SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.ser2 número3Rivalidade e cooperação: algumas notas sobre as casas comerciais alemãs em Lisboa no início de Quinhentos índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Cadernos do Arquivo Municipal

versão On-line ISSN 2183-3176

Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.3 Lisboa jun. 2015

 

INTRODUÇÃO

Jorge Fonseca*

CHAM - Centro de História d’Aquém e d’Além-Mar, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas / Universidade Nova de Lisboa e Universidade dos Açores, Portugal.

 

 

Lisboa na encruzilhada de povos e culturas

O tema que foi proposto aos autores dos textos aqui publicados é muito aliciante. Na verdade, àquela que, através dos tempos, foi a mais importante urbe do reino, pela privilegiada localização junto ao seu principal porto marítimo e na passagem das rotas mercantis que ligavam o Norte da Europa ao Mediterrâneo e, através do Atlântico, uniam o continente europeu à África, à Ásia e às Américas, estava reservado um lugar ímpar na História. Foi ele o de acolher, assimilar e disseminar pelo mundo populações de diversificadas origens, assim como muitas das suas marcas culturais. Considerando apenas o período histórico posterior à formação do estado português, começando pelas vagas colonizadoras do território promovidas pelos monarcas da primeira dinastia e pelo expansionismo demográfico e económico dos países nórdicos, ainda na Época Medieval a urbe ribeirinha e as margens do Tejo foram polo de atração de muitos estrangeiros, que se vieram juntar à população já residente, ela própria com diversas origens.

A expansão marítima iniciada no século XV veio ainda aumentar a procura de Lisboa como terra de oportunidades, devido ao próspero comércio potenciado pelas relações intercontinentais de que era o centro e o motor. Muitos foram os europeus que nela se radicaram e muitos outros os que, após algum tempo de residência, dela partiram rumo aos territórios do Ultramar. Os Descobrimentos originaram, por outro lado, a chegada de numerosos africanos e indianos, na condição de escravos, que passaram a incutir, durante séculos, no ambiente citadino uma variedade étnica invulgar num país da Europa.

E assim continuou pelo tempo fora, tendo o poder político desempenhado um papel fundamental nesta matéria. Sempre que a Coroa tentou modernizar o país, atraindo estrangeiros que pudessem trazer-lhe novos capitais e técnicas que desenvolvessem a indústria, o comércio e a agricultura, militares que o ajudassem a defender-se ou artistas e sábios que o elevassem culturalmente, a sua capital adquiria um ar mais aberto e cosmopolita. O mesmo não sucedia quando esse esforço abrandava, devido a conjunturas adversas ou por razões ideológicas, fossem elas religiosas ou políticas. Sucedeu mesmo, como se sabe, terem as motivações religiosas levado ao abandono de muitos dos habitantes mais empreendedores, como os Cristãos Novos, retirando à cidade e ao país capitais e massa crítica. Mas foram igualmente preconceitos religiosos e raciais em vigor noutros países que a ela atraíram fugitivos que, desde a Idade Média ao século XX, a vieram povoar e enriquecer.

Este número dos Cadernos do Arquivo Municipal mostra algumas facetas desse longo e descontínuo processo, acolhendo contributos de três investigadores não portugueses, como que para, se dúvidas houvesse, uma vez mais se comprovar a importância dessa participação. Abre com um estudo do historiador alemão Jürgen Pohle sobre as casas comerciais germânicas presentes em Lisboa no início do século XVI. Começando por se referir aos mercadores da Liga Hanseática atraídos à cidade desde finais de Trezentos em busca de sal, mas também de azeite, cortiça, frutos secos e vinhos, destaca a seguir o grande incremento da sua presença depois da abertura da Rota do Cabo, devido ao interesse pelas especiarias orientais. Os privilégios que obtiveram da Coroa tinham por fim conseguir o seu contributo financeiro para a construção naval e a armação dos navios que rumavam à Ásia. Entre as companhias aqui radicadas contavam-se as dos Welser e dos Fugger, de Augsburgo, e as dos Imhoff e Hirschvogel, de Nurenberga. O diário de Lucas Rem, feitor dos Welser, e as cartas de Sebald Kneussel, representante dos Imhoff, serviram de base ao autor para se referir a pormenores da vida comercial e mesmo pessoal e doméstica dos agentes alemães em Lisboa, dando-nos um vivo retrato da economia e da sociedade na época manuelina.

Segue-se a este um artigo, da autoria de Hélia Cristina Tomás Silva e Tiago Borges Lourenço, investigadores de história da arte, que vem chamar a atenção para os fatores que impulsionaram a instituição de comunidades religiosas de origem estrangeira em Lisboa e a construção dos respetivos edifícios: perseguições religiosas nos países de origem, necessidade de estabelecer na cidade pontos de acolhimento e apoio temporário para os religiosos de certas ordens, de passagem para as missões ultramarinas, e fundações da iniciativa de acompanhantes de rainhas estrangeiras consorciadas com soberanos portugueses. O trabalho desenvolve especificamente o percurso do convento de Santa Brígida, ou das Inglesinhas, originado no abandono de Inglaterra por essa comunidade devido à perseguição anticatólica iniciada por Henrique VIII com a reforma protestante. As religiosas e religiosos estabeleceram-se inicialmente em vários locais da Flandres, mas as dificuldades continuaram, acabando por vir para Lisboa em 1594. No entanto, só em 1672 puderam contar com um edifício próprio, na rua do Quelhas, onde estiveram até à terceira invasão francesa, após a qual um grupo regressou ao seu país e outro permaneceu em Lisboa. Só em 1861 o último grupo regressaria à pátria. O edifício conventual albergou a seguir várias instituições religiosas e de ensino.

O trabalho de Jorge Miguel Lobo Janeiro sobre os Sinel de Cordes desenvolve a realidade atrás referida de mercadores e outros profissionais do Norte europeu que se deixaram atrair pelas perspetivas de negócios e de ascensão social que a fixação na cidade do Tejo possibilitava. Originários da Flandres, de famílias ligadas ao comércio a retalho, Cordes e Sinel vieram a unir-se entre si através do casamento de membros seus. O percurso ascendente de ambos os ramos na sociedade tinha sido iniciado pela obtenção, em 1626, de João Batista de Cordes da condição de Familiar do Santo Ofício e, em 1643, da mesma posição pelo seu genro Baltasar Peles Sinel. Em 1686, António Luís de Cordes, neto do primeiro e filho do segundo, recebeu foro de fidalgo cavaleiro, entrando assim na nobreza. Foi também escrivão do Desembargo do Paço e cavaleiro da Ordem de Cristo. A condição nobre foi suportada, em termos de imagem social, por um comportamento compatível com os hábitos da nobreza, investindo em construções religiosas e na renovação das suas propriedades rurais. Os proventos auferidos nesses cargos eram uma boa fonte de rendimentos e o comércio por grosso a que estiveram ligados vários membros da família não deixou de contribuir igualmente para a sua prosperidade. O percurso ascendente destes portugueses de origem flamenga veio a culminar com a construção, nos meados do século XVIII, do seu palácio no Campo de Santa Clara.

A historiadora Nunziatella Alessandrini, que tanto tem contribuído para o conhecimento da presença italiana em Portugal e no seu império, quer através dos estudos que tem realizado, quer através da promoção de ciclos de conferências sobre as Relações Luso-Italianas nas Épocas Medieval e Moderna, aborda aqui a geografia dos Italianos na Lisboa do século XVII. Tendo tido um percurso semelhante ao da comunidade alemã, já referido, o número dos mercadores provenientes dos vários estados da península de Itália estabelecidos na cidade cresceu muito depois da abertura do caminho marítimo para a Índia. E, à semelhança do que ocorreu com a expansão territorial da urbe para ocidente, ao longo do rio, também as áreas de residência dos Italianos deixaram de se restringir aos tradicionais bairros da Sé, de São Julião e de São Nicolau, passando eles a predominar em São Paulo, Loreto, São Roque e mesmo em Alcântara. Resultado dessa tendência foi a construção no Chiado da igreja de Nª. Sª. do Loreto, iniciada em 1518, que passou a congregar a comunidade italiana e a atrair para aí muitos dos seus membros, alguns dos quais a autora enumera, referindo-se à sua importância.

O artigo de Edite Martins Alberto intitulado “Corsários argelinos na Lisboa do século XVIII: um perigo iminente” evoca os menos desejados de todos os estrangeiros que contactaram com a população da cidade e seus arredores, os corsários e piratas. Ao longo de séculos, marinheiros muçulmanos atacaram as costas portuguesas, nomeadamente nas imediações do Tejo e da sua mais importante urbe, ou as embarcações que desta saíam para pescar e comerciar. Nos séculos XVII e XVIII destacaram-se nessa ação predadora navegantes vindos das cidades magrebinas de Salé e Argel, que aprisionaram, entre outros, muitos lisboetas, constantes das listas de resgatados hoje conhecidas, que incluíam barqueiros, calafates, marinheiros, pilotos da barra, pescadores, tanoeiros e até padres. O perigo de ataques era tal que a 3 de novembro de 1755, logo depois do Terramoto que destruiu grande parte da cidade, houve notícias da entrada no Tejo de uma lancha argelina, o que levou à tomada, por Sebastião José de Carvalho e Melo, de medidas especiais para proteção militar das praias próximas de Lisboa. Foi este documento que serviu de ponto de partida à autora para desenvolver esta vertente da atribulada vida da cidade.

A historiadora da arte Sílvia Ferreira chama a nossa atenção para a obra em Portugal do escultor setecentista, natural da Provença, Claude Laprade, um dos mais importantes dos inúmeros artistas que, chegados de além- -fronteiras, vieram ao longo do tempo dar o seu contributo para a criação artística e o património do país. A autora inicia a sua abordagem pela obra-prima do artista, o túmulo do bispo de Miranda D. Manuel de Moura Manuel, em Ílhavo, analisando depois o conjunto da obra do mesmo, quer em pedra quer em madeira, em Coimbra, Porto, Viseu e Lisboa e seus arredores.

O artigo de Teresa Fonseca “O reformismo pombalino e a Feitoria Britânica de Lisboa” trata das repercussões que a política do marquês de Pombal teve na comunidade dos mais prósperos homens de negócios estabelecidos na cidade. Referindo-se aos privilégios atribuídos pelo poder político, ao longo do tempo, a este grupo social, sintetiza a seguir a ação política pombalina em matéria económica e as medidas que tomou para combater esses privilégios, assim como a reação adversa dos britânicos a tais iniciativas. Com este objetivo trata mais desenvolvidamente o caso do negociante irlandês Denis Connel, que considera paradigmático da atitude dos britânicos face à política de disciplina, contenção social e de diminuição da dependência de Portugal face ao seu país conduzida por Pombal, assim como da resposta deste a essa reação.

O trabalho “Lisboa dos Italianos”, de Carmine Cassino, centra-se na pesquisa dos fatores que contribuíram para a formação de uma consciência nacional italiana antes da instituição do respetivo Estado, nos anos sessenta do século XIX, concluindo que essa consciência nasceu primeiro fora das respetivas fronteiras geográficas, entre as comunidades emigradas noutros países, devido ao distanciamento e à necessidade de união dos “italianos” de diversas origens entre si. Nessa medida, o autor refere-se a vários momentos históricos que exemplificam o aumento dessa tomada de consciência pelos italianos de Lisboa, desde a criação, em 1518, da igreja do Loreto, já mencionada noutro artigo, à construção de arcos triunfais pelas “nações” estrangeiras em ocasiões festivas, nos séculos XVII e XVIII e à instituição da Conservatória Italiana, em 1800. Destaca por fim algumas figuras de italianos dos primeiros trinta anos do século XIX que se notabilizaram nas artes, nas ciências e na atividade comercial.

A secção Documenta é destinada à divulgação de fontes originais à guarda do Arquivo. No presente número inclui--se um conjunto de posturas camarárias do século XVI que procuravam regulamentar o comportamento dos escravos, libertos e seus descendentes, compatibilizando-o com o da restante população. Incluem-se igualmente autos das fianças prestadas pelos donos de escravos barqueiros, tornadas necessárias pelo perigo de fuga de muitos deles para “terra de mouros”.

Iniciando a secção Varia, António Augusto Salgado de Barros, autor de “Lisboa na confluência das rotas comerciais: efeitos na saúde pública (séculos XV a XVII)”, aborda uma das consequências mais negativas da boa localização da cidade em relação ao comércio marítimo, a exposição dos seus habitantes a epidemias vindas do estrangeiro. Destaca também as medidas que foram tomadas pelas autoridades para tentarem minimizar as consequências desses acidentes nefastos.

Ainda nesta secção se publica um texto da autoria de Maria Inês Morais Viegas e de Paulo Jorge Batista, ambos quadros superiores do Arquivo Municipal de Lisboa, sobre a digitalização dos processos de obras particulares, a série documental mais extensa do arquivo, consultada quer pelos colaboradores do município quer por arquitetos, engenheiros, estudantes e investigadores. O documento descreve as várias fases desse processo técnico, destinado quer à preservação dos originais, quer à difusão mais fácil, rápida e fidedigna dos mesmos.

Resta-me manifestar satisfação pelo interesse que o tema sugerido despertou em vários investigadores e enaltecer o valioso contributo que, com o seu esforço e saber, deram a este número dos Cadernos.

 

Nota

*Jorge Manuel Rios da Fonseca, licenciado em História e pós-graduado em Ciências Documentais, na variante Arquivo, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e doutorado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Investigador integrado do CHAM (Centro de História d'Aquém e d'Além-Mar) da mesma Faculdade e da Universidade dos Açores. Autor de livros, artigos e comunicações de História Medieval e Moderna, nomeadamente sobre os temas dos escravos e negros em Portugal, da reforma manuelina dos forais, da assistência, administração municipal e outros. Coordenador de livros e revistas. Correio eletrónico: jmrfonseca2000@yahoo.com.br

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons