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Cadernos do Arquivo Municipal

On-line version ISSN 2183-3176

Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.10 Lisboa Dec. 2018

 

RECENSÃO

TAVARES, Rui – O censor iluminado: ensaio sobre o pombalismo e a revolução cultural do século XVIII.Lisboa: Tinta-da-China, 2018.**

José Subtil**

** José Manuel Louzada Lopes Subtil, UAL – Universidade Autónoma de Lisboa, 1169-023 Lisboa, Portugal. josemsubtil@gmail.com

O extenso livro de Rui Tavares sobre o censor iluminado, o pombalismo e a revolução cultural do século XVIII é fruto de um demorado e “inquieto” processo de investigação e escrita (1998-2017) sobre o núcleo documental da Real Mesa Censória (RMC). O autor numa longa entrevista que deu à revista LER (III Série Nº 150 (2018), p. 22-34) relata este percurso de investigação e trabalho. O conjunto documental, à guarda do Arquivo Nacional Torre do Tombo, conta com 1519 censuras, impressos, manuscritos, traduções e reimpressões, repartidos por vários géneros literários (Belas Artes, 18%, Religião, 36%, Filosofia e Artes, 27%, Direito, 10%, História, 9%) cujo desfecho processual foi o licenciamento de 53% das peças, a supressão de 35%, a emenda de 10% e a reserva de leitura para cerca de 2%.

O livro está dividido em outros três livros, formando uma espécie de tríptico sobre nove anos de censura “iluminada” (1768-1777) e a sua relação com o ambiente culto-mental da época. Cada livro está organizado em capítulos e/ou reservas temáticas. Logo a começar, nas «Palavras do Poder», Rui Tavares relata o protocolo e a cerimónia da inauguração da estátua de D. José (1775, inauguração a que o monarca não assistiu), para mostrar o lugar ocupado pelos deputados da RMC e as homenagens que prestaram, a censura a uma apologia do espetáculo e o curto texto que Pombal levou ao monarca, recebido na tenda real, sobre a síntese da mudança realizada durante o seu reinado. Depois de elencar outras distinções dos deputados, Rui Tavares irá selecionar processos de censura apropriados às situações que vão sendo descritas para, depois, regressar ao ano da criação da RMC (1768).

Convenhamos que não se trata de uma estrutura canónica, embora a divisão em livros possa evidenciar um conjunto articulado de momentos diferentes de produção textual, tanto mais que se trata de um trabalho académico, mais propriamente de uma tese de doutoramento apresentada à École des Hautes Études en Sciences Sociales, sob a orientação de Bernard Vincent. Apesar do tema ter sido já trabalhado por Rui Tavares na sua dissertação de mestrado, apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa sob a orientação de António Manuel Hespanha, na tese de doutoramento centrou-se, sobretudo, numa perspetiva de História Cultural e das Mentalidades com incursões na Sociologia, Filosofia e História Política, o que de certo modo se percebe atendendo aos mestres que teve nos seminários que frequentou para o curso de doutoramento (Roger Chartier, Bernard Vincent, Jean-Frédéric Schaub e Giovanni Levi). De notar, também, a assunção por uma visão historiográfica pós-moderna, chamando, contudo, a atenção que um historiador deverá ter como recurso sistemático fontes de informação credíveis e fundamentadas em documentos tomados “à letra e/ou a sério”.

Comecemos por chamar a atenção para o que não foi dito que poderia ter enriquecido a historiografia institucional do século XVIII. Numa referência ao pólo empírico que usou, Rui Tavares diz-nos que a organização do núcleo de arquivo da RMC corresponde à que foi usada pela mesa/tribunal, portanto, segue a ordem original e natural. Como esta constatação é muito rara, entendemos que podia ter sido potenciada em termos de análise institucional, ou seja, tomarmos conhecimento da tramitação processual, sistema de decisão, quadro de pessoal, modelo de recuperação da informação, acervo dos processos (em trânsito, fechados e pendentes), composições e funcionamento da mesa, cerimoniais e disciplina de regulação, quadro evolutivo do conjunto de censores de nomeação definitiva, assiduidades em mesa, tabelas remuneratórias, formas de pagamento, despesas de funcionamento e eventuais receitas obtidas, circuitos de relacionamento com o exterior. Por aqui podíamos ter ficado a saber, também, como a RMC se articulou com a Junta do Subsídio Literário e o Real Colégio dos Nobres, qual a custódia arquivística e como os deputados da RMC se encarregaram da administração destes organismos. De facto, não ficamos a saber muito sobre o tribunal régio/mesa, de curta duração, central na política de controlo sobre a produção e circulação das ideias, embora, fragmentariamente, possamos retirar algumas conclusões. Dado o estado natural do arquivo teria sido uma excelente oportunidade para conhecermos de perto o único tribunal/mesa criado e extinto durante o pombalismo que, curiosamente, não despachava através de consultas, mas por competência própria o que lhe conferia, sem dúvida, uma singularidade próxima das secretarias de Estado.

Como se compreende, teria sido muito útil, também, uma biografia/prosopografia dos dezanove censores nomeados, embora Rui Tavares se tenha demorado, em particular, com análises aprofundadas sobre quatro censores religiosos que fizeram mais de metade das censuras e a quem decidiu atribuir cognomes: Manuel do Cenáculo, o bibliófilo-censor (presidente da RMC entre 1770 e 1777), António Pereira de Figueiredo, o ideólogo, João Baptista de São Caetano, o jansenista, e Luís do Monte Carmelo, o irrepreensível. Uma das matérias que não foi abordada foi a cobertura das censuras para o Império, em especial para certas capitanias do Brasil onde começava a circular literatura perigosa para a coesão do Império.

O autor escolheu, porém, outro caminho que foi adotar o enfoque em torno da História da Cultura para, usando uma instituição privilegiada neste campo (RMC), se aproximar do que terá sido o despotismo iluminado, particularmente, de feição pombalina. Para este percurso optou por dois tipos de abordagem. A primeira, referente à análise dos processos de censura e, a segunda, sobre a relação desta com o ambiente cultural, recursos, formas e consequências. Neste percurso, Rui Tavares teve a preocupação de associar os “objetos” censurados aos censores e, de forma inovadora, traçar os argumentos usados nas decisões e/ou no confronto com os pareceres contrários ou concordantes discutidos em mesa.

Uma das centralidades teóricas que Rui Tavares seguiu foi a distinção entre “censores intérpretes” e “censores legisladores”, na linha teórica de Zygmunt Bauman quando se referiu à metáfora do intelectual legislador (produtor de leis que decide a controvérsia e escolhe a opinião verdadeira) e do intelectual intérprete (que explica o que se diz de um lado e do outro para manter a comunicação). Ou, se quisermos outra metáfora, comparar o pré-moderno com o moderno, a imagem dos couteiros com os jardineiros, os couteiros para preservarem as formas de vida na “floresta” (defender a fé, as ordens do rei e os bons costumes) e os jardineiros para definirem um desenho para o jardim de forma a transformarem a confusão da vegetação numa imagem ordenada pela “boa razão” do príncipe. O censor pombalino foi este jardineiro iluminado cujo perfil de competências cobria a capacidade para ser um bom intérprete, conseguir uma eficiente análise textual e avaliar a qualidade dos textos longe, portanto, de um funcionário que tivesse aprendido simplesmente a aplicar critérios de exclusão. Com este quadro de qualidades, o censor pombalino ficava, portanto, apto para elaborar os relatórios e atuar como juiz, autorizando ou suprimindo a leitura pública.

A relação da censura praticada na RMC com o ambiente das Luzes levou Rui Tavares para longas incursões em terrenos filosóficos que, do ponto de vista historiográfico, pouco adiantaram para a compreensão da RMC no xadrez disciplinar e repressivo do pombalismo, inclusive a emergência tardia da sua criação (finais da década de 60) e a sua existência efémera (nove anos) visto que, ao contrário do que é imaginado pelos “viradeiros”, o reformismo iluminado continuou pelo reinado mariano-joanino o que significa que a extinção da RMC se terá devido a uma avaliação política da sua “(in)utilidade” para o sistema, mais do que a uma expropriação funcional pela Intendência Geral da Polícia a quem sempre bastou apreender livros e propaganda contra-revolucionária e sediciosa. Na linha, aliás, da retórica da “ciência de polícia” que alimentou a criação e o trabalho de censura da RMC, ou seja, o encalce do princípio de que “luzes” servem para polir uma Nação desde que ditadas pela Razão de um poder executivo forte e absoluto.

