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Cadernos do Arquivo Municipal

versão On-line ISSN 2183-3176

Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.5 Lisboa jun. 2016

 

ARTIGO

Palacete Mendonça: ecletismo, internacionalismo e progresso

Mendonça Mansion: eclecticism, internationalism and progress

Júlia Zurbach Varela*

CHAIA - Centro de História da Arte e Investigação Artística / Universidade de Évora; Portugal.

 

RESUMO

Construído entre 1900 e 1909, o palacete Mendonça é um projeto de Miguel Ventura Terra para a habitação de Henrique José Monteiro de Mendonça, roceiro e grande capitalista da Lisboa do final do século XIX e início de XX. Situado no alto do parque Eduardo VII, é mais um pedaço de uma paisagem urbana fragmentária, feita de projetos de cidade avulsos e inacabados. Refletir sobre a ideia de cidade e sobre o projeto doméstico que informam o desenho desta casa e deste troço de cidade é o propósito deste texto. Para tal, propõe-se uma hipótese de leitura que ponha em evidência a relação entre o arquiteto, o lugar e o proprietário, procurando perceber de que modo, estes dois atores, por si e na interação de ambos com o lugar, partilham uma certa ideia de internacionalismo e progresso que encontra no ecletismo o lugar da sua expressão e dá corpo a este fragmento de cidade, na Lisboa do virar de século.

 

PALAVRAS-CHAVE

Henrique Mendonça / Palacete Mendonça / Ecletismo / Ventura Terra / Arquitetura

 

ABSTRACT

Built between 1900 and 1909, the ‘Palacete Mendonça' (Mendonça Mansion) was designed by Miguel Ventura Terra and served as the home of Henrique José Monteiro Mendonça, who was a landowner in S. Tomé e Principe and a great capitalist in Lisbon at the end of the 19th century and the beginning of the 20th century. Located at the top of ‘Parque Eduardo VII' (Eduardo VII Park) it is one more fragment in an already quite fragmented urban landscape made of separate and unfinished projects. The aim of the present paper is to think about the idea of city and the domestic project behind the project of this home in particular and its specific location. Thus, I will analyse the relationships between the architect, the site and the owner in order to understand to what extent these two actors, themselves and in their interaction with the site share a certain idea of internationalism and progress. In architecture, it is precisely the Eclecticism that embodies this ideas and brings into being this city fragment in fin-de-siècle Lisbon.

 

KEYWORDS

Henrique Mendonça / Mendonça mansion / Eclecticism / Ventura Terra / Architecture

 

 

Introdução

E foi em scenarios esplendidos que as convidadas da snrª D. Carolina de Mendonça podéram passear, ao clarão dos lustres, sobre os parquets encerados, os seus vestidos de baile. A inauguração das salas do palacio do snr. Henrique Monteiro de Mendonça, com a soirée do dia 4, constituiu a mais bella festa d'este entrudo. Pelas suas proporções, o palacio da rua do Marquez da Fronteira, que é um dos magnificos edificios da Lisboa moderna, presta-se como nenhum outro para as reuniões ornamentaes e movimentadas das grandes recepções nocturnas. Com o serem vastas, as lindas salas não perdem, na sábia disposição que lhes deu o architecto Ventura Terra e pela sciencia decorativa com que as revestiu o gôsto dos seus donos, essa atmosfera de conforto e de vida que é tão difficil manter nos convencionaes salões de dansa.1.

Ao caminhar hoje ao longo do troço nascente da rua Marquês da Fronteira, deparamo-nos com uma sucessão de fragmentos de projetos de cidade, a que edificações de tempos muito diversos dão corpo. Se este caráter de palimpsesto é próprio da condição urbana, este é no entanto um troço de cidade não resolvida e que ainda não foi capaz de encontrar uma linha de continuidade entre os elementos soltos de cidades inacabadas que foram sendo projetadas ao longo dos séculos XIX e XX.

Construído entre 1900 e 1909 para residência do próspero roceiro Henrique Monteiro de Mendonça, o palacete situado no alto do parque Eduardo VII, tem assinatura do arquiteto Miguel Ventura Terra. Residência da família Mendonça até aos anos 50 do século XX, a casa manteve-se na posse dos seus descendentes até aos anos 80, e é hoje uma das dependências da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa. Apesar de algumas obras de adaptação realizadas aquando da transformação em equipamento de ensino, o palacete manteve-se praticamente intacto desde o momento da sua construção e é hoje um dos exemplares mais bem conservados de arquitetura doméstica do virar do século em Lisboa.

Prémio Valmor em 1909, o palacete foi objeto de interesse da crítica e da imprensa da época e é hoje objeto de estudo no âmbito da história da arte e da arquitetura portuguesa, sobretudo no quadro da obra do seu autor. Propõe-se nesta abordagem ensaiar uma leitura em triângulo, que seja capaz de posicionar arquiteto, proprietário e lugar como dois atores e um fator, intervenientes em igual medida num processo partilhado de construção de uma casa, e de um pedaço de cidade.

 

Figura 1

 

 

O PROPRIETÁRIO

Henrique José Monteiro de Mendonça (Lisboa, 4 fevereiro 1864 - 1 novembro 1942) foi um grande capitalista da Lisboa do final do século XIX e início do século XX. Roceiro na ilha de S. Tomé, é um dos protagonistas do fenómeno económico associado ao ciclo do cacau nessa que foi a mais próspera colónia do Império e um dos maiores produtores e exportadores de cacau a nível mundial no início do século XX.

Depois de estudos realizados na Escola Académica de Lisboa2, a São Roque, Henrique de Mendonça ruma ainda jovem a S. Tomé onde se emprega como funcionário alfandegário3. Casa com Carolina Pinto de Mendonça, filha do proprietário de várias roças na ilha, entre as quais a roça da Boa Entrada, de que Henrique Mendonça se torna proprietário em 18804. Muito rapidamente a Boa Entrada torna-se uma das mais prósperas roças do arquipélago, graças ao empenho do seu proprietário. Henrique de Mendonça acabará por desenvolver outras atividades e negócios durante a sua vida, nomeadamente na banca, tanto na metrópole como noutras colónias, mas é na sua atividade como roceiro que está, não só a origem da sua fortuna, mas também a razão pela qual ficou para a história, pelo caráter absolutamente exemplar da Boa Entrada.

