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Cadernos do Arquivo Municipal

versão On-line ISSN 2183-2176

Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.7 Lisboa jun. 2017

 

RECENSÃO

VALE, Teresa Leonor – Ourivesaria barroca italiana em Portugal: presença e influência. Lisboa: Scribe, 2016. 640 p.

Nuno Vassallo e Silva*

FCG – Fundação Calouste Gulbenkian, 1067-001 Lisboa, Portugal.

FLUC – Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 3004-530 Coimbra, Portugal

 

 

Teresa Leonor Vale tem-nos oferecido nos últimos anos um conjunto notável de trabalhos na sequência da sua tese de doutoramento, defendida na Universidade do Porto, intitulada A importação de escultura italiana no contexto das relações artístico-culturais entre Portugal e Itália no século XVII (1999). São hoje referências obrigatórias as obras A escultura italiana de Mafra (2002), Escultura italiana em Portugal no século XVII (2004) ou Escultura barroca italiana em Portugal. Obras dos séculos XVII e XVIII em Coleções públicas e particulares (2005), onde se associa uma metodologia científica de rigor imbatível ao interesse e novidade das temáticas.

Professora auxiliar de História da Arte na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, foi consultora científica dos trabalhos de conservação e restauro da Capela de S. João Baptista, promovidos pelo Museu de S. Roque / Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, e do estudo do seu tesouro. Comissariou com António Filipe Pimentel a exposição A Encomenda Prodigiosa: Da Patriarcal à Capela Real de São Batista (2013), coordenou a obra De Roma para Lisboa: um álbum para o Rei Magnânimo (2015), e comissariou a exposição homónima.

Resultado da sua investigação de pós-doutoramento, dedica a presente obra ao estudo da ourivesaria barroca italiana em Portugal e à influência posterior que se fez sentir nas nossas oficinas. A autora, cuja obra científica é de uma coerência exemplar, não se desvia do seu tema eixo, a escultura, mas aprofunda uma área que lhe é extremamente próxima: a da ourivesaria, um pouco como sucede nos trabalhos de Jennifer Montagu, que têm influenciado muito positivamente a obra de Teresa Vale. Esta metodologia de abordagem possibilitou à autora um reconhecimento internacional que poucos historiadores de arte portugueses beneficiam e que tem tradução na publicação de artigos e livros em Itália e no Reino Unido, de que o mais recente exemplo é a obra The art of the Valadiers, publicada pela prestigiada editora de livros de arte Umberto Allemandi.

Não é por acaso que a obra se inicia com uma reflexão sobre as relações entre a escultura e a arte da ourivesaria, revelando para o caso italiano uma complexa rede de relações familiares, cruzamentos no ofício, desenvolvimentos paralelos, cuja transposição para o caso português pode oferecer um importante campo de investigação.

Deve-se a Vicente de Almeida e Sousa Viterbo, com a obra A Capela de S. João Baptista Erecta na Egreja de S. Roque. Fundação da Companhia de Jesus e hoje pertencente à Santa Casa da Misericórdia. Noticia histórica e descritiva (Lisboa, 1900), o arranque para o estudo da presença de obras de ourives italianos em Portugal, resultante do levantamento dos fundos documentais da Biblioteca da Ajuda, porventura o maior repositório conhecido para o estudo das relações entre Lisboa e Roma no século XVIII.

Teresa Vale apresenta em 640 páginas e contida seleção de imagens, como convém numa obra resultante de uma profunda investigação arquivística e de análise formal de obras de arte sobreviventes, um conjunto imenso de novas informações e dados que ultrapassam em grande medida o tema que propõe tratar: as encomendas portuguesas a Roma, centro do Papado, irradiador dos modelos litúrgicos divulgados por toda a Europa católica (e fora do continente europeu que não é abordado pela autora). A influência destes modelos na produção nacional ultrapassa de vez o caráter provinciano e pouco cosmopolita da “obra de Aldea”, como a caracterizava José Correia de Abreu, em agosto de 1729, a propósito das encomendas para Mafra que iniciam todo o surto de encomendas italianas entre nós. Como é bem justificado, existia um reconhecimento da altíssima qualidade das obras lavradas em prata na cidade que, simultaneamente, foi um dos principais centros da ação diplomática ao longo do reinado de D. João V.

Desde pelo menos Reynaldo dos Santos e João Couto que se procuraram justificar as profundas alterações na ourivesaria portuguesa na “passagem do barroco para o rococó”, com base nas encomendas joaninas efetuadas em Roma. Todavia, estas nunca foram verdadeiramente, ou pelo menos sistematicamente estudadas, com a exceção da Capela de S. João Batista e de alguns trabalhos ainda inéditos, assim como conferências pontuais. Porventura, o maior contributo para relançar o tema terá resultado das exposições Roma lusitana, Lisbona romana, coordenada por Sandra Vasco Rocca em 1990, e Triunfo do Barroco, na sua apresentação na National Gallery of Washington, mas sobretudo, da edição da obra de Jennifer Montagu, Gold, silver and bronze: metal sculpture of the roman baroque, em 1996.

Ao longo do texto somos acompanhados pelas principais personagens deste momento que durou pouco mais de meio século, mas que deixou profundas marcas. Seguimos D. João V, o maior mecenas, o oficial da Secretaria de Estado e reposteiro da Câmara do “Magnânimo”, Dr. José Correia de Abreu, os seus embaixadores em Roma como fr. José Maria da Fonseca e Évora ou Manuel Pereira de Sampaio, sem esquecer João Frederico Ludovice.

Na obra, não é menor a variedade dos cenários evocados: Lisboa, Mafra, Roma, mas ainda Nápoles, Génova, Sicília e Veneza, sendo contudo os ourives e suas oficinas os verdadeiros protagonistas: Antonio Arrighi, Antonio Gigli, Giacomo Pozzi, Giuseppe e Leandro Gagliardi, Andre e Luigi Valadier, Giovanni Paolo Zappati ou Vincenzo Belli, numa seleção assumidamente pessoal de quem redige esta recensão, entre os cinquenta e seis lavrantes cotejados pela autora.

A obra é assim estruturada a partir dos grandes encomendadores, concluindo com um primeiro retrato da influência da ourivesaria italiana, sobretudo romana, na produção portuguesa. No final, tal como se tratasse de uma coda de uma composição musical, regressa-se ao tema dos escultores e dos ourives no Portugal do século XVIII, com o exemplo extraordinário da urna para o Santíssimo Sacramento executada por Manuel Roque Ferrão, sob modelo, pelo menos nos baixos-relevos, mas que creio se estender a toda a obra, sem paralelo entre nós, de Alessandro Giusti.

D. João V é naturalmente a primeira figura a ser trabalhada dado o volume e a importância das suas encomendas. No Reino, e mesmo na Europa do seu tempo, não tinha quem se lhe pudesse competir. As encomendas Reais iniciam-se com Mafra, com a urgência dos trabalhos para a Sagração da Basílica em 1730. Seguem-se a desaparecida Patriarcal, “um simulacro da corte pontifícia” como bem interpretou Vilhena Barbosa; S. João Baptista em S. Roque, um verdadeiro prodígio artístico e milagre de sobrevivência, e por fim as várias ofertas “às igrejas do Reino”, sobretudo S. Sebastião da Pedreira, a Sé de Coimbra e ainda o Convento de Santa Clara ou os Jerónimos em Lisboa, que possuíam “hum sacrário, ou tabernáculo antigo de prata muito bem feito”.

A primeira carta de José Correia de Abreu para Roma, datada de 1728, justifica a encomenda dado que, em Portugal, “os feitios das obras de prata são excessivos”. Ao longo da obra percebemos como este argumento era falacioso, servindo apenas como uma justificação. D. João V procurava em Roma os modelos para uma produção que servia melhor o engrandecimento do Estado Português e a sua afirmação na Europa igualmente pela afirmação de uma Igreja triunfante sob patrocínio régio. Como Rui Bebiano demonstrou na sua obra basilar D. João V poder e espetáculo, ligou o Magnânimo uma grande parte do seu esforço criativo e munificente à elevação da Igreja Católica em Portugal, unindo a grandeza da monarquia e do seu nome ao luxo e espavento do espetáculo religioso. Tal nunca estaria ao alcance dos nossos ourives, arredados das celebrações da Corte Pontifícia, onde o Magnânimo procurava informações sobre todo o tipo de celebrações realizadas na Cúria.

Seguem-se as encomendas particulares, sempre antecedidas de uma apresentação das personagens, numa preocupação de integrar as obras no percurso das suas carreiras. Sobressaem as figuras do Cardeal D. João da Mota e Silva – secretário de Estado de D. João V, a quem é associado um cálice lavrado por Filippo Galassi, datado de 1726, hoje na Igreja de S. Jorge de Arroios –, e do embaixador joanino, mais tarde bispo do Porto, fr. José Maria da Fonseca e Évora. Esta é uma das passagens mais cativantes da obra pela riqueza da personagem, que Teresa Leonor Vale já havia antes trabalhado, mas sobretudo, pelo seu grande pragmatismo, pois logo que informado da sua nomeação como Bispo do Porto, mandou retirar as armas do monarca em encomendas para ele já realizadas, substituindo-as pelas suas. Obras que integraram certamente a muito celebrada “bagagem copiosa” quando da sua entrada no Porto, em 1741. Algumas destas alfaias em prata, provenientes da oficina de Antonio Arrighi, conservam-se ainda hoje no Museu Nacional Soares dos Reis.

São também alvo da atenção do estudo as aquisições de residentes em Roma, sejam cardeais ou embaixadores, e ainda o núcleo de obras pertencentes à Igreja de Santo António dos Portugueses cujo importante catálogo a autora publicaria em 2014.

Já a figura de João Frederico Ludovice merece um olhar atento, sobretudo focado na perspetiva da sua carreira de ourives, enriquecendo Teresa Vale o corpus de obras atribuídas ao autor de Mafra e “mestre de orquestra” da Capela de S. João Batista em S. Roque (o que já merecera a atenção de autores como José Teixeira, na sua fase romana e de Paulo Varela Gomes para o episódio da encomenda para os jesuítas de S. Roque). Acompanhamos a sua aprendizagem e trabalho em Roma, a continuidade dos trabalhos de ourivesaria para os jesuítas em Lisboa, mesmo quando já se consagrava como arquiteto de D. João V, para além do acompanhamento da encomenda de diversas obras ou da autoria dos desenhos originais para peças lavrar em oficinas de Roma ou Paris. Sobre o ourives/ arquiteto, Teresa Vale releva um significativo episódio passado em 1738 quando o monarca procurava mandar fazer um cálice para oferecer à Basílica de S. Pedro em Roma, confiando no seu ourives predileto a sua execução. Porém, como escreveu o seu secretário o pe. Giovanni Baptista Carbone, “o dito Frederico esta velho, e acabado, e há muito tempo que não trabalha em ouro e prata, ocupando-se unicamente em riscos de arquitetura”. Os tempos do lavrante de obras em metal precioso já haviam passado no final da década de 1730, mas a arte da ourivesaria nunca esteve fora das suas preocupações, como bem veremos com o seu envolvimento na encomenda de S. Roque.

Um outro contributo do trabalho de Teresa Vale foi o de identificar as diversas obras relacionadas com ourivesaria pertencentes à biblioteca de Ludovice, como a recolha dos desenhos do ourives Giovanni Giardini, Promptuarium artis argentariae, publicado em 1714, reimpresso em 1750, e outras edições mais técnicas.

Os anexos de Ourivesaria barroca italiana em Portugal revelam-se um verdadeiro virtuosismo científico com a compilação e transcrição dos principais documentos sobre a encomenda portuguesa de obras de ourivesaria em Itália, acrescidos de quase cinco dezenas de tabelas – desde o inventário das obras existentes, aos seus pagamentos, corpus de obras por autor ou tipologias de peças – facilitando grandemente a leitura através de um acesso imediato à informação dispersa na obra. Finalmente, são-nos oferecidas sínteses biográficas acompanhadas das marcas de ourives italianos que trabalharam para Portugal e de ourives portugueses cuja produção foi evidentemente influenciada pela ourivesaria italiana embora, neste caso, estejamos apenas num primeiro levantamento, dado que o universo é muito mais alargado.

Fundamentalmente encontramo-nos perante um trabalho de grande fôlego, com exaustivo levantamento documental e de obras existentes; um instrumento de trabalho caraterizado pela clareza da metodologia, enriquecido pelo apontar caminho para trabalhos futuros e pela reposição da arte da ourivesaria no contexto artístico italiano e português, a sua forte relação com a escultura, para além do reforço da posição de Portugal no mecenato artístico romano no século XVIII. Simplesmente exemplar.

 

 

Notas

* Nuno Vassallo e Silva – Doutorado em História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e graduado pelo Museum Leadership Institut do Getty Leadership Institute. Director-adjunto do Museu Calouste Gulbenkian exerceu funções de Conservador do Museu de S. Roque, diretor-geral do Património e Secretário de Estado da Cultura do XX Governo Constitucional. Académico correspondente da Academia Portuguesa da História recebeu, em 2013 o Prémio Dr. José de Figueiredo, da Academia Nacional de Belas-Artes, pela obra Ourivesaria portuguesa de aparato. Séculos XV e XVI.

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