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Cadernos do Arquivo Municipal

versão On-line ISSN 2183-3176

Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.2 Lisboa dez. 2014

 

VARIA

Recensões críticas

ABREU, Laurinda - PINA MANIQUE: um reformador no Portugal das Luzes. Lisboa: Gradiva, 2013

ABREU, Laurinda - O poder e os pobres: as dinâmicas políticas e sociais da pobreza e da assistência em Portugal (séculos XVI-XVIII). Lisboa: Gradiva, 2014

José Subtil

 

 

Com um curto espaço de tempo a separá-los, bem podemos dizer que os dois recentes livros de Laurinda Abreu são, de facto, um só livro sobre o «povo anónimo» e os mecanismos de assistência montados para a sua proteção social durante o período compreendido entre os séculos XVI e XVIII.

De fora ficaram as crianças abandonadas mas, também, os mendigos que não tinham acesso aos meios assistenciais e sobre os quais as fontes pouco ou nada dizem.

Trata-se de trabalhos cujos objetos de estudo são, fundamentalmente, os hospitais, as prisões, os colégios, os hospícios, as mercearias e as misericórdias como as instituições do mundo assistencial que mais absorveram recursos, tiveram maior atividade cívica, participaram no controlo social e foram dominadas por interesses sociais, políticos, religiosos e particulares, mesmo quando na altura do estabelecimento dos legados pios, os fundadores privilegiassem a família e os amigos.

As datas das edições destes dois livros parecem invertidas na medida em que surge, em primeiro lugar, um livro sobre o final do século XVIII, dedicado a Diogo Inácio de Pina Manique e, depois, um outro que abrange as dinâmicas políticas e sociais da pobreza e da assistência em Portugal desde os finais do século XV. Talvez seja a razão para que a abordagem ao século XVIII fosse focada no célebre intendente da polícia.

A relação entre ambos os livros é, de certo modo, surpreendente na abundante historiografia da Laurinda Abreu sobre o tema «assistencial» em Portugal. É-o porque esta história social nunca teve, nos seus trabalhos anteriores, uma invocação de alteridade em relação aos reinados de D. Manuel I e D. João III, pelo menos até meados do século XIX.

A descoberta de um contexto diferente, mesmo que esporádico e atribuído à personalidade forte e determinada de um agente político, é clara e, porventura, influenciada pela dimensão da informação da sua investigação mais recente sobre a Intendência Geral da Polícia.

A periodização sobre a história assistencial em Portugal defendida pela autora, nos muitos trabalhos dedicados a este tema, confere uma importância fora de vulgar à primeira metade do século XVI, reinados de D. Manuel I e D. João III, e ao final do mesmo século, dinastia da Casa de Áustria, época em que se teria consolidado a obra assistencial manuelina. Os séculos XVII e XVIII teriam sido séculos de apatia, resignação e marasmo. Mas, agora, é reconhecido que o intendente geral da Polícia, Diogo Inácio de Pina Manique, terá recuperado o testemunho manuelino nas duas últimas décadas de Setecentos, embora este protagonismo tenha sido caucionado pelo seu caracter e pela sua personalidade, a tal ponto que Laurinda Abreu se interroga o que teria acontecido se este intendente tivesse sido nomeado no tempo do marquês de Pombal.

Para Laurinda Abreu, a Coroa quinhentista terá sido capaz de se impor ao reino e organizar, no quadro do Estado Moderno, as estruturas e os mecanismos da produção e distribuição dos recursos assistenciais com “enorme eficiência” e arquitetado um quadro normativo que terá sido o cimento para a imposição de vontade do «centro» à «periferia» (leia-se câmaras municipais, misericórdias, hospitais, confrarias, etc.). Esta prematura imposição do centro obscura neutraliza qualquer manifestação de poder «autoritário» que se tenha manifestado no século XVIII uma vez que, nesta dinâmica de construção do poder, o reformismo pombalino e neo-pombalino terão sido uma regeneração do «Estado» manuelino.