Quanto ao subtítulo «Ensaio sobre o pombalismo e a revolução cultural do século XVIII», alguns dos argumentos que conduziram Rui Tavares a invocar esta designação foram, no essencial, os seguintes: a) a adoção de uma caligrafia de qualidade que melhorou muito o ambiente administrativo; b) a utilidade dos livros em função das necessidades culturais e sociais; c) a boa ortografia e gramática que levaram a RMC a suprimir 10% dos livros censurados; d) a importância conferida às artes fabris e liberais; e) a centralidade da Filosofia e o envolvimento das ciências maiores; f) a procura do bem-estar dos súbditos através de bons resultados do comércio interno e externo. Julgamos, porém, que, atendendo ao Antigo Regime, haverá algumas interpelações a fazer.

Desde logo, a expressão “revolução cultural” está muito marcada pela contemporaneidade da revolução cultural maoista com propósitos claramente militantes, marcadamente popular e a favor de uma ideologia. Não foi o caso da RMC, cujas práticas nunca foram doutrinárias e não intervieram na massificação ideológica.

Depois, as Luzes foram uma corrente filosófica elitista que influenciou o mundo ocidental, incluindo Portugal, desde os finais do século XVII, seguindo as perspetivas filosóficas de Descartes contra as de Espinosa cujo confronto, de certo modo, prevalece, ainda, no debate do pós-modernismo da segunda metade do século XX. A chamada “República das Letras” foi, também por isso mesmo, uma encruzilhada de equívocos e paradoxos como demonstra a inúmera e polémica historiografia sobre o Iluminismo. Não se tratou, portanto, de uma revolução cultural, mas de um debate filosófico com circulação restrita às elites letradas.

Em terceiro, o termo “revolução cultural” nunca foi utilizado pelas elites intelectuais setecentistas o que faz resvalar a denominação para um anacronismo desnecessário, a bem ver indisponível para populações iletradas e rústicas, imersas na oralidade, nas tradições e costumes como era a maioria do reino.

Em quarto, no que se refere ao pombalismo, as práticas dos censores iluminados em nada se assemelham a uma orientação revolucionária. A RMC foi uma “instituição total” no sentido que Erving Goffman define o “sítio” onde um número de indivíduos trabalham separados da sociedade, levam uma vida fechada e agem autonomamente do ponto de vista formal para protegerem os vassalos do que entendem serem ameaças à sua integridade e/ou estímulos ao progresso e bem-estar. Onde, de facto, o reformismo iluminista pombalino brilhou, foi na reforma do ensino, desde as primeiras letras até à Universidade de Coimbra, ou seja, um programa eminentemente institucional, não panfletário. Por outro lado, a excecional capacidade propagandística contra os jesuítas foi sustentada numa retórica regalista do exercício do poder, apesar de ter sido uma investida política que usou as Luzes para o serviço da Boa Razão do príncipe e não, propriamente, da República das Luzes.

No modelo, produção e tramitação processual da RMC, Rui Tavares realça a política de segredo, ao contrário do que tinha prevalecido quando a censura esteve repartida, durante cerca de 250 anos, por três instituições, o Desembargo do Paço, o Ordinário (episcopal) e a Inquisição, cujos resultados eram públicos e apensos às obras censuradas, isto é, tanto os autores como os leitores e impressores tomavam conhecimento de três relatórios que explicavam as razões da sua publicação ou não. O novo dispositivo seguido na RMC é um encobrimento que resguarda tanto os censores como os critérios seguidos na censura. Acresce, ainda, que os novos deputados da RMC foram censores de nomeação definitiva e não recrutados, esporadicamente, conforme a especificidade dos conteúdos a censurar como aconteceu no modelo tripartido. Trata-se, portanto, de duas novidades que consolidam a intervenção da RMC no ambiente político e cultural do pombalismo.

O leitor pode, ainda, descobrir no trabalho de Rui Tavares três ideias, de certo modo surpreendentes, que explicam a mudança de posição epistemológica a que foi obrigado depois da leitura dos primeiros processos, obrigando-o a repensar as pré-compreensões inculcadas pelo modelo de censura contemporânea.

A começar pela ideia, várias vezes dita e redita por Rui Tavares, de que o censor da RMC não é um censor “polícia” mas um censor “intelectual” que filtra a luz da qualidade de uma obra para a autorizar a partilhar da “luz” da verdade, ou para a impedir de alimentar a “escuridão”. Essa incumbência cobria várias dimensões desde a salvaguarda da monarquia e, conjunturalmente, a defesa do regalismo, até ao rigor da narrativa, ortografia, sintaxe, passando pela retórica argumentativa e a escolha das palavras. A evidência destes critérios consta dos relatórios, obras de recensão crítica que espelham a erudição iluminista. Por isso são, igualmente, excelentes peças de análise sobre o nível de compreensão e consciência da época, aquilo a que poderemos chamar de “visão do mundo” captada pelo máximo de consciência possível dos melhores intelectuais da época.

Em seguida, a ideia que levou Rui Tavares a dissertar sobre a natureza do Iluminismo e a diferença da leitura moderna e pós-moderna deste movimento, é a de que a censura iluminada não admite a pluralidade, ou seja, é uma censura que se vê a si mesma como o único referencial da verdade, a leitura possível do mundo, sem admitir a substituição por outra qualquer. Basta-se, portanto, no seu processo de auto-referência. Contudo, através de uma nesga aberta pela controvérsia das decisões desconformes, discutidas em reunião de mesa, Rui Tavares defende a possibilidade desta “crença intelectual” começar a mostrar brechas no seu despotismo, em especial nos últimos três anos de mandato da RMC. De qualquer forma, os nove anos de “revolução da RMC” correspondem a uma censura antipluralista em que o trabalho censório corresponde a um processo de destilação para separar o certo do errado.

A terceira ideia tem a ver com o facto dos livros, mesmo possuindo qualidade e idoneidade, terem de provar utilidade para serem divulgados e lidos, ou seja, este caráter pragmático da nova censura diz bem do interesse político reservado à RMC de forma a garantir o aproveitamento da circulação dos livros para o progresso e desenvolvimento das “luzes” pombalinas.

Deixemos para uma breve reflexão prospetiva algumas indagações. Uma sobre a tardia criação da RMC no ponto mais alto do reformismo pombalino, quase uma década depois do atentado a D. José que abriu o caminho à tomada do poder por Pombal e as suas criaturas. Outra, a relação de poder entre a RMC e a Secretaria de Estado dos Negócios do Reino dirigida pelo marquês de Pombal, o seu nível de autonomia e a conflitualidade jurisdicional com outros tribunais, nomeadamente com o Desembargo do Paço e a Inquisição. E, naturalmente, o alcance que a atividade da RMC teve na reforma do ensino, isto é, de que forma as suas decisões e práticas se refletiram nos programas de ensino das primeiras letras, na educação das elites e na reforma da Universidade de Coimbra.

A terminar, fixemos duas observações, uma para os académicos e outra para os leitores que se interessam pelo século XVIII. Para estes últimos, o livro não oferece os mesmos pontos de interesse em todos os capítulos e acaba por se tornar demasiado insistente na reflexão sobre a natureza da censura iluminista com abordagens filosóficas porventura excessivas. Teria sido preferível uma versão mais reduzida e centrada na identificação das práticas dos censores, explicitação dos processos e articulação da RMC com o regime pombalino.

Para os académicos, os conteúdos acabam por revelar detalhes importantes do pensamento de cada censor, da RMC e das questões sobre o Iluminismo e suas relações com o modernismo e o pós-modernismo.

Diríamos, para concluir, que o livro tríptico, equivalente ao texto da tese, constitui um contributo singular e rigoroso para a historiografia setecentista e uma oportunidade para se debater o polémico ambiente político e culto-mental do pombalismo.

 

NOTAS

SUBTIL, José – Recensão ao livro de TAVARES, Rui – O Censor Iluminado: ensaio sobre o pombalismo e a revolução cultural do século XVIII. Cadernos do Arquivo Municipal. 2ª Série Nº 10 (julho-dezembro 2018), p. 259 – 263.         [ Links ]

* Recensão apresentada por convite do Conselho Editorial da revista dos Cadernos do Arquivo Municipal.

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