A imprensa da época e os seus pares destacam as suas preocupações sociais e filantrópicas, a sua ação como benemérito na capital, mas sobretudo as condições que a sua roça oferecia aos seus serviçais, ao nível assistencial e do alojamento. No entanto, o aspeto a que na historiografia contemporânea dá especial relevo é o do caráter “experimentalista e vanguardista da cultura do cacau” da Boa Entrada “que foram a base de muitas técnicas de produção utilizadas no arquipélago e na Europa”5.

“Nos fins do século XIX e princípios do século XX, as ilhas de S. Tomé eram consideradas o território tropical mais bem aproveitado do mundo”, atraindo “muitos estrangeiros que deixaram os mais rasgados elogios às técnicas aí seguidas”6. Num primeiro momento, o enquadramento geral da produção agrícola em São Tomé permitiu aos roceiros usar de métodos empíricos, mas muito rapidamente se passou para um outro paradigma: informado, tecnológico e internacional.

Na Boa Entrada, o peso e sofisticação da maquinaria, importada dos Estados Unidos e da Alemanha, não diferia em muito daquela que era utilizada nas outras grandes roças. Aquilo em que a Boa Entrada inova realmente é no acolhimento que faz à experimentação de novas técnicas de secagem de cacau e controlo do processo de oxidação, e da otimização da sua plantação. Para tal, Henrique Mendonça recorre a dois técnicos estrangeiros: Schulte Im Hofe, alemão, que põe em prática, na Boa Entrada, a sua investigação no domínio da fermentação do cacau; e Montet, agrónomo francês da Escola de Grignon, para a área da produção7. Henrique Mendonça investe ainda na divulgação, publicando sobre a sua propriedade e sobre técnicas de produção e transformação do cacau, num livro que é uma das obras de referência da atual historiografia do colonialismo e das ciências8 e que é rapidamente traduzido para inglês.

 

2. O LUGAR

 

Figura 2

 

O típico roceiro é comummente descrito como pertencendo a uma classe de proprietários absentistas, em que os mais importantes “viviam luxuosamente em Lisboa, onde construíam palácios ajardinados e casas confortáveis e contribuíam generosamente em ações de caridade (…)”9. De facto, assiste-se, no virar do século, ao estabelecimento, na capital, de uma parte substancial destes obreiros do ciclo do cacau que, já com fortuna considerável e tendo diversificado as suas áreas de negócio, investem, nesse momento, numa morada na metrópole. As localizações e tipologias de habitação escolhidas são várias, e Henrique Mendonça optará pela construção de um palacete com jardim, numa nova área de expansão da cidade de Lisboa, em terreno adjacente ao futuro parque da Liberdade.

No virar do século, toda a envolvente do lote para construção do palacete tinha ainda um cunho rural muito marcado, e a construção mais recente nas proximidades era a recém-inaugurada Penitenciária, aí localizada precisamente por esta ser uma área periférica da cidade. No entanto, à data da elaboração do projeto, está em vigor, desde 1888, aquele que ficou denominado como “Projeto das zonas” de Ressano Garcia, que desenha a área de expansão da cidade para Norte e prevê a construção de um parque no topo da avenida da Liberdade. Se durante todo o século XIX se assistiu à construção de vários jardins na cidade de Lisboa, nenhum tem “a dimensão que permitia que cumprisse o seu papel na cidade do momento”10: um espaço urbano de recreio à imagem de Paris, Londres ou Nova Iorque, e um modo de fazer a integração da natureza na cidade por contraponto à cidade industrial11, ou seja, um programa fundamental da cidade oitocentista. Lançado em 1887, o concurso para o “Parque pitoresco a construir nos terrenos do casal do Monte Almeida” é aberto a concorrentes internacionais, por forma a garantir uma proposta informada e de qualidade, e não apenas a resposta qualificada mas empírica que os jardineiros locais foram dando no traçado dos jardins românticos da cidade12. O projeto vencedor é do francês Henri Lusseau, cuja proposta será posteriormente alterada por uma Comissão Camarária em 1889 e novamente em 1902. O processo de obra será marcado por avanços e paragens sucessivos, ditados sobretudo pela dificuldade em realizar as expropriações necessárias e pela falta de meios para a construção deste equipamento urbano. É debruçado sobre este sonho oitocentista de um grande parque urbano - que na realidade nunca chegará a existir - que se localiza o lote comprado por Henrique Mendonça.

Henrique Mendonça faz escritura de compra do terreno para a construção da sua casa a 19 de maio de 189913. Os vendedores são os viscondes de Nandufe, que previamente dividiram a meio a denominada “Quinta do Seabra de Cima ou de Fora” com os herdeiros de D. Maria Ana de Isabel Coutinho de Seabra e Sousa14, descendente do 1.º visconde da Bahia, por sua vez filho do estadista José de Seabra da Silva. José de Seabra da Silva compra, em 1767, a quinta que os duques de Aveiro possuíam em S. Sebastião15, e que tinha sido confiscada pelo marquês de Pombal. A propriedade foi crescendo em extensão com a aquisição de mais terrenos em torno da casa dos duques de Aveiro, onde o novo proprietário se instalou: em 1786 compra a quinta da Rabequinha; no início do século XIX adquire a quinta e terras do Poceiro e a propriedade dos jesuítas; e “em 1770 vemo-lo adquirir uma propriedade constituída por bens de capela a qual era administrada pelos religiosos do convento da Estrela e que pegava com a quinta do noviciado”16.As “Terras do Seabra” desmembram-se a meio do século XIX, e o lote que Henrique Mendonça compra pouco mais de um século depois das aquisições de José de Seabra da Silva é metade da “Quinta do Seabra de Cima ou de Fora”, ou seja a parte mais perto do termo da cidade ou a cota mais alta.

Até à reforma administrativa de 1885, o lote constituía-se ele próprio como um dos limites da cidade, situado que estava entre a estrada da Circunvalação e seu muro (limite administrativo a partir de 1852) e a linha de fortificações seiscentistas que acompanhava este limite pelo exterior. Como uma terra de ninguém, o terreno situa-se entre duas linhas de fronteira e literalmente sobre um campo de batalha, na imediata retaguarda de dois baluartes. Não por acaso, as terras do Seabra foram sendo palco de episódios bélicos em vários momentos da história da cidade: nas invasões francesas e durante as lutas liberais17. Os estragos no palacete aquando da revolução de 191018 e dos tumultos de 193119 acabam, na realidade, por ser apenas mais um momento em que este lugar é palco de confrontos violentos, que se foram perpetuando até à conclusão das obras do parque nos anos 40 do século XX.

 

Figura 3

 

O lote adquirido em 1899 para a construção do palacete tinha quase o dobro da dimensão atual. No entanto, muito pouco tempo depois da compra, o lote ganha a dimensão e configuração que hoje apresenta na sequência, primeiro, de negociações relativas a cedências de terrenos à Câmara Municipal de Lisboa (CML) e, depois, da muito provável venda de parte do terreno para o que virá a ser o palácio Leitão, poucos anos depois.

As negociações com a CML tinham como objeto as expropriações previstas destinadas à construção do parque, ao traçado da variante à estrada da circunvalação (entretanto denominada rua Marquês da Fronteira) e ao loteamento de uma faixa de 50m de terrenos ao longo da vertente norte deste novo eixo viário, conforme previsto na “Lei das Expropriações” por zonas de 1889.

Omisso relativamente a questões arquitetónicas, o plano de Ressano Garcia era por isso de uma enorme flexibilidade no que à tipologia de ocupação dos lotes diz respeito, facto que marca fortemente o que veio a ser o processo de construção destas novas áreas da cidade20. Se a este facto acrescermos uma conjuntura económica desfavorável e a necessidade absoluta de encontrar nos privados a capacidade financeira para dar corpo a este plano de expansão, entendemos por que razão grandes capitalistas como Henrique Mendonça acabam por ter um grande poder negocial, e este processo ocorrido em 1900 é disso um claro exemplo.

Face à prevista expropriação de mais de 3ha da sua propriedade, Henrique Mendonça propõe à CML ceder gratuitamente uma parte dos terrenos a expropriar, sob três condições: poder ficar na posse de parte dos terrenos previstos para expropriação (a faixa de 50 metros na vertente norte); poder ficar na posse dos materiais provenientes da demolição do edifício situado na área a ceder (o palácio da quinta dos duques de Aveiro);
e que lhe sejam dadas garantias de que a variante da estrada de circunvalação que dará acesso à parte do lote que deverá ficar em sua posse esteja concluída no prazo de um ano. A CML analisa internamente o assunto e decide aceder à proposta de Henrique Mendonça, por esta ser economicamente mais vantajosa para a Câmara. De facto, em ofício interno, o engenheiro António Maria Avellar faz uma simulação económica de ambos os cenários e conclui que mesmo que a CML conseguisse vender os lotes previstos, estes não renderiam muito dinheiro, visto valerem pouco por “estarem afastados da cidade”. A proposta de Henrique Mendonça é por isso, no seu fundamental, aceite, tendo em conta ainda a boa vontade e abertura que o proprietário demonstrou em todo o processo21Assim, o que seria uma ocupação linear com lotes de 50m de profundidade ao longo da vertente norte da rua Marquês da Fronteira, e que prolongaria a lógica de implantação das novas construções ao longo deste eixo, acaba por ser quebrada ainda antes da construção do novo traçado da rua. Este facto significou romper com uma lógica de continuidade dos lotes, uma das poucas regras estabelecidas pelo plano.

A área de terreno resultante deste processo é aquela correspondente ao lote do palacete Mendonça mas também do palacete Leitão, que será muito provavelmente um troço da propriedade de Henrique Mendonça vendida a José Pinto Leitão - o joalheiro do rei - entre 1900 e 190422, e já livre de qualquer obrigatoriedade de cedência ao domínio público, graças a este processo negocial.

 

3. O ARQUITETO

 

Figura 423

 

A encomenda do projeto a Miguel Ventura Terra (1866-1919) terá ocorrido durante o ano de 1900, em circunstâncias para já desconhecidas24, com o primeiro requerimento para obras a ser entregue na Câmara Municipal logo em novembro desse ano25.

A opção por parte do proprietário pelo arquiteto mais reputado de Lisboa à época terá sido seguramente parte de uma vontade consciente de afirmação de estatuto perante os seus pares e a sociedade, que a compra de um lote junto ao futuro parque da Liberdade de certo modo também já enunciava. No entanto, é também possível interpretar esta opção por Ventura Terra como uma escolha determinada por critérios de qualidade e gosto por parte de alguém que, ao que tudo indica, revelava sensibilidade e cuidado nas suas opções artísticas. Henrique Mendonça foi um dos presidentes do Grupo dos Amigos do Museu Nacional de Arte Antiga, e, ao que se sabe, mantinha relações com várias personalidades do mundo da arte, nomeadamente Malhoa e Columbano, este último autor do seu retrato e de parte da pintura decorativa que virá a ser executada no seu palacete.

De facto, no ano do provável arranque do projeto para o palacete, Ventura Terra é já um dos arquitetos mais reputados da capital e do país. Chegado a Lisboa em 1896, depois de um longo período em Paris, onde estudou no atelier de Laloux, Ventura Terra é, em 1900, o responsável pela obra do palácio das Cortes (1895-1903) e do santuário e hotel de Santa Luzia em Viana do Castelo (a partir de 1899), e tem já obra significativa no domínio da habitação, em Lisboa mas também em Cascais e no norte do país. Na vida cívica e corporativa elabora, em 1902, os estatutos da Sociedade dos Arquitetos Portugueses, à qual presidirá em 1903, enveredando ainda pela política em 1908, quando é eleito como vereador republicano para a Câmara Municipal de Lisboa. Em 1903 vence o seu primeiro Prémio Valmor com o prédio onde se situa a sua casa na rua Alexandre Herculano.

O trabalho de Terra filia-se diretamente no ecletismo das Beaux Arts de Paris de fim de século, tal como acontece com muitos dos arquitetos seus contemporâneos. Ventura Terra será, no entanto, aquele cuja obra apresenta maior solidez: pela sua dimensão e pela variedade de programas e de escalas de intervenção. Para além disso, é também o caráter consequente da sua modernidade que o diferencia da maioria dos seus pares, através de um trabalho de fundo sobre as questões do desenho, da técnica e do programa que ultrapassam o mero exercício de estilo da fachada26.

Em 1900, Ventura Terra viaja pelas capitais da Europa “onde desejo ver o que mais recentemente se tem produzido”27 no campo da decoração e das instalações técnicas. Ainda nesse ano, o concurso para os dois pavilhões de Portugal na Exposição de Paris premeia a proposta de Ventura Terra, preterindo a de Raul Lino, num episódio que de certo modo põe em evidência ou mesmo em confronto as duas correntes que marcam a arquitetura portuguesa deste período, e que Terra e Lino personificam: progressismo versus culturalismo; internacionalismo versus nacionalismo.