Com estes dois livros, Laurinda Abreu mantém, portanto, o enfoque privilegiado sobre as iniciativas tomadas no reinado de D. Manuel I e procede a uma revisão de leitura para o final do século XVIII, em particular para Diogo Inácio de Pina Manique que, como confessa, lhe terá causado grande curiosidade e admiração como se prova no trabalho de grande fôlego e com muita informação inédita que nos acaba de oferecer.

Como foi dito, a tese principal do livro é a de que durante o século XVIII, pelo menos até à década de 80, não ocorreram reformas substantivas no campo assistencial e das políticas de saúde pública, embora realce as intervenções do governo pombalino na Misericórdia de Lisboa e no Hospital de Todos os Santos e, no campo literário, a doutrina francamente inovadora de Ribeiro Sanches sobre a saúde pública.

Como o título do livro sugere, toda a atenção vai para o protagonismo de um ator político, Diogo Inácio de Pina Manique, que ao dirigir a Intendência Geral da Polícia e criar, como seu complemento, a Casa Pia, terá, ao arrepio do atavismo do governo dos secretários de estado, lançado um conjunto de operações logísticas e de ações sociais que o cotaram como um reformista social de grande fôlego do despotismo iluminado.

Se as suas práticas foram o mote para a proeminência política, não deixou, apesar de tudo, de traçar linhas de orientação teórica, não tanto em tratados, mas nas suas formulações políticas e nos comentários aos despachos que proferiu ou às indagações que sugeriu, críticas e polémicas que teve com os secretários de estado, dos quais se salientam alguns dos mais notáveis como José de Seabra da Silva e D. Rodrigo de Sousa Coutinho.

As incisivas intervenções da Intendência Geral da Polícia sobre mendigos, vagabundos, expostos e prostitutas, através da Casa Pia de Lisboa, foram de tal modo pensadas que, nos planos estratégicos do Intendente, o exemplo desta «Casa» devia ser replicado em todo o Reino, a começar nas principais cidades e vilas.

O mais emblemático deste programa foi o incremento de suportes e recursos ao progresso económico e social assente no trabalho e na criação de unidades fabris rurais e de manufaturas. Ao invés de aplicar políticas meramente assistenciais, Diogo Inácio de Pina Manique alimentou a ideia da regeneração dos abandonados e imbecis através do trabalho, da formação profissional e do enquadramento familiar. Para os mais dotados chegou mesmo a lançar uma ajuda superior com a atribuição de bolsas de estudo no estrangeiro.

Toda a oferta de formação estava enquadrada em colégios, organizações que também controlava e para os quais convidou cientistas «iluminados». Criativo e por vezes utópico, criou, também, uma rede de cuidados continuados e de assistência ao domicílio com o apoio da Casa Pia e inventou, para apoio à saúde dos expostos, modelos de substituição do leite materno das amas por experiências alimentares artificiais, fazendo deste modo uma articulação entre o desenvolvimento científico, o progresso social e a intervenção política como provam, aliás, as relações que o Intendente mantinha com o centro de produção de conhecimentos que era a Academia Real das Ciências. E como atestam realizações inovadoras como foi, por exemplo, a vacinação em massa da inoculação da varíola.

As suas intromissões devidas e, sobretudo, as indevidas, no combate às epidemias e na criação de cordões sanitários para impedir contágios e facilitar o tratamento das populações afetadas, catapultou o intendente para um lugar de grande visibilidade e aceitação social, visto como um referencial de segurança e de proteção, em contraste com a ineficácia dos órgãos tradicionais de governo como os tribunais e os conselhos e mesmo as secretarias de estado que estavam a crescer de competências e intervenção política.

Independentemente da correção das medidas e do acerto das reformas, este protagonismo gerou, naturalmente, apetites para entravar as suas ações, ciúmes e invejas, tanto mais que a personalidade do intendente ajudava a alimentar estes «pequenos» ódios de estimação, mesmo até no seio das comunidades de simpatizantes, ou de militantes de uma versão mais «democrática» do modelo iluminista que defendia.

A dinâmica reformista da Intendência e da Casa Pia não podia deixar de ter consequências políticas provocando confrontos com a Junta do Protomedicato, as secretarias de Estado, os tribunais, em particular o Desembargo do Paço onde acabaria, aliás, por ter assento para defender as suas opções polémicas, com o provedor-mor da Saúde, com a Universidade de Coimbra e com os magistrados régios comarcais e concelhios (juízes de fora, corregedores e provedores).

E, também, com a Igreja que tinha colhido frutos com a situação de miséria para enaltecer a virtude cristã da caridade e justificar a assistência de instituições religiosas aos pobres, mendigos, incapazes e crianças. Na doutrina clerical tinha cabimento a ideia de que a alma podia amparar o corpo através da oração e do fervor porque a saúde decorria da associação harmoniosa entre o corpo e a alma.

Como consequência, a miséria, a doença e as epidemias careciam de veneração, oração e intervenção do padre, da freira ou do frade. Ora o Intendente não admitia, no quadro da sua «ideologia» e da sua prática política autoritária, qualquer intervenção dominante da Igreja, defendo a secularização da doença e o regalismo político como soluções para estes problemas.

Por isso, na cidade de Lisboa teve sérios problemas com a misericórdia e o hospital régio. E como o alcance das suas medidas cobria o resto do Reino, foram muitos, variados e de diferentes intensidades, os conflitos políticos e jurisdicionais que Diogo Inácio de Pina Manique teve com juízes de fora, corregedores e provedores, para além das misericórdias, hospitais e confrarias.

No segundo livro, O Poder e os Pobres, as Dinâmicas Políticas e Sociais da Pobreza e da Assistência em Portugal (séculos XVI-XVIII), Laurinda Abreu continua a defender que as políticas assistenciais em Portugal, desde a versão caritativa à dos hospitais, desde a assistência confraternal às políticas régias sobre a saúde pública, terão tido uma continuidade acentuada durante mais de três séculos, desde os finais da Idade Média até à implantação do liberalismo (século XV a meados do século XIX). Os momentos mais marcantes de reformas e mudanças de atores políticos foram a dinastia de Avis e a Casa da Áustria. Desde a Restauração até à consolidação do liberalismo, passando pelo período magnânimo, a fase josefina-pombalina e a revolução liberal, não existem mostras de quaisquer alterações ao modelo implantado desde o «venturoso».

Para a autora, neste modelo de governo a marca fundamental foi a da «preeminência do poder monárquico sobre os agentes que operam nestas áreas», ou seja, sobre as misericórdias, os hospitais, os físicos, os cirurgiões, os boticários, ajudantes destes profissionais, confrarias, os municípios e a Igreja com o clérigo, os bispos, os conventos e os mosteiros. Esta continuidade e esta «força» do poder central terá tido vários momentos de reconfiguração e ajustamento desde que foi lançado o modelo e implantada a orientação para o seu governo (instituições, regulamentos, funções, estatutos, carreiras e quadros).

No período da consolidação (segunda metade do século XVI) destacam-se, entre várias medidas, a consagração das misericórdias como instituições centrais no campo assistencial e como organismos que operaram debaixo da especial proteção régia, a transferência da administração dos hospitais para as mesas das misericórdias e a criação de um quadro de formação e certificação profissional dos agentes ligados à saúde (físicos, cirurgiões e boticários) onde ganhará relevância a criação da bolsa dos «médicos de partido» e, naturalmente, a instituição de ensino encarregue do ensino e da acreditação de todos estes agentes, ou seja, a Universidade de Coimbra.

Ainda no quadro da consolidação haverá lugar para a afirmação jurisdicional destas instituições e agentes e a produção de um quadro legal e orgânico das misericórdias no encalce da bandeira erguida com o compromisso da Misericórdia de Lisboa.

Nesta proposta de entendimento, a autora juntou a estes temas o controlo das epidemias que, pela sua especificidade e dimensão, requereu obviamente uma coordenação, mesmo que diferida no tempo, das medidas e das práticas de prevenção, combate e controlo das doenças contagiosas, em especial protocolos de intervenção uniformes e orientados por deveres e obrigações dos agentes encarregues de as aplicar e monitorizar.

Podemos dizer, em conclusão, que Laurinda Abreu cimenta a sua tese nos resultados dos inquéritos de 1827 que apontam para um país, no campo assistencial e da saúde pública, muito mais próximo do período do final da Idade Média do que dos países que tinham feito a revolução liberal ou que estavam na dianteira do progresso das Luzes.

