SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.ser2 issue11Imago Civitatis. Hospitales y manicomios en OccidenteArquipatologia (tratados I-IX) author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

Related links

  • Have no similar articlesSimilars in SciELO

Share


Cadernos do Arquivo Municipal

On-line version ISSN 2183-3176

Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.11 Lisboa June 2019

 

RECENSÃO

MOISÃO, Cristina — A arte das mãos: cirurgia e cirurgiões em Portugal durante os séculos XII a XV. Lisboa: Centro de Estudos Históricos - Universidade Nova de Lisboa, 2018.

Diana Martins*

* IEM-Instituto de Estudos Medievais, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, 1069-061 Lisboa, Portugal. dianawinnifriedmartins@gmail.com

 

Assunto ainda pouco estudado, a história da cirurgia medieval a par com a história da medicina não parece ter granjeado, salvo raras exceções1, grande interesse junto dos historiadores e médicos. Assim, este trabalho, enquanto resultado de uma dissertação de mestrado orientada pelo professor doutor João Alves Dias (responsável pelo prefácio), surge como um contributo válido e interdisciplinar para a compreensão, como o próprio título indica, dos cirurgiões e das práticas cirúrgicas medievais portuguesas. A autora, Cristina Moisão, cirurgiã de profissão, vem com este estudo aliar a sua experiência profissional à investigação e conhecimento histórico de modo a criar um trabalho de inquestionável pertinência para a compreensão do passado medieval.

A obra divide-se em cinco partes distintas, mas que estão claramente orquestradas, conferindo ao leitor um manual medieval da arte de curar pelas mãos. Após “deambular” pela historiografia produzida sobre a cirurgia medieval portuguesa, escrutinando tanto os livros produzidos no século XVIII como a bibliografia nacional e internacional mais recente, apresenta-nos um verdadeiro compêndio dos traumatismos e doenças encontradas nos textos medievais, os quais subdivide por patologia, definindo a sua etiologia, evolução e, quando possível, terapêutica. As inúmeras citações que acompanham o texto permitem ao leitor ter uma perceção visual das maleitas e seu tratamento, num levantamento cuidado de evidências documentais que, em certos casos, possibilitam colmatar os impedimentos resultantes da ausência de certos textos técnicos medievais portugueses.

Seguidamente, pela análise crítica dos códices jurídicos e da documentação recolhida das chancelarias e arquivos municipais, a autora procede à identificação da legislação produzida no sentido da delimitação e regulamentação dos atos cirúrgicos e da atividade dos cirurgiões, grande parte dela publicada nos anexos. A conclusão é inequívoca: além de Portugal ser um dos primeiros reinos a decretar a obrigatoriedade do exame para a prática cirúrgica (1338), os vários reis portugueses tiveram a preocupação de controlar as deslocações destes especialistas, regulamentar as práticas, aumentar o controlo sobre os exames, proibir a produção de mezinhas e impossibilitar os boticários de darem conselhos médicos, avaliar os produtos vendidos pelo triagueiro/teriagueiro e legislar contra os abusos nos atos médicos.

Estabelecido o manual das práticas, Cristina Moisão procura identificar os responsáveis por estas artes de curar, procedendo a uma análise sócio-religiosa deste grupo de profissionais, em que evidencia o seu papel na sociedade, a atuação dos indivíduos no quadro familiar e profissional, a sua distribuição geográfica, os seus credos e grau de literacia.

A autora assume como base da sua investigação uma amostra de cerca de 400 cirurgiões identificados na documentação (recolhida das chancelarias e arquivos municipais) e na cronística, na sua maioria em atividade a partir do século XV. Porém, como a própria alerta, esta é uma amostra condicionada tanto pela documentação que se conservou até aos nossos dias (sabe-se da destruição de documentos anteriores ao reinado de D. Afonso V), bem como pela conversão dos judeus após o édito de expulsão, podendo ditar a duplicação dos resultados. Mediante um estudo exaustivo e sistemático da análise dos dados, foi possível concluir que alguns destes especialistas estavam ao serviço de casas aristocráticas, da corte régia ou mesmo do clero. Dispunham de inúmeras benesses, como isenção do pagamento de impostos ou escusa do dever de pousada, mas também de benefícios mais pontuais como permissão de aposentadoria ou pagamento de tenças.

Em termos de atuação profissional, a alusão à atividade dos cirurgiões era rara, bem como a menção aos seus proventos. Porém, atendendo às referências encontradas, a autora conseguiu elaborar uma tabela de honorários que permite avaliar as flutuações dos réditos face ao custo dos bens essenciais. Pela análise das cartas de cirurgia e da cronística, a historiadora/cirurgiã conseguiu igualmente discernir a atuação do cirurgião no campo de batalha, na legitimação a pedido do rei da aposentação de certo indivíduo ou na avaliação de lesões em contexto médico-legal, nomeadamente em caso de violência doméstica. Alguns indivíduos dedicavam-se a ramos especializados como a oftalmologia, pneumologia e urologia, embora em menor número. Pelos dados compulsados, conseguiram identificar-se certos cirurgiões que conciliavam a sua profissão com outras atividades ligadas à saúde, servindo como médicos (12%), mais recorrente no caso dos judeus, mas também a outras que não estavam diretamente ligadas (barbeiros, boticários, tabeliães, mercadores, etc.).

No quadro das relações entre os vários cirurgiões elencados foi possível identificar laços familiares, nomeadamente relações de paternidade e de fraternidade (13 famílias praticantes da arte), bem como elos de cariz não familiar, nomeadamente entre criados e mestres.

No que diz respeito à distribuição geográfica, como já adiantado por Iria Gonçalves e André Silva, observa-se que estes mestres não deambulavam de terra em terra, radicando-se em determinadas povoações e localidades onde praticavam a sua arte. Através deste levantamento observou-se que em certas localidades, como Faro e Leiria, havia carência de profissionais de cirurgia. No século XIV identificou-se a presença de cirurgiões a norte do Tejo e na faixa litoral. Já para o século XV manteve-se a distribuição anterior, ao mesmo tempo que se verificou um incremento de cirurgiões ao longo da linha fronteira terrestre e litoral algarvio. No geral observa-se que a maioria dos profissionais se encontrava em Lisboa.

Atendendo às características sócio-religiosas, e embora dispondo de poucos dados, a autora, considera que terá existido um contínuo crescimento do número de cirurgiões de origem judaica, sendo que a partir da segunda década do século XV mais de 50% dos cirurgiões portugueses eram judeus. Por fim, pela análise da amostra recolhida, determina que havia uma percentagem, ainda que minoritária, de indivíduos que tinham aptidão para ler e escrever, tendo inclusive alguns dos cirurgiões competência universitária comprovada.

Para a leitura e interpretação destes dados, o leitor dispõe de várias ferramentas de enorme riqueza pela sua decomposição crítica e vertente analítica, nomeadamente tabelas, gráficos e mapas.

É uma obra coerentemente estruturada em que se observa um raro cuidado em esclarecer as várias técnicas e termos “mais científicos”, tornando não apenas a leitura mais rica do ponto de vista informativo mas também mais cativante. Em resultado do alargamento do âmbito cronológico, o levantamento realizado permite um melhor conhecimento sobre os responsáveis das práticas cirúrgicas e pela salvaguarda da saúde medieval. Porém, a nosso ver, o trabalho comporta pequenas falhas que, não colocando em causa o alcance e a pertinência do estudo, poderão ser retificadas em trabalhos futuros.

Um primeiro reparo diz respeito ao caso de Isabel Martins, barqueira que foi sujeita ao exame de cirurgia em 1454, aqui apresentado como inédito, mas que na verdade já fora alvo de atenção em alguns dos trabalhos produzidos sobre cirurgiões portugueses medievais. Como observado por Iria Gonçalves e André Silva, de acordo com a regulamentação estabelecida por D. João I (1392), não parece ter existido qualquer impedimento a que as mulheres, desde que submetidas ao exame2, exercessem a atividade cirúrgica3.

Um outro reparo, que remete para questões de forma, relaciona-se com a dimensão dos gráficos 1 e 2, aos quais poderia ter sido conferido maior detalhe, com vista a facilitar a utilização e análise dos dados apresentados.