O palacete Mendonça no seu conjunto confirma por isso o trabalho de Ventura Terra como pertencente a uma linha eclética de filiação marcadamente clássica28. Apesar de os princípios de composição assentes na axialidade e na simetria tão evidentes no projeto do palacete serem comuns na sua obra, raramente se expressam de forma tão evidente nos seus trabalhos no domínio da habitação. Se é certo que a dimensão do terreno facilita a aplicação de princípios compositivos com este grau de clareza, há no palacete Mendonça uma opção por uma certa radicalização da linguagem clássica. De expressão austera e sóbria, trata-se de um exercício coerente e consequente que envolve todo o universo da composição e que tem na loggia do último piso, citação direta da villa renascentista, o expoente máximo deste parti pris estilístico.

O facto de esta ser uma das suas primeiras obras em Lisboa, pouco depois do seu regresso de Paris, e o primeiro palacete que Ventura Terra projeta para a capital poderia ser uma das razões para esta opção por um desenho que se filia de modo tão evidente na sua formação parisiense, mas não será seguramente a única e há que não descartar outras hipóteses de leitura que tenham em conta uma relação com o lugar e a natureza da encomenda.

O primeiro processo de pedido de licença para construção data de 12 de novembro de 1900, tem como responsável o construtor Rafael da Silva Castro e não está documentado nos arquivos da CML com qualquer peça desenhada ou memória descritiva. O projeto é aprovado e é definido o valor das taxas a pagar correspondentes a 2392m2 de superfície coberta e 29840m2 de jardim, sensivelmente a área do jardim atual.

 

Figura 5

 

Menos de dois meses depois, e já com a obra a decorrer, é entregue o pedido para construção do edifício da portaria, novamente com Rafael da Silva Castro como responsável29. É neste processo que se encontram as primeiras peças desenhadas desta obra, numa folha com os desenhos do edifício da portaria, mas também uma pequena planta de conjunto a outra escala, que mostra o limite sul do terreno limitado pelo novo traçado da rua e a localização da portaria e do palacete, sobre o qual surge a legenda “em construção”. Este desenho de conjunto não só confirma a nova forma do lote - que não contempla o terreno do palacete Leitão, e com a portaria a marcar o canto nascente de limite do lote -, mas sobretudo apresenta um perímetro de implantação do palacete exatamente igual ao atual. Deste modo se pode concluir que qualquer que tenha sido a solução apresentada no pedido de licença de novembro de 1900, a implantação era a mesma do edifício que foi construído.

Em agosto de 1902, Henrique Mendonça entrega na Câmara novos desenhos para o palacete, pedindo a substituição do projeto aprovado a 6 de dezembro de 1900. Este novo processo30 inclui desenhos de projeto que, salvo mínimas alterações de pormenor e as alterações realizadas aquando da instalação da Faculdade de Economia da UNL, corresponde ao palacete tal como ele se encontra hoje, ou seja, o projeto construído é fruto de uma alteração de um primeiro projeto, que não está documentado graficamente no Arquivo Municipal.

 

Figura 6

 

 

Figura 7

 

 

Figura 8

 

 

Figura 9

 

 

Figura 10

 

 

Figura 11

 

Trata-se de um conjunto de dez desenhos do palacete: as plantas dos cinco pisos - térreo, andar nobre, primeiro piso, segundo piso, sótão e cobertura -, cortes e os quatro alçados, todos à mesma escala e onde não consta nenhuma planta de conjunto nem o projeto de edifícios anexos. São datados de 4 de agosto de 1902 e assinados pelo novo responsável da obra, João Pedro dos Santos. Há que referir que nos vários documentos escritos e desenhados do Arquivo Municipal referentes a esta obra nunca surge o nome de Ventura Terra, estando todos os requerimentos, desenhos e termos de responsabilidade apresentados por parte do cliente assinados pelo requerente - Henrique Mendonça - ou pelos responsáveis de obra. Não há, no entanto, qualquer dúvida quanto à autoria do projeto. A hipótese teórica de o primeiro projeto (não documentado) ser de outro autor e da mudança de construtor ter sido acompanhada também de uma mudança de arquiteto não é de todo plausível, a partir do momento em que o desenho da implantação do conjunto constante no projeto da portaria31 de 1901 corresponde exatamente ao do projeto entregue um ano depois.

O facto de a mancha de implantação corresponder exatamente à atual poderia significar que as alterações apresentadas no projeto em 1902 teriam que ver apenas com os interiores ou eventualmente com o desenho dos alçados, mas existe um dado adicional que indicia que terá havido também um aumento de área, dado que a aprovação do segundo projeto dá lugar ao pagamento adicional de taxas, correspondentes a mais 785m2 de pavimento, referentes ao artigo 2.º (área coberta). E, de facto, a medição da área construída está muito próxima do total de 3177m2 calculados no processo de 1902. Não havendo informação sobre o primeiro projeto de 1900, é difícil perceber a que correspondem estes metros quadrados adicionais mas, ao que tudo indica, não houve alteração na implantação nem foi entregue requerimento para qualquer outro edifício. Assim sendo, e salvo ter havido um erro de cálculo relativo ao primeiro projeto ou alterações no método de cálculo das áreas32, o edifício só pode ter subido em altura face ao que estava previsto no primeiro projeto.

Será no entanto difícil, senão impossível, apenas com estes dados especular sobre o que seria uma primeira versão do projeto, e quais as razões para esta hipotética opção de subir o edifício. No entanto, não estando a casa situada num contexto urbano de lote confinado, mas sim num terreno de quase 3ha, a opção pela subida em altura seria apenas uma entre várias opções possíveis o que leva a pensar que, apesar de todas as possíveis razões de ordem prática, esta pode ter sido uma opção deliberada, por ser a que melhor respondia ou mesmo reiterava a relação urbana que o edifício procurava: pela sua volumetria, mas também pela posição no lote.

À grande escala, a posição do palacete no lote e o desenho da sua volumetria enunciam claramente a relação que o edifício procura com a cidade. Afastada da via pública cerca de 60 metros, a casa procura o ponto mais alto do terreno - sensivelmente à cota 105.00 -, o que obriga não só ao afastamento relativamente ao eixo viário que lhe dá acesso mas também a descentrar a construção relativamente ao eixo longitudinal do lote. A distância relativamente à via e a posição sobranceira, virada a sul, afastam o edifício da envolvente imediata e aproximam--no da cidade distante: a cidade nova e fervilhante que se estende ao longo do vale de Valverde.

 

Figura 12

 

 

 

A aproximação à casa é feita partir dos dois cantos do lote, por dois portões rasgados na vedação do terreno projetada em 190433 e executada sob a responsabilidade de um terceiro construtor: António Gaspar. Associada à entrada nascente, a portaria é uma pequena construção cúbica de dois andares, bem proporcionada, que remata o extremo oriental do lote, à cota baixa. Deste modo, a aproximação à casa é sempre feita num percurso ascendente que enfatiza a verticalidade da fachada.

Ao longo dos seus quase cem metros de comprimento, o lote quebra em ligeira pendente para nascente, na direção da linha de limite com o terreno do vizinho palácio Leitão. É ao longo desta linha de fronteira que se situa o caminho de serviço que dá acesso ao interior da propriedade e do jardim, e que distribui para os vários edifícios anexos: estufa, chiqueiro34, e um anexo de maior dimensão para arrecadações licenciado em setembro de 190335. A concentração das circulações de serviço e anexos ao longo deste alinhamento liberta a restante área do lote à cota alta para espaços de fruição e lazer. O jardim do palacete surge assim na vertente a norte do palacete, com um desenho de caminhos sinuosos que, na sua organicidade, contrasta com a ortogonalidade da construção.

De clara matriz clássica, a planta do palacete organiza-se segundo um eixo de simetria central, longitudinal relativamente ao lote, sobre o qual se dispõem os espaços que fazem a relação do edifício com o exterior: com a cidade, a sul, e com o jardim, a norte. Entre os dois, um espaço central de duplo pé-direito, com uma escadaria, marca o centro da composição, no cruzamento com o segundo eixo de simetria. Dois corpos adossados dispõem--se em cada um dos lados deste volume: progressivamente mais estreitos e baixos, e recuando relativamente ao alinhamento do corpo central.

Tal como a implantação do edifício surge descentrada relativamente ao eixo do lote, o desenho da planta mostra as necessárias adaptações ao terreno e ao programa na vertente a nascente, por forma a permitir a implementação de uma segunda circulação vertical e de uma entrada de serviço, encaixada na topografia. Apesar destas variações, os alçados sul e norte não quebram a lógica de composição tripartida e simétrica apontada em planta e apresentam um equilíbrio sábio entre a horizontalidade dada pelo andar nobre e pelo embasamento em pedra sobre o qual assenta e a verticalidade apesar de tudo dominante conferida pelos vãos esguios, mas sobretudo pelo corpo central da fachada principal, coroado pela loggia que no alto, domina a paisagem.

Por dentro desta lógica global de rigorosa simetria da composição, a introdução do complexo programa doméstico é feita de forma harmoniosa, integrando todos os códigos do espaço do habitar e as respetivas valências técnicas, associadas à higiene e ao conforto.

O duplo pé-direito do vazio central do hall constitui-se como uma terceira axialidade, no centro geométrico da composição, a partir do qual se faz uma primeira organização por pisos dos principais grupos de espaços. Os serviços são instalados na meia-cave, os espaços de receção no andar nobre, e os quartos nos dois pisos superiores. Não há compartimentação nem funções atribuídas na planta do sótão, que seria ao que tudo indica reservado para o alojamento dos empregados.

A casa adota o esquema da dupla circulação - de aparato e de serviço - em que à relativa convencionalidade da primeira se contrapõe uma solução menos comum na escala e no cuidado de desenho conferidos a um sistema de circulação, em princípio secundário. No hall central, a circulação de aparato desenvolve-se em torno do vazio central do edifício e liga o andar nobre ao primeiro piso de quartos, através de uma escada “palaciana, monumental e encenada”36 com uma tribuna no patamar intermédio, que servia também para instalar a orquestra em dias de festa37. No lado nascente da casa, a segunda escada desenvolve-se em torno de um elevador e faz a ligação entre todos os pisos, incluindo o sótão. Conforme referido por Rui Ramos, o conjunto constituído pela escada de serviço, elevador e galeria de circulação tem, nesta casa, uma dimensão que não é comum, praticamente equivalente à área do átrio central, que se prende, segundo este autor, não apenas com questões de “eficiência funcional, salubridade e higiene, mas também de ostentação da mesma grandiosidade presente nas zonas nobres”38. A esta dupla circulação correspondem dois conjuntos de espaços distintos, pela sua funcionalidade e desenho.

 

 

 

Figura 15

 

As salas de aparato localizam-se ao longo do eixo central do palacete e em toda a área poente deste piso. No eixo central, decorado em estilo renascença, a escadaria da fachada conduz ao vestíbulo, ligado ao hall central por um grande arco em pedra. Um vão generoso liga ainda axialmente o hall à sala de jantar, que por sua vez abre para um terraço sobre o jardim. A centralidade da sala de jantar denota a importância que este espaço de refeições e o ritual a ele associado foi ganhando ao longo do século XIX, período em que se foi assistindo à progressiva migração deste dispositivo doméstico no interior da casa, até se tornar parte das salas de aparato. Na ala poente do palacete situa-se uma nova sequência de três espaços, interligados e de dimensão equivalente, que repetem a leitura sequencial dos espaços do núcleo central: os salões Luís XV, Luís XVI e Império. Um amplo jardim de inverno remata esta ala poente.

 

Figura 16

 

 

Figura 1739

 

A nascente, em torno da escada de serviço e do seu elevador, dispõe-se um conjunto heterogéneo de espaços, que compreende espaços de serviço, da família e semipúblicos. A copa, na passagem para a sala de jantar serve neste piso ainda a sala de almoços: um espaço da intimidade da família que serve de contraponto à aparatosa sala de jantar. Ao lado, o gabinete de trabalho do proprietário tem acesso a partir desta área de circulação secundária e liga ainda a uma antecâmera que dá acesso ao vestíbulo. Trata-se de compartimentos cujo programa se encontra física e funcionalmente na fronteira entre os espaços de aparato e os espaços privados e que se constitui como uma categoria intermédia de uso, claramente delimitada em planta, que não sendo de serviço, nem íntimo, tem um uso mais informal, se comparado com as salas de aparato. Será provavelmente a dimensão familiar deste conjunto de espaços, usados no quotidiano por todo o grupo doméstico - proprietários e empregados -, que pode explicar a dimensão e a nobreza do desenho desta escada secundária, mas também as opções radicalmente diferentes ao nível do programa decorativo das salas a que dá acesso.

