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Cadernos do Arquivo Municipal

On-line version ISSN 2183-3176

Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.11 Lisboa June 2019

 

RECENSÃO

MIRANDA, Cybelle Salvador; COSTA, Renato da Gama-Rosa, orgs. — Hospitais e Saúde no Oitocentos: diálogos entre Brasil e Portugal.Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2018.

Viver e morrer entre mares

Aldrin Moura de Figueiredo*

* Aldrin Moura de Figueiredo, FH-Faculdade de História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Pará, 66.075-110 Belém-PA, Brasil. figueiredoaldrin@gmail.com

 

 

“Porque não considero o mundo como uma hospedaria, mas como um hospital; não como um lugar para se viver, mas para morrer”.

Sir Thomas Browne, Religio Medici, parte 2, sessão 11, 1643.

 

Há muito, a história da saúde e da doença se ocupa dos hospitais. Sua história longínqua e entrelaçada no tempo revela a imagem do doente retirado do lar e do convívio familiar para tratamento e recuperação. A etimologia portuguesa ajuda, aquando da afirmação das línguas modernas. Já no século XVI, em Lisboa documenta-se o termo “hospital” como tradução do francês “hôpital”, usado pelo menos desde o século xii por derivação da forma latina “hospitale”, que quer dizer ter um hóspede, gozar hospitalidade. Os grandes medievalistas como Marc Bloch (1886-1944), Georges Duby (1919-1996), Michel Mollat (1911-1996), Bronislaw Geremek (1932-2008) ou Jacques Le Goff (1924-2014) dedicaram largas passagens sobre esses locais de passagem e acolhimento, via de regra de caráter religioso, como demonstra o termo Hôtel-Dieu, por volta do século VII, na França.

Certamente, porém, uma importante inflexão na historiografia contemporânea ocorre nas décadas de 1950 e 1960, com a obra de Michel Foucault (1926-1984). O filósofo-historiador avalia o nascimento do hospital, em sua acepção de instrumento terapêutico, como obra do Século das Luzes, na conjuntura da Revolução Francesa, nas principais capitais da Europa. Do passado, o hospital traz os conceitos de beneficência e filantropia, estimulados por nomes com John Howard (1726-1790), conhecido como o reformador das prisões, além do médico Jacques-René Tenon (1724-1816), autor das célebres Memórias sobre os Hospitais de Paris, de 1788, editadas a pedido da Academia de Ciências de Paris, durante os debates da reconstrução do antigo Hotel-Dieu. Aí, exatamente aí, entra a arquitetura do hospital, o savoir-faire da edificação com o estudo de plantas e desenhos, relatos documentais, muitos dos quais reunidos posteriormente, ao tempo de Jules Michelet (1798-1874) e Eugène Viollet-le-Duc (1814-1879), em dossiês que foram determinantes nas reformas, nos restauros e nas novas construções dos hospitais.

Com isso, os historiadores foram se dando conta que a escrita da história dos hospitais estava intimamente relacionada com a análise das condições políticas, com a movimentação da economia, com as transformações culturais, com as rupturas e permanências nos sistemas de valores, assim como com as mudanças no traçado das cidades. Por isso mesmo, o século XIX talvez seja a época das maiores transformações nas concepções acerca desses espaços de saúde, exatamente no momento em que as antigas noções de caridade se embatem com algumas das múltiplas visões da ciência, ou, de outro modo, concepções de cura relacionadas à piedade e bondade cristãs se chocam com os protocolos da direção hospitalar, agora sob o olhar da chamada medicina moderna.

No livro Hospitais e Saúde no Oitocentos: diálogos entre Brasil e Portugal, organizado pela arquiteta e antropóloga Cybelle Salvador Miranda e pelo arquiteto e urbanista Renato da Gama-Rosa Costa, temos um amplo panorama de estudos sobre as transformações e os usos dos espaços hospitalares no Brasil e em Portugal no século XIX, levando em consideração alguns locais importantes nas conexões das redes e fluxos migratórios entre os dois países, como Rio de Janeiro, Belém do Pará, Lisboa, Porto e Fafe. Incialmente, Inês El-Jaick de Andrade, Renato da Gama-Rosa Costa e Éric Alves Gallo apresentam acurada arqueologia dos edifícios de saúde no Rio de Janeiro do século XIX, dedicando-se na investigação da linguagem arquitetônica neoclássica nos hospitais cariocas do século XIX, tomando como espectro a posição do Rio de Janeiro como capital da corte imperial, com intensa passagem e migração de artistas e influências do ensino das artes na antiga Academia Imperial de Belas de Artes.

Os hospitais são tomados aqui como parte desse patrimônio arquitetônico, em si laboratórios de experimentações estéticas e de expressivas transformações na vida urbana, com o neoclassicismo e seus aportes provenientes do movimento historicista eivado de fantasias do romantismo artístico e literário. Em comum acordo com o que vem sendo posto na historiografia internacional, a arquitetura aqui é parte de uma história polissêmica da saúde no espaço citadino, com o crescimento populacional, as inflexões na legislação e o amargo contexto das epidemias, com uma cronologia detalhada, incluindo endemias, desde casos da Febre de Macau, entre 1828 e 1834, passando pelas epidemias de Febre Amarela e Sarampo, desde 1835 até 1873, até os célebres casos de Cólera e Varíola, desde 1834 até 1883. Na história dos hospitais, os autores dão especial atenção ao Hospital Central da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, ao Hospício Pedro II, à Beneficência Portuguesa, ao Hospital Bom Jesus do Calvário e ao Hospital da Ordem Terceira do Carmo. Por fim, o artigo analisa o processo de “torna-viagem” no legado formal da arquitetura hospitalar entre Brasil e Portugal, por conta do retorno de imigrantes enriquecidos no Brasil para seus locais de origem do outro lado do Atlântico, em especial no norte de Portugal.

Cybelle Salvador Miranda segue o percurso com os hospitais na capital do Pará no século XIX, promovendo um diálogo nos modelos do classicismo entre matrizes luso-brasileiras. A autora busca inquirir o processo de constituição da arquitetura da saúde sob o viso da cultura material, evidenciando o cunho memorial dos monumentos, com uma análise mais detida de suas características físicas e imagéticas. Para isso, revolve parte importante da historiografia sobre as transformações urbanas na capital do Pará no tocante aos melhoramentos sanitários, nas políticas de profilaxia e na saúde pública. Tomando um dos tópicos importantes da publicação como um todo, Cybelle Miranda se debruça sobre a arquitetura do classicismo, inter-relacionando a experiência portuguesa, com o Hospital de Santo António, no Porto, e o Hospital de São José, em Fafe, com a experiência brasileira em Belém do Pará, com o Hospital D. Luiz I da Beneficente Portuguesa e dois hospitais hoje desaparecidos, o Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira e o Hospital Domingos, à guisa de uma cripto-história da arquitetura hospitalar no Pará. Para além de uma história da arquitetura dos estilos, a autora adentra nos usos e concepções sociais e morais das construções, algo que já vem sendo em grande medida pensado na literatura influenciada pela obra de Foucault, sobre as origens das noções de comportamento e recato clínicos, decência no vestir, agir e no falar no complexo “vigiar” e “punir” das casas de Casas de Saúde.

Fruto de um debate oriundo de um grupo de pesquisas, Cybelle Salvador Miranda se une a Emmanuela da Silva Piani Godinho numa importante investigação sobre a passagem da era dos asilos ao movimento antimanicomial nas inflexões sobre o campo da memória arquitetônica de Belém. Para isso, as autoras promovem a reconstituição de imagens e memorialística do Hospital Juliano Moreira do Pará, instituição fundada no alvorecer da República, em 1892, com uma trajetória que se confunde com a memória da psiquiatria e dos métodos e tratamentos das instituições asilares. Sua arquitetura é parte da própria modernização da cidade, no amplo quadro de constituição de políticas públicas de exclusão das áreas centrais dos indivíduos havidos como perigosos. Quase um século depois de sua fundação, tanto o prédio quanto tudo o que representava como prática de medicina pareciam obsoletos e com fortes marcas de um passado que se queria esquecer, como uma espécie de pretérito imperfeito da ciência e do urbanismo. Outros hospitais de Belém, no entanto, puderam recompor suas memórias no presente. É o caso do Hospital D. Luiz i da Benemérita Sociedade Beneficente Portuguesa do Pará, a um só tempo patrimônio da cidade e marca identitária da comunidade luso-paraense, conforme demonstra o artigo de Cibelly Alessandra Rodrigues Figueiredo. Ao largo das notas sobre o hospital no contexto das epidemias, sua arquitetura classicista, seus aspectos formais dialógicos no trânsito entre a Europa e a Amazônia, a autora finaliza com uma reflexão sobre a arquitetura da saúde no campo do patrimônio histórico e artístico.

