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Cadernos do Arquivo Municipal

On-line version ISSN 2183-3176

Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.11 Lisboa June 2019

 

VARIA

Relação dos oficiais de saúde na cidade de Lisboa (1504-1775)

Adelaide Brochado*

* Adelaide Brochado, Arquivo Municipal de Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, 1070-017 Lisboa, Portugal. adelaide.brochado@cm-lisboa.pt

 

INTRODUÇÃO

No âmbito do Projeto Hospital Real de Todos os Santos: a Cidade e a Saúde11, que visa estudar esta emblemática instituição hospitalar, centro de assistência social e de inovação médica em Portugal e na Europa Moderna, foi efetuado um levantamento documental, não só relativo ao percurso orgânico e funcional deste edifício público, com atividade registada de 1504, data em que foi inaugurado, até ao terminus do seu funcionamento, em 17752 mas também que constituísse testemunho de todos aqueles que detiveram um papel ativo em matéria de prestação de cuidados de saúde.

A recolha e sistematização de dados teve como intuito agregar, tanto os cargos régios como os cargos camarários, remunerados, respetivamente a expensas da Fazenda régia e dos cofres da Cidade3, como o quadro de oficiais, que garantiram a assistência hospitalar e que empreenderam práticas curativas em Lisboa nos séculos XVI a XVIII.

A relação de oficiais de saúde que se faculta, surge neste contexto e baseou-se não só no critério cronológico (1504-1775), mas também na ponderação documental, ou seja, a incidência em documentação do Arquivo Municipal de Lisboa com maior probabilidade de se adequar à finalidade do projeto. Assim, o arrolamento teve como base documentos dos fundos arquivísticos Chancelaria Régia e Chancelaria da Cidade, não obstante a importância de outros núcleos documentais, tais como o Provimento da Saúde, cujos livros constituem um recurso informacional indispensável para a maturação da investigação nas diversas vertentes da História da Saúde4.

Quanto ao tipo de documentos selecionados, constaram predominantemente, regimentos, consultas, decretos, alvarás, provisões régias, petições, assentos, cartas de mercê, cartas de propriedade de ofícios, cartas de provimento na serventia de ofícios e cartas de examinação de ofícios. Uma parte significativa das tipologias contém determinações régias para o desempenho de funções do oficialato com contributo reconhecido na área funcional da saúde5.

A especificidade das tipologias documentais consultadas revelou-se como matriz relevante para a reconstituição de trajetos profissionais dos atores da saúde em contextos orgânicos e funcionais delimitados e, desde logo, constitui-se como fonte primária para a apreensão das características inerentes a cada um dos ofícios.

As cartas de propriedade de ofícios que materializam a percentagem mais significativa das fontes utilizadas como recurso informacional no âmbito do Projeto Hospital Real de Todos os Santos: a Cidade e a Saúde, surgem na forma original ou de registo e possibilitam identificar encartados em cargos régios ou camarários para desempenho de funções na Corte, no Hospital Real de Todos os Santos e nas diferentes áreas de atuação que competiam à administração municipal, como por exemplo, o Porto de Saúde de Belém e o Hospital de São Lázaro6.

Para os oficiais de saúde (médicos, cirurgiões, físicos, enfermeiros e sangradores) encontram-se registos de encartados vitalícia e trienalmente na propriedade dos ofícios ou ainda por dois meses, seis meses ou um ano como serventuários, em substituição dos proprietários.

As cartas de provimento na serventia dos ofícios eram produzidas face ao impedimento dos proprietários, quando se encontravam impedidos por doença ou, embora com menos frequência, se fossem chamados a desempenhar outras funções, como no caso de João Machado de Brito que, em 5 de junho de 1742, fica dispensado da ocupação de médico da Saúde do Porto de Belém para assistir no Paço à enfermidade de D. João V7.

Relativamente a cartas de mercê, a maior parte diz respeito a agraciados por serviços prestados durante surtos de peste. Este tipo de ocorrências abrange, entre outros, António Lopes, físico da Cidade, a quem o rei, a 11 de setembro de 1628, faz mercê de 30.000 réis de tença, três molhos de trigo e provimento de filhos legítimos como moços de Câmara do Rei, por exercício de artes físicas nos rebates epidémicos de 1598-1599 e 1602, com assistência a enfermos na Casa da Saúde e em zonas impedidas da capital do reino8.

Na relação de providos em cargos de saúde, encontram-se registados todos os oficiais que surgiram nas fontes documentais. Foram identificados, para cada um dos grupos de oficialato, todos os que sobrevieram nos documentos, para o período de 1504 a 1775, independentemente da instituição onde prestaram cuidados de saúde. Neste levantamento, identificou-se quantos prestaram assistência hospitalar: quem foram, quais os conteúdos funcionais que asseguraram, quando exerceram funções, como atuaram e em que contextos operaram.

 

Tabela - Físicos

 

 

Tabela - Cirurgião

 

 

Tabela - Enfermeiros

 

 

Tabela - Sangradores

 

 

Tabela - Médicos

 

HOSPITAL REAL DE TODOS OS SANTOS

Com base no mesmo suporte documental e na relação dos oficiais de saúde referenciados e elencados nos quadros anteriores, extrairam-se apenas aqueles que prestaram serviço no Hospital Real de Todos os Santos para as competências de físico, cirurgião, enfermeiro-mor e sangrador, cuja identificação se apresenta na tabela seguinte.

 

 

FÍSICOS

O cargo de físico do Hospital Real de Todos os Santos foi criado no reinado de D. Manuel por Regimento outorgado em 1504. Este diploma fixava, para as artes de curar, um físico em regime de internato, letrado e graduado (bacharel ou licenciado) recebendo uma tença anual de 18.000 reais, “hade haver no dito Esprital hum Fisico ao qual ordenamos de seu mantimento por anno dezouto mil reaes sem mais outro comer, este Fisico ha de viver dentro no Esprital nas cazas que lhe sam ordenadas”9.

Competia ao físico visitar todos os doentes duas vezes por dia, “pela manhã em sahindo o sol e à tarde até às duas”10, tanto nas enfermarias como nas “outras casas”11, cujo início era assinalado por um toque de campainha para que fosse formalizado o percurso e o horário das examinações, “quando aqui nestes tempos as ditas visitações ouver de vir fazer, será tangida pelo dito Fisico, ou mandada por ele tanger outo, ou dez golpes huma campão, que no dito Esprital estara por ele ordenada em lugar conveniente para ello sinal da dita campam ser sabido como o dito Fisico he vindo para fazer sua visitação”12.

As disposições regulamentares para o cargo previam que, durante as visitas, fosse acompanhado por uma equipa que assegurava funções de administração, de serviços de apoio e de exercício de práticas curativas: provedor, vedor, hospitaleiro, enfermeiro-mor, cirurgião e boticário, “logo se ajuntarão com o dito Fisico o Provedor, e Veador, e Espritaleiro, e todos os outros Officiaes do Esprital, que a visitação ouverem de estar, segundo que em seu regimento lhe será decrarado”13.

Na observação diária dos doentes internados, o enfermeiro-mor, que acompanhava o físico, assentava numa tábua o nome e o número da cama de cada um dos enfermos, “levando na mão huma taboa que elle terá, em que será escrito o número de todolos enfermos da sua enfermaria”14.

O físico tinha como responsabilidade prestar cuidados primários de saúde que, na prática, se consubstanciavam na verificação da pulsação e na observação da urina, que lhe era trazida pelos ajudantes de enfermaria. Após diagnóstico, ou seja, “feita a vesitação dos pulsos dos doentes”15 e vistas “as agoas de cada um que lhe serão dadas pelos enfermeiros pequenos”16, o físico determinava qual o tratamento clínico a observar e prescrevia a título individual os remédios, que eram anotados “para cada hum doente em título apartado”17, numa “imenta comprida da folha de papel de marca grande encarnada”18, trazida pelo boticário para que procedesse à sua composição. O registo da terapêutica era feito em secção separada apenas no caso das purgas “apartadas por sy de todas as qualidade de mezinhas, debaxo de doutro titulo, por que humas mezinhas serem tam desvariadas das outras, nos parece bem estarem asy apartadas em títulos por sy”19. As mezinhas ordenadas pelo físico, também poderiam ser assentes pelo boticário, caso este fosse “melhor escrivão, e mais despachado”20.

Para que houvesse eficácia no uso de medicamentos, ficava obrigado a “sempre prover a imenta da receptas das mezinhas para saber se gastaram todas, porque ás vezes se manda fazer uma mezinha, e o paciente a não toma”21. Neste âmbito, as receitas eram providas da melhor forma possível, controlando-se a aderência à posologia da medicação estabelecida, sem omissões, nem sobredosagem, “proverá sempre as ditas receptas, e aproveitará as mezinhas o melhor que se possa fazer e falloha de maneira que se não possa fazer cousa indevida e seja tudo aproveitado como devem”22.

O físico tinha ainda como incumbência indicar qual a dieta a ser seguida por cada um dos internados, a qual era apontada pelo enfermeiro-mor numa tábua individual para cada doente. Após assento, a tábua era entregue ao vedor para que providenciasse na cozinha a respetiva confeção “para por aly se mandar fazer o comer na Cozinha pelo Veador”23. Nesta prática podia ser substituído pelo cirurgião que detinha prerrogativa para impor o regime alimentar.

Para além das tarefas mencionadas, o físico tinha como obrigação realizar, na aceção atual do termo, consultas externas, “ver todolos enfermos que á porta do Esprital vierem, e de aly á porta lhe ver suas agoas, e tomar seus pulsos, e dar todo conselho, e remedio, que para suas curas lhe parecer compridouro em toda consolação, e boa vontade todas, e quantas vezes aly vierem”24, e examinar enfermos com algumas patologias do foro infetocontagioso (sífilis) que se encontravam apartados na Casa das Bubas, “vezitar os doentes das Boubas em todo aquello, que Fisica tocar, e remedialos ha, e curará o melhor que puder na casa apartada, que para os ditos doentes hordenamos no dito Esprital”25.

A 6 de abril de 1775, data do registo da mudança dos doentes do Hospital Real de Todos os Santos para o Colégio de Santo Antão sob a nova designação de Hospital de São José, o ofício de físico continuava ativo26.

 

CIRURGIÕES

O cargo de cirurgião do Hospital Real de Todos os Santos foi criado no reinado de D. Manuel, por Regimento outorgado em 1504. Este diploma fixava, para as artes de curar, dois cirurgiões, “ordenamos por que seja melhor servido, e os doentes que de Cellorgia ouverem de ser curados, melhor remediados, que tenha dous Sollorgiaes”27, um dos quais em regime de internato, “hum, que seja obrigado a viver no Esprital no apozentamento que lhe é ordenado, e o outro que viva fora delle”28.

Os oficiais deste cargo eram letrados e o regulamento previa, para o que tinha obrigatoriedade de residir no hospital, a atribuição de 12.000 reais por ano e, para o que vivesse fora, o ordenado anual de 6.000 reais, “ao que ha de viver dentro por que ha de ter mais comum trabalho, ordenamos de seu mantimento por anno doze mil reaes e ao que ha de viver de fora seis mil reaes”29.

O cirurgião de dentro contava com o apoio de dois auxiliares que auferiam anualmente o salário de 2.000 reais e alimentação diária, ”ao sollorgiam que ha de viver dentro ordenamos pelo mais trabalho, que asy hade ter dous moços que o ajudem, a cada hum dos quaes mandamos que seja dado em cada hum ano dous mil reaes e hão comer no Refeitorio”30.

Competia a ambos (cirurgião interno e externo) visitar duas vezes por dia os enfermos internados, “estes Selorgiaes ambos sam obrigados de visitar duas vezes ao dia todos os Enfermos que ouver no dito Esprital e que de Cillurgia ouverem de ser curados”31. Durante a examinação asseguravam tarefas idênticas às estipuladas para o físico, “nas visitações teram a maneira, e regimento, que atraz fica decrarado no Regimento do Fisico”32. Prestavam cuidados terapêuticos, prescreviam remédios para serem confecionados pelo boticário, e fixavam o regime alimentar para cada doente, “asy no receitar de mezinhas do Boticario, como no que se ouver de Ordenar para o comer dos taes doentes”33. A articulação com a cozinha do hospital era garantida pelo vedor observando- -se os mesmos procedimentos que os dispostos no Regimento para o título do cargo de físico, “em a qual maneira o cumpriram, e satisfarão os ditos Cellorgiaes como aos Fisicos está mandado, que o fação”34.

O cirurgião de dentro tinha ainda como incumbência funções de ensino, fazendo parte da sua esfera de ação ler diariamente uma lição de teoria e de prática de cuidados cirúrgicos aos dois ajudantes que lhe davam apoio, “mandamos que o dito Cellorgiam que ha de viver dentro no Esprital leya cada dia huma lição aos seus dous mosso que hade ter”35, “para aprenderem theorica, e pratica, e poderem ficar ensinados para o serviço do dito Esprital”36.

A 6 de abril de 1775, data do registo da mudança dos doentes do Hospital Real de Todos os Santos para o Colégio de Santo Antão sob a designação de Hospital Real de São José, o ofício de cirurgião continuava ativo.

 

ENFERMEIROS

O cargo de enfermeiro-mor foi criado no reinado de D. Manuel, por Regimento outorgado em 1504. Este diploma fixava, para as artes de cuidar, quatro enfermeiros maiores, em regime de internato, três dos quais para assistir nas enfermarias e um para prestar cuidados de enfermagem na Casa das Bubas, “hade haver quatro enfermeiros mayores, convem a saber trez das Enfermarias de dentro do dito Esprital e hum da Caza das Bubas”37, e “estes todos quatro hamde viver dentro do Esprital nas cazas que lhe sam ordenadas”38. Recebiam como pagamento pelas funções desempenhadas a remuneração anual de 6.000 mil reaes, alojamento e alimentação“39, e “hade haver cada um deles de seu mantimento por anno seis mil reaes, e mais hamde comer no Refeitorio do Esprital, estes todos quatro hamde viver dentro no Esprital nas cazas que lhe sam ordenadas”40.

Para o exercício do cargo era requerido ser “homem caridoso, de boa condição, e sem escandalo”41, sendo recrutado entre detentores de títulos nobiliárquicos e de membros de ordens religiosas. No apoio às tarefas que lhe estavam atribuídas por Regimento, contavam com ajudantes de enfermaria designados como enfermeiros pequenos, num rácio de quatro enfermeiros pequenos para sete enfermeiros-mores, “para estas quatro Enfermarias ordenamos sete Enfermeiros pequenos para ajudadores dos Enfermeiros Mayores”42.

Os enfermeiros-mores tinham como principal competência a supervisão das enfermarias e a assistência a todos os internados na vertente de prestação de cuidados de enfermagem, “que tenha cuidado principal da Cura, e Vezitação dos doentes, que houver na Enfermaria, de que for encarregado”43.

Integravam a equipa de cuidados de saúde que visitava duas vezes os enfermos e da qual faziam parte, para além deles, o provedor, o vedor, o hospitaleiro, o físico, o cirurgião e o boticário, e assentavam numa tábua, num registo personalizado, os nomes dos doentes e o número da cama que lhes era atribuída, “terá taboa feita de todolos doentes, que na sua Enfermaria ouver, decrarados por nome”44. Anotavam ainda, da mesma forma, as prescrições do físico para o tipo de dieta a ser observada, “escreverá o dito Enfermeiro mayor, o que o dito Fisico por bem da sua vezitação ordenar para comer”45.

Eram responsáveis por todos os serviços a prestar aos doentes, tanto de higiene pessoal, como de limpeza de roupa individual e de cama, “sam obrigados de ter carrego de todo o serviço dos doentes”46, devendo servi-los com “toda caridade, e amor que devem por Deoz, e por os próximos”47, “farlheham, as camas o mais limpamente, que o poderem fazer”48 e “tellosham sempre bem limpos”49. Estavam ainda incumbidos de assegurar a higienização das enfermarias, “terão muy bem limpas e varidas as enfermarias”50, assim como “muy bem limpos os ourinoes”51. Estas tarefas, embora fossem supervisionadas pelo enfermeiro-mor, eram efetuadas pelos enfermeiros pequenos, por camareiros e ainda por escravos, “e varrellasham os ditos Enfermeiros pequenos, e alimparão tantas vezes ao dia quantas convir para que sempre estam limpas, e fora de mao cheiro”52, e “os ditos Enfermeyros mayores, terão poder para os ditos Escravos a limpeza dos ditos camareiros mandarem fazer”53. O recurso a escravos estava direcionado para intervenções de fundo, para eliminar sujidade e eram feitas com periodicidade variável, consoante a época do ano, no inverno “huma vez na semana”54, e no verão “duas vezes por semana”55.

Quanto a cuidados terapêuticos, competia-lhes administrarem as purgas e mezinhas determinadas pelo físico, “seram obrigados de dar purgas aos doentes da sua Enfermaria, e asy de toda outra mezinha que lhe ouver de ser dada, e lamedores, e toda outra couza, que mezinha for naqueles tempos”56.

Participavam nas práticas de flebotomia, efetivadas pelo sangrador, tendo como atribuição requerer ao hospitaleiro material considerado necessário para a intervenção: panos e ataduras “seram obrigados de ser prezentes a mais sangrias, e de lhes ministrar, e fazer todo o que para ellas convier e requererem ao Espritaleiro as ataduras, e panos, que para isso comprirem, e de com grande cuidado, e diligencia nisso servirem”57.

Para além disso, deviam ter sempre em armários das enfermarias, mediante requisição semanal ao provedor, uma reserva de “alguns repairos”58, “o dito nosso Provedor mandará dar, e entregar para asy nos ditos Armarios terem em tanta quantidade, que possa abastar para toda huma semana”59. Estes, consistiam basicamente em ambientadores para anular odores desagradáveis e algumas substâncias coadjuvantes de terapêutica, ”dasucar rosado, e agoas de cheiro, e de outros cordiaes, e asy cheiros para se darem aos doentes de noute, e de dia quando lhe parecer necessário”60.

O enfermeiro-mor tinha como obrigação assistir aos enfermos durante a noite, contando para o efeito, tal como nos períodos diurnos, com a ajuda dos enfermeiros-pequenos, “sam obrigados os ditos Enfermeiros mayores, e asy os pequenos de cada Enfermaria de Vellarem todas as noutes a gyros todos os Enfermos de suas Enfermarias”61.

