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Cadernos do Arquivo Municipal

versão On-line ISSN 2183-3176

Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.10 Lisboa dez. 2018

 

RECENSÃO

Coelho, André Madruga – Poder e estatuto em Portugal no final da Idade Média: os Lobo entre a cavalaria e a baronia. Lisboa: Edições Colibri, 2017.*

J. A. de Sottomayor Pizarro**

** José Augusto de Sottomayor Pizarro, Departamento de História e de Estudos Políticos e Internacionais, Faculdade de Letras, Universidade do Porto, 4150-564 Porto, Portugal. pizarro.jo@gmail.com

 

 

A década de 1980 foi muito fecunda no alargamento dos horizontes historiográficos peninsulares, com a abertura de novos caminhos de investigação, sendo especialmente relevantes os que se foram materializando em torno dos séculos medievais. Os resultados desse esforço de atualização e abertura foram notáveis, como o revelam os inúmeros balanços que foram sendo feitos desde então por vários historiadores portugueses e espanhóis. Sirva de exemplo, para o caso nacional, e para os mais variados campos de trabalho, a mais recente avaliação global e análise prospetiva sobre a historiografia medievística portuguesa dos últimos sessenta anos1.

De entre essas temáticas gostaria de destacar duas em particular, que claramente sobressaíram desde aquela década de 1980, e que, à época, ou pelo menos assim o julgaria a maior parte dos historiadores, seriam quase incompatíveis, ou pelo menos pouco articuláveis. Refiro-me, por um lado, aos estudos sobre o grupo aristocrático e, por outro, àqueles que se debruçaram sobre as cidades medievais, e que tiveram como principais mentores os Professores José Mattoso e A. H. de Oliveira Marques, respetivamente.

Em boa verdade, essa perspetiva disjuntiva entre nobreza e cidade assentava em dois pressupostos, mais fundamentados na tradição das “ideias feitas” do que em estudos objetivos, e que idealizavam o grupo nobiliárquico medieval essencialmente enquadrado pelo mundo rural, ao mesmo tempo que a cidade personificava a ideia mítica de um espaço laborioso e socialmente igualitário, raiando quase a democracia, onde se espraiavam princípios de autonomia e liberdade. Talvez o caso mais paradigmático fosse o da cidade do Porto, onde ainda hoje os cidadãos tidos como bem “informados” afirmam com orgulho que “aqui, na Idade Média, os nobres não entravam”!

Claro está que entravam, como em qualquer outro burgo medieval. A diferença, pelo menos quanto ao Porto radicava, não quanto ao grupo social, mas sim no lugar que cada um ocupava dentro da hierarquia do mesmo, ou seja, na verdade os membros da alta nobreza não podiam permanecer na cidade por mais de três dias ou ali ter casa de morada, mas os demais sim, como se comprova pela presença de vários cavaleiros nas vereações da cidade.

Voltando à questão inicial, e o que importa agora sublinhar, é que os diferentes estudos que se foram desenvolvendo nas referidas áreas permitem, hoje, compreender a enorme multiplicidade de situações e de níveis em que a sociedade medieval se estruturava, desde o topo até à base, de forma muito hierarquizada, tanto no que respeita à sociedade do mundo rural como à do mundo urbano. Por outro lado, outra questão importante prende-se com os ritmos de desenvolvimento e de adaptação de cada grupo social às realidades políticas e económicas de cada etapa do desenvolvimento de cada monarquia.