Como acima indicado, estes reparos em nada põem em causa a validade e importância do estudo que se faz nesta obra. Trata-se de um trabalho cirúrgico de seleção e análise de fontes documentais, onde ressalta, desde logo, o exaustivo trabalho de levantamento das doenças e traumatismos que implicaram a atuação dos cirurgiões. Por sua vez, as esclarecedoras e numerosas citações documentais que acompanham este levantamento permitem um melhor conhecimento das terapêuticas, práticas de saúde e condições de vida na Idade Média. De realçar a experiência profissional da autora, que constituiu sem dúvida uma mais-valia na perceção e leitura analítica dos dados que chegaram até à atualidade.

Do mesmo modo destacamos o exaustivo trabalho de inventariação e compilação de informação que remete para a legislação e regulamentação da prática da cirurgia no mundo medieval, permitindo evidenciar a preocupação régia em definir e delimitar a atividade destes profissionais. A transcrição, cópia e mesmo tradução4 do corpus legislativo que se encontra anexo à obra permite uma melhor compreensão dessa evolução.

É um estudo que se distingue igualmente pela amostra tratada, composta por cerca de 400 indivíduos, e pelo cuidado trabalho de análise crítica e de estudo dos dados coligidos, ao permitir o incremento do número de elementos disponíveis, mas também o desenvolvimento de um ensaio científico que contribui, de facto, para um melhor conhecimento da história social dos cirurgiões medievais. Em linha com os trabalhos de André Silva sobre a circulação de saberes e técnicas, apresenta ainda novos dados relativamente à circulação dos livros técnicos de cirurgia medieval.

Por fim, deve saudar-se o lavor e cuidado da autora em tornar este estudo, dotado de grande valor técnico e científico, uma obra acessível e compreensível tanto aos estudiosos como aos interessados nesta arte das mãos praticada pelos cirurgiões medievais portugueses.

 

 

NOTAS

MARTINS, Diana — Recensão ao livro de MOISÃO, Cristina — A Arte das Mãos: cirurgia e cirurgiões em Portugal durante os séculos XII a XV. Cadernos do Arquivo Municipal. 2ª Série Nº 11 (janeiro-junho 2019), p. 223 — 225.

1 Destacam-se em particular os estudos de Iria Gonçalves e André Silva. Vide, GONÇALVES, Iria — Físicos e cirurgiões quatrocentistas: as cartas de exame. In GONÇALVES, Iria — Imagens do mundo medieval. Lisboa: Livros Horizonte, 1988. p. 19-27; SILVA, André Filipe Oliveira da — Físicos e cirurgiões medievais portugueses: contextos socioculturais, práticas e transmissão de conhecimentos (1192-1340). Porto: CITCEM, 2016.

2 “Para os evitar determinou que ninguém, homem ou mulher, cristão, judeu ou mouro, exercesse clínica antes de ter sido examinado e aprovado por Mestre Martinho, seu físico — que passou a ter o cargo de examinador oficial — e haver recebido carta régia, comprovativa da sua aprovação, assinada pelo dito Mestre Martinho e selada como selo régio.” GONÇALVES, Iria — Físicos e cirurgiões quatrocentistas: as cartas de exame. In GONÇALVES, Iria — Imagens do mundo medieval. Lisboa: Livros Horizonte, 1988. p. 11.

3 Segundo André Silva, em virtude da progressiva laicização do ofício de cirurgião por toda a Cristandade, as mulheres tinham oportunidade de exercer a arte de curar pelas mãos, desde que submetidas a exame e admitidas. Em Paris, por exemplo, essa possibilidade estava contemplada desde 1311, aquando a instituição da obrigatoriedade do exame para exercer cirurgia. Vide SILVA, André Filipe Oliveira da — Físicos e cirurgiões medievais portugueses: contextos socioculturais, práticas e transmissão de conhecimentos (1192-1340). Porto: CITCEM, 2016. p. 80-81.

4 É o caso do Forum Jurdicum ou Código Visigótico, que foi traduzido pela autora.

Creative Commons License All the contents of this journal, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution License