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Cadernos do Arquivo Municipal

versão On-line ISSN 2183-3176

Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.8 Lisboa dez. 2017

 

RECENSÃO

 

FONTES, João Luís Inglês; OLIVEIRA, Luís Filipe; TENTE, Catarina; FARELO, Mário; MARTINS, Miguel Gomes, coord. – Lisboa medieval: gentes, espaços e poderes. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, 2017. 464 p.

Maria Amélia Álvaro de Campos*

*CHSC-UC - Centro de História da Sociedade e da Cultura da Universidade de Coimbra, 3004-530 Coimbra, Portugal.

CIDEHUS-UÉ - Centro Interdisciplinar de História Culturas e Sociedades da Universidade de Évora, 7000-809 Évora, Portugal.

Bolseira de pós-doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (SFRH/BPD/100765/2014) e investigadora integrada dos CHSC-UC e CIDEHUS-UÉ.

 

 

Terceiro título de uma coleção1 que prepara já edições futuras, este livro constitui um testemunho do dinamismo da investigação realizada em torno da História Medieval de Lisboa. Nele, reúnem-se as versões escritas dos trabalhos que, apresentados no III colóquio A Nova Lisboa Medieval (20 a 22 de novembro de 2013), foram aprovados para publicação, por uma comissão científica internacional de especialistas em História da cidade, da presença islâmica na Península Ibérica, do urbanismo português, da sociedade, da Igreja medieval, da Expansão, entre outras áreas. A pluralidade de assuntos tratados reflete-se também na coordenação da obra, efetuada por investigadores do Instituto de Estudos Medievais (IEM-FCSH/UNL).

Da observação global e preliminar da obra (464 p.) editada pelo IEM, sobressai a profusão e a qualidade das fotografias, fontes iconográficas, plantas, mapas, tabelas e quadros de análise apresentados que facilitam uma leitura mais articulada, por parte de públicos heterogéneos. A obra divide-se em duas partes: na primeira, publica-se a conferência de abertura do colóquio; na segunda, organizam-se cronologicamente os trabalhos aí apresentados, selecionados pela referida arbitragem científica, sob um título geral Gentes, espaços e poderes.

A primeira parte, assinada por Matthew Davies, é dedicada ao estudo do papel comercial e político de Londres. O autor compromete-se com a elaboração de uma análise global desse centro urbano, partindo da mais recente investigação sobre essa cidade. A escolha deste trabalho para abertura de uma obra sobre Lisboa assume-se como um desafio à comunidade científica portuguesa de modo a chamar a atenção para a necessidade de estudos historiográficos mais integrados e comparados. Com a observação de Londres – capital do reino de Inglaterra – pretendeu-se estabelecer pontos de comparação com a sua homóloga portuguesa e protagonista deste livro.

Nome consagrado nas áreas dos estudos urbanos e do mercantilismo, o autor analisa a história londrina a partir do seu desenvolvimento físico (demográfico e topográfico), do seu desenvolvimento económico, enfatizando a relevância dos mercadores no comércio doméstico e marítimo, e do seu desenvolvimento político, focando-se na relação da cidade com a coroa. Por fim, conclui a máxima valia de se estabelecerem pontos de comparação com a capital portuguesa, num período anterior ao arranque da expansão.

Nesse sentido, alguns dos artigos publicados na segunda parte convergem diretamente com os temas propostos pelo investigador da Universidade de Londres. Flávio Miranda e Diogo Faria, num trabalho que enfoca o papel de Lisboa e dos seus mercadores no comércio marítimo europeu dos séculos XIV e XV, demonstram as especificidades do perfil urbano desta cidade, bem como os pontos de contacto entre a capital portuguesa e outros portos do ocidente medieval, lançando pistas importantes para a prossecução dos estudos sobre a sua projeção internacional. Por sua vez, Adelaide Millán da Costa, escolhendo uma «encruzilhada que articula a história urbana com a história política» examina a identidade do concelho de Lisboa através da comunicação entre este território e o monarca. A partir dos capítulos especiais desta cidade em cortes, a autora problematiza a condição política de Lisboa enquanto cidade maioral do reino.

Na apresentação, os coordenadores lamentam a ausência de estudos com base em fontes literárias, todavia a síntese crítica de António Rei sobre a visão de Lisboa e do seu território envolvente, na literatura árabe da Baixa Idade Média, com base nos relatos do “maravilhoso”, atenua essa falta e sublinha a excentricidade deste extremo ocidental europeu, nestes registos.

Do mesmo modo, os coordenadores apontam a carência de abordagens de História de Arte, ressalvando a forma como as investigações nas áreas do urbanismo e da arqueologia a colmatam. De facto, estudos de arqueologia como o de Alexandra Gaspar e Ana Gomes sobre a ocupação medieval na Sé de Lisboa, desde a ocupação islâmica até à Baixa Idade Média, colocam os edifícios no centro da análise. Neste caso, os dados disponibilizados, quando enquadrados pela informação historiográfica já disponível sobre Lisboa, permitirão aprofundar a reflexão sobre as diferentes fases da sua História Medieval, através de um edifício fundamental para a compreensão da cidade. A Sé de Lisboa volta a ser objeto de estudo central no artigo de José Augusto Oliveira: a partir de um registo contabilístico do século XIV, sobre o estaleiro de obras no claustro – documento que se publica no apêndice documental – estudam-se os materiais de construção, a tipologia, a organização e a remuneração da mão-de-obra utilizada para esse empreendimento. Por sua vez, Manuel Pedro Ferreira analisa um fragmento de notação musical correspondente ao ofício de celebração da trasladação para Lisboa de São Vicente. Essa análise, a par com a leitura comparativa de textos hagiográficos do século XII e XIII e dos registos do culto do mártir em fontes posteriores, permite conclusões inéditas sobre o envolvimento de D. Afonso IV na revitalização do culto deste mártir na catedral olissiponense.

Os edifícios civis, associados à Casa Real e à governação, também marcam presença através da análise que Milton Pacheco faz ao Paço dos Estaus, centrando-se na sua fundação de finais da Idade Média. Mas a estrutura urbana de Lisboa também é analisada, através das suas habitações correntes. Margarida Leme estuda a forma, bem como a toponímia de alguns arrabaldes da cidade, a partir da análise de documentos afetos à exploração económica da propriedade dos 31 hospitais que integraram o património do Hospital de Todos os Santos. Já no trabalho de Sandra Pinto, percebemos que o controlo e a regulação jurídica das práticas construtivas, através da almotaçaria, era uma das formas de exercício do poder por parte do concelho, nos séculos XV e XVI.

Na análise dos espaços, mas também das populações que construíram a Lisboa que conhecemos, o contributo dos arqueólogos revela-se de extraordinária importância. Sílvia Casimiro, Sara Prata e Rodrigo Banha da Silva, após realizar um importante enquadramento sobre a arqueologia funerária e os motivos para a sub-representação de conjuntos osteológicos das populações não adultas, estudam quatro enterramentos infantis (séculos VI a VIII), levantados por altura de uma escavação arqueológica na Praça da Figueira. Outro trabalho, centrado no estudo arqueológico do jardim do Palácio dos Condes de Penafiel, localizado numa área chave da cidade pós-clássica (da autoria de Adriaan de Man e Rodrigo Banha da Silva), fornece dados relevantes sobre Lisboa na antiguidade tardia.

Por sua vez, o trabalho de Marco Oliveira Borges, sobre Lisboa islâmica, dedica-se à defesa costeira da área ocidental da cidade, que englobava territórios dos atuais concelhos de Sintra, Cascais e Oeiras. Pelo confronto de informações provenientes de fontes iconográficas, arqueológicas, toponímicas, entre outras, esta investigação apresenta-se como continuadora daquelas desenvolvidas para o triângulo geográfico Sintra-Cascais-Lisboa, fundamental para a compreensão do sistema defensivo de uma área amplamente exposta ao perigo de ataques marítimos.

Inês Lourinho reflete sobre as estruturas de poder do al-Andaluz numa fase decisiva para a conquista cristã – a transposição para Sul da linha do Tejo, em 1147. Destaca-se a profundidade de análise dos conflitos internos, decorrentes das pretensões almóadas sobre o domínio político e territorial almorávida. O ano da conquista de Lisboa representa, também, o ponto de partida do artigo de André Oliveira Leitão sobre o povoamento do seu termo. O autor demonstra o papel das igrejas paroquiais e dos mosteiros de São Vicente de Fora e de Chelas na organização do povoamento desta região e problematiza dinâmicas de continuidade e rutura, a partir de uma abordagem que julgamos importante aplicar a um cada vez maior número de regiões.

Porque se ocupa de Lisboa – cidade multicultural – não poderiam faltar nesta obra estudos sobre a presença judaica. Assim, numa abordagem direcionada para o urbanismo, Manuel Fialho Silva e Artur Jorge Ferreira Rocha cruzam informações provenientes de vestígios arqueológicos e de fontes escritas para traçarem a génese da Judiaria Pequena, nos inícios do século XIV. Noutro artigo que se posiciona já «nos alvores dos Descobrimentos», José Alberto Rodrigues da Silva Tavim analisa os espaços e os edifícios judaicos e a sua evolução urbana, até ao período posterior ao édito de expulsão de 1496. Destaca-se a preocupação em contextualizar o fenómeno urbano nas suas especificidades culturais, bem como o permanente cotejar da historiografia sobre o tema. Nestes dois casos, faltam, porém, os mapas ou esquemas cartográficos que permitam conceber visualmente as características formais dos espaços tratados. Por fim, a análise codicológica de cerca de 21 manuscritos hebraicos datados de Lisboa (1469-1496) e conservados em cerca de uma dezena de bibliotecas europeias e americanas, realizada por Tiago Moita, acrescenta a esta obra informações notáveis – testemunhos dos mais recentes desenvolvimentos dos estudos sefarditas.

O perfil multicultural de Lisboa é outrossim resultante da ocupação islâmica que vimos já ter sido abordada nesta obra, nas suas dimensões políticas e territoriais. O artigo de Franklin Pereira sobre o trabalho dos couros nas suas diferentes especializações, demonstra o quanto as três culturas – hebraica, islâmica e cristã – se entreteceram e são apreensíveis (pelo menos até ao século XVI) nas técnicas, na estética e na tipologia dos artefactos produzidos.

Com esta breve apresentação de cada um dos estudos, desejamos chamar a atenção do leitor para o quanto esta obra acrescenta o panorama historiográfico nacional. Nela, compila-se o trabalho de mais de 25 especialistas, que nos dão eco de cerca de 700 anos de História e atestam uma investigação verdadeiramente interdisciplinar.

Como normal em publicações como esta, a expressão escrita e a profundidade da análise a que os diferentes objetos de estudo foram sujeitos, assim como as metodologias de investigação, variam de artigo para artigo comprometendo, por vezes, uma leitura mais clara e contínua. No entanto, a abundância e a fecundidade dos dados disponibilizados, o rigor metodológico de todas as investigações, o bom exemplo dos trabalhos realizados em equipa, a participação de especialistas de várias áreas (arqueólogos, arquitetos, musicólogos, historiadores, historiadores da arte, medievalistas, modernistas) consubstanciam sinais de vitalidade e progresso na investigação histórica sobre a capital portuguesa. Além da realização e da publicação de novos colóquios, resta-nos sugerir e desejar que, a médio prazo, esta linha de investigação produza uma obra de síntese em que os dados difundidos até ao momento sejam apresentados, diacronicamente, de forma integrada e comparativa com o que se conhece sobre a Europa da pré-Modernidade.

 

 

Nota

1Ver ENCONTRO A NOVA LISBOA MEDIEVAL, 1 – A nova Lisboa medieval: actas.Lisboa: Colibri, 2005; KRUS, Luís; OLIVEIRA, Luís Filipe; FONTES, João Luís - Lisboa medieval: os rostos da cidade. Lisboa: Livros Horizonte, 2007. Este último foi recenseado por mim em CAMPOS, Maria Amélia Álvaro - «[Recensão a] KRUS, Luís; OLIVEIRA, Luís Filipe e FONTES, João Luís, coord. - Lisboa medieval: os rostos da Cidade». Revista de História da Sociedade e da Cultura [Em linha]. 9 (2009), p. 255-60. Disponível em: http://dx.doi.org/10.14195/1645-2259_9_11.

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