 

Figura 18

 

 

Figura 1940

 

Os espaços da intimidade - quartos, toilettes e salas - situam-se nos dois pisos superiores, onde uma decoração mais despojada contrasta com a opulência do andar nobre. Apenas o atelier de pintura de D. Carolina de Mendonça, aberto para a loggia, apresenta um maior trabalho de madeiras, com um lambril alto e lareira, que lembra o estilo sóbrio e mais estilizado da sala de almoços ou do gabinete de trabalho. Em ambos os pisos as circulações e a compartimentação são organizados em torno do hall central, que é também o centro a partir do qual se posicionam infraestruturas e equipamentos.

O palacete estava, no momento da sua inauguração, equipado com todos os mais avançados aparelhos e sistemas de tecnologia doméstica - elevador hidráulico, aquecimento e mesmo um sistema de alarme. Comprados no estrangeiro, são raros na Lisboa da época e apenas instalados em edifícios de exceção. A obra do palacete é aliás visitada por um grupo de arquitetos em 1904, no quadro de uma visita organizada pela Sociedade dos Arquitetos Portugueses, que pretende dar a conhecer os sistemas de aquecimento central instalados em duas obras de Ventura Terra: o palacete Mendonça e o palácio das Cortes41. Todos os pisos do palacete são dotados de espaços de higiene com água canalizada, estrategicamente posicionados não apenas de modo a racionalizar a posição das infraestruturas e otimizar o seu funcionamento, mas também por forma a integrá-los na lógica de desenho global do edifício, acompanhando as simetrias e axialidades que regem a composição. O próprio fogão, do fornecedor francês Briffault, está posicionado ao centro, no espaço da cozinha, que também ela ocupa uma posição central na casa.

Dir-se-ia que, num momento histórico em que a técnica e a arte negoceiam territórios no domínio da construção, Ventura Terra está atento e do mesmo modo que não ignora o progresso nem os novos sistemas e equipamentos, antes pelo contrário, também não permite que a arquitetura se submeta completamente aos seus desígnios. A técnica é por isso integrada no sábio exercício do desenho e da composição clássica, ou seja, é por dentro da própria disciplina da arquitetura e do projeto, que Terra encontra um território de convergência “nunca duvidando que o culto do classicismo era a mais eficaz via para ser moderno”42.

Se a montante, no domínio da distribuição e da integração das infraestruturas, as suas opções de projeto são coerentes e consistentes, isso não é menos verdade a jusante, na questão da decoração. Por dentro da multiplicidade de estilos é possível encontrar, nestes interiores, uma coerência que é dada por uma lógica de adequação da decoração ao programa, mas também por uma estratégia de desenho que procura uma leitura mais homogénea dos espaços por dentro da lógica fragmentária dos interiores ecléticos.

O que acaba por estar sempre presente no palacete, e de modo algo extremado, é o exercício quase obsessivo da composição como síntese, e que não é mais que um dos pilares fundamentais sobre os quais assenta a arquitetura do ecletismo de fin de siècle43. Ventura Terra domina com grande mestria este exercício que tem na base um trabalho aturado sobre o uso do desenho na organização do programa em planta, e que era, precisamente e não por acaso, a razão que levava os estudantes ao atelier de Laloux44, nas Beaux Arts de Paris.

 

4. O ecletismo como ideia de progresso: Ventura Terra, Henrique Mendonça, o parque [e a Boa Entrada]

Por tudo o que ficou dito, o encontro entre Ventura Terra e Henrique Mendonça para este projeto dificilmente se pode resumir apenas ao encontro entre um próspero burguês num processo de ascensão social com o arquiteto de sucesso cuja assinatura seria a mais-valia essencial para o seu palacete, a construir numa das zonas que se previa vir a ser uma das mais prestigiadas da cidade.

Ainda que não de modo deliberado, o encontro entre este lugar, este arquiteto e este proprietário é um encontro que faz sentido também se pensarmos que há uma certa partilha de ideais ou de projeto de cidade nestes dois atores em interação com o vetor lugar que elegemos para refletir sobre este projeto. Falo por um lado de uma certa crença no progresso que perpassa todo o trabalho de Ventura Terra, que está na base do absolutamente notável ímpeto inovador e experimentalista de Henrique Mendonça enquanto roceiro, e que também é o mote para o grande gesto de expansão da cidade de Lisboa para norte no final do século XIX.

Para além disso, há um certo cosmopolitismo e caráter internacionalista no qual se filia diretamente o plano de melhoramentos e o próprio parque e que é também transversal às biografias do proprietário e do arquiteto. Na realidade, serão tão estrangeirados um quanto o outro: praticamente da mesma idade, Henrique Mendonça e Ventura Terra têm ambos percursos de vida que os levaram muito jovens para o estrangeiro. O regresso à pátria de Ventura Terra e o momento em que o já próspero roceiro Henrique Mendonça decide passar mais tempo na capital poderá até ter acontecido na mesma altura, durante os anos 90 do século XIX. Efetivamente, ambos tiveram um início de idade adulta marcado por uma vivência internacional: Terra em Paris e Henrique Mendonça em São Tomé, onde como vimos a circulação de europeus e os contactos internacionais eram intensos - entre cientistas, capitalistas, agrónomos, fornecedores, importadores, etc. Se a própria colónia era um lugar de cruzamento com o mundo, de confluência, de culturas autóctones, mas também ocidentais, é também a plataforma a partir da qual Henrique Mendonça estabelece contactos com o mundo e viaja.

No fundo, o ecletismo acaba por ser, neste início de século, a corrente artística capaz de responder a estes ideais e anseios. Citando Jacqueline Pedone:

O Ecletismo foi um fenómeno cultural que, diferente do historicismo, estava imbuído de vontade histórica e buscou acompanhar o próprio tempo e diferente de uma doutrina estilística, foi uma atitude perante o projeto, um procedimento moderno em sua essência. Livre dos ditames do passado e fiel aos princípios académicos, o Ecletismo apresentou uma maneira moderna de pensar a arquitetura 45.

É neste princípio de modernidade e de crença no progresso que o pensamento de Ventura Terra se inscreve, conforme enunciado por Raquel Henriques da Silva46, o que afasta completamente o trabalho deste autor de qualquer tipo de démarche associada ao decadentismo oitocentista. Ainda segundo esta autora, e referindo-se à sua intervenção na cidade histórica, há em Ventura Terra “o entendimento do património como herança que deve ser respeitada, mas não deve tolher o desenvolvimento do espaço urbano”: o património serve se servir o presente assim como a história serve se servir o presente e, quem sabe, o futuro.