Será, contudo, de matizar estes resultados porque os inquéritos traduzem, também, a violentíssima destruição do país (1807-1820) causada pelas invasões francesas, pela «invasão» das tropas inglesas, pela fuga das elites políticas para o Brasil, incluindo a família real, e pelo desmantelamento de toda a máquina administrativa, tanto a nível central como local e periférico.

A análise que faz dos modelos sociais assistenciais do início da época moderna, leva-a a afirmar que os mesmos teriam contribuído para a construção do Estado e para uma política de centralização do poder em que a Coroa terá conseguido impor-se à periferia e, por conseguinte, delineado uma política «nacional» assistencial.

Em defesa desta ideia chama à liça o crescente protagonismo que os corregedores e provedores terão assumido na execução das medidas relativas à assistência e à saúde «decretadas» pelo monarca. Dá como exemplo a avaliação das rendas das câmaras para definir a taxa a pagar à Universidade de Coimbra para a manutenção da bolsa dos «médicos de partido» e a definição das formas e montantes a pagar pelas câmaras a estes «funcionários» régios.

Refere, também, a intervenção destes magistrados junto das autoridades eclesiásticas quando estas pretendiam ou queriam interferir no governo das misericórdias ou controlar a eleição das respetivas mesas, ou a missão para fiscalizarem as contas e os atos contestados de governo destas instituições e de outras confrarias, bem como o papel que desempenharam na ligação e comunicação política entre os municípios e a Coroa. No seu dizer, estes «ministros régios (…) contribuíram de forma considerável para tornar mais presentes os sinais do poder central nos mais recônditos cantos do país».

E se estes magistrados não chegassem, sobravam as elites locais que facilitaram o diálogo com a Coroa na medida em que estando interessadas na ação das misericórdias e demais instituições confraternais, tanto pelo prestígio social que granjeavam, como pela intervenção atempada na resolução e controlo dos problemas sociais locais, acabavam por estarem interessadas no diálogo com a Coroa e, evidentemente, empenhadas na manutenção das prerrogativas que este privilégio lhes oferecia como forma de intervir e partilhar as decisões do príncipe e dos organismos da administração central da Coroa. E o inverso também era verdadeiro, ou seja, a Coroa tirava partido nesta partilha de interesses e na comunhão de objetivos na medida em que utilizava as elites locais para a mobilização dos seus interesses e para o reforço do poder dos seus agentes.

Outra das conclusões de relevo a que Laurinda Abreu chega é a de que fonte de financiamento das políticas assistenciais não partiu da Coroa. As despesas do sistema foram suportadas pelas câmaras, pelas misericórdias, confrarias e comunidades. Ou seja, o sistema era financeiramente autónomo da Coroa que, nestas circunstâncias, terá desempenhado apenas um papel de regulação e negociação na aplicação dos dinheiros e na escolha das medidas ou na gestão de sinergias entre os vários agentes e instituições envolvidas. Como a Coroa tinha consciência das lacunas a nível local para assistir os presos, procurou intervir através da assistência das misericórdias que, no fim de contas, marcavam mais as suas presenças do que a ausência simbólica da monarca neste mundo obscuro, pouco tangível e adverso às representações abstratas.

Apesar de tudo, a autora dá relevo ao papel da Igreja, «elemento fundamental do sistema» quer porque consagra e legitima os valores que comandavam a caridade e a assistência ao próximo, emblemas do cristianismo, como contribuiu para o financiamento e o governo de muitos hospícios, mercearias, colégios, hospitais, recolhimentos e até, mesmo que de forma indireta, no governo das misericórdias.

Outra novidade, avançada pela autora, é a capacidade demonstrada pelos pobres e marginais para agirem ativamente na organização e gestão do sistema assistencial através das redes sociais que eles próprios criavam destinadas ao ingresso nas instituições confraternais e ao acesso aos bens assistenciais. O mecanismo mais poderoso que usavam era justamente o da inclusão ou exclusão nestas redes que ou facilitava ou dificultava as solidariedades e os apoios mútuos entre os pobres.

Estas duas obras somam-se, assim, ao conjunto valioso da historiografia de Laurinda Abreu sobre o tema assistencial com novas e, por vezes, surpreendentes informações, a revelação dos mais diversos tipos de documentos e acervos arquivísticos, e uma metodologia que evidencia um domínio seguro de fontes e um tratamento da informação de forma invulgar.

Há, porém, em todo o seu trabalho um aspeto estruturante para o qual valerá a pena discordar e que diz respeito à associação que faz entre a construção prematura do Estado e as políticas assistenciais da dinastia de Avis e da Casa de Áustria.

Muitos têm sido os trabalhos que nos últimos vinte anos demonstraram a fragilidade das estruturas de governo até meados do século XVIII. Por razões de economia desta recensão não será aqui o lugar para revisitar, com detalhe, esta historiografia. No entanto, impõem-se algumas notas com referência ao tema assistencial.

A Coroa, pelas limitações em recursos humanos, materiais e pela dogmática política vigente, não estava em condições para impor uma unidade de poder regalista, situação que só começou a ser desenhada pelo estado de polícia com a governação pombalina.

O pluralismo de poderes e de jurisdições privilegiava os corpos, os grupos e os estados, as suas autonomias e interesses. As obrigações que decorriam do cumprimento de uma ordem régia eram ajustadas aos interesses locais. E eram aproveitadas pelos magistrados régios (juízes de fora, corregedores e provedores) para forçarem as suas próprias identidades e autoridades de corpo, as suas prerrogativas, bem longe das da Coroa.

Portanto, o que está em causa para se compreender politicamente a regulação do «campo assistencial» durante os séculos XVI, XVII e XVIII é a caracterização do modelo de governo, o inventário dos recursos humanos e materiais e o quadro culto-mental moldado pelo mesmo. E é necessário uma abordagem diferente da lógica assistencial para analisar o caso do controlo das epidemias e a prevenção e limitação de doenças epidémicas e contagiosas que afetavam e atingiam todo o Reino.

Neste sentido, os aspetos nucleares da configuração do sistema de poderes da monarquia «corporativa» e do sistema político «proto-estadualista» marcaram a periodização da história assistencial em Portugal. Um período que medeia entre os séculos XV e XVII e, um outro, que se inicia com o terramoto político pombalino posterior ao terramoto sísmico de 1755.

A ideia de que para a centralização do poder régio e da construção do Estado desde os finais da Idade Média terão participado os municípios e as misericórdias como «correias» de transmissão do poder régio, não se ajusta às inesgotáveis capacidades de autonomia destas instituições e de tantas outras que, longe da Coroa, disputaram o poder entre si, com a Igreja, os donatários da Coroa, as ordens religiosas, as comunidades e os próprios magistrados régios (juízes de fora, corregedores e provedores).

O paradigma cultural da esfera do público e do privado marcou, por outro lado, a definição do interesse público e do interesse individual, do espaço social ocupado pela miséria, a pobreza, a doença e as políticas assistenciais.

Os mendigos, miseráveis, crianças abandonadas e expostas, deficientes, trabalhadores sazonais, (i)emigrantes que viviam em condições muito precárias, pobres, famintos e desamparados - por terem crescido fora dos espaços socialmente construídos - formavam um conjunto marginal com sérios problemas para a segurança e a saúde pública que a Coroa não sabia nem podia resolver e que só às comunidades interessava, efetivamente, solucionar. Com falta de recursos financeiros, a Coroa abdicou de criar uma rede de hospitais públicos, aparte os hospitais reais que foram instalados nas principais cidades (Lisboa, Porto e Coimbra), como abdicou de criar instituições de apoio assistencial que viesse a governar diretamente ou através de poderes intermédios.

Um caso significativo é, por exemplo, o dos «partidos» de médicos formados com o apoio de «bolsas» financiadas pelos municípios para assistirem, gratuitamente, os povos dos concelhos (mesmo assim numa percentagem de aproximadamente 10% dos municípios). Mas em tudo que implicasse despesa, a Coroa não se comprometia. Ao contrário, para encaixar avultadas receitas com os encartes, a Coroa exerceu funções de regulação sobre a atribuição e distribuição de ofícios e cargos de saúde, como físicos, cirurgiões e boticários. Mas os médicos do «partido», devido aos baixos salários que recebiam, podiam exercer medicina privada ou contratualizada (com as câmaras, confrarias, famílias de notáveis, moradores de lugares) ou mesmo levar honorários por consultas avulso.

O estado de polícia que emergiu como novo paradigma político a partir de meados do século XVIII assentou na ideia mecânica da governação, no poder ilimitado da razão para compor a sociedade e organizá-la como um conjunto de indivíduos libertos para a vontade e para a ação e não como um conjunto metafísico agregado a uma lógica de de predestinação.

A própria classificação da pobreza foi (re)-conceptualizada em torno da ideia da ociosidade, da regeneração pelo trabalho ou da perigosidade para a segurança e eventual encarceramento. E, por isso, a assistência de natureza religiosa foi desvinculada das instituições de caridade encarregues de matar a fome e vestir os esfarrapados e abandonados para ser assumida pelo poder público, pelas autoridades seculares e regalistas. O movimento confraternal foi, de facto, marcado por três legendas: dar de comer a quem tem fome, dar de beber a quem tem sede, dar abrigo aos desamparados, vestir os abandonados, visitar os presos e enterrar os mortos. As confrarias eram piedosas e devotas por praticarem a caridade da mesma forma que asseguravam missas para a salvação das almas dos instituidores, dos seus familiares ou das almas do purgatório.

O melhor quadro para caracterizar a impotência da Coroa é o do combate às epidemias onde se verificava, neste momentos de pânico, a desorganização dos hospitais de província, a ausência de redes de recursos, o caótico modelo de decisão política e a degradante situação da exposição dos mortos nas ruas, as fugas dos hospitais e a criação de ermos sanitários degradantes.

A única atitude assumida pela Coroa para dar combate a estas ameaças à saúde pública do Reino era a de tomar medidas preventivas e de fiscalização do controlo de entradas e saídas do Reino, visar os passaportes, impor quarentenas e devastar os grupos de vadios e mendigos. O provedor-mor de Saúde por não ter capacidade de intervenção aligeirava as suas responsabilidades nas autoridades locais e nos grupos de voluntários que se organizavam nas comunidades em torno das organizações assistenciais, leigas e eclesiásticas. Com carater transitório, em cada vila ou cidade era eleito um provedor da saúde com jurisdição para encerrar casas, queimar roupas, isolar doentes e recrutar médicos e boticários. E tinha, ainda, por obrigação escolher um lugar fora da povoação para construir o refúgio para o internamento de doentes contagiados ou suspeitos e a «cadeia de peste» para encarcerar os presos contagiados.

Na realidade, a política de assistência e de saúde pública, tirando o caso das epidemias, não existia até porque os ricos ou mesmo os remediados preferiam o tratamento privado das doenças. E compreende-se porque assim tenha sido na medida em que o arsenal farmacêutico e a terapêutica médica eram incipientes. O hospital não apresentava vantagens sobre o tratamento em casa que permitia, em contrapartida, dietas ricas em carne e caldos de galinha, e a ajuda de familiares e criados.

Os hospitais eram, por isso, e sobretudo instituições de caridade a que recorriam os pobres e miseráveis que não podiam pagar uma consulta nem uma refeição calórica ou vencer o frio que as poucas roupas não evitavam. A maioria dos internados procurava o hospital por causa da fome, do frio e não pela doença. A alternativa que restava a estes «desgraçados» era recorrer à esmola ou ao trânsito da mendicidade.

Tudo isto levanta um problema hermenêutico relativamente à leitura das poucas estatísticas que é possível fazer sobre as entradas e as saídas de «doentes» dos hospitais.

Uma palavra final sobre as notas de rodapé que nos parecem, numa edição comercial, serem exageradas e que a mudança de critério na apresentação das mesmas, do primeiro para o segundo livro, prejudicou muito a leitura do mais recente sobre o Poder e os Pobres visto que as 1.299 notas sobre o texto são lidas de seguida, depois da conclusão, ocupando 105 páginas, cerca de 25% do conteúdo de apresentação da obra.

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