticos clínicos — da “essência”, das “causas”, “sinais”, “presságios” e “cura”, ou seja, da fisiologia, patologia (causas e sintomatologia) e terapêutica das doenças da cabeça (numa edição posterior de 1628 adoptaria o título geral De morbis capitis), isto é, perturbações ou anomalias das (principais) faculdades (razão, imaginação e memória) sediadas na cabeça, lugar do principal órgão do corpo humano, o cérebro, e, certamente, uma das razões do neologismo “archipathologia” criado por Montalto (a outra putativa razão seria o facto de alegadamente ser o principal médico, “archiater”, da rainha-regente Maria de Médicis). A organização e tratamento sistemático dessas “afecções” — orgânicas, mas também psíquicas e afetivo-dinâmicas — distribui-se sucessivamente no seguinte elenco: a dor (em geral), a dor de cabeça (cefalalgia, cefaleia e hemicrania), a frenite (uma inflamação do cérebro ou das meninges, normalmente acompanhada de delírio e febre alta), a melancolia, a insânia dos amantes, a mania ou furor, as insânias lupina e canina, a amência e a fatuidade (demência), a perda da memória — sendo esta, a última “afecção” destes primeiros nove tratados; mas depois ainda —, o coma ou catáfora, o coma em estado vígil, a letargia, o “caro” (perda total de consciência), a catalepsia, as vertigens, o “íncubo”, a epilepsia e a apoplexia. Dentro de cada um destes tratados há ainda uma divisão em capítulos onde distingue os vários tipos patológicos, as causas (materiais, mediatas, internas e externas) das diferentes ‘afecções’, os seus sinais, os presságios e as terapêuticas, inscritas na tradição das práticas hipocrático-galénicas (purgas, sangrias, ingestão de preparados medicinais: electuários, decocções, errinos, antídotos, pílulas, filónios, etc.) e tomando em atenção a especificidade das doenças e o estado geral do paciente, tal como o seu contexto pessoal, epocal e ambiental, não hesitando em complementar a cura com recomendações psicoterapêuticas ligadas ao regime de vida, onde releva particularmente a atenção dada aos prazeres sensoriais (e.g., Arquipatologia, p. 238-239, no tratamento da melancolia), uma nota inovadora do autor.

A obra foi, aliás, muitas vezes referida como uma das primeiras — não sendo, no entanto, a única na época — a fazer um tratamento sistemático das doenças da cabeça e, portanto, ocupando um lugar importante na história da psiquiatria, apesar de pouco conhecida e menos estudada, lacunas que poderão agora ser colmatadas graças ao extraordinário trabalho dos tradutores e investigadores envolvidos neste projecto1. Correndo o risco de anacronismo, poderia até falar-se da sua relevância para uma história da neurologia ou da filosofia da mente, tendo em conta o carácter médico-filosófico destes tratados e, em particular, do primeiro, talvez o mais original de Montalto, dedicado à dor. Não obstante a matriz hipocrático-galénica em que inequivocamente se inscreve e sendo certo que a teoria humoral era ainda para Montalto o modelo explicativo das afeções e, portanto, também o fundamento dos diagnósticos e das soluções terapêuticas, a erudição do médico albicastrense permite-lhe mergulhar nos textos e controvérsias filosóficas dedicadas à sensação e à dor, de Platão e Aristóteles aos seus comentadores e glosadores árabes, Avicena e Averróis, para tentar esclarecer as dimensões orgânica e psíquica do fenómeno dor que resulta de uma alteração súbita e ‘preternatural’ — que se afasta, pois, do curso normal da natureza — de algum órgão ou de todo o corpo. Concorrem para este tipo específico de sensação, que é a dor, as faculdades sensitiva (um sentido externo que permite “a percepção do objecto corruptor [Arquipatologia, p. 44]”), ‘estimativa’ (a imaginação, que é uma faculdade cognitiva interna “coextensiv[a] aos órgãos [p. 44]”) e ‘apetitiva’ (hoje diríamos afetiva: a “dor é uma paixão do apetite [p. 42]”), gerando uma explicação tridimensional que, segundo Adrián Gramary2, parece compatível com a visão atual das bases anatómicas e fisiológicas e o modelo contemporâneo da dor, proposto por Ronald Melzack (psicólogo) e Kenneth L. Casey (neurologista) em 1968, no qual se reconhecem a dimensão “sensorial-discriminativa” (começando com a estimulação dos nocicetores e a deteção das características espaciais e temporais do estímulo), a “afectivo-motivacional” (análise da intensidade e da qualidade subjetiva da dor) e a “cognitivo-avaliativa” (avaliação do estímulo doloroso em função da experiência prévia).

Note-se, no entanto, que apesar de reconhecer a dimensão psíquica da dor e, em geral, das ‘afeccções internas da cabeça’, o galenismo psicossomático de Montalto faz com que procure sempre que possível as causas orgânicas — corpóreas — responsáveis. Mas talvez esta observação diga mais sobre o leitor contemporâneo — ainda influenciado, apesar de tudo, pelo dualismo cartesiano corpo/espírito — do que sobre o médico que escreveu esta obra alguns anos antes desse choque metafísico e epistemológico que multiplicou a necessidade de explicações para a causalidade psicofísica. No enquadramento teórico montaltiano (galénico e renascentista), as doenças resultam sempre de um desequilíbrio ou destempero dos humores (sangue, fleuma ou pituíta, bílis amarela e bílis negra) ou discrasia das suas qualidades primárias (calor, frio, humidade, secura). Fazendo ecoar o título da obra de Galeno, Quod animi mores corporis temperamenta sequantur, Montalto diz que “as potências da alma seguem a constituição do corpo” [p. 199], pelo que é importante descobrir a causa material — por exemplo, o humor atrabiliário, a bílis negra, na melancolia (Tratado IV, o mais longo da obra) — e o órgão ou a parte que ela afeta — em geral, o cérebro, nas doenças da cabeça e também na melancolia, ao contrário dos que pensavam que o órgão afetado era aí o coração. Isto não significa que haja uma unívoca redução do mental ao físico, pois, como ele diz no Tratado V sobre a “Insânia dos amantes”, “não só os costumes do ânimo seguem a compleição do corpo, mas também a compleição [temperatura] do corpo segue as afecções do ânimo” [Arquipatologia, p. 295]3.

O racionalismo naturalista de Elias Montalto, ou seja, a fé na capacidade da razão, da ciência e arte médicas para diagnosticar e tratar as “afecções internas da cabeça”, raramente cede, e apenas quando falham outras explicações racionais, às influências da astrologia judiciária e do pensamento demonológico, ainda dominantes na corte francesa no início do Séc. XVII4. No entanto, e aqui num sentido diferente da palavra “racionalismo”, tempera a sua abordagem intelectual da medicina, nomeadamente, no diagnóstico e terapêutica, com uma atenta observação empírica do caso concreto, valorizando a experiência acumulada, as singularidades dos indivíduos e das suas circunstâncias e os detalhes da acção curativa. A obra está aliás preenchida por minuciosas instruções para a cirurgia, purgas, dietas e receitas, para as quais se revelam de grande utilidade as notas e glossário de vegetais, condimentos e preparados medicinais.

Numa última nota, deve realçar-se o trabalho de rigor e precisão na tradução — que exigiu uma atenção redobrada tendo em conta a subtileza de algumas distinções e a polissemia de alguns termos — tal como o glossário geral e a tábua de autores, que ajudam a contextualizar e compreender, na sua intertextualidade, uma obra tão difícil quanto relevante para compreender a história da filosofia, das ciências e da medicina, em particular.

 

 

NOTAS

FONSECA, Nuno — Recensão ao livro de MONTALTO, Filipe — Arquipatologia (tratados I-IX). Revisão científica Adelino Cardoso; José Morgado Pereira; Manuel Silvério Marques; trad. de Domingos Lucas Dias; Inês de Ornellas e Castro; Joana Mestre Costa. Lisboa: Edições Colibri, 2017. 408 p. Cadernos do Arquivo Municipal. 2ª Série Nº 11 (janeiro-junho 2019), p. 227 — 229.

1 Numa obra que resultou também deste projecto interdisciplinar e que foi publicada paralelamente, uma série de estudos permite compreender melhor a obra e o seu contexto histórico-filosófico, mas também médico, literário e filológico. Num dos ensaios, Hervé Baudry tenta esclarecer algo acerca das especificidades e da nebulosa bibliográfica que certamente explica o carácter algo obscuro e pouco conhecido desta obra. Cf. “Especificidades da bibliografia médica portuguesa” in Cardoso, A Proença, N., coord. — Dor, Sofrimento e Saúde Mental na Arquipatologia de Filipe Montalto, V. N. Famalicão: Edições Húmus, 2018, p. 33-65.

2 Psiquiatra que contribuiu com um ensaio sobre a “A modernidade do conceito de dor na Arquipatologia de Montalto” no livro referido na nota anterior, p. 185-193.

3 A este propósito e numa posição afim à de Montalto, confronte-se o que diz um outro médico judeu português, Rodrigo de Castro (1546-1627) — O médico político ou tratado sobre os deveres médico-políticos. Revisão científica de Adelino Cardoso. Universalia. Lisboa: Edições Colibri, 2011. p. 84.

3 A este propósito e numa posição afim à de Montalto, confronte-se o que diz um outro médico judeu português, Rodrigo de Castro (1546-1627) — O médico político ou tratado sobre os deveres médico-políticos. Revisão científica de Adelino Cardoso. Universalia. Lisboa: Edições Colibri, 2011. p. 84.

4 Rodrigo de Castro parecia estar ainda menos pronto a fazer qualquer tipo de concessão à “astrologia judiciária fictícia”. Veja-se O médico político, op. cit., p. 84-92.

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