Faziam também parte dos cuidados de enfermagem algumas diligências em caso de falecimento dos internados: amortalhar e remover o corpo de forma discreta para não perturbar os outros doentes, “amortalhaloham, e requerão ao Espritaleiro o lençol que haja de hir á cova”62 e “tiraloham do leito onde gouver pelo corredor que está detraz dos leitos por que os outros doentes os não possam ver”63. O apoio na morte abrangia ainda providências para o enterramento, “hiram logo requerer ao que tever cargo de fazer as Covas que lhe vá fazer a Cova no lugar do jazigo ordenado para os finados do Esprital”64, e práticas post mortem: retirar a roupa de cama do leito onde o doente havia jazido e encaminhá-la para assepsia ”seram obrigados de tirar a roupa da cama do leito em que o tal finado jazia, e da entregarem ao Espritaleiro “65 para “a mandar correjer, lavar e alimpar”66.

Os cuidados de enfermagem disponibilizados no Hospital Real de Todos os Santos eram também assegurados por mulheres, situação que estava prevista no Regimento outorgado por D. Manuel I em 1504. Este regulamento determinava a existência de uma enfermeira interna “e hade viver dentro no Esprital no apozentamento que lhe he ordenado”67, com o rendimento anual de 3.000 reais, para assistir a mulheres, “huma Enfermeira das molheres esta hade haver de seu mantimento por anno trez mil reaes”68. Para além do rendimento que auferia em cada ano, tinha ainda direito a alimentação diária, “E mais hade comer no refeitorio”69. Para apoio nas tarefas que lhe competiam, era-lhe atribuída uma enfermeira auxiliar, residente na unidade hospitalar, com o ordenado de 2.000 reais “huma ajudadeira, a qual hade haver por anno dous mil reaes, e mais hade comer no refeitorio e hade viver dentro no Esprital, e agazalharseha com a dita Enfermeira”70.

O conjunto de tarefas fixadas tanto para a enfermeira como para a ajudante, por ela supervisionada, era o mesmo que os fixados, respetivamente, para os enfermeiros-mores e para os oficiais menores. O regime geral de prestação de cuidados de enfermagem incluía apenas como disposição excecional o facto de as enfermeiras, independentemente do seu grau de oficialato, terem a sua esfera de ação direcionada apenas para a ala norte do hospital, local onde se situava a enfermaria de Santa Clara destinada a mulheres com febres e feridas.

A 6 de abril de 1775, os doentes do Hospital Real de Todos os Santos são transferidos para o Colégio de Santo Antão, sob a nova designação de Hospital Real de São José. À data, a estrutura orgânica e funcional não tinha sido alterada, continuando a fazer parte do quadro de pessoal o enfermeiro-mor, estando provido nele D. Francisco Furtado de Mendonça71.

O cargo de enfermeiro-mor é extinto pela primeira vez em 1913, por Decreto de 9 de junho, diploma que regulou a criação dos Hospitais Civis de Lisboa, voltando a ser reativado em 1927 e tendo perdurado durante todo o período do Estado Novo.

 

Sangradores

O cargo de barbeiro e sangrador do Hospital Real de Todos os Santos foi criado no reinado de D. Manuel, por Regimento outorgado em 1504. Este diploma fixava, para a prática da flebotomia, um barbeiro sangrador sem regime de internato, com remuneração anual de 3.000 réis e sem outro tipo de ajudas de custo, “hum barbeiro, e Sangrador, o qual hade haver por anno de seu mantimento trez mil réis, sem mais outro comer, nem hade viver dentro”72.

Competia aos providos no ofício de barbeiro e sangrador do Hospital Real de Todos os Santos fazer a barba e a tosquia dos enfermos, “he obrigado de fazer todas as Barbas, e tosquiar todos os doentes e Enfermos do dito Esprital, convem a saber cada vez, que lhe cumprir, e ouverem mester, e eles o requererem”73. Tinham ainda como atribuição sangrar os doentes, sempre que fosse requerido e ordenado pelo físico, não recebendo pela prática dos atos de flebotomia nenhum emolumento, para além do rendimento anual estipulado para o exercício do cargo, “não hade haver nenhum premio, somente o mantimento que em cada hum anno lhe está ordenado á custa do Esprital”74.

