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Cadernos do Arquivo Municipal

versão On-line ISSN 2183-3176

Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.6 Lisboa dez. 2016

 

RECENSÃO

ATALLAH, Claudia C. Azeredo - Da justiça em nome d'El Rey, justiça, ouvidores e inconfidência no centro-sul da América portuguesa. Rio de Janeiro: Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2016

José Subtil*

Universidade Autónoma de Lisboa, 1169-023 Lisboa; Portugal.

 

 

Mais uma tese de doutoramento, agora publicada, cuja autora faz parte de um grupo de investigadores brasileiros, pertencentes a diversas universidades, que se tem dedicado ao tema da administração e da justiça durante o Antigo Regime e, em particular, sobre os finais do século XVII e o século XVIII. O avanço desta historiografia é assinalável ao ponto de hoje se conhecer com muito mais detalhe o modelo de governação aplicado nas capitanias do Brasil e, desta forma, compará-lo com o praticado no Reino. Neste caso, Claudia Atallah estuda a ação dos ouvidores e o enquadramento político e administrativo na capitania de Minas Gerais durante o século XVIII com incidência no período pombalino.

Depois de uma oportuna síntese sobre os principais tópicos abordados pelas historiografias portuguesa e brasileira sobre a «justiça» como dispositivo de poder, de um levantamento exaustivo da bibliografia sobre o tema, a autora centra-se em dois períodos particulares. O primeiro período entre 1720 e 1725 e o segundo de 1775 a 1795 e escolheu a capitania de Minas Gerais para testar as práticas de poder envolvidas pelo paradigma jurisdicionalista e ministerial, muito especificamente a Inconfidência de Sabará (1775) no encalce, aliás, do movimento de desobediência para com a Coroa portuguesa cuja resposta pombalina seguiu a receita aplicada noutras situações, ou seja, uma resposta violenta e sem contemplações. A propósito deste acontecimento e desta conjuntura, a autora recentra o debate sobre a centralização política versus a autonomia periférica dos governos locais da colónia brasileira com destaque para as redes clientelares, os interesses corporativos, as tradições e o recrutamento dos agentes administrativos, tanto os nomeados pela Coroa como pelas autarquias ou os governos das capitanias.

Toda a investigação é fundamentada em documentos de arquivo de diversas instituições como o da Universidade de Coimbra, Arquivo Histórico Ultramarino, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Arquivo Público Mineiro e Biblioteca Nacional de Portugal, para além de valiosas fontes impressas que elenca na parte final do livro. Estamos, portanto, diante de um trabalho científico que evidencia qualidade historiográfica e segurança nas fontes.

Evidentemente que a escolha da capitania de Minas Gerais é uma escolha singular que não pode servir de modelo para toda a colónia brasileira na medida em que a «capitania do ouro» obrigou à criação de instrumentos de controlo e de disciplina muito apertados de forma que a Coroa pudesse usufruir dos seus avultados rendimentos o que, efetivamente, não aconteceu com outras áreas geográficas da colónia. Por isso mesmo, a atenção militar, política e de imposição da justiça dedicada a esta capitania mobilizou os melhores recursos do Reino e transformou este controlo num potencial foco de revolta e independência como, efetivamente, se veio a demonstrar.

Para além das especificidades regionais, a autora contextualizou o conjunto de dispositivos de dominação na colónia tais como as estratégias de atribuição de mercês, a concessão de ofícios, o reconhecimento de privilégios, a constituição de agentes e grupos de pressão, muito especialmente nos espaços camarários.

A luta política entre o ouvidor José de Souza Valdez, o governador D. Lourenço de Almeida e o provedor da Fazenda Real António Berquo Del Ryo, ilustra bem o ambiente de disputa pelo poder no reinado de D. João V. Com as reformas pombalinas e a resistência que criaram às mesmas, compreende-se o movimento de revolta que originou a Inconfidência de Sabará no seguimento do conflito entre os oficiais e magistrados de justiça, instalados no conforto dos seus privilégios, e o ministro pombalino que os queria obrigar ao cumprimento das leis, mas que acabou por perder este confronto por causa de manobras manhosas e táticas habilidosas de difamação e perversidade engendradas pelas elites locais. O ouvidor, acusado de blasfemo, serviria também para acentuar a frouxidão da administração régia e, sobretudo, mostrar a sua enorme fragilidade para governar a colónia.

Na primeira parte do trabalho são passados em revista a natureza do poder durante o Antigo Regime, os modelos de governação, a administração na capitania de Minas Gerais e as relações clientelares. Na segunda parte é analisada a jurisdição da comarca do Rio das Velhas no reinado de D. João V através da prática dos ouvidores e do processo de municipalização. É dada especial atenção às relações de poder em Sabará entre o ouvidor, o governador e outras redes de decisão política, bem como às novas orientações administrativas e jurisdicionais devido à importância estratégica para a economia real da extração do ouro. Na terceira parte, que constitui o núcleo central do livro, são passadas em revista as mudanças operadas durante o consulado pombalino, no Reino e na colónia brasileira, tendo em vista o processo de centralização das decisões políticas e, naturalmente, as consequências que este processo acarretou nos procedimentos dos magistrados régios. Neste contexto é dada particular relevância à inconfidência do ouvidor de Sabará, José de Góes Ribeiro Lara de Morais e ao papel desempenhado, nesta estratégia, pelo tribunal de Inconfidência. O ouvidor acabaria por se deixar enredar numa teia de aranha tecida pelos seus próprios interesses, pelos poderes das elites locais e pelo governador, acabando por virar contra si a denúncia de irregularidades e corrupções.

No fundamental, o estudo de Claudia Atallah procura evidenciar os instrumentos utilizados por Pombal para controlar a pluralidade dos poderes, as redes clientelares e os efeitos que este confronto político desencadeou ao nível de litígios e resistências. E não deixa de analisar, também, as adequações que este ambiente irá acusar depois do afastamento de Pombal da área de governação. Em todos estes mecanismos estiveram sempre presentes os conflitos jurisdicionais, sobretudo os contornos específicos que os mesmos ganharam no âmbito das relações de poder entre juízes de fora, ouvidores, desembargadores, tribunais da Relação, sedes das capitanias, governador--geral e, evidentemente, a comunicação política com o Reino, acrescida da complexidade do circuito de decisão que o Conselho Ultramarino nunca conseguiu resolver.

Mas, igualmente, os conflitos com os jesuítas com os quais o ouvidor foi acusado de cúmplice e parceiro político, sabendo-se da capacidade destes regulares para abusarem das suas jurisdições eclesiásticas em detrimento da autoridade régia. A autora desenvolve, a este respeito, uma investigação original sobre a Inconfidência de Sabará (1775) que considera como peça fundamental do processo de centralização política no final do reinado josefino.

Trata-se, portanto, de mais uma obra importante no conjunto da nova historiografia política e institucional brasileira cujo avanço quantitativo e qualitativo tem sido notável com consequências, também, para a historiografia portuguesa que se vê, deste modo, obrigado a repensar a conceptualização do império português.

Com toda a certeza que novos caminhos irão ser explorados para se entender melhor a singularidade do processo de colonização do Brasil, muito embora deva prosseguir, com renovado afinco, esta via de investigação em que insere o trabalho de Claudia Atallah, isto é, analisar o comportamento dos magistrados régios numa perspetiva política inovadora que consiste em saber se o poder com que foram investidos, os instrumentos de atuação ao dispor, a capacidade de intervir e fazer cumprir as suas determinações, se tudo isto reverteu efetivamente a favor do colonizador e da Coroa portuguesa ou se, numa outra perspetiva, este enquadramento das suas missões ficou comprometido por redes de poder local já instaladas, por formas de resistência desconhecidas e/ou praticadas no Reino, pela enorme dificuldade de comunicação e circulação de agentes e dispositivos disciplinares e que, num tempo curto, deixaram de surtir os efeitos pensados e expectáveis para a Coroa para, ao invés, se transformarem em centros de poder relativamente autónomos do Reino. O conjunto já muito substancial dos trabalhos desenvolvidos nesta linha de investigação parece demonstrar, sem grandes dúvidas, para que esta hipótese seja a que de facto se verificou o que manifestamente reduz o caráter emblemático do chamado Império Português do Atlântico que terá, em contrapartida, assente a sua estratégia de dominação, aproveitamento e exploração colonial num processo muito habilidoso de negociação permanente com as elites locais. Um processo que, ao fim e ao cabo, acabou por beneficiar tanto a Coroa portuguesa como as elites brasileiras mas cujo desfecho não podia deixar de ser a de um auto-governo cada vez mais acentuado à medida que se caminhou para o final do século XVIII. As consequências das invasões francesas e os tratados comerciais com a Inglaterra acabariam por, nas duas primeiras décadas do século XIX, cimentarem os alicerces da independência. Por isso mesmo o caso brasileiro, no contexto do processo de colonização europeia, está a evidenciar especificidades interessantes para o domínio da história política e social.

Mas, evidentemente, que terão de ser experimentados outros caminhos de investigação fora do âmbito político das práticas jurisdicionais e administrativas. Um destes caminhos consiste em analisar os discursos doutrinais e normativos, os seus autores e a capacidade de intromissão política que causaram na receção e divulgação no campo dominante das elites brasileiras e portuguesas. Muito haverá que fazer e, neste aspeto, diria que a análise às cartas trocadas entre os agentes de poder no Brasil e no Reino me parece muito promissora. Estão, neste caso, as cartas entre o Francisco Furtado e Sebastião José de Melo, dois irmãos unidos por um pensamento comum e estratégico para incrementar e aplicar as doutrinas regalistas e a «boa razão» do príncipe que servissem os interesses da monarquia. No caso do Brasil tenho para mim que não tem sido devidamente explorado o papel determinante que, no período pombalino, foi desenvolvido e praticado pelo irmão de Pombal.

Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1701-1769) foi, de facto, o mentor do plano de colonização para o Brasil e primeiro responsável pelo combate político regalista e centralizador de tipo estadual. No primeiro governo josefino foi nomeado governador do Pará e Maranhão (1751) para, no ano seguinte, ser escolhido para ministro comissário para as demarcações dos limites do Brasil setentrional, uma questão decorrente do Tratado de Madrid (13 de janeiro de 1750) para resolver a definição de fronteiras com os espanhóis cujos interesses tiveram, desde o início, o apoio dos jesuítas. Pouco tempo depois, criaria a Companhia do Grão Pará e Maranhão (1755) e depois do atentado a D. José regressaria ao Reino para ser nomeado secretário de Estado adjunto de Pombal (19 de julho de 1759) e, no ano seguinte, secretário de Estado da Marinha, período que iria coincidir com o apagamento político do Conselho Ultramarino, ou seja, a real mudança do paradigma polissinodal de governo para o modelo de governamentalização ministerial. Após o seu inesperado falecimento (1769), o ritmo de reformas pombalinas abrandou até à morte de D. José e o afastamento de Pombal do governo (1777). Francisco Furtado disse, por várias vezes, em cartas para o irmão que era de absoluta necessidade «mudar inteiramente de systema» político e definir uma nova estrutura administrativa para o Brasil de acordo com o modelo que estava a praticar, com êxito, na colonização da Amazónia.

Da sua doutrina política resultaram várias medidas que acabariam por contaminar o resto da colónia e uma delas foi, precisamente, a recuperação do crime de lesa-majestade para castigar a desobediência ao rei que estaria na base da Inconfidência do Sabará. Uma outra foi a imposição do português como língua de comunicação oficial com o intuito de retirar aos jesuítas a gestão da entropia causada pelo dialeto que praticavam e ensinavam nos seus aldeamentos. A afirmação episcopal, a fundação de novos povoados e a aceleração do processo de municipalização foram outras das medidas estruturais preconizadas e praticadas por Francisco Furtado. Emendou, também, a política de separação entre índios e colonos com o intuito de promover a integração e alargar a base de recrutamento dos colonos, oferecendo liberdade e dignidade aos índios, tendo em vista o repovoamento. Para tal, tornava-se imperioso libertar os índios da tutela dos regulares e de toda e qualquer forma de escravidão: dignificá-los pelo casamento entre portugueses e indígenas; acesso à posse das terras em regime de sesmarias; pagamento de salários justos; e preparação para o exercício de cargos públicos no governo local (vilas e aldeias). Conseguiu materializar estas ideias pela lei de 4 de abril de 1755 que conferiu aos portugueses e luso-brasileiros que casassem com índias uma dignidade sociojurídica igual à dos reinóis com preferência no acesso à posse da terra (lei de 6 de junho de 1755). No mesmo ano foi promulgado o alvará́ com força de lei (7 de junho de 1755) que retirou o poder temporal aos regulares. Até aqui, as quatro ordens religiosas, com particular destaque para os jesuítas, além do poder espiritual, exerciam também o poder temporal sobre os índios. Com este alvará́, o rei determinava que «os Indios do Grão Pará, e Maranhão sejam governados no temporal pelos Governadores, Ministros, e pelos seus principaes, e Justiças seculares, com inhibição das administrações dos Regulares». As ordens religiosas, com os jesuítas à cabeça, foram avaliadas com muita dureza pelo irmão de Pombal como sendo «o inimigo mais poderoso do Estado» e os causadores da sua «total ruyna». Na sua opinião o maior erro político da Coroa terá sido a entrega da missionação aos jesuítas (e outras ordens como os franciscanos, carmelitas e mercedários) com o privilégio de acumularem ao poder espiritual a jurisdição temporal sobre populações dos aldeamentos e entrarem na posse das propriedades. Por isso, no seu entender, haveria, ainda, que lançar uma ofensiva de expropriação patrimonial para «tirar todas as fazendas aos Regulares, e dar-lhes Sua Majestade huma côngrua suficiente para a sua sustentação».

Estas iniciativas políticas estavam ancoradas nas inúmeras cartas que Francisco Furtado remeteu ao irmão como é exemplar a de 18 de fevereiro de 1754 na qual considera estes missionários como «ervas daninhas» para as quais era preciso encontrar um remédio semelhante ao do tratamento do «escalracho» das vinhas da quinta de Oeiras. O golpe fatal da expulsão (3 de setembro de 1759) acompanhou o seu regresso ao Reino para se tornar adjunto na Secretaria de Estados dos Negócios do Reino. E seria justamente a partir do seu regresso e até à sua morte (1769) que foram desenhadas e concretizadas as mudanças pombalinas a ponto de podermos dizer que a década de sessenta do século XVIII terá correspondido à maior reforma política do Antigo Regime em Portugal.

Como pedra angular desta ofensiva regalista temos o Diretório de Francisco Furtado (3 de maio de 1757) que viria a ser extensivo a todo o Brasil (alvaráde 17 de agosto de 1758), visando os seguintes objetivos: a) - fortalecer o aparelho de Estado; b) - dinamizar o setor produtivo e controlar a circulação da riqueza; c) - expandir a fé́ cristã sob a tutela dos bispos; d) - reformar os costumes; e) - libertar, civilizar e dignificar os índios.

Outra inovação política de Francisco Furtado foi a opção pela rejeição do modelo de escravatura defendido para os índios, quer no plano doutrinário, espiritual e jurídico. Depois de meados do século XVIII, a escravatura foi acentuadamente assegurada por negros da Guiné e de Angola e pelos seus descendentes, ou seja, o «descimento» de índios do sertão reativou o aparelho produtivo e a agricultura, marcando uma alternativa à extração do ouro e dos diamantes (cacau, café́, algodão, arroz, couros, madeiras, drogas, cana, tabaco, entre tantos produtos).

Uma outra peça para a construção do modelo estadual foi o incremento do processo de municipalização e «diocenização», instalando dispositivos régios e regalistas em territórios cuja dominação estava totalmente fora do controlo da Coroa e cujas novas elites tiveram, pelo menos numa fase de afirmação e consolidação, toda a vantagem em servirem os interesses do Reino. O objetivo para este planeamento e organização do território era, sem dúvida, a fixação dos indígenas e dos colonos à terra com a criação de aldeias, freguesias e vilas. Ao lado de Pombal, no núcleo duro do poder, estiveram os seus irmãos e, particularmente, Francisco Furtado que acabaram por liderar o grupo reformista das criaturas pombalinas onde pontificaram, sobretudo, desembargadores oriundos da Casa da Suplicação.

Em conclusão, o leitor encontrará neste livro de Claudia Atallah uma base empírica bem sustentada e uma abordagem inovadora sobre a política colonial seguida no Brasil durante o século XVIII com destaque para a Inconfidência do Sabará.

 

 

Notas

* José Manuel Louzada Lopes Subtil é licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, mestre em História pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, doutor e agregado no Grupo pela mesma Faculdade. Foi professor coordenador com agregação do Instituto Politécnico de Viana do Castelo e é, atualmente, professor catedrático da Universidade Autónoma de Lisboa onde é presidente eleito do conselho científico. Exerceu vários cargos públicos, como o de secretário-geral adjunto do Ministério das Finanças, vogal da Comissão de Reforma e Reestruturação do Arquivo Nacional da Torre do Tombo e da direção do Instituto Nacional de Acreditação da Formação de Professores. Tem várias publicações individuais e coletivas. Recebeu o prémio de mérito académico da Fundação Fernão de Magalhães e seis louvores públicos. Correio eletrónico: josesubtil@netcabo.pt

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