A última parte do livro vem com três contribuições importantes sobre o contexto português Oitocentista. Primeiramente o caso das Santa(s) Casa(s) da Misericórdia como exemplares da arquitetura portuguesa da saúde. Joana Balsa de Pinho e Fernando Grilo compõem um rico panorama dos hospitais de Águeda, Cabeceiras de Basto, São Miguel de Refojos, Castro Daire, Celorico de Basto, São Bento de Arnoia, Fafe, Felgueiras, Ferreira do Zêzere, Figueira da Foz, Lousada, Oliveira de Azeméis, Paredes de Coura, Santo Tirso, São Pedro do Sul, Reguengos, Unhão, Vila Nova de Famalicão, Vila Nova de Poiares, de cujos edifícios construídos, todos no século xix, ainda subsistem vestígios materiais, farta documentação e fortuna crítica. Daniel Bastos toma o caso do Hospital da Misericórdia de Fafe para esquadrinhar a contribuição da benemerência brasileira em Portugal no século XIX, com a forte presença dos brasileiros de torna-viagem no fluxo e refluxo migratório entre o Brasil e o norte de Portugal. Com rico material imagético, o trabalho de pesquisa no campo da arquitetura transborda para os marcadores de identidades culturais, literárias e memorialísticas no campo filantrópico de entre-mares.

O último artigo versa sobre a arquitetura assistencial em Portugal no início do século XX, nomeadamente sobre o Sanatório de Sant’Ana, em pesquisa conduzida por Maria João Bonina e Fernando Grilo. A história conturbada da fundação do hospital, as marcas da filantropia, as diferentes encomendas e projetos construtivos, o gosto eclético e revivalista internacional e as especificidades do projeto final, bem como a sua execução, são dignos de nota.

Em vista disso, a publicação em tela, não somente dá conta de seus objetivos de estabelecer um proveitoso e original diálogo entre a arquitetura luso-brasileira, como também se coloca num debate mais amplo, renovado a partir dos anos de 1970, com as conexões entre arquitetura e medicina, em pesquisas, exposições artísticas, catálogos e repertórios documentais, álbuns fotográficos e memórias de sociedades médicas1. O livro organizado por Cybelle Miranda e Renato Costa, ao revolver memórias, projetos, ornamentos, imagens da arquitetura, também perfaz um caminho já citado no próprio Oitocentos. Ou não teria sido Ruskin que teria dito que a arquitetura é a arte que dispõe e adorna de tal forma as construções erguidas pelo homem, para qualquer uso, que vê-las pode contribuir para a saúde mental, poder e prazer? Ou seja, hospitais e sanatórios são, antes de mais nada, marcas profundas do traço do arquiteto, do médico e da memória do paciente.

Aldrin Moura de Figueiredo, FH-Faculdade de História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Pará, 66.075-110 Belém-PA, Brasil. figueiredoaldrin@gmail.com

 

 

NOTAS

FIGUEIREDO, Aldrin Moura de — Recensão ao livro de MIRANDA, Cybelle Salvador; COSTA, Renato da Gama-Rosa, orgs. — Hospitais e Saúde no Oitocentos: diálogos entre Brasil e Portugal. Cadernos do Arquivo Municipal. 2ª Série Nº 11 (janeiro-junho 2019), p. 215 — 217.

11 Cf. ROSENFIELD, Isadore — Hospital architecture and beyond. New York: Van Nostrand Reinhold, 1969. 310 p.; TAYLOR, Jeremy — The architect and the pavilion hospital: dialogue and design creativity in England, 1850-1914. London; New York: Leicester University Press, 1997. 240 p.; ROSELLI, Mimmo — Arte e ospedale: visual art in hospitals. Firenze: Ori; Maschietto & Musolino, 1999; VERDERBER, Stephen; FINE, David J. — Healthcare architecture in an era of radical transformation. New Haven: Yale University Press, 2000. 416 p.; MONK, Tony — Hospital builders. Chichester, West Sussex; Hoboken, NJ: Wiley-Academy, 2004. 224 p.; FERRANTE, Tiziana — Hospice: luoghi, spazi, architettura. Firenze: Alinea, 2008. 372 p.; CARRILLO, Ramón. — Teoría del hospital. Buenos Aires: Ministerio de Salud, Presidencia de la Nación: Ediciones Biblioteca Nacional, 2012; MOTT, Maria Lúcia; SANGLARD, Gisele, orgs. — História da saúde em São Paulo: instituições e patrimônio arquitetônico (1808-1958). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; Barueri: Manole, 2011. 149 p.

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