Os diferentes reinos hispânicos, devido à conquista muçulmana de 711, e ao contrário do que ocorreu para lá dos Pirenéus, desenvolveram-se através de uma dinâmica de guerra permanente, condicionados, assim, pelo ritmo dos avanços e recuos fronteiriços. Desta forma, também o povoamento foi muito diverso e diferenciado entre o norte peninsular, pouco afetado pela presença muçulmana, e as regiões reconquistadas para sul do vale do rio Douro, onde a necessidade de atrair e fixar as populações em zonas bastante instáveis junto da fronteira levou os monarcas a concederem, através das cartas de foral ou de povoamento, condições altamente favoráveis, ou mesmo privilégios que em circunstâncias normais apenas competiam aos membros do grupo aristocrático. Assim aconteceu com os homens de extracção vilã, mas que possuíam cavalos e dominavam a prática das armas – vulgarmente conhecidos como cavaleiros-vilãos para os distinguir dos cavaleiros que eram de origem aristocrática – que receberam estatutos mais elevados, nomeadamente o de infanção, ou seja, nobre pelo nascimento, para que ali se fixassem e assumissem responsabilidades na defesa dessas comunidades; são conhecidos vários exemplos em concelhos fronteiriços, voltados quer para leste, para o vizinho Reino de Leão, quer para o sul muçulmano, desde a Beira até ao Alentejo. De resto, é bem conhecido o papel relevante desempenhado pelas milícias urbanas de Coimbra, Santarém, Lisboa, Évora ou Beja nas campanhas militares conduzidas por D. Afonso Henriques e D. Sancho I, movimento que nos vizinhos reinos de Leão e Castela se prolongou pelo século XIII.

Como é evidente, o constante afastamento da fronteira para sul, primeiro, e a conclusão de todo o processo de Reconquista, depois, terá levantado a questão sobre o que fazer com a manutenção do estatuto especial dos cavaleiros-vilãos da fronteira, usufruindo de privilégios que as circunstâncias militares e políticas já não justificavam. Tanto quanto se sabe, não existe qualquer diploma régio que especificamente tenha regulamentado a questão, mas parece-me de bom senso deduzir que aquelas situações acabaram por ser resolvidas de forma natural, ou seja, perante a possibilidade de legalmente extinguir os privilégios de exceção, terá sido mais razoável permitir a ascensão desses cavaleiros-vilãos e os seus descendentes aos níveis inferiores da aristocracia, os quais, como é evidente, estavam estabelecidos maioritariamente nos centros urbanos.

 

*

 

Tudo isto vem a propósito de uma obra recentemente publicada pelas Edições Colibri, com a chancela científica do Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades (CIDEHUS) da Universidade de Évora, cujo título e autoria abriram estas páginas de recensão. O texto agora editado parte de um anterior, que o autor, André Madruga Coelho, apresentou em 2015 à referida Universidade como dissertação de mestrado em História do Mediterrâneo Islâmico e Medieval, devidamente reformulado e atualizado, tendo em vista uma redação menos pesada e de acesso mais acessível a público não especializado mas apreciador e interessado pelas temáticas históricas; esforço que naturalmente se saúda no quadro de uma vertente social de divulgação da investigação académica e científica.

O tema central da obra desenvolve-se em torno da ascensão de uma família da oligarquia urbana da cidade de Évora, os Lobo, muito provavelmente oriunda do meio da cavalaria-vilã eborense formada a partir da conquista da cidade em 1165, e que foi ganhando cada vez mais expressão social e política, não apenas a nível local ou regional, mas mesmo nacional, a ponto de já surgir nobilitada em finais da centúria seguinte, chegando mesmo um dos seus ramos, depois, a atingir o patamar da nobreza titulada dos finais de Quatrocentos.

O título, Poder e Estatuto em Portugal no Final da Idade Média. Os Lobo entre a Cavalaria e a Baronia, que também foi modificado em relação com o original – As Elites Urbanas Medievais. O Exemplo de Évora e dos Lobo (Sécs. XIII-XV), o que do meu ponto de vista se lamenta, pois era muito mais adequado ao conteúdo –, remete-nos precisamente para esse fenómeno da nobilitação das famílias de cavaleiros-vilãos localizadas originariamente junto da(s) fronteira(s), fenómeno que, como acima se referiu, deverá ter ocorrido entre o início do segundo quartel do século XIII e o final do terceiro quartel da mesma centúria, ou seja, entre 1225 e 1275 – grosso modo ao longo dos reinados de D. Sancho II (1223-1248), quando a Reconquista avança célere por todo o Alentejo e parte do Algarve, em grande medida pela acção das Ordens Militares, o que colocou a região da Beira Interior definitivamente afastada da fronteira muçulmana, e o reinado do seu irmão, D. Afonso III (1248-1279), que ultimou a Reconquista com a tomada de Faro e de todo o Algarve (1249-1250), e que foi o responsável por profundas reformas da estrutura política, institucional e social da monarquia portuguesa, a ponto de ser considerado como um dos fundadores do Estado medieval português, juntamente com os seus dois sucessores, respectivamente o seu filho, D. Dinis (1279-1325) e o seu neto, D. Afonso IV (1325-1357).

É muito plausível, assim, que a família dos Lobo surja nos finais do século XIII, em documentação régia relativa a Évora, já com um estatuto consolidado no quadro da elite da cidade, sendo referidos como cavaleiros da fidalguia, a par do que sucedera com outras famílias eborenses do mesmo nível, como os Pestana ou os Façanha; fenómeno que poderíamos apontar, sensivelmente na mesma cronologia, ou até anterior, para o caso dos Silveiras, em Elvas, ou os Castelo-Branco e os Almeida mais para as terras interiores da Beira.

A temática, desde já o direi, é muitíssimo interessante e o caso estudado está bastante bem tratado, e aqui é da maior justiça que se deixe uma palavra de apreço pela responsável científica do estudo em causa, a Doutora Hermínia Vasconcelos Vilar, ilustre medievalista e docente da Universidade de Évora, responsável, entre outros estudos significativos, por uma monografia sobre Abrantes na Idade Média, e que honra a publicação com um excelente Prefácio, que funciona como um convite muito bem feito para uma leitura atenta e bem conduzida. Mas olhemos primeiro, ainda que de forma sintética, para a estrutura da obra e para outros aspetos formais, para depois se fazerem alguns comentários sobre o conteúdo o qual, volto a repetir, e nas suas linhas gerais, foi de tão útil quanto agradável leitura.

Depois do referido Prefácio e de breve Nota Prévia, com os tradicionais esclarecimentos editoriais e agradecimentos, segue-se uma Introdução, espraiando-se depois o texto por seis capítulos, finalizados por breves páginas de Conclusões; a obra remata depois com uns Anexos, com mais de sessenta páginas, cuja composição variada – Notas biográficas, Genealogias, Referências documentais, Quadros e Bibliografia – se lamenta não seja especificada no Índice inicial, e onde o leitor poderá encontrar diversos elementos com interesse.

Começarei precisamente por aqui, para um par de notas críticas, de elogio, umas e de desacordo, outras. Quanto a estas, de teor meramente formal, desde já acrescento, levam-me a questionar a escolha, no Anexo B, do formato das genealogias, muito pouco elucidativas, lamentando também a ausência de uma árvore com a totalidade da família, perfeitamente exequível para um número tão reduzido de gerações e de indivíduos; por outro lado, não se entende, nos Anexos C a E, que sejam preteridos os indivíduos para destacar as fontes que suportam as respetivas cronologias; também no Anexo F, relativo a diversos quadros, convinha que houvesse uma uniformidade de critérios, com a coluna da fonte a encerrar todos eles; e, finalmente, quanto aos mapas, serão muito claros para quem conhece bem o Alentejo, mas em cartografia histórica exigem-se pontos de referência, hidrográfica e toponímica, por exemplo, ou pelo menos… Pela positiva – e reforço a ideia de que, antes, não estavam em causa os conteúdos –, por um lado, o Anexo A, de carácter prosopográfico, muitíssimo útil como complemento do texto principal e, por outro, o elenco das Fontes e da Bibliografia, onde se deve destacar, para além da utilização de fontes inéditas, um expressivo conjunto de estudos, saudando-se vivamente a presença de um bom número de trabalhos da historiografia espanhola. E se sublinho esta questão, faço-o por ver que as gerações mais novas já começam a entender a relevância da historiografia peninsular para a grande maioria das temáticas, fazendo todo o sentido que se procurem na Península Ibérica as fundamentações empíricas para os modelos interpretativos, antes de o fazerem em espaços geográficos muito diferentes dos nossos, quanto mais não fosse pela ausência, ali, do fenómeno da guerra permanente com o Islão e da Reconquista, poupando assim o leitor à citação de obras introduzidas “a martelo”, perdoe-se-me a expressão, só para dar um ar mais “internacional” aos trabalhos, e que só genericamente têm a ver com estes, preterindo outros muito mais úteis em termos de análise comparada, e que se reportam à Galiza, às Astúrias ou à Andaluzia, apenas para dar alguns exemplos.