Por outro lado, temos o caráter absolutamente internacional deste ecletismo cosmopolita e globalizante, que parte de Paris e chega a todo o mundo. Regressando à Boa Entrada, a residência de Henrique Mendonça nos trópicos é também ela expressão deste movimento centrífugo que leva neste caso o chalet centro-europeu a transformar-se na casa típica do colonialista dos trópicos: pelo modo como se adaptava ao clima pluvioso, mas sobretudo porque o sistema de pré-fabricação a tornava fácil de exportar e construir.47 Uma construção ao estilo internacional, também na casa de Henrique Mendonça em territórios ultramarinos, equipada com todas as comodidades e as mais avançadas tecnologias.

E assim, pela via do proprietário e de um certo internacionalismo - e deste modo peculiar de dar a volta ao mundo a partir de uma suposta periferia - poderemos tentar encontrar pistas adicionais para a leitura do palacete da rua Marquês da Fronteira, essa “máquina de habitar” de feição tão marcadamente clássica. Uma linguagem solene e elegante, eterna e por essa via não-nostálgica, que não tem tempo mas também não tem pátria, ou seja, uma arquitetura à medida do cosmopolitismo, austeridade e espírito visionário do grande colonialista Henrique Mendonça.

Aí, desde o primeiro momento, os visitantes teriam a ‘verdadeira surpresa de descobrir no meio desta isolada ilha do Atlântico o conforto da vida europeia'. Todo esse conforto requeria esforços imensos. Muitas viagens à Europa haviam sido necessárias para mobilar quartos, salas de jantar e salões de jogos. Mas, mesmo que a arquitetura e a decoração servissem para criar um ambiente aprazível, a casa estava longe de ser um retiro de lazer. Era, tal como Chevalier a descreve, a sede do “estado maior da roça da Boa Entrada”. Esta metáfora deve ser entendida de forma séria. O espaço reservado para a leitura assemelhava-se a uma sala de comando estratégico. Nas estantes, ‘monografias sobre o cacaueiro em Francês' estavam acompanhadas de revistas sobre agricultura tropical e ‘muitos mais livros em Português, Inglês e Alemão sobre o mesmo assunto'. E tal como nas campanhas militares, ‘na parede era possível ver mapas, diagramas e gráficos relacionados com a plantação'. O administrador-estratega tinha também à sua disposição os mais sofisticados meios de comunicação. Um telefone permitia o contacto imediato com outras partes da roça, da cidade e com as outras plantações48.

 

FONTES E BIBLIOGRAFIA

Fontes manuscritas

 

Arquivo Municipal de Lisboa

Autor não identificado, Henrique Monteiro Mendonça, pintura da autoria de Columbano Bordalo Pinheiro. Fotografia. PT/AMLSB/ACU/00076.

Eduardo Portugal, Panorâmica tirada do alto do parque Eduardo VII, à direita a avenida da Liberdade. Fotografia. PT/AMLSB/POR/059996.

Paulo Guedes, Palacete Henrique Monteiro Mendonça, Prémio Valmor de 1909. Fotografia. PT/AMLSB/PAG/000455.

Obra n.º 31572, Processo n.º 6391/1.ªREP/PG/1900; Processo n.º 9/1.ªREP/PG/1901; Processo n.º 3522/1.ªREP/PG/1902; Processo n.º 4012/1903; Processo n.º 4329/1904; Processo n.º 1284/1924; Processo n.º 43206/DSC/PG/1944.

Escritura de cedência, de 1901-02-08. Documentos anexos ao livro de notas n.º 38 referente à escritura de cedência de terreno, f. 12. PT/AMLSB/CMLSB/AGER-N/02-02-01/00031.

 

Arquivo Nacional Torre do Tombo

Estragos causados pelas granadas numa sala do palacete do Sr. Henrique Monteiro de Mendonça. Documento cedido pelo ANTT. Código de Referência: PT/TT/EPJS/SF/001-001/0020/1017F.

Coleção particular de Pedro Mendonça Alves

Fotografia do hall.

Fotografia do salão Luís XV.

Fotografia do jardim de inverno.

[Fotografia da] sala de almoço.

[Fotografia da] cozinha.

 

Bibliografia

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Submissão/submission: 01/02/2016

Aceitação/approval: 01/04/2016

 

 

NOTAS

* Doutoranda em História da Arte na Universidade de Évora e membro do Centro de História da Arte e Investigação Artística dessa instituição (CHAIA). Arquiteta licenciada pela Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto (FAUP), trabalha como arquiteta projetista desde 2003. Áreas de investigação atuais: História da Arquitetura e da Cidade Contemporâneas, com particular destaque para o século XIX e início do século XX. Correio eletrónico: juliazvarela@gmail.com

1 DIAS, Carlos Malheiro - O último carnaval da monarquia. In Em redor de um grande drama: subsídio para uma história da sociedade portuguesa (1908-1911). Lisboa: Livrarias Aillaud & Bertrand, [19--]. p. 210-218.

2MENDONÇA, Henrique José Monteiro de - The Boa Entrada plantations: S. Thomé portuguese west Africa: “la perle des colonies portugaises”. Edinburgh: London: Oliphant Anderson e Ferrier, 1907.

3LAVRADIO, Marquês de - Memórias do sexto marquês de Lavradio. Lisboa: Ática, 1947. p. 66.

4MACEDO, Marta - Império de cacau. In JERÓNIMO, Miguel Bandeira - O império colonial em questão (sécs. XIX e XX). Lisboa: Edições 70, 2012. p. 296.

5PAPE, Duarte; ANDRADE, Rodrigo Rebelo de - As roças de São Tomé e Príncipe. Lisboa: Tinta-da-china, 2013. p. 27.

6 FERRÃO, José Eduardo Mendes - A investigação agronómica em São Tomé e Príncipe durante a administração portuguesa. In COLÓQUIO INTERNACIONAL SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE – Colóquio Internacional… numa perspetiva interdisciplinar, diacrónica e sincrónica: actas. Lisboa: ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa, 2012. p. 256.

7 MACEDO, Marta - Império de cacau. In JERÓNIMO, Miguel Bandeira - O império colonial em questão (sécs. XIX e XX). Lisboa: Edições 70, 2012. p. 296.

8FERRÃO, José Eduardo Mendes, op. cit., p. 258.

9FERRÃO, José Eduardo Mendes, op. cit., p. 258.

10LE CUNFF, Françoise - Parques e jardins de Lisboa (1764-1932): do Passeio Público ao parque Eduardo VII. Lisboa: FCSH-Universidade Nova de Lisboa, 2000. p. 2.

11LE CUNFF, Françoise, op. cit., p. 2.

12SILVA, Raquel Henriques da - Lisboa de Frederico Ressano Garcia (1874-1909). Lisboa: Câmara Municipal, 1989. p. 25.

13AML, Escritura de cedência, de 1901-02-08.

14AML, Escritura de cedência, de 1901-02-08.

15Após a extinção do ducado a propriedade passa ainda pelas mãos de António Vaz Coimbra, antes de ser adquirida por Seabra, in SEQUEIRA, Gustavo Matos - Depois do terremoto: subsídios para a história dos bairros ocidentais de Lisboa. Lisboa: Academia das Ciências, 1933. vol. 4, p. 509-510.

16SEQUEIRA, Gustavo Matos, op. cit., p. 509-510.

17 SEQUEIRA, Gustavo Matos, op. cit., p. 509-510.

18 Destroços produzidos pela revolução em algumas propriedades de Lisboa. Ocidente. N.º 1147, p. 253-254.

19 Arquivo Nacional Torre do Tombo (ANTT), Estragos causados pelas granadas numa sala do palacete do Sr. Henrique Monteiro De Mendonça. Cota: PT/TT/EPJS/SF/001-001/0020/1017F, (1931-08-27).

20 SILVA, Raquel Henriques da - Das Avenidas Novas à avenida de Berna. Revista de História da Arte. Lisboa: Instituto de História da Arte. N.º 2 (2006), p. 133.

21 AML, Escritura de cedência, de 1901-02-08.

22 Data da entrada do primeiro do primeiro pedido de construção neste lote, já com José Pinto Leitão como proprietário. AML, Obra n.º 27116, Processo n.º 2771/1904.

23 Ilustração portugueza. N.º 223 (30 de maio de 1910).

24 Não foi possível ainda identificar factos concretos que aproximem o arquiteto do requerente, senão o terem quase a mesma idade (Henrique Mendonça é dois anos mais velho) e o facto de ambos pertencerem à Sociedade Portuguesa de Geografia: Henrique Mendonça desde 1890 e Ventura Terra desde 1895.

25 AML, Obra n.º 31572, Processo n.º 6391/1.ªREP/PG/1900.

26SILVA, Raquel Henriques da - As Avenidas Novas de Lisboa (1900-1930). Lisboa: FCSH-Universidade Nova de Lisboa, 1986.

27RIBEIRO, Ana Isabel - Biografia: Ventura Terra em contexto. AAVV - Arquitecto Ventura Terra (1866-1919). Lisboa: Assembleia da República, 2009. p. 85.

28 SILVA, Raquel Henriques - Ventura Terra em contexto. AAVV - Arquitecto Ventura Terra (1866-1919). Lisboa: Assembleia da República, 2009. p. 287.

29AML, Obra n.º 31572, Processo n.º 9/1.ª REP/PG/1901.

30 AML, Obra n.º 31572, Processo n.º 3522/1.ªREP/PG/1902.

31 AML, Obra n.º 31572, Processo n.º 9/1.ª REP/PG/1901.

32 Não foi possível encontrar legislação específica que nesta época fixasse os métodos de cálculo das áreas, e ao que tudo indica era utilizado muito simplesmente o cálculo das áreas brutas, o mesmo que serve para calcular custos de construção.

33 AML, Obra n.º 31572, Processo n.º 4329/1904.

34 AML, Obra n.º31572 , Processo n.º 1284/1924.

35 AML, Obra n.º 31572, Processo n.º 4012/1903.

36 RAMOS, Rui - A casa unifamiliar burguesa na arquitetura portuguesa: mudança e continuidade no espaço doméstico na primeira metade do século XX. Porto: Faculdade de Arquitetura/Universidade do Porto, 2005. Tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto. p. 8-481.

37 DIAS, Carlos Malheiro - O Último carnaval da Monarquia. In Em redor de um grande drama: subsídios para uma história da sociedade portuguesa (1908-1911). Lisboa: Livrarias Aillaud & Bertrand, [1912? ]. p. 198-218.

38 RAMOS, Rui, op. cit., p. 7-459.

39 A architectura portugueza. Ano IV, n.º 9 (1911), p. 35.

40 A architectura portugueza. Ano IV, N.º 9 (1911), p. 36.

41 A.R. - Anno Associativo: Relatório do conselho diretor relativo à gerência de 1904 a 1905. Annuário dos architectos portuguezes, 1905. p. 8.

42 SILVA, Raquel Henriques da - Ventura Terra em contexto. In AAVV - Arquitecto Ventura Terra (1866-1919). Lisboa: Assembleia da República, 2009. p. 287.

43 PEDONE, Jacqueline - O espírito eclético na arquitetura. ArqTexto [Em linha]. N.º 6 (2005), p. 126-137. [Consult. 30.01.2016]. Disponível na Internet:http://www.ufrgs.br/propar/publicacoes/ARQtextos/PDFs_revista_6/11_Jaqueline%20Viel%20Caberlon%20Pedone.pdf

44 LECONTE, Marie-Laure Crosnier - Victor Laloux (1850-1937): l'architecte de la gare d'Orsay. Paris: Musée d'Orsay, 1987. p. 65.

45 PEDONE, Jacqueline - O espírito eclético na arquitetura. ArqTexto [Em linha]. N.º 6 (2005), p. 135. [Consult. 30.01.2016]. Disponível na Internet:http://www.ufrgs.br/propar/publicacoes/ARQtextos/PDFs_revista_6/11_Jaqueline%20Viel%20Caberlon%20Pedone.pdf

46SILVA, Raquel Henriques da - Ventura Terra em contexto. In AAVV - Arquitecto Ventura Terra (1866-1919). Lisboa: Assembleia da República, 2009. p. 285.

47 PAPE, Duarte; ANDRADE, Rodrigo Rebelo de - As roças de São Tomé e Príncipe. Lisboa: Tinta-da-china, 2013. p. 56.

48 MACEDO, Marta - Império de cacau. In JERÓNIMO, Miguel Bandeira - O império colonial em questão (sécs. XIX e XX). Lisboa: Edições 70, 2012. p. 297-298, citando Chevalier e a descrição que faz da Boa Entrada, publicada em CHEVALIER, Auguste - Le cacaoyer dans l'ouest africain: les végétaux utiles de l'Afrique tropical française. Paris: A. Chamallet, 1908. vol. IV, p. 49-52.

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