Presente na sangria, estava o enfermeiro-mor de cada uma das enfermarias, que providenciava para que o material necessário estivesse sempre disponível, requerendo, para o efeito, panos e ataduras ao hospitaleiro, “seram obrigados de ser prezentes a mais sangrias, e de lhes ministrar, e fazer todo o que para ellas convier e requererem ao Espritaleiro as ataduras, e panos, que para isso comprirem, e de com grande cuidado, e diligência nisso servirem”75.

A 6 de abril de 1775, os doentes do Hospital Real de Todos os Santos são transferidos para o Colégio de Santo Antão sob a nova designação de Hospital Real de São José. À data, a estrutura orgânica e funcional não tinha sido alterada, continuando a fazer parte do quadro de pessoal o barbeiro sangrador. O ofício é formalmente extinto na segunda metade do século XIX, por Decreto de 13 de junho de 1870.

 

 

NOTAS

BROCHADO, Adelaide - Relação dos oficiais de saúde na cidade de Lisboa (1504-1775).Cadernos do Arquivo Municipal. 2ª Série Nº 11 (janeiro-junho 2019), p. 149 — 213.

1 O Projeto Hospital Real de Todos os Santos: a Cidade e a Saúde é uma iniciativa conjunta do Departamento de Património Cultural da Câmara Municipal de Lisboa e da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa para o estudo do Hospital Real de Todos os Santos. Através de fontes de arquivo, entre outras, do Arquivo Municipal de Lisboa, do legado artístico e de vestígios da arqueologia, o projeto visa produzir uma leitura integrada de temas relacionados com esta instituição hospitalar como a inovação estética e funcional do edifício, os contributos para a história da medicina, da farmacopeia e da ciência, o seu desempenho no combate à doença, exclusão e pobreza, bem como o seu lugar na renovação urbanística e inserção na vida política e institucional da cidade de Lisboa.

2 Por ter ficado arruinado pelo terramoto de 1 de novembro de 1755, o Hospital Real de Todos os Santos funcionou provisoriamente em unidades hospitalares situadas em São Bento e na Casa dos Almadas, e mais tarde no Rossio e às Portas de Santo Antão. A 6 de abril de 1775, os doentes são transferidos para o Colégio de Santo Antão, sob a designação de Hospital Real de São José.

3 Sobre este assunto ver Arquivo Municipal de Lisboa (AML), Chancelaria da Cidade, Livro 1º de rendas da Cidade e AML, Provimento da Saúde, Livro 2º de receita e despesa da Casa da Saúde.

4 A Coleção Provimento da Saúde integra «O mais antigo regimento do serviço de saude, de que temos conhecimento, é datado de Thomar, aos 27 de setembro de 1526, e foi ordenado por causa da peste que mais ou menos atormentava Lisboa. Tem por titulo: - Que leva Pedro Vaz sobre o que toca ao bem da saude de Lisboa em 1526». In OLIVEIRA, Freire de — Elementos para a história do Município de Lisboa. Lisboa: Typographia Universal, 1906. vol. XV, p. 327; Documentos originais in AML-AH, Provimento da Saúde, Livro de regimentos e posturas da Casa da Saúde, doc. 6-7, f. 31-41v.

5 Para além dos documentos compulsados, é possível encontrar outras fontes no AML para a regulamentação das atividades ligadas à prestação de cuidados curativos, como o caso do Regimento dos boticários de 1492 (AML, Chancelaria da Cidade, Livro de posturas antigas, f. 77v-78), que já continha disposições regulamentares para o controlo e certificação das mezinhas confecionadas, competindo ao físico-mor e ao físico da Cidade a tarefa de fazer cumprir o estipulado para o efeito. Também os inúmeros livros de Assentos do Senado da Câmara, bem como de Registo de Consultas e Decretos dos vários reinados, ambos para o período entre os séculos XVI a XVIII, constituem-se como importantes fontes onde se podem encontrar várias determinações e disposições da Câmara no âmbito da regulação da Saúde na cidade de Lisboa, como, por exemplo, os poderes jurisdicionais em devassas, autos e inquirições, a obrigatoriedade de certificação para as mezinhas, os locais autorizados para a sua venda, a forma de fiscalização, os oficiais com legitimidade para conceder autorizações diversas, procedimentos nos exames de admissão, deferimentos vários no âmbito da atividade de médicos, cirurgiões, físicos, sangradores, boticários, alveitares, ou ainda parteiras, para as quais, num Assento de 6 de outubro de 1592, se deferia um pedido do inquisidor-mor, o qual solicitava que, para além de serem aprovadas pelo físico-mor e pelo cirurgião-mor, deviam ainda ser examinadas pela Câmara quanto à sua vida, usos e costumes, para assegurar que, tal como se impediam erros no ofício, também se evitassem erros de cristandade e de maus costumes (AML, Chancelaria da Cidade, Livro 2º de assentos do Senado, f. 16).

6 Sobre este assunto veja-se “Regimento e estatuto fecto sobre a Casa de São Lázaro desta cidade de Lisboa” transcrito em RODRIGUES, Maria Teresa Campos, ed. — Livro das Posturas Antigas. Lisboa: Câmara Municipal, 1974. p. 180-187 e AML, Livro 1º do Hospital de São Lázaro.

7 AML, Livro 6º de registo de consultas e decretos de D. João V do Senado Ocidental f. 223.

8 AML, Chancelaria da Cidade, Cópia do livro 3º de provimento de ofícios, 1429-1739, f. 191-194v.

9 CORREIA, Fernando da Silva, pref. — Regimento do Hospital de Todos os Santos. Lisboa: Sanitas, 1946. p. 20.

10 Idem, p. 47.

11 Idem, p. 49.

12 Idem, p. 47.

13 Ibidem.

14 Ibidem.

15 Idem, p. 48.

16 Ibidem.

17 Idem, p. 12.

18 Idem, p. 48.

19 Ibidem.

20 Ibidem.

21 Idem, p. 49.

22 Ibidem.

23 Ibidem.

24 Ibidem.

25 Ibidem.

26 Hospital de São José, Registo Geral, Livro 944, f. 2 (numerado 1A).

27 CORREIA, Fernando da Silva, pref. — Regimento do Hospital de Todos os Santos. Lisboa: Sanitas, 1946, p. 83.

28 Ibidem.

29 Idem, p. 20.

30 Ibidem.

31 Idem, p. 83.

32 Ibidem.

33 Ibidem.

34 Ibidem.

35 Idem, p. 84.

36 Ibidem.

37 Idem, p. 20-21.

38 Idem, p. 21.

39 Ibidem.

40 Ibidem.

41 Idem, p. 69.

42 Idem, p. 20.

43 Idem, p. 69.

44 Ibidem.

45 Idem, p. 70.

46 Idem, p. 71.

47 Ibidem.

48 Ibidem.

49 Ibidem.

50 Ibidem.

51 Ibidem.

52 Ibidem.

53 Ibidem.

54 Ibidem.

55 Idem, p. 72.

56 Idem, p. 73.

57 Idem, p. 75.

58 Ibidem.

59 Ibidem.

60 Ibidem.

61 Idem, p. 71.

62 Idem, p. 72.

63 Ibidem.

64 Ibidem.

65 Idem, p. 73.

66 Ibidem.

67 Idem, p. 22.

68 Idem, p. 21-22.

69 Idem, p. 22.

70 Ibidem.

71 Hospital de São José, Registo Geral, Livro 944, f. 2 (numerado 1A).

72 CORREIA, Fernando da Silva, pref. — Regimento do Hospital de Todos os Santos. Lisboa: Sanitas, 1946. p. 22.

73 Idem, p. 91.

74 Ibidem.

75 Idem, p. Livro 126, f. 82v. e 83).

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