Deste ponto de vista, André Madruga Coelho compreendeu a importância dos trabalhos análogos para as cidades ou regiões espanholas vizinhas do território alentejano ou português; mas, numa outra perspetiva, estranha-se a ausência de alguma bibliografia portuguesa que abonaria algumas afirmações do autor ou reforçariam alguns dos problemas por ele levantados ao nível das metodologias. Voltarei depois a esta questão. Finalmente, e antes de abordar o conteúdo da obra em apreço, uma breve palavra sobre a sua estrutura, bastante equilibrada, sendo sempre uma questão subjetiva questionar se há capítulos a mais ou se são por excesso longos. Neste caso, fica--se talvez com a sensação de que a Introdução é algo excessiva, podendo uma boa parte das suas páginas ser facilmente integradas no primeiro capítulo, tal como o segundo e o terceiro capítulos talvez se pudessem fundir num único; mas, como disse, são apenas impressões, que em nada beliscam a justeza das escolhas da orientadora e do autor do trabalho.

Agora, deixando-nos levar pela dinâmica dos diferentes capítulos, acompanhem-se as diferentes trajetórias dos vários membros da família dos Lobo que André Madruga Coelho diligentemente resgatou das fontes, desde o final do século XIII até ao final do século XV. Previamente, a larga Introdução (p. 21-33) discorre por matérias de natureza teórica sobre as diferenças ou os estatutos sociais na Idade Média, sobre a evolução historiográfica em torno da cidade e da sociedade urbana medieval, para se aproximar de Évora pelos finais do século XIII, momento em que se registam as primeiras notícias documentais sobre um par de indivíduos identificados com o apelido Lobo, que já então integravam a elite eborense e da família que será o objeto de estudo dos capítulos seguintes. O primeiro capítulo (p. 35-45), porém, prolonga as matérias concetuais, agora em torno do que sejam as elites, e em particular as urbanas, e as suas possíveis designações, para concluir com uma breve síntese sobre a evolução histórica de Évora, desde a sua recuperação em 1165 até meados do século XV, com alguns apontamentos sobre a sua topografia ou a dimensão demográfica. Creio, como ficou dito antes, que a Introdução poderia ter incluído a já referida Nota Prévia, cedendo ao primeiro capítulo as várias páginas de concetualização, quanto a mim mais bem enquadradas neste primeiro capítulo, sobre Conceitos e Contexto – Ser um dos “Melhores da Terra” em Évora.

No capítulo seguinte, intitulado O Estabelecimento de uma Elite nos Séculos XII e XIII – os Milites de Elbora (p. 47-61), apresenta-se uma síntese bastante clara sobre a evolução da cavalaria-vilã, com especial enfoque sobre a da cidade de Évora, entre a segunda metade do século XII e a segunda metade do século XIII, ou seja, desde que a conquista de 1165 e o foral régio do ano seguinte convocaram e definiram a presença de um grupo armado de homens responsável pela defesa do burgo, até ao momento em que já tinham integrado o grupo da baixa nobreza, tal como se pode depreender dos vários textos normativos conhecidos. O processo, como no início se referiu, repetiu-se um pouco por todo o centro e sul do reino conforme a Reconquista se ia aproximando do seu final. E, desse processo evolutivo, terão participado os Lobo, muito embora já só surjam, como foi dito, no final de Duzentos.

Todavia, o que do meu ponto de vista não é devidamente sublinhado, e devo desde já dizer que André Madruga Coelho não é uma exceção, mas sim a regra de todos os autores que se têm debruçado sobre outros estudos de caso semelhantes ao dos Lobo, ou seja, não colocam a questão essencial para os compreender devidamente, quer na sua génese quer no seu desenvolvimento posterior: como foi possível a sua ascensão desde a cavalaria-vilã até à média ou baixa nobreza regional e, em concomitância, a sua assunção como elite urbana, em particular a sul do rio Tejo? Creio que essas trajetórias só se podem compreender tendo em conta dois fatores: por um lado, a quase total e absoluta ausência da nobreza mais antiga e poderosa nessas regiões até aos meados do século XIV, tal como tem vindo a ser demonstrado nos últimos anos, e de que o reinado de D. Dinis é um bom exemplo ao impedir a continuidade dos senhorios concedidos pelo pai, quer ao seu irmão, o infante D. Afonso, senhor de Portalegre, quer ao mordomo-mor e valido do Bolonhês, D. João Pires de Aboim, senhor de Portel, senhorio que a sua filha escambou com o monarca por Mafra e Ericeira, ou o senhorio de Alvito, que passou para a mão dos Trinitários por morte do chanceler D. Estêvão Anes; por outro, e em articulação com o anterior, o claro patrocínio régio para a criação dessas elites urbanas, que pudessem contrariar qualquer iniciativa de expansão do regime senhorial nortenho para áreas que eram claramente concelhias e de domínio régio, mesmo quando na posse das Ordens Militares, também elas sujeitas a um apertado controle desde o início do reinado do mesmo D. Dinis, como também foi sobejamente demonstrado, quer pelos especialistas dessas milícias quer do referido monarca. Creio bem que é na articulação destes dois fatores que se deve procurar a explicação, pelo menos em grande parte, para a pujança das elites urbanas no centro e no sul desde os finais do século XIII.

Segue-se um capítulo bastante breve, o terceiro, intitulado As Incógnitas do Século XIV. Dificuldades de Leitura de um Percurso em Ascensão (p. 63-71), mas muito interessante, onde o autor coloca uma série de questões relevantes, e que se prendem com as dificuldades que teve de ultrapassar na hora de identificar os indivíduos de apelido Lobo que surgem na documentação do século XIV, mas muitos deles de forma que impede uma clara relação de parentesco entre eles, para não falar dos problemas levantados pelas homonímias, ou seja, pessoas com o mesmo nome e documentados num arco cronológico que permite a possibilidade de serem o mesmo indivíduo, mas geograficamente distantes ou a exercerem cargos diferentes em simultâneo. Enfim, nada que não seja bem conhecido por todos quantos se depararam com a necessidade de proceder a reconstituições genealógicas, e é por isso que, com alguma perplexidade, registo a ausência de referências na bibliografia de alguns autores com uma vasta obra nestas matérias, e onde há muito levantaram esses mesmos problemas e testaram metodologias originais no quadro da nossa historiografia, e bastaria mencionar os trabalhos pioneiros do Professor José Mattoso, ou de vários dos seus discípulos, até para cronologias bem mais recuadas e, logo, mais complicadas do que o século XIV. Admito, porém, que se trate de um lapso involuntário. Da mesma forma, quando André Madruga Coelho aventa a hipótese de os Lobo, desde o início do século XIV, pertencerem à vassalidade dos Cogominho (p. 57), estranha-se que não cite trabalhos anteriores que estudaram essa importante linhagem das cortes de D. Afonso III e de D. Dinis, nomeadamente a Professora Leontina Ventura. Até por serem das poucas exceções com bens situados muito cedo na área eborense.

De qualquer forma, é muito interessante apreciar a forma paulatina como a trajetória deste ou daquele membro dos Lobo os vai encaminhando para que estivessem no sítio certo e no momento certo para darem o “grande salto” que os catapultou para a ribalta política, já não apenas de âmbito local ou regional, mas também nacional.

É precisamente no quarto capítulo onde André Madruga Coelho nos revela os caminhos trilhados pelos Lobo nesse percurso ascensional, graças à articulação de vias diversificadas que os encaminharam até ao poder. Note--se, porém, e como muito bem sublinha o autor, nem todos os ramos da mesma família conseguem atingir os patamares mais elevados, o que de resto já há muito foi bem demonstrado por autores que trabalharam conjuntos familiares bem mais numerosos e densos. Para mim, de resto, considero este o capítulo mais bem conseguido da obra, muito bem intitulado O Poder, Mecanismo de Promoção Social (p. 73-94). E, de facto, de poder se trata, especialmente de poder político e de influência política aos mais diversos níveis.

Os Lobo, ou pelo menos um grupo de irmãos dessa família, de entre os quais se irá destacar Diogo Lopes Lobo, filhos de um Lopo Fernandes Lobo, regedor de Évora pelos últimos anos do reinado de D. Fernando, foram os grandes protagonistas da viragem, pois vão-se opor vigorosamente, no quadro da questão sucessória por morte daquele monarca, que o alcaide da cidade tome voz pela rainha D. Beatriz e o seu marido, o monarca castelhano Juan I, inclinando-se pelo partido do Mestre de Avis, acabando por participar todos na batalha de Aljubarrota, como ficou para sempre registado nas páginas imorredoiras da crónica de Fernão Lopes. Para o caso, é verdade, bem mais importante foi também surgirem nas páginas dos livros de Chancelaria, onde se registaram os atos de gratidão do fundador da nova dinastia régia, sendo de destacar a doação do senhorio das vilas de Alvito e de Vila Nova, em 1387, a favor do referido Diogo Lopes, que já em 1385 surgia como alcaide-mor de Évora.

O “patrocínio régio” foi, assim, uma das vias de ascensão, quase sempre a mais espetacular, que embora tenha também beneficiado os outros irmãos colocou Diogo Lopes num patamar distinto, o qual se consumará, já no tempo de D. Afonso V com a criação do título de barão de Alvito, a favor de uma sua bisneta, D. Maria de Sousa, casada com um importante membro do oficialato régio, o doutor João Fernandes da Silveira, sendo este casal o tronco da ilustre casa de Alvito-Oriola. O exercício do “poder concelhio” era outra das vias de ascensão, de âmbito mais local ou regional, é certo, mas igualmente importante para a sedimentação das redes de influência familiar; e desse ponto de vista os Lobo tinham uma enorme experiência acumulada desde o século XIII. Não espanta, assim, que ao longo dos séculos XIV e XV se encontrem vários membros da linhagem, nomeadamente os descendentes dos outros irmãos de Diogo Lopes, no exercício de cargos relevantes na municipalidade eborense. Finalmente, também não se deve desdenhar a atividade assistencial, na aparência desinteressada dos olhares mundanos, mas que era na verdade uma outra via de promoção política e social. No caso de Évora o autor, e muito bem, voltou a sua atenção para o exercício de cargos de prestígio no âmbito da “Administração do Hospital de Jerusalém”, onde também os Lobo marcaram a sua presença. Em suma, e embora com alcances distintos, o certo é que a maioria dos descendentes dos irmãos que em 1385 combateram juntos com o Mestre de Avis souberam guindar-se a níveis superiores ao das gerações anteriores.

Como se sabe, tão difícil como conseguir o poder é saber ou poder mantê-lo e, se possível, acrescentá-lo. Disso mesmo trata o capítulo quinto, intitulado Sangue, Clientelas e Memória, Ingredientes da Aristocratização (p. 95-116), que nos leva para os caminhos sempre difíceis do parentesco, da criação de redes de influência através do patrocínio de clientelas, ou da perpetuação da memória familiar, mecanismos que, no seu conjunto, potenciavam a ascensão de qualquer indivíduo ou família no âmbito mais vasto do grupo aristocrático.

No primeiro caso, o do parentesco e o das alianças matrimoniais, e tal como acontece em quase todas as sociedades e em todos os tempos, por mais apontamentos românticos com que cada época o adorne, o matrimónio foi sempre um dos mecanismos mais importantes para a consumação das estratégias de poder pessoal ou familiar. André Madruga Coelha analisa bem as diferentes alianças levadas a cabo em cada geração da família Lobo, e também aqui se verifica uma clara articulação entre o nível de poder político de cada ramo da família e o nível social das respetivas alianças. Apenas me estranha, de novo, que nesta matéria não haja uma única referência à bibliografia portuguesa mais especializada e recente, nomeadamente quanto aos autores que desde há muito se debruçaram sobre estas áreas, e de novo referiria o Professor José Mattoso e os seus discípulos, nomeadamente os capítulos que elaboraram em obras relevantes e recentes2. Por outro lado, e considere-se apenas um detalhe, tenho muita dificuldade em aceitar que se possa comparar o nível dos Lobo com o dos Melo (p. 104); aqueles, oriundos da cavalaria-vilã eborense e que despontam pelos finais do século XIV, enquanto estes tiveram origem num ramo bastardo da poderosa linhagem dos de Riba de Vizela, na primeira metade do século XIII, e desde então se assumiram como uma das mais importantes linhagens da nobreza média de Corte até atingirem também a nobreza titulada na segunda metade do século XV, como condes de Atalaia.

Quanto à constituição de clientelas, a matéria, ainda que de maneira simples fica bem enquadrada, tal como a questão da memória familiar, e de forma bastante interessante, através da onomástica, da heráldica ou do relato escrito preservando os momentos mais heróicos da linhagem. Enfim a sua conjugação permitiu aos Lobo, sempre em patamares diferenciados, integrar as distintas capas da aristocracia, desde o âmbito regional ao nacional.

Por fim, no sexto e último capítulo, sugestivamente intitulado Sustentar o poder e o estatuto, a base patrimonial e os rendimentos (p. 117-127), onde se desenha o quadro patrimonial da família, distinguindo-se os bens imóveis dos rendimentos (rendas, direitos e jurisdições), num texto muito claro e que se complementa devidamente com a consulta dos dados sistematizados nos já referidos quadros que integram os Anexos.

O estudo de André Madruga Coelho sobre os Lobo ultima-se com umas breves páginas de Conclusões (p. 129-131), que traçam, talvez de forma excessivamente genérica, as principais linhas que se foram esboçando ao longo do trabalho. Gostei, em particular, da excelente ideia de contrapor a opinião do rei D. Duarte, expressa no seu Leal Conselheiro, sobre o que ele entendia ser a organização e estrutura da sociedade, com a definição de “Barão” dada por António Ferreira de Vera, conhecido erudito Setecentista, no seu tratado sobre as Origens da Nobreza Política, aquela a abrir a Introdução e esta a Conclusão, como corolário exemplificativo deste estudo, ou seja, apontando o caminho percorrido pelos Lobo entre a cavalaria e a baronia.

Em suma, o que posso dizer a um potencial interessado, é que deverá entender este trabalho como um novo estudo de caso, agora o dos Lobo, a juntar a outros mais que se debruçaram por linhagens com perfis muito semelhantes e enquadrados pelas terras do centro e do sul de Portugal, e que se destacaram especialmente nos principais burgos dessas regiões, e que terá a oportunidade de usufruir de uma leitura agradável e com matéria de interesse. Trata-se de um estudo que ainda revela algumas lacunas, próprias de quem começa, mas também as aptidões de quem pode ir mais além. Pelo que sei, André Madruga Coelho prepara neste momento a sua dissertação de doutoramento, também em torno da senhorialização do espaço de Além Tejo. Ficaremos a aguardar com justa expetativa, e só posso exprimir os meus mais calorosos votos de que também o jovem autor percorra com sucesso o seu caminho entre a cavalaria e a baronia…

 

NOTAS

SOTTOMAYOR-PIZARRO, J. A. de – Recensão ao livro de COELHO, André Madruga – Poder e estatuto em Portugal no final da Idade Média: Os Lobo entre a cavalaria e a baronia . Cadernos do Arquivo Municipal. 2ª Série Nº 10 (julho-dezembro 2018), p. 265 – 271.         [ Links ]

* Recensão apresentada por convite do Conselho Editorial da revista Cadernos do Arquivo Municipal.

1 MATTOSO, José, dir. – The Historiography of Medieval Portugal (c. 1950-2010). Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, 2011.

2 Cf. SOUSA, Bernardo de Vasconcelos e – A Idade média. In MATTOSO, José, dir. – História da vida privada em Portugal. Lisboa: Temas e Debates, 2010-2011. vol. I.

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