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Cadernos do Arquivo Municipal

versão On-line ISSN 2183-2176

Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.7 Lisboa jun. 2017

 

ARTIGO

“Entalados” nas fachadas de Lisboa. Práticas escultóricas na construção de rendimento na década de 1950. O bairro de Alvalade.

“Entalados” on the facades of Lisbon buildings. Sculptural practices in the private construction of the 1950s. The Alvalade neighbourhood.

 

Inês Maria Andrade Marques*

 

RESUMO

Na década de 1950, vulgarizou-se na cidade de Lisboa uma prática escultórica muito específica que caracterizou os chamados prédios de rendimento. Os “entalados”, tal como lhes chamou Keil do Amaral, eram esculturas ou relevos colocados em espaços relativamente pequenos, geralmente encimando as entradas principais dos edifícios. Embora muitas vezes realizadas por escultores com formação académica, estas obras tinham um estatuto ambíguo, entre a cantaria artística e a escultura. Por se considerarem elementos decorativos, iam povoando a cidade sem grande controlo dos poderes públicos, contrariamente à escultura e estatuária monumental. Considerando o conjunto de intervenções escultóricas existentes no bairro de Alvalade, este texto contextualiza o surgimento dos “entalados”, descreve esta prática escultórica – muito criticada por Keil e outros artistas e arquitetos modernos – e mostra, através de um caso concreto, como a sua presença colidiu por vezes também com as sensibilidades oficiais da época.

 

PALAVRAS-CHAVE

Escultura integrada / Arte pública / Cantaria artística / Entalados

 

ABSTRACT

In the 1950s, a specific sculptural practice became popular in the city of Lisbon, serving the interests of the private construction. The “entalados”, as Keil do Amaral called them, were sculptures and reliefs which were placed in narrow spaces in the facades of the residential buildings, usually surmounting the main entrances. Although often made by sculptors with academic training, these works never achieved work-of-art status. Being considered decorative elements, they appeared in the buildings throughout the city, with little control by public authorities, contrary to monumental sculpture and statuary. Considering the set of sculptural interventions in Alvalade, this text contextualizes the appearance of the “entalados”, describes this sculptural practice – highly criticized by Keil do Amaral and other modern artists and architects –, showing, through a specific case, how its presence sometimes clashed also with the official sensibilities of the time.

 

KEYWORDS

Integrated sculpture / Public art / Artistic stonework / Entalados

 

 

INTRODUÇÃO

No presente artigo procura-se contextualizar e descrever o surgimento de uma prática escultórica específica – materializada num conjunto variado de esculturas e relevos adossados a edifícios de habitação – que se vulgarizou na cidade de Lisboa na década de 1950.

Estes objetos escultóricos, mais tarde designados “entalados” pelo arquiteto Keil do Amaral, no livro “Lisboa em Transformação” (1969), acompanharam a construção particular em toda a cidade. No entanto, concentraram-se de forma exemplar no bairro de Alvalade, a maior área residencial de promoção pública edificada nestes anos em Lisboa, em cuja génese se conciliaram princípios da urbanística moderna com elementos morfológicos da cidade tradicional – o traçado de ruas, avenidas e praças e a importância dos planos marginais, definidos pelas fachadas de edifícios – aos quais estas manifestações escultóricas estão vinculadas.

Coincidindo sensivelmente com a área referida pelo próprio arquiteto Keil do Amaral1, o bairro de Alvalade2 constitui assim um universo de análise particularmente pertinente para estudar esta produção escultórica. É justamente entre os edifícios da avenida de Roma, uma das principais artérias daquele bairro, que Keil do Amaral colhe a maior parte dos exemplos ilustrativos de “mulheres entaladas” para a referida publicação.

Este estudo compreendeu: (1) um levantamento de todos os edifícios coletivos com esculturas e relevos adossados existentes no bairro de Alvalade (excetuando portanto moradias e edifícios coletivos com intervenções artísticas bidimensionais); (2) a consulta de processos de obra relativos a esses edifícios, analisando as peças desenhadas – projetos de arquitetura e telas finais –, e procurando eventuais registos relativos a estas práticas escultóricas; (3) a recolha do testemunho oral de um dos mais profícuos autores de “entalados” do bairro de Alvalade, o escultor Soares Branco (1925-2013).

 

KEIL DO AMARAL E AS “MULHERES ENTALADAS”

Em 1969, o arquiteto Francisco Keil do Amaral ironizava sobre a “proliferação epidémica”, ocorrida anos atrás na cidade de Lisboa, “dum estranho tipo de esculturas”, fenómeno bizarro que se propunha combater criando uma “Associação Protectora de Lisboa e das Mulheres Entaladas entre as Portas e as Sacadas”3. O alvo da ironia de Keil do Amaral era um certo tipo de intervenção escultórica, muito visível e adossada de forma algo apressada às fachadas das construções privadas – principalmente nos chamados “prédios de rendimento”, mas também nas casas de renda livre com projeto municipal – que então se multiplicavam por toda a cidade.

Mesmo não tendo todas estas esculturas “sólidas qualidades escultóricas, ou até dignidade profissional”, Keil reconhecia que algumas eram “bem construídas e modeladas, dentro do seu convencionalismo académico”. Condenava essencialmente a sua inadequação ao suporte arquitetónico e principalmente o fito de lucro que as motivava. Estas “pobres criaturas (...) sacrificadas ao prestígio da arquitetura de rendimento” rendiam aos seus promotores chorudas “recompensas” em dinheiro, “concedidas por intermédio dos compradores que pagam melhor um prédio assim embonecado, ou dos alugadores, para quem aquela distinção justifica mais umas dezenas de escudos nas rendas mensais”4 (ver figura 1, 2, 3 e 4).

 

 

 

 

 

 

 

 

Os “entalados” da década de 1950 – o termo ficaria definitivamente na gíria lisboeta –, surgem efetivamente associados a uma certa ideia de riqueza, prolongando de algum modo a tradição de ornamentação de fachadas da habitação urbana das classes altas. Na década anterior, uma realização seminal nesta matéria tinha sido o conjunto de prédios de luxo das avenidas Sidónio Pais e António Augusto Aguiar, na proximidade do parque Eduardo VII. Todos os prémios Valmor e Municipal de Arquitetura atribuídos na década de 1940 nestas avenidas contemplaram edifícios que exibiam relevos ou esculturas nas fachadas, alguns de escultores reconhecidos como Leopoldo de Almeida, ladeando ou encimando portas ou janelas, e vários outros “motivos decorativos” como eram então designados5(ver figura 5, 6 e 7).

 

 

 

 

 

 

Os prémios sancionavam uma linguagem arquitetónica em afirmação. Como é sabido, estas avenidas – juntamente com a anterior praça do Areeiro, mais austera –, tinham instaurado o “português-suave”, estilo incentivado pelo regime e doravante repetido na construção de rendimento em Lisboa e em todo o país6. No seu receituário formal, incluía-se a presença de relevos e esculturas nas fachadas, elementos sumptuários que são muito provavelmente a referência mais direta dos “entalados” da década seguinte.

Os edifícios construídos na década de 1950 vão prescindir progressivamente dos detalhes tradicionalistas que tinham caracterizado o cânone “português suave” nos anos iniciais, mas de um modo geral mantêm o mesmo propósito de valorização da fachada principal e a mesma intencionalidade de marcar simbolicamente as suas entradas. Os “entalados”, que inequivocamente têm por fim conferir um certo estatuto aos edifícios, parecem contrapesar de algum modo esse crescente despojamento sua linguagem arquitetónica, que se deve à intenção moderna, cada vez mais assumida nas memórias descritivas, de se fazer corresponder a fachada à planta, e a uma desejada simplicidade compositiva e construtiva7.

 

“ENTALADOS” NO BAIRRO DE ALVALADE

Considerando o bairro de Alvalade – ou seja, retomando aproximadamente o percurso feito por Keil do Amaral no texto supracitado – pode dizer-se que os “entalados” ampliam, em relação aos seus antecedentes do “português-suave” inicial – das avenidas na ilharga do Parque Eduardo VII –, a variedade de tipologias e de temas, embora deles sejam uma versão empobrecida no tocante a custos. Estes sinais exteriores de riqueza, bem evidentes nas fachadas principais, passam a caracterizar-se por vezes por uma paradoxal modéstia de materiais.

Embora muitos ainda se realizem em pedra, e haja alguns exemplos de cerâmica policromada, o cimento torna-se um dos materiais prediletos dos encomendadores. Material barato, nunca é assumido na sua cor natural, como nestes anos fazem, em atitude oposta os artistas e arquitetos modernos. Os “entalados” de cimento do bairro de Alvalade, tal como noutras zonas da cidade, surgem geralmente pigmentados ou pintados na versão final (brancos ou policromados).

Contrariamente ao talhe em pedra, técnica subtrativa de que geralmente procedem obras únicas, a modelação e o uso de moldes vão permitir a repetição de elementos escultóricos idênticos, que por vezes se implantam em edifícios diferentes numa mesma rua, acompanhando a repetição de projetos tipo na edificação (ver figura 8 e 9).

 

 

 

 

O uso de projetos tipo implica por vezes uma lógica de acomodação temática em função do número de relevos a criar. Quatro edifícios semelhantes, por exemplo, acolhem as representações das quatro estações, dois edifícios semelhantes, um par homem-mulher (ver figura 10, e 11).

 

 

 

 

Geralmente figurativos, os “entalados” retomavam parcialmente o universo temático e o discurso alegórico lançado nas avenidas António Augusto Aguiar e Sidónio Pais. Além de um certo imaginário mitológico/pagão – estações do ano, musas, símbolos de fertilidade, família – acrescenta-se, em Alvalade, o tema da construção da cidade (ver figura 10, e 13).

 

 

 

Como se referiu, Keil do Amaral não apenas criticava os “entalados” pelo seu carácter sumptuário, mas principalmente pela sua lógica de detalhe exógeno ao suporte arquitetural, não derivando estes relevos “de um partido geral em que perfeitamente se integrem”8. No entanto, o “entalado”, era frequentemente previsto no projeto de arquitetura e articulado na composição da fachada.

Nos projetos do arquiteto Sérgio Botelho de Andrade Gomes – autor de muitos dos edifícios da avenida de Roma em que existem “entalados” – inclui-se sempre um apontamento gráfico relativo à implantação do relevo na fachada, e por vezes um corte, que garantia o cumprimento das indicações estipuladas pelo Regulamento geral da construção urbana, que conhecera a sua 7ª edição em 1948 (ver figura 12).

Com efeito, as dimensões dos eventuais relevos ou outras intervenções similares estavam previstas neste regulamento, no seu capítulo referente às “condições estéticas” das edificações9. Tendo sempre implícito um entendimento clássico da forma urbana e dos seus elementos, o referido regulamento sugeria (e de algum modo condicionava) a localização e a dimensão dos chamados motivos decorativos. Apenas eram referidas duas localizações possíveis para estas manifestações: acima da cornija dos edifícios – os “acrotérios(…) de carácter decorativo, artístico” [art. 82.º]; ou alojadas na fachada principal, as “saliências decorativas das entradas principais” [art. 88.º e)]. Neste último caso, as “saliências decorativas” deviam localizar-se entre duas linhas horizontais imaginárias, situadas à distância de 2,5m e 3,5m do ponto mais alto do passeio [art. 88.º a); e)]10.

Estas intervenções artísticas estariam assim limitadas regulamentarmente a uma dimensão máxima de 1m de altura, a uma profundidade de 0,40m [art. 88.º e)] e à localização preferencial no topo da porta principal de entrada, 2,5m acima do passeio. A maioria dos “entalados” da avenida de Roma cumpre o previsto no Regulamento geral da construção urbana, embora em vigor estivesse já o posterior Regulamento geral da edificação urbana (1951), praticamente omisso relativamente a questões estéticas.

Nos processos de obra consultados, relativos aos edifícios com “entalados” no bairro de Alvalade11 (ver figura 13), é interessante o facto de que raramente o apontamento gráfico relativo ao “motivo decorativo” coincide com a obra efetivamente executada. Este apontamento “incorreto” mantém-se, para mais, inalterado na passagem às telas finais (ver figura 14 e 15).

 

 

 

 

De igual modo, nenhum estudo relativo à obra artística se inclui no processo de obra. Se é patente um certo desinteresse por parte dos arquitetos em fazer constar nos documentos definitivos uma representação fiel dos relevos existentes nos edifícios que projetavam, pode concluir-se também que a natureza destas intervenções não era fundamental na aprovação dos projetos arquitetónicos. Algures entre a cantaria artística e a escultura, estas intervenções não eram consideradas obras de arte pelos serviços administrativos.

Estivessem os relevos corretamente indicados, ou não, nos projetos de arquitetura, não eram os arquitetos a contactar com os artistas. Quem encomendava as obras e acompanhava a sua execução e colocação no local eram os construtores civis, de acordo com o testemunho do escultor Soares Branco12. Aos artistas apenas era dada a localização da obra, oralmente, ficando o material e os temas quase sempre ao seu critério. Após a encomenda, mas antes da passagem ao material definitivo, os construtores eram chamados a ver o relevo em barro, momento em que podiam eventualmente fazer sugestões. Só depois do seu assentimento, o relevo se passava a gesso (moldes) e, finalmente, a cimento13. Todo este processo passava à margem da principal instância avaliadora das obras de arte pública, a CMAA – Comissão Municipal de Arte e Arqueologia, e portanto não estava sujeito aos entraves que esta frequentemente impunha em obras de maior destaque na cidade.

Prova desta relativa ausência de controlo camarário – quer aquando da aprovação do projeto arquitetónico, quer como obra de arte per se –, foi a colocação e posterior incapacidade de remoção do seu local, do “homem da marreta”, um motivo decorativo de vulto perfeito que encima a fachada principal do número 54 da avenida de Roma, edifício projetado pelo arquiteto Cassiano Branco14 (ver figura 16, e 15).

 

 

No seu processo de obra pode ver-se a informação de que, visto de um certo ângulo, o conjunto homem e marreta ocasionava “motivos de risos e ditos” entre os transeuntes15. O despacho dado superiormente é revelador do incómodo causado pela situação e das formas algo rebuscadas de tentar resolver o assunto:

Aprovada como foi a estátua não se me afigura fácil obter agora que a mesma seja apeada, a solução de preferir.

Em todo o caso, ao apreciá-la no local assaltaram-me dúvidas sobre as suas condições de estabilidade, pelo que desejaria que a 2ª Rep. analisasse com cuidado este ponto, reportando-se, se possível, às condições (mais desfavoráveis) que se verificaram em Lisboa no dia 15 de Fevereiro de 1941 [dia em que um devastador tufão passou por Lisboa16].

A 3ª Rep. , por sua vez, deverá também examiná-la de novo, no sentido de apurar se com leves modificações não será possível eliminar o aspeto que tem dado origem aos risos e observações desagradáveis17.

Nenhum dos expedientes encontrados para contornar aquela dificuldade e zelar pelos bons costumes parece ter surtido efeito, e o acrotério permaneceu no local. Sem outros requisitos para além daqueles relativos a dimensões e localização no plano de fachada, que faziam parte dos trâmites necessários à aprovação do projeto de arquitetura, os “entalados” foram povoando o espaço da cidade, segundo o gosto dos construtores e dando trabalho a muitos escultores.

Para muitos destes profissionais este tipo de encomenda garantia remuneração certa, rápida e relativamente satisfatória, e para mais, sem necessidade de aprovação por parte de qualquer comissão avaliadora18.

 

OUTROS CAMINHOS PARA A ARTE NA CIDADE

Lamentando que os escultores pusessem “a Arte ao serviço desse jogo de interesses, que os inferioriza mas os alimenta”, Keil do Amaral considerava os “entalados” “a evidência de um caminho errado”, a que contrapunha um outro envolvimento dos artistas plásticos na cidade. Se os caminhos de atuação possível que divisava em Lisboa eram os da renovação e atualização estética de artes decorativas como a azulejaria, os empedrados, as esculturas decorativas ou os gradeamentos, sempre presentes na tradição artística da cidade, Keil instava os artistas a serem humildes, a prescindir das glórias individuais e a disporem-se a outro tipo de processo criativo: a criar em equipa. Pedia aos artistas que “se ponham a cooperar uns com os outros, humildemente, em tarefas apagadas e de fraca projecção, para valorizar a Cidade”, o que exigiria “um esforço, uma persistência, uma humildade e determinadas renúncias a êxitos fáceis e espectaculares que estão à margem dos interesses e práticas habituais entre artistas contemporâneos”19.

O que tinha em mente, adaptando-o à realidade lisboeta, era o moderno desígnio da integração das artes, longamente debatido naqueles anos, e que pressupunha uma interação entre artistas, arquitetos e outros profissionais desde uma fase muito inicial da criação. Vários artistas e arquitetos portugueses pugnaram por essas ideias, entre os quais o próprio Keil do Amaral e Maria Keil, cujas investigações plásticas e contextos de atuação artística em diálogo com o suporte arquitetural são particularmente variados e se aproximam dos caminhos atrás apontados.

No momento em que Keil do Amaral escreve, este ideal já se tinha tentado, a partir do momento em que a CML, querendo dar o exemplo à construção particular, passa entregar a conceção de edifícios de equipamentos e de unidades de urbanização a arquitetos modernos e implementa a obrigatoriedade de se incluírem sempre motivos decorativos em todas as realizações municipais20.

Ideal gorado, porque embora os arquitetos sugerissem artistas para trabalhar nos seus projetos, o modo de funcionamento da CML compartimentava os processos de criação arquitetónica e artística em momentos diferentes. As diferentes sensibilidades nos processos de aprovação camarária relativamente às obras de arte e aos projetos de arquitetura – conservadoras relativamente àquela, mais atualizadas relativamente a estes – coartavam a espontaneidade do processo criativo, inviabilizavam qualquer trabalho conjunto e também uma verdadeira afinidade plástica entre arquitetura e arte.

Não obstante, várias experiências de integração de obras artísticas mais diluídas no suporte arquitetónico e no espaço foram tentadas em edifícios modernos, numa Lisboa que se ia atualizando, e incorporando também contributos do urbanismo funcionalista, como o zonamento, a unidade de vizinhança, entre outros. É particularmente significativa nestes anos a participação de artistas nas escolas primárias de Campolide21, Vale Escuro22 ou da célula 6 de Alvalade23, em edifícios residenciais como os da avenida Infante Santo de promoção municipal, ou como o bloco das Águas Livres24.

A criação de “entalados” na construção de rendimento, que se mantém durante vários anos e coincide temporalmente com essas experiências, permanece ancorada a uma ideia remanescente de valorização das fachadas principais, correspondendo a uma lógica anterior de pensar a arquitetura e a arte pública. Hoje, passadas mais de seis décadas, está plenamente sedimentada na cidade, falando-nos, à distância, do período áureo dos prédios de rendimento.

 

CONCLUSÃO

Os “entalados”, que se popularizam na cidade de Lisboa na década de 1950 e que se concentram de forma muito expressiva em algumas das artérias do bairro de Alvalade, constituem uma prática escultórica específica, vinculada à construção particular de habitação e que parece adaptada a uma determinada morfologia urbana e arquitetónica. Geralmente adossados a fachadas de edifícios que ladeiam ruas ou avenidas, estes relevos são direcionados de modo a garantir uma leitura otimizada aos transeuntes.

Obedecendo a alguns constrangimentos regulamentares relativamente às dimensões e à implantação nas fachadas, o seu estatuto ambíguo entre a cantaria decorativa e a obra de arte exime-as da avaliação apertada que a CMAA fazia em intervenções artísticas de maior vulto. Se os processos de obra consultados evidenciam alguns apontamentos simplificados ilustrativos destes elementos escultóricos, não há grandes detalhes sobre as obras a executar, ou já executadas.

De acordo com o testemunho do escultor Soares Branco, estas obras ficavam geralmente ao critério dos artistas e dos construtores. Os universos temáticos que convocam, a expressão formal e as opções tomadas puderam assim escapar ao controlo oficial, por vezes com alguns incómodos, tal como o caso do acrotério do escultor António Santos exemplifica.

De um modo geral, e apesar do sentido de economia que os caracteriza, os “entalados” retomam uma tradição de ostentação e de valorização das fachadas, que terá como antecedente recente o estilo “português-suave” da década anterior. Estes elementos escultóricos marcaram, no entanto, a construção particular da década de 1950, de algum modo contrariando a paulatina simplificação da sua linguagem arquitetónica. Integram hoje, plenamente, o imaginário da cidade.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FONTES

Arquivo Municipal de Lisboa

Processo n.º 5446/1954.

Processos de obras n.º 2872, 3875, 4025, 5513, 5890, 15939, 20588, 21877, 22301, 22802, 22803, 23407, 23556, 25105, 25373, 25447, 25735, 25739, 26191, 26206, 26419, 27528.

LISBOA, Câmara Municipal – Regulamento geral da construção urbana. 6ª ed. Lisboa: Câmara Municipal, 1945.

Regulamento geral das edificações urbanas. Lisboa: Imprensa Nacional, 1956. 1ª ed. 1951.

 

Outros

Desde Alcântara até à torre de Belém ficou destruída toda a muralha marginal. Diário de Lisboa (16 de fevereiro de 1941).

 

ESTUDOS

AGAREZ, Ricardo Costa – O moderno revisitado: habitação multifamiliar em Lisboa nos anos de 1950. Lisboa: Câmara Municipal, 2009.         [ Links ]

ALMEIDA, Pedro Vieira de; FERNANDES, José Manuel – A arquitetura moderna. In AAVV – História da Arte em Portugal. Lisboa: Publicações Alfa, 1986. vol. 14.         [ Links ]

AMARAL, Francisco Keil do – Lisboa, uma cidade em transformação. [Lisboa]: Publicações Europa-América, 1969.         [ Links ]

AMARAL, Francisco Keil do – Maleitas da arquitetura nacional. Revista Arquitetura. Lisboa. Nº19 (1948), p. 17-18.         [ Links ]

LISBOA. Câmara Municipal – A urbanização do sítio de Alvalade. Lisboa: Câmara Municipal, 1948.         [ Links ]

PEREIRA, Nuno Teotónio; FERNANDES, José Manuel, colab. – A arquitetura do Estado Novo. In AAVV – O Estado Novo das origens ao fim da autarcia 1926-1959. Lisboa: Editorial Fragmentos, 1987. p. 330-331.         [ Links ]

PINTO, Paulo Tormenta – Cassiano Branco 1897-1970: arquitectura e artifício. Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2015.         [ Links ]

TOSTÕES, Ana – Os verdes anos na arquitetura portuguesa dos anos 50. Porto: FAUP Publicações, 1997.         [ Links ]

 

Submissão/submission: 05/02/2107

Aceitação/approval: 11/05/2017

 

 

NOTAS

* (Lisboa, 1976). Artista plástica, investigadora. Doutoramento em Arte Pública pela Universidade de Barcelona / Faculdade de Belas Artes (2012), master em Desenho Urbano (2008) pela Universidade de Barcelona / Faculdade de Belas Artes, licenciatura Artes Plásticas – Escultura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa (2000). Foi bolseira de doutoramento da Fundação para a Ciência e Tecnologia (2004-2009). Leciona na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, Lisboa desde 2010. Correio eletrónico: inesravi@gmail.com

1O arquiteto terá feito “uma deambulação pelos sectores da Cidade compreendidos entre o prolongamento da Avenida Almirante Reis e a Avenida da República”. AMARAL, Francisco Keil do – Lisboa, uma cidade em transformação. [Lisboa]: Publicações Europa-América, 1969. p. 161.

2O plano de urbanização do bairro de Alvalade, inicialmente designado por “zona a Sul da Avenida Alferes Malheiro”, de autoria de Faria da Costa e aprovado em 1945, definia como limites a linha férrea, a sul, e três importantes artérias: a avenida Alferes Malheiro, a norte (atual avenida do Brasil), a avenida do Aeroporto, a nascente (o prolongamento da avenida Almirante Reis, referido por Keil do Amaral); e o Campo Grande/rua de Entrecampos, a poente (sensivelmente a avenida da República, referida por Keil do Amaral). LISBOA. Câmara Municipal – A urbanização do sítio de Alvalade. Lisboa: Câmara Municipal, 1948.

3AMARAL, Francisco Keil do – Lisboa, uma cidade em transformação. [Lisboa]: Publicações Europa-América, 1969. p. 162.

4AMARAL, Francisco Keil do – Lisboa, uma cidade em transformação. [Lisboa]: Publicações Europa-América, 1969. p. 163-164.

5Prémio Municipal de Arquitetura, 1943 ao n.º 9 da avenida António Augusto Aguiar, com projeto do arquiteto Miguel Jacobetty; Prémio Valmor 1943 ao n.º 6 da avenida Sidónio Pais, com projeto dos arquitetos Raul Rodrigues Lima e Fernando Silva; Prémio Valmor 1945 ao n.º 14 da avenida Sidónio Pais, com projeto do arquiteto António Veloso Reis Camelo e o Prémio Municipal de Arquitetura, 1947 ao n.º 16 da mesma avenida, com um projeto muito semelhante ao anterior, do arquiteto Porfírio Pardal Monteiro.

6AMARAL, Francisco Keil do – Maleitas da arquitetura nacional. Revista Arquitetura. Lisboa. N.º 19 (1948), p. 17-18; PEREIRA, Nuno Teotónio Pereira; FERNANDES, José Manuel, colab. – A arquitetura do Estado Novo. In AAVV – O Estado Novo das origens ao fim da autarcia 1926-1959. Lisboa: Editorial Fragmentos, 1987. p. 330-331; Cf. ALMEIDA, Pedro Vieira de; FERNANDES, José Manuel – A arquitetura moderna. In AAVV – História da Arte em Portugal. Lisboa: Publicações Alfa, 1986. vol.14, p. 145.

7AGAREZ, Ricardo Costa – O moderno revisitado: habitação multifamiliar em Lisboa nos anos de 1950. Lisboa: Câmara Municipal, 2009; TOSTÕES, Ana – Os verdes anos na arquitetura portuguesa dos anos 50. Porto: FAUP Publicações, 1997; MARQUES, Inês – Arte e habitação em Lisboa 1945-1965: cruzamentos entre desenho urbano, arquitetura e arte pública. Barcelona: [s.n.], 2012. Tese de doutoramento em Belas Artes – Arte Pública apresentada à Universidade de Barcelona.

8AMARAL, Francisco Keil do – Lisboa, uma cidade em transformação. [Lisboa]: Publicações Europa-América, 1969. p. 179.

9Das condições estéticas das Edificações Urbanas. In LISBOA. Câmara Municipal – Regulamento geral da construção urbana. 6ª ed. Lisboa: Câmara Municipal, 1945.

10LISBOA. Câmara Municipal – Regulamento geral da construção urbana. 6ª ed. Lisboa: Câmara Municipal, 1945.

11AML, Processos de obra n.º 2872, 3875, 4025, 5513, 5890, 15939, 20588, 21877, 22301, 22802, 22803, 23407, 23556, 25105, 25373, 25447, 25735, 25739, 26191, 26206, 26419, 27528.

12MARQUES, Inês – Arte e habitação em Lisboa 1945-1965: cruzamentos entre desenho urbano, arquitetura e arte pública. Barcelona: [s.n.], 2012. Tese de doutoramento em Belas Artes – Arte Pública apresentada à Universidade de Barcelona. p. 17-19. Primeira conversa com o escultor Domingos Soares Branco, 7 de fevereiro de 2006, anexo 1.

13Ibidem.

14Ibidem. Cf. PINTO, Paulo Tormenta – Cassiano Branco 1897-1970: arquitectura e artifício. Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2015. p. 466-469.

15AML, Processo de obra n.º 22803, Processo n.º 340/F/51, f. 6, 21/6/1952.

16O famoso tufão que destruiu a “nau Portugal” e o primeiro Padrão dos Descobrimentos construídos para a exposição do Mundo Português. O Campo Grande, na proximidade do bairro de Alvalade tinha sido então “uma das grandes vítimas do ciclone”. Desde Alcântara até à torre de Belém ficou destruída toda a muralha marginal. Diário de Lisboa (16 de fevereiro de 1941).

17AML, Processo de obra n.º 22803, Processo n.º 340/F/51, f. 6v., 7/7/1952.

18MARQUES, Inês – Arte e habitação em Lisboa 1945-1965: cruzamentos entre desenho urbano, arquitetura e arte pública. Barcelona: [s.n.], 2012. Tese de doutoramento em Belas Artes – Arte Pública, apresentada à Universidade de Barcelona. p. 17-19. Primeira conversa com o escultor Domingos Soares Branco, 7 de fevereiro de 2006, anexo 1.

19AMARAL, Francisco Keil do – Lisboa, uma cidade em transformação. [Lisboa]: Publicações Europa-América, 1969. p. 181-185.

20Despacho do presidente Álvaro de Salvação Barreto, de 20 de março de 1954, AML, Processo n.º 5446/954, f. 12; MARQUES, Inês – Arte e habitação em Lisboa 1945-1965: cruzamentos entre desenho urbano, arquitetura e arte pública. Barcelona: [s.n.], 2012. Tese de doutoramento em Belas Artes – Arte Pública apresentada à Universidade de Barcelona; MARQUES, Inês; ELIAS, Helena – Arte e arquitetura modernas em Lisboa: os espaços escolares primários da década de 1950. Revista Rossio Estudos de Lisboa [Em linha]. 4 (2015) [Consult. 04.02.2017]. Disponível na Internet: http://www.cm-lisboa.pt/fileadmin/DOCS/Publicacoes/publicacoes-digitais/Revista_Rossio/rossio_estudos_de_lisboa_n_4.pdf; AGAREZ, Ricardo Costa – O moderno revisitado: habitação multifamiliar em Lisboa nos anos de 1950. Lisboa: Câmara Municipal, 2009.

21Projeto do arquiteto Artur Pires Martins, revestimentos azulejares de Querubim Lapa, relevos de José Dias Coelho, (2ª fase de construção de grupos escolares –1953-1956).

22Projeto dos arquitetos Vítor Palla e Bento de Almeida, azulejos de José Lima de Freitas, Rolando Sá Nogueira, escultura de Maria Barreira, revestimentos azulejares de Vítor Palla, (2ª fase de construção de grupos escolares –1953-1956).

23Projeto do arquiteto Cândido Palma de Melo, painéis de azulejo de Maria Keil e escultura de Martins Correia. (2ª fase de construção de grupos escolares –1953-1956).

24Projeto dos arquitetos Nuno Teotónio Pereira e Bartolomeu Costa Cabral, mosaicos de Almada Negreiros, relevos de Jorge Vieira, pintura mural e estudos de policromia de Frederico George, esgrafitos de José Escada, vitral de Manuel Gargaleiro (desaparecido